PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
CRITÉRIOS DE APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário


1. A intervenção do Estado para separar um menor dos pais biológicos é antinatural e constitui uma violência. Todavia, a natureza não é perfeita, e há situações extremas que exigem soluções igualmente extremas. O que legitima a intervenção do Estado no seio da família natural é o propósito que o move -a protecção dos menores-, e o respeito absoluto pelos procedimentos impostos por lei.
2. O processo penal não é uma causa prejudicial relativamente aos autos de promoção e protecção.
3. Os critérios de apreciação da prova são distintos no processo penal e no processo civil.
4. Mas quando os factos (muito graves) que levaram à abertura do processo de promoção e protecção estão igualmente a ser investigados num processo penal, onde já foi proferida acusação contra os progenitores, faz sentido aguardar pela decisão penal em primeira instância, antes de declarar encerrada a instrução.
5. Não é necessário aguardar pelo trânsito em julgado da decisão penal condenatória para declarar encerrada a instrução no PPP.
6. O princípio da presunção de inocência vigora no processo penal, mas não no processo de promoção e protecção, no qual o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.
7. Se a decisão em primeira instância for de condenação dos progenitores, deve considerar-se que, para efeito do PPP, a presunção de inocência deixou de existir, e foi substituída por uma presunção de culpabilidade.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível ... - Juiz ..., correm termos uns autos de Promoção e Protecção, com o nº 1383/22...., em que é Requerente o Ministério Público e Menor AA.

O processo começou com o MP a requerer a abertura de procedimento judicial urgente, nos termos dos artigos 11.º, n.º 2, 35.º, n.º 1, alínea f), 37.º, n. º1, 49.º, 50.º, n.º 3 e 91.º, n.º 4, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (doravante LPCJP), relativamente à criança AA, nascido em .../.../2022, filho de BB e de CC, residente na Rua ..., ..., peticionando, a final e entre o mais, a aplicação urgente de uma medida de promoção e protecção provisória de acolhimento residencial em unidade Hospitalar apta a prestar-lhe os necessários cuidados médicos, neste caso o Centro Hospitalar ... no ..., nos termos das disposições conjugadas dos artigos 92.º, n.º 1 e 37.º da LPCJP.

O Tribunal, por despacho de 26.8.2022, analisou os factos indiciariamente provados e, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 92.º, n.º 1, 35.º, 1, alínea f) e 37.º, n.º 1 e 3 da LPCJP:
-determinou a aplicação provisória da medida de promoção e protecção urgente de acolhimento residencial, prevista no artigo 50.º, n.º 3 da LPCJP, a favor do menor AA, em Unidade Hospitalar apta a prestar-lhe os necessários cuidados médicos, neste caso no Centro Hospitalar ... e, após a sua alta clínica, em instituição apta a receber o menor, oportunamente a indicar pela Segurança Social, pelo período de 3 meses, sem prejuízo de ulterior prorrogação e/ou alteração.
Determinou, ao abrigo do artigo 92.º, n.º 3 da LPCJP, que os presentes autos prossigam os seus termos como processo judicial de promoção e protecção.
Declarou aberta a instrução, nos termos do artigo 106.º, n.º 2 da LPCJP.

Em 30.8.2022 foi junta promoção aos autos pelo MP, acerca da continuidade da presença da mãe junto do bébé no internamento.
Depois de elencar as suas razões e meios de prova, conclui: “com base nos elementos juntos aos autos, e aqueles cuja junção ora se promoveu, é absolutamente indispensável impedir que os pais do menor AA possam ter contacto com o mesmo, ainda que em contexto hospitalar, pois colocaria o menor numa situação de enorme fragilidade, à mercê dos suspeitos das graves lesões que lhe foram infligidas, o que poderia comprometer de modo que se poderia revelar irremediável, a sua segurança e protecção para a sua vida e saúde, o que é o desiderato da medida de promoção e protecção aplicada.
Pretende-se, pois, a devida protecção do menor, que impossibilite totalmente, que os seus pais, que são suspeitos de lhe terem causado as graves lesões físicas que lhe poderiam ter custado a vida, possam de algum modo, colocar em causa o seu bem-estar físico e/ou fazer perigar a sua vida. Efectivamente, e considerando o perfil psicológico da mãe do menor, designadamente “uma evolução desarmónica da personalidade, na linha da psicopatia, apresentando· pois um prognóstico reservado ao nível do carácter”, bem como a suspeita que recai sobre os pais de terem sido causadores das graves lesões de que o menor padece, é evidente o elevado perigo para a vida, saúde e segurança do menor, caso os pais pudessem estar um contacto directo com o menor, sendo absolutamente imprescindível impedir que os pais contactem com o mesmo, de forma a que a medida de promoção e protecção doutamente decidida pelo Tribunal tenha plena eficácia.
Pelo exposto, promove que se profira douto despacho, através do qual se determine que CC e BB, pais do menor AA, não possam estar, nem contactar com o mesmo, nos termos dos art.º 34º, 35.º, f), 37.º, n.º1, 91,º e 92.º da LPCJP”.

Sobre esta promoção recaiu o seguinte despacho:
“Cumpre apreciar e decidir.
O que está em causa nos autos é essencialmente saber se deve manter-se a medida provisória de promoção e protecção urgente de acolhimento residencial, prevista no artigo 35.º, f) e 50.º, n.º 3 da LPCJP, a favor do menor AA, em Unidade Hospitalar apta a prestar-lhe os necessários cuidados médicos, desta feita, e a partir do dia 30.08.2022, a ser executada no Hospital ..., e, após a sua alta clínica, em instituição apta a receber o menor, oportunamente a indicar pela Segurança Social, pelo período de 3 meses, sem prejuízo de ulterior prorrogação e/ou alteração, bem como se deve permitir-se que os pais do menor (CC e BB), poderão contactar com o este, ainda que em ambiente hospitalar.
Começando por esta última questão, basta ter presente o que acima consta, na transcrição da promoção referida, em relação à caracterização do estado psicológico e psiquiátrico da mãe do menor, que aqui se dá por reproduzido, por economia processual, bem como o seu passado de inobservância da lei, e o seu presente de, pelo menos alegada, igual inobservância da lei, designadamente penal, para concluir, intuitivamente, dir-se-ia, que a mãe do menor não deve ter por ora qualquer contacto com este. Na verdade, a sua perturbação mental, a sua inadaptação social e o seu descontrole emocional são de tal modo evidentes que qualquer contacto com o menor, atento o seu mais que frágil estado de saúde, poderá redundar numa regressão dos lentos progressos do seu estado clínico.
Por outro lado, tendo em conta o objecto do processo, o concreto estado de saúde do AA e as lesões que apresenta, e que os principais suspeitos da autoria dos factos em investigação são os próprios pais do menor, é, ainda, evidente, a necessidade de garantir, por ora, e até ulterior e cabal investigação, que tais pessoas se não possam acercar da vítima, sejam eles pais ou não.
Assim sendo, defiro o que vem promovido, e, em consequência:
A) Autoriza-se a proposta transferência do menor AA para a Unidade Hospitalar de ... – EPE;
B) Determino a manutenção da medida provisória de promoção e protecção urgente de acolhimento residencial, prevista no artigo 35.º, f) e 50.º, n.º 3 da LPCJP, a favor do menor AA, em Unidade Hospitalar apta a prestar-lhe os necessários cuidados médicos, passando a mesma, e a partir do dia 30.08.2022, a ser executada no Hospital ... (caso se verifique a anunciada transferência), e, após a sua alta clínica, em instituição apta a receber o menor, oportunamente a indicar pela Segurança Social, pelo período de 3 meses, sem prejuízo de ulterior prorrogação e/ou alteração;
C) Determino ainda que se cumpra o já ordenado e, assim, se oficie, de imediato à EMAT, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 108.º, n.ºs 1 e 2 da LPCJP, como requerido pelo Ministério Público, solicitando que elabore, no prazo máximo de 5 dias, relatório referente ao menor e seus progenitores, indicando instituição apta a receber o menor após e quando possa ter alta médica e ainda apresentando proposta de intervenção in casu;
D) Determino que CC e BB, pais do menor AA, não possam estar, nem contactar com o mesmo, nos termos dos art.º 34º, 35.º, f), 37.º, n.º1, 91,º e 92.º da LPCJP”.

Em 28/9/2022 foi junto RELATÓRIO SOCIAL DE AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA pela Segurança Social.

A 10/10/2022 o MP apresenta nova promoção, com base nos factos já conhecidos e ainda noutros, em que “promove e requer a aplicação, em benefício do menor, da medida de promoção e protecção de confiança da criança a instituição com vista à sua futura adopção, nos termos e para os efeitos constantes dos art.ºs. 35.º n.º 1 al. g), 38.º-A al. b) e 62º - A da LPCJP e art.º 1978.º nº 1 als. a), c), d) e e), 2 e 3 do Código Civil.
Mais requer, nos termos do art.º 114.º, n.º 2 da LPCJP):
a) Se decrete a inibição das responsabilidades parentais dos pais da criança, nos termos do art.º 1978.º-A do Código Civil, comunicando-se oportunamente à Conservatória do Registo Civil para efeitos de registo – artºs. 1920º - B al. d) do Código Civil; 69º nº 1 al. f) e 78º do Código Registo Civil;
b) Se mantenha a proibição de visitas e contactos à criança por parte da sua família natural, nos termos do art.º 62.º-A n.º 2 da LPCJP;
c) Seja nomeada curadora provisória à criança, a Directora Técnica da instituição “Casa de Acolhimento ...”, em ..., Dra. DD, nos termos dos arts. 62.º-A n.º 3 e 5 da LPCJ e 29º al. d) do RJPA, aprovado pela Lei nº 143/2015 de 8/9;
d) Se comunique a decisão ao Organismo de Segurança Social, nos termos do art.º 39º nº 2 do Regime Jurídico do Processo de Adopção, (RJPA) aprovado pela Lei nº 143/2015 de 8/9;
e) Por último, requer-se que aquele Organismo elabore, dentro de 3 meses, a informação a que aludem os artigos 8º, al. b) e 42º, ambos do RJPA”.

Realizou-se Conferência em 13-10-2022, com a presença do Magistrado do MP, da Defensora Oficiosa do menor, dos progenitores, e Defensora oficiosa destes.
A ilustre patrona dos progenitores requereu que os progenitores possam ter visitas supervisionadas, para não perderem o vínculo com a criança. O Magistrado do MP opôs-se a qualquer tipo de visita.
Os progenitores, questionados sobre a eventual aplicação por acordo, da medida de promoção e protecção de acolhimento residencial manifestaram concordar com a mesma, no entanto o Digno Magistrado do Ministério Público opõe-se à aplicação da dita medida.
Os progenitores, questionados sobre a eventual aplicação da medida de promoção e protecção de confiança da criança a instituição com vista à sua futura adopção, também discordaram da aplicação dessa medida.

O Tribunal determinou a realização de perícia psicológica/psiquiátrica a ambos os progenitores.
O Tribunal ainda decidiu que quanto às visitas ao AA, não existem circunstâncias supervenientes que determinem a alteração do que já foi decidido nesta matéria, para protecção do superior interesse da criança.

Em 25.10.2022 teve lugar conferência de pais, sobre a necessidade de intervenção cirúrgica urgente na pessoa do menor AA. Os progenitores consentiram expressamente na realização da intervenção cirúrgica (craniotomia para drenagem da provável colecção abcedada parietal esquerda assim como trépano frontal esquerdo e direito para lavagem e drenagem dos higromas hemisféricos).

De seguida, foi proferido despacho, que decidiu conceder aos progenitores a possibilidade de, querendo, visitarem o AA enquanto o mesmo se encontrar internando no Hospital ..., desde que estejam permanentemente acompanhados pela Sr.ª Técnica da Segurança Social, Dr.ª EE, ou, alternativamente, pela Srª Directora Técnica da casa de acolhimento, Dr.ª DD, combinando, para o efeito, previamente, um horário e uma data especificas com a Sr.ª Técnica da Segurança Social e com a casa de acolhimento, e cumprindo todas as instruções que lhes forem dadas pelas referidas pessoas.

Em 15.11.2022 a Segurança Social emite parecer no sentido que a medida aplicada ao menor AA se deve manter, pelo que propõe a prorrogação da medida de “Acolhimento Residencial”.

Foi proferido Despacho (em 24.11.2022) que, “ao abrigo do disposto nos artigos 3.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c), 35.º, n.º 1, alínea f), e 37.º, todos da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, decide manter, por três meses, a medida provisória de acolhimento residencial já aplicada à criança AA, permanecendo este entregue à guarda e cuidados da Instituição onde se encontra acolhido (sem prejuízo do facto de se encontrar, de momento, internado), mantendo-se ainda, nos termos e pelos fundamentos expostos, o decidido na ref. CITIUS n.º ...96 a propósito da autorização de contactos dos progenitores com a criança”.

A fls. 455 o Magistrado do Ministério Público, vem informar os presentes autos que, a 16/1/2023, instaurou a acção de impugnação da paternidade de AA, registado como sendo filho de BB, a qual tem o número 88/23.....

A fls. 414 o Ministério Público mantém o entendimento já anteriormente apresentado quanto às visitas e contactos entre os progenitores e a criança, considerando que se mostra imperioso aplicar as seguintes proibições aos progenitores, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 4.º, 5.º, 34.º, 35.º, f), 37.º, n.os 1 e 3, 50.º , 91,º e 92.º da LPCJP, o que promove:
I- proibição de contactar, por qualquer meio ou forma e em qualquer lugar, directamente ou por interposta pessoa, com a criança AA;
II- proibição de contactar, por qualquer meio ou forma e em qualquer lugar, directamente ou por interposta pessoa, com a(s) pessoa(s) que tenha(m) a sua guarda de facto no presente e/ou no futuro, bem como com o(s) Director(es) Técnico(s) e outras pessoas que exerçam funções na(s) casa(s) de acolhimento em que a criança se encontre acolhida e/ou venha a encontrar acolhida no futuro e ainda com médico(s), enfermeiro(s) e outras pessoas que exerçam funções na unidade hospitalar ou outra unidade de saúde em que se encontre e/ou venha a encontrar no futuro por questões relacionadas com a criança;
III- proibição de frequentar, permanecer ou se aproximar da casa de acolhimento/residência da criança/vítima AA actual e futura e/ou da unidade hospitalar ou outra unidade de saúde em que se encontre e/ou venha a encontrar. Por tal ser indispensável para impedir a reiteração de comportamentos atentatórios de bens jurídicos fundamentais na pessoa da criança.

Foi proferido despacho em 20.12.2023, que ao abrigo do disposto nos artigos 1.º, 3.º, 4.º, 34.º, 35.º e 37.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, decidiu “autorizar, nos termos e pelos fundamentos expostos, que os progenitores BB e CC visitem, na casa de acolhimento, a criança AA, uma vez por semana, nos dias e horários estabelecidos pela própria casa de acolhimento, que garantirá a integral supervisão destas visitas por técnico devidamente habilitado para o efeito. Salvaguarda-se, porém, que a presente autorização não coloca em causa, conforme supra se expôs, eventuais proibições de contactos estabelecidas a título de medidas de coacção, que continuam a vigorar, salvo se, oportunamente, for proferida decisão diversa por parte do Tribunal competente”.

A fls. 347 consta o Acórdão deste TRG de 22.2.2023, que altera a medida de coacção fixada na primeira instância.

A fls. 200 consta o despacho de acusação contra os progenitores.

A 19.6.2023 o MP veio pronunciar-se pela necessidade de prorrogação da medida cautelar aplicada.

Entretanto foi proferido Acórdão de 22.6.2023 deste TRG, que apreciou a bondade do despacho que permite aos recorridos BB e CC visitar, na casa de acolhimento, a criança AA, uma vez por semana, nos dias e horários estabelecidos pela própria casa de acolhimento, que garantirá a integral supervisão destas visitas por técnico devidamente habilitado para o efeito, o qual julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida.

A 13.7.2023 o MP veio apresentar requerimento, pedindo que seja proferido despacho conferindo à Directora Técnica da Casa de Acolhimento ... a possibilidade de tomar decisões relativas à saúde e aos tratamentos médicos da criança AA”.

O Parecer técnico da Segurança Social de 24.7.2023 foi no sentido de, estando ainda a decorrer o processo crime aos progenitores, estando os mesmos acusados de serem os autores dos maus tratos ao filho AA, manter o parecer que o mesmo continue aos cuidados da Casa de Acolhimento onde se encontra acolhido.

Foi proferido o despacho de 2.8.2023, que, considerando que no momento actual, não é objectivamente do interesse da criança que se mantenham os progenitores a exercer as responsabilidades parentais, no respeitante à tomada de decisões relativas à saúde e aos tratamentos médicos do AA, conferiu à Directora Técnica da Casa de Acolhimento ... a possibilidade de tomar decisões relativas à saúde e aos tratamentos médicos da criança AA, nos termos requeridos em 13.7.2023.
           
A fls. 106 o Ministério Público veio requerer que seja dada por finda a fase de instrução e que seja ordenado o cumprimento ao disposto no art.º 114.º n.º1 da LPCJP.

Segue-se o Despacho de 2.10.2023:
“Oportunamente, o Tribunal pronunciar-se-á sobre o encerramento da instrução, requerida pelo Ministério Público.
Em face da data da última revisão da medida provisória de promoção e protecção de acolhimento residencial, solicite ao SIATT a remessa aos autos de relatório actualizado, tendo em vista a revisão prevista no artigo 37.º, nº 3 da LPCJP, que deverá ser apresentado no prazo de dois dias.
Solicite ao processo-crime nº 622/22...., a correr termos no Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., sobre se foi já designada data para a realização da audiência de julgamento e ainda informação sobre o actual estatuto coactivo dos arguidos.
Solicite ainda ao processo nº 88/23...., relativo à acção de impugnação da paternidade, a correr termos neste Juízo, informação sobre o estado dos autos.

Seguidamente (fls. 89; 23.10.2023) foram juntos aos autos os pareceres da Casa de Acolhimento ..., da Segurança Social, que coincidem no entendimento que enquanto estiver a decorrer o processo crime relativamente aos progenitores, e não havendo certezas se os mesmos serão ou não culpados ou inocentes dos presumíveis maus tratos à criança, se deve manter a medida de Acolhimento Residencial, por se entender ser a que pelo menos por ora melhor salvaguarda o interesse superior da criança AA.

A 27.10.2023 vem novamente o MP requerer que seja dada por finda a fase de instrução e que seja ordenado o cumprimento do disposto no art.º 114.º n.ºs 1 e 2 da LPCJP.

Finalmente, é proferido despacho em 31.10.2023:
Da Revisão da Medida e do Pedido de Encerramento da Fase de Instrução
Em 26 de Agosto de 2022, foi aplicada à criança AA a medida provisória de promoção e protecção de acolhimento residencial em Unidade Hospitalar e, após a alta clínica, em instituição apta a receber o menor, por o mesmo se encontrar numa situação de perigo de comprometimento da sua integridade física e vida, indiciariamente por uma actuação dos seus progenitores, nos termos e com os fundamentos aí constantes e que se dão por reproduzidos (refª ...16, de 26.08.2022). Foi ainda declarada aberta a fase de instrução.
Em 30 de Agosto de 2022, foi decidida a manutenção da medida provisória de promoção e protecção urgente de acolhimento residencial, passando a ser executada no Hospital ... e, após a alta clínica, em instituição apta a receber o menor. Foram ainda proibidos os contactos dos progenitores com o menor (refª ...65).
Em 13 de Setembro de 2022, o menor passou a integrar a instituição onde ainda se mostra acolhido (ofício com a refª ...30, de 14.09.2022).
Em 13 de Outubro de 2022, foi realizada conferência a que alude o artigo 112º da LPCJP, tendo os progenitores manifestado concordância com a aplicação da medida de acolhimento residencial, enquanto o Ministério Público opôs-se a tal medida, promovendo a aplicação de medida de promoção e protecção de criança a instituição com vista a futura adopção, ao que os progenitores se opuseram.
Esta medida de promoção e protecção urgente tem vindo a ser revista e mantida, a última das vezes por decisão de 30 de Junho de 2023.
Após insistência, foi remetido, em 24.10.2023, relatório social (refª ...13), no qual se propôs a prorrogação da medida de acolhimento residencial, uma vez que ainda se encontra a decorrer o processo-crime.
A instituição onde a criança se encontra acolhida, também se pronunciou no sentido de ser mantida a medida de acolhimento residencial, enquanto o processo crime estiver a decorrer.
Foi dado cumprimento aos artigos 84º e 85º da LPCJP e nada foi dito.
O Ministério Público requereu que seja dada por finda a fase de instrução e que, por ora, seja prorrogada a medida de acolhimento residencial por, nesta fase do processo, não ser possível a aplicação da medida de confiança com vista à adopção, a qual considera que será a única que acautela o superior interesse da criança por se assumir como um verdadeiro projecto de vida para esta criança.
Cumpre apreciar.
Estabelece o artigo 37º da LPCJP que “1 - A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente. (…) 3 - As medidas aplicadas nos termos dos números anteriores têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses.”
Por outro lado, prevê o artigo 109º da LPCJP que “A instrução do processo de promoção e de protecção não pode ultrapassar o prazo de quatro meses”.
Acrescenta o artigo 110º da LPCJP que “1 - O juiz, ouvido o Ministério Público, declara encerrada a instrução e: a) Decide o arquivamento do processo; b) Designa dia para conferência com vista à obtenção de acordo de promoção e protecção ou tutelar cível adequado; ou c) Quando se mostre manifestamente improvável uma solução negociada, determina o prosseguimento do processo para realização de debate judicial e ordena as notificações a que se refere o n.º 1 do artigo 114.º”
Decorre destes preceitos que as medidas provisórias têm uma duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses e que a fase de instrução deve ser finda no prazo de quatro meses.
Declarada finda e na falta de acordo para a aplicação de uma solução negociada, devem os autos prosseguir para debate judicial, o qual segue uma tramitação urgente nos termos do estabelecido nos artigos 114º a 120º.
E aí há que atender em particular ao disposto no artigo 117º da LPCJP ao consagrar que “Para a formação da convicção do tribunal e para a fundamentação da decisão só podem ser consideradas as provas que puderem ter sido contraditadas durante o debate judicial.”
Ou seja, o encerramento da fase de instrução, com o prosseguimento dos autos para debate judicial, pressupõe que os elementos de prova, mormente documental e pericial, estejam reunidos para que, em sede de debate, possam os mesmos ser contraditados, sob pena de não poderem ser atendidos na decisão final a proferir.
Porém, considera-se que esses prazos previstos na lei, mormente do prazo máximo das medidas cautelares e do encerramento da instrução, não podem ser considerados absolutos, podendo em determinadas circunstâncias excepcionais ser ultrapassados, de modo a acautelar o superior interesse da criança.
Na verdade, como se referiu no Ac. TRC de 13.09.2022, proc. 1276/21.5T8CLD-C.C1, disponível em www.dgsi.pt a “LPCJP tem por objecto a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, sendo esse o seu escopo, na defesa do superior interesse da criança e do jovem, sujeitos débeis na relação familiar complexa e conflitual.”
Porém, como acrescenta “O decurso do prazo a que alude o art.º art.º 37.º, n.º 3, da LPCJP (…) não implica, apesar da natureza urgente dos autos, a cessação automática da medida provisória aplicada, perante situação de emergência, por quadro de grave risco de pessoa menor. (…) Não sendo a celeridade um valor absoluto, em termos de se superiorizar ao interesse da criança ou do jovem – a que está funcionalizada –, pode, excepcionalmente, em casos devidamente justificados, a medida provisória ser prorrogada pelo tempo mínimo que se mostre indispensável”. É o que se verifica quando “esteja em causa a aquisição de prova essencial”.
“Do mesmo modo, também o prazo da instrução do processo de promoção e protecção – com um máximo de quatro meses (art.º 109.º da LPCJP) – poderá ser, excepcionalmente e em casos devidamente justificados, prolongado pelo tempo estritamente necessário para se obter prova essencial à decisão final dos autos, designadamente prova técnica/pericial, sem a qual poderia ficar em causa a justa composição do diferendo e o superior interesse da criança ou do jovem”.
No mesmo sentido, Ac. STJ de 11.07.2019, proc. 3404/16.3T8VFR-I.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt no qual se consignou que “«II – Não é imperativo o prazo de 6 meses fixado no art. 37º, nº 3 da LPCJP para a duração das medidas provisórias; é um prazo indicativo, no sentido de que, sendo embora um objectivo de celeridade a alcançar, pode, em casos devidamente justificados, ser ultrapassado. III – Esta celeridade não é um valor absoluto em si, em termos de poder sobrelevar, prejudicando, o superior interesse da criança, primeiro dos princípios orientadores da intervenção para promoção de direitos e protecção da criança e do jovem em perigo - art. 4º, alínea a) da LPCJP”.
É precisamente o que se verifica na presente situação. Estão a correr termos dois processos judiciais, um de natureza criminal e outro de natureza civil, que, uma vez consolidados, podem determinar alterações significativas na situação de facto deste menor. Com efeito, não se pode ignorar que os presentes autos se iniciaram com uma situação de maus tratos, imputada indiciariamente aos progenitores do menor, a qual deu origem ao processo-crime nº 622/22...., onde foi já proferida acusação, imputando-se aos arguidos CC e BB a prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, em concurso aparente com a prática de um crime de violência doméstica agravado (refª ...47, de 26.04.2023).
Este processo tem já audiência de julgamento marcada para o mês de Novembro (cf. refª ...29, de 03.10.2023).
Ora, crê-se que, enquanto este processo não for decidido, não se pode avançar, como pretende o Ministério Público para debate judicial com vista a aplicação da medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a adopção.
De facto, esta medida implica a quebra total e absoluta de contactos e vínculos entre a criança e a família biológica, podendo ser aplicada, nomeadamente, “se os pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança” (artigo 1978º, nº 1, al. d) do CC).
Contudo, concluir, desde já, que a matéria de facto constante da acusação do processo crime (e da qual resulta que os progenitores puseram em risco o menor) é suficiente para a aplicação da medida com vista a adopção é fazer tábua rasa do princípio da presunção de inocência, constitucionalmente consagrado no artigo 32º, nº 2 da CRP - Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
Não se pode concluir, desde já, que os progenitores cometeram aqueles factos, em que o Ministério Público baseia a sua promoção para defender a aplicação da medida de promoção de confiança a instituição com vista a adopção, sob pena de se violar de modo manifesto um dos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático, no âmbito das garantias do processo penal.
Os progenitores, como o Ministério Público bem refere, são “suspeitos”, aliás, arguidos, estando indiciados do cometimento desses factos, mas não foram ainda condenados.
Claro que, além deste processo, há que atender também ao teor dos relatórios periciais, na área da psicologia e psiquiatria realizados aos progenitores para aferir também das suas capacidades parentais e para garantir o projecto de vida do menor.
Mas, o desfecho do processo-crime vai ter, como é evidente, uma implicação, aliado ao teor dos relatórios e da demais prova documental já junta, na situação factual que deve ser tida em conta quando for proferida decisão final nestes autos de promoção e protecção. E essa apenas pode ser valorada aguardando-se pelo desfecho do processo-crime.
Não pode, pois, decidir-se já por um único desfecho possível. Como o Ministério Público disse - o menor AA tem direito a uma família, - não pode é já definir-se, em face dos elementos actuais, que essa família passará por uma família adoptiva e não biológica.
O mesmo se diga do processo nº 88/23...., relativo à acção de impugnação da paternidade, que corre termos neste Juízo e onde se aguarda o envio do relatório médico legal (refª ...00, de 06.10.2023). Nesse processo, o Ministério Público instaurou acção, pedindo que seja declarada sem efeito a perfilhação averbada no assento de nascimento do menor, ordenando-se o cancelamento do averbamento de paternidade.
Ora, a confirmar-se que o pai registado não é o pai biológico, e a lançar mão, desde já, do instituto da adopção, é violar o princípio da prevalência da família, no âmbito do qual, na promoção dos direitos e na protecção da criança e do jovem, deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, com preferência na biológica. E apenas quando esta não seja uma alternativa, na família adoptiva (artigo 4º, al. h) da LPCJP e artigo 67º da CRP).
De facto, estar-se-ia a obstaculizar qualquer possibilidade de o verdadeiro pai biológico, a julgar-se procedente aquela acção, ser uma alternativa ao projecto de vida do menor ou até de outros seus familiares. Sem esse esgotar das intervenções possíveis junto da família natural, não se estará a observar o princípio da prevalência da família, o que também constitui um direito do próprio menor.
Por isso, julga-se que o desfecho de ambos estes processos é essencial e fundamental para se tomar a decisão com maior consistência para a vida do menor.
É o direito do menor a ver salvaguardado o seu superior interesse e a definição do seu futuro, de modo consistente e não precipitado, que impõe que o presente processo reúna todos os elementos necessários, nomeadamente a definição sobre a responsabilidade penal dos seus progenitores e a definição da identidade do pai biológico, além da prova pericial já junta.
A reunião de todos estes elementos afigura-se-nos, pois, fundamental para que o Tribunal possa ponderar a aplicação de uma medida de promoção e protecção diferente da actual, mormente a que o Ministério Público pretende.
Daí que se considere que estes elementos impõem que o Tribunal alargue de modo fundamentado e excepcional o prazo de duração da medida de promoção e da fase de instrução, não estando, pelo que se disse, ainda reunidos os elementos para determinar o encerramento da fase de instrução.
Porém, entende-se que há que manter esta medida de acolhimento residencial, a título provisório, por permanecerem inalterados os pressupostos que deram causa à aplicação da medida, sendo certo que a prorrogação daqueles prazos em nada colide com o bem-estar do menor, o qual se encontra presentemente assegurado pela Instituição.
De facto, como resulta do relatório social, o menor encontra-se integrado na Associação, apresentando um desenvolvimento dentro dos parâmetros para a sua faixa etária, quer ao nível da motricidade fina, da linguagem, do desenvolvimento cognitivo, social e emocional e nas competências motoras. Continua a ser acompanhado medicamente, quer ao nível da Médica de Família e Pediátrica, quer nas consultas da especialidade.
Por sua vez, a progenitora mantém a sua situação de desemprego, estando a frequentar um curso no IEFP e continua a mostrar preocupação pelo seu filho, sendo que, desde Abril, está proibida de obter informações sobre o mesmo. E o progenitor permanece laboralmente activo, continuando ambos a viver no R/C da habitação pertença dos avós paternos.
Já quanto ao eventual acolhimento em família alargada, não existe, por ora, essa possibilidade uma vez que, não obstante o avô materno demonstrar essa vontade, o certo é que a mesma não reveste carácter regular, tanto que não revela disponibilidade pessoal e profissional para acompanhar e cuidar do seu neto sozinho, querendo, ao invés, ser um apoio à sua filha, na prestação dos cuidados ao neto, o que não é possível, em face da actual situação (relatório refª ...70, de 26.07.2023 e refª ...13, de 24.10.2023).
Foi também neste sentido que se pronunciou o ISS ao referir que “considerando que ainda se encontra a decorrer o processo-crime relativamente aos progenitores e não havendo certezas se os mesmos serão ou não culpados ou inocentes dos presumíveis maus tratos à criança, parece-nos (…) que a medida aplicada ao menor se deve manter”, à semelhança do parecer da própria instituição.
Daí que o Tribunal considere que, por ora e nesta fase, não pode ser aplicada qualquer outra medida de promoção e protecção que não a medida de acolhimento residencial já aplicada.
Pelo exposto, e ao abrigo dos artigos 3º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c), 35.º, n.º 1, alínea f), e 37.º, todos da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, decide-se:
-Não declarar, por ora, encerrada a fase de instrução, em face dos motivos excepcionais supra referidos;
-Manter por três meses a medida provisória de acolhimento residencial aplicada à criança AA, permanecendo este entregue à guarda e cuidados da Instituição onde se encontra acolhido;
Notifique.
Dê conhecimento da parte decisória do despacho que antecede ao I.S.S., I.P. e à Instituição onde se encontra acolhida a criança.
Quinze dias antes do decurso dos três meses, abra conclusão a fim de ser solicitado o envio do relatório social.
Quanto à proibição de contactos requerida pelo Ministério Público
O Ministério Público veio requerer, em face do teor do Ac. TRG, proferido no processo crime, que seja aplicada, aos progenitores, a proibição de contactar com o menor, quer com aqueles que tenham a guarda de facto da criança, quer com aqueles que desempenham funções na casa de acolhimento, por qualquer meio, forma, lugar, por si ou por interposta pessoa e ainda que seja decretada a proibição de frequentar, permanecer ou se aproximar da casa de acolhimento ou unidade hospitalar/saúde em que o menor se encontre ou venha a encontrar (refª ...70, de 27.10.2023).
A este respeito, há que ter em conta o teor do Ac. do TRG de 22.02.2023, proferido no processo crime nº 622/22...., no âmbito do qual se revogaram as excepções à proibição de contactos decretadas em 1ª Instância, concretamente na parte em que permitiam que os progenitores arguidos pudessem visitar o menor AA enquanto o mesmo se encontrasse internado e desde que acompanhados em permanência pela Técnica da SS ou da Casa de acolhimento e ainda futuras autorizações de visitas (refª ...97, de 27.02.2023).
Ora, no âmbito dos presentes autos, foram permitidos os contactos, com supervisão, sempre ressalvado o estatuto coactivo aplicado aos arguidos progenitores no processo crime (cf. teor das decisões de 20.02.2023, 06.03.2023, 02.05.2023, 30.06.2023, que aqui se dão por reproduzidas).
Daqui decorre que, actualmente, em face do estatuto coactivo vigente, não pode nesta sede e enquanto durar esse estatuto coactivo, ocorrer qualquer contacto/aproximação entre os progenitores e o menor, por si ou por interposta pessoa, sob pena de os arguidos violarem o estatuto coactivo imposto por decisão superior. Contudo, uma eventual e futura alteração do estatuto coactivo no processo crime, em termos de deixar de aí vigorar a proibição de contactos, determinará que os progenitores possam contactar o menor, nos termos já definidos, nesta sede, por decisão transitada em julgado.
É que a este propósito não se pode ignorar que a questão das visitas já foi apreciada por este Tribunal e confirmada pelo Tribunal da Relação, perante a mesma factualidade que actualmente vigora, existindo caso julgado formal (como decorre dos sucessivos Acórdãos já proferidos – Apenso C, D e E).
Pelo que a proibição de contactos pretendida pelo Ministério Público, com base na mesma factualidade que já foi apreciada e reapreciada, constituiria uma violação de caso julgado formal.
Só uma eventual e futura alteração do estatuto coactivo tornará possível a apreciação da pretensão do Ministério Público e sempre em função das concretas circunstâncias que, à data, se vierem a verificar. Aliás, a ocorrer qualquer alteração do estatuto coactivo, deve impor-se, em face da actualização do contexto factual que à data se verifique, a reapreciação do regime de contactos/visitas, de modo a ponderar-se da oportunidade e do benefício/malefício que as visitas e contactos possam ter no superior interesse do menor (cf. teor do Ac. de 22.06.2023, no Apenso C).
Assim, não há que modificar, por ora, o que já foi decidido, nesta sede, a propósito dos contactos entre os progenitores e o menor.
Pelo que se indefere o requerido.
Notifique.
Solicite ainda que se for alterado o estatuto coactivo dos arguidos, o mesmo seja comunicado aos presentes autos, bem como que seja remetida a sentença, quando vier a ser proferida, ainda que não transitada.”

Inconformado com esta decisão, o MP dela interpôs recurso em 14.11.2023, que, por despacho de 11.12.2023 foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado, e efeito meramente devolutivo – artigos 123.º e 124.º da LPCJP e artigos 637.º, 638.º, 639.º, 644.º, nº 2, al. h), 645.º, n.º2 e 647.º, n.º1 do CPC.

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
i. O presente recurso vem interposto da douta decisão proferida nos autos a 31.10.2023 (referência ...44).
ii. Esta decisão, que visa apenas, como expressamente assumido, que os autos fiquem a aguardar a) a definição sobre a responsabilidade penal dos seus progenitores no processo comum colectivo 622/22.... e b) a definição da identidade do pai biológico na acção de impugnação da paternidade 88/23...., ou seja, o resultado final dos processos em causa, a alcançar em data absolutamente incerta, traduz-se materialmente numa inadmissível suspensão da instância, não formalmente assumida, por tempo indeterminado tendo em conta os motivos que a enformam -artigos 269.º n.º1, alínea c), e 272.º n.ºs 1 e 2.º do CPC.
iii. Inadmissível porque nenhum dos processos se reveste de carácter de prejudicialidade relativamente aos presentes autos de promoção e protecção, por um lado, nem assenta em qualquer acordo alcançado para o efeito.
iv. E porque, de todo o modo, sempre seria legalmente inadmissível, não só por não procederem os pressupostos em que se sustenta, mas também porque totalmente incompatível com as finalidades do processo de promoção e protecção, com as exigências de urgente celeridade que o legislador lhe imprimiu, com base no pressuposto que o tempo das crianças não é o tempo dos adultos, particularmente prementes no caso dos autos, pelo que a) considerando a matéria fáctica em causa, b) o estado adiantado dos autos de promoção e protecção, c) o tempo que leva a indefinição da situação jurídica do AA, e d) a incerteza quanto ao prazo necessário para que se alcancem os desideratos pretendidos pela decisão recorrida com a imposta “paragem” destes autos de promoção e protecção, a material suspensão determinada só traz prejuízos, não se alcançando coma mesma qualquer benefício material ou processual para o AA –artigo 272.º n.º 2 do CPC.
v. Não faz qualquer sentido fazer depender a tramitação destes autos da decisão a proferir no processo comum colectivo 622/22...., já que nenhuma relação de prejudicialidade existe entre o processo comum colectivo e o presente processo de promoção e protecção; ali apura-se o enquadramento penal dos factos alinhados na acusação; aqui a valoração de tais factos, mas também de muitos outros, à luz do interesse superior do AA, da definição do seu projecto de vida e das competências dos progenitores para o exercício das responsabilidades parentais; a responsabilidade criminal dos progenitores, que se discute no processo comum colectivo, ou a falta dela, não é qualquer condição necessária para a decisão a proferir nestes autos.
vi. A matéria fáctica que virá a sustentar a decisão sobre a aplicação da medida será a que resultar da prova produzida no debate judicial [cfr. artigo 117.º da LPCJP], a qual poderá integrar o acórdão que tenha sido proferido no referido processo comum colectivo [artigos 423.º n.º3 do CPC, 126.º e 117.º da LPCJP], o qual, se tal suceder, será valorado, qualquer que seja o seu sentido, com a eficácia probatória que o Código de Processo Civil lhe confere [artigos 623.º -para a sentença condenatória- e 624.º -para a sentença absolutória].
vii. Acresce que os critérios de apreciação da prova são completamente distintos no processo penal e no processo civil.
viii. Do mesmo modo, o objecto da acção de impugnação da paternidade 88/23.... também não reveste qualquer carácter de prejudicialidade relativamente ao presente processo de promoção e protecção, pois o que se pretende é que seja declarado que BB não é o pai do AA; pelo que nenhum prejuízo advirá a BB com a realização do debate judicial, onde lhe serão asseguradas todas as garantias acrescidas concedidas aos progenitores –se a acção de impugnação da paternidade improceder, o seu estatuto material coincidirá com o processual; se proceder, BB passará a um estatuto de absoluta irrelevância nestes autos, enquanto progenitor.
ix. E se a acção de impugnação da paternidade proceder, se e quando tal vier a suceder, o progenitor biológico não está impedido de perfilhar até ao decretamento da adopção, sendo que nesta situação, se por acaso tivesse sido decretada qualquer medida de promoção e protecção resultante do debate judicial, sempre haveria de considerar-se que esta só afectava quem nele teve intervenção, e nunca o perfilhante, ao qual sempre haveria de ser proporcionado o mesmo contraditório.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido, proferido a 31.10.2023 (referência ...44), e ordenando-se a sua substituição por outro que declare finda a fase de instrução e determine o cumprimento do disposto nos artigos 110.º, n.º1, c) e 114.º n.ºs 1 e 2 da LPCJP, assim se fazendo JUSTIÇA.

Os progenitores do menor contra-alegaram, defendendo a confirmação integral da decisão recorrida, e oferecendo as seguintes conclusões:

1. O Ministério Público requereu que fosse declarada finda a fase de instrução e que devido à impossibilidade de se aplicar a medida de confiança com vista à adopção, fosse prorrogada a medida de acolhimento residencial.
2. Pese embora, os artigos 37º, 109º, 110º da LPCJP, estabeleçam que as medidas provisórias têm uma duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses e que a fase de instrução deve ser finda no prazo de quatro meses, não podem ser considerados prazos absolutos, porquanto, quando existem circunstâncias excepcionais os mesmos podem ser ultrapassados.
3. Para que o Tribunal consiga formar a sua convicção e para fundamentação da decisão, é imperioso que possa atender ao desfecho do processo-crime nº 622/22.....
4. Apesar de os processos preservarem a sua autonomia, o desfecho do processo-crime poderá determinar alterações na situação de facto do menor, pelo que, enquanto este processo não for decidido, não se pode avançar para o debate judicial, tal como pretende o Ministério Público.
5. Do mesmo modo, no respeitante à acção de impugnação de paternidade, processo nº 88/23...., aguarda-se o envio de relatórios médicos, tendo o Ministério Público instaurado uma acção onde pede que seja declarada sem efeito a perfilhação averbada no assento de nascimento, ordenando o cancelamento do averbamento de paternidade, pelo que, o desfecho deste processo é importante para a criança, de forma a permitir todas as intervenções possíveis junto da família natural.
Termos em que deverá ser rejeitado o recurso apresentado pelo Digno Procurador do Ministério Público, e por via dele, pela manutenção do despacho recorrido, de não declarar por ora, encerrada a fase de instrução, assim se fazendo a devida e ACOSTUMADA JUSTIÇA!!

II - As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a única questão a decidir consiste em saber se deveria ter sido encerrada a fase da instrução.

III- A tramitação que acabou de ficar exposta é o suficiente para conhecer do recurso.
Vejamos pois.
Em primeiro lugar, convém ter presente que estamos perante uma forma processual (processo de promoção e protecção) que tem a natureza de jurisdição voluntária (art. 100º LPCJP). Isto significa, nos termos do art. 986º,2 CPC, que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias. Significa ainda que “nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” (art. 987º CPC). Igualmente importante é o regime do art. 988º,1 CPC segundo o qual nos processos de jurisdição voluntária as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.
Dito isto, o que está em causa neste recurso é a vida do menor AA, menor nascido em .../.../2022, e que já teve azar suficiente nos seus primeiros tempos de vida, como estes autos demonstram. A última coisa que deve ser feita neste momento é tomar decisões apressadas, que possam, passado pouco tempo, vir a revelar-se erradas.
O quadro legal pertinente, na sua ponderação axiológica, é claro e incontroverso.
Veja-se, a título de exemplo, o que se escreve no Acórdão do STJ de 9 de Fevereiro de 2021 (Relatora: Maria Clara Sottomayor): “o primado do interesse das crianças constitui um princípio fundamental de Direito da Família e das Crianças consagrado no Direito Internacional (artigo 3.º da Convenção das Nações Unidas sobre os direitos das crianças) e no Direito da União Europeia (artigo 24.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia). No direito nacional, a Constituição, apesar de não se referir expressamente a tal princípio, consagra direitos fundamentais específicos das crianças, designadamente o direito da criança ao desenvolvimento integral, onde se insere o direito à manutenção das suas relações afectivas profundas (artigo 69.º, n.º 1, da CRP), como tem sido entendimento da doutrina (cfr. Armando Leandro, “Direito e Direitos dos Menores, síntese da situação em Portugal, no domínio do direito civil e no domínio do direito para-penal e penal”, Infância e Juventude, n.º especial, 1997, p. 263 e Dulce Rocha, “Adopção - consentimento - conceito de abandono”, Revista do Ministério Público, Lisboa, A. 23º, nº 92 (Out.-Dez. 2002), pp. 98 e 107).  Com efeito, segundo a Psicologia, as crianças são pessoas em desenvolvimento, que passam por várias fases de crescimento, em que vão adquirindo progressivamente capacidades volitivas e intelectuais. Para ultrapassarem com sucesso as sucessivas etapas de desenvolvimento e os desafios que lhes são inerentes, as crianças precisam de ter vínculos afectivos seguros com os seus cuidadores ou figuras de referência, que podem não ser os seus progenitores biológicos, como sucedeu no caso dos autos. A legislação, relativa aos direitos das crianças e dos jovens, estabelece que todas as decisões judiciais respeitantes ao destino ou projecto de vida das crianças e dos jovens, designadamente aquelas que se reportem à constituição de relações jurídicas familiares como é o caso do vínculo da adopção (artigo 1586.º do Código Civil), devem ter em conta, como critério primordial, os seus direitos e interesses, quer se trate de sentença que constitui o vínculo de adopção (artigo 1974.º, n.º 1, do Código Civil, quer daquela que verifica a ocorrência ou não das situações que dão lugar à adoptabilidade da criança (artigo 1978.º, n.º 2, do Código Civil). A LPCJP (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo – Lei n.º 147/99, de 01-09) consagrou também este princípio fundamental do superior interesse da criança no seu artigo 4.º, al. a), nos termos do qual «A intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios: a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto». Este princípio é aplicável a todos os processos tutelares cíveis, por força do artigo 4.º, n.º 1, do RGPTC (Regime Geral dos Processos Tutelares Cíveis) – Lei 142/2015, de 8-09) e tem sido amplamente reafirmado e desenvolvido pela jurisprudência. Por todos, vide o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04-06-2020 (proc. n.º 785/18.8T8VFX.L1-2), em cujo sumário se consagrou o seguinte: «I – A intervenção para promoção e protecção da criança e do jovem em perigo obedece, nos termos do art. 4º da LPCJP, aos princípios do interesse superior da criança e do jovem, da proporcionalidade e actualidade, do primado da continuidade das relações psicológicas profundas e da prevalência da família. II – Um dos princípios a observar na intervenção a efectuar é o da prevalência da família, atento o direito e o dever dos pais constitucionalmente consagrado de educar e manter os filhos, não podendo de eles ser separados, excepto quando não cumpram os seus deveres fundamentais para com aqueles e sempre mediante decisão judicial. III – Quando a família biológica é ausente ou apresenta disfuncionalidades de tal ordem que comprometem o estabelecimento de uma relação afectiva gratificante e securizante para a criança é imperativo constitucional que seja salvaguardado o interesse desta, designadamente através da adopção, por ser esta a resposta mais adequada e que mais se aproxima da família natural. IV – O perigo exigido na alínea d), do nº 1, do art. 1978º, do CCivil é aquele que se apresenta descrito no art. 3º, da LPCJP, conforme expressamente se remete no nº 3, do art. 1978º, do CCivil, sem que se pressuponha a efectiva lesão, bastando, assim, um perigo eminente ou provável». 2.2. A LPCJP, de acordo com as alterações introduzidas pela Lei n.º 142/2015, de 08-09, estabelece no artigo 3.º, n.º 2, al. d) que se considera que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, «Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais». Por seu turno, o artigo 4.º, na redacção do citado diploma, estabeleceu um novo princípio de Direito das Crianças, na sua al. g), que consagrou o «Primado da continuidade das relações psicológicas profundas», de acordo com o qual, «a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afectivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante. A alínea h) do mesmo preceito, que consagra o princípio da “Prevalência da família”, foi alterada de forma a especificar que o conceito de família aqui previsto, inclui não só a família biológica, mas a adopção ou outra forma de integração familiar estável (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-10-2020, proc. n.º 1397/16.6T8BCL.G1.S2). Estas alterações legislativas foram o resultado de uma proposta do Instituto de Apoio à Criança (cfr. O superior Interesse da Criança na perspectiva do respeito pelos seus direitos, Instituto de Apoio à Criança, Centro de Estudos, Documentação e Informação sobre a Criança, Lisboa, 2009). O objectivo destas alterações foi  “(…) consagrar de forma expressa a defesa do direito fundamental da criança à continuidade das relações afectivas estruturantes e privilegiadas, contribuindo assim para a promoção do seu superior interesse, com vista ao desenvolvimento integral”, de acordo com os conhecimentos científicos actuais, “A criança desenvolve, assim, através das interacções com as pessoas que lhe prestam cuidados, modelos internos de vinculação, ou seja, como sublinha Soares (2001), «um conjunto de conhecimentos e expectativas sobre o modo com essas figuras respondem aos seus pedidos de ajuda e protecção […] e sobre o self, em termos do seu valor próprio (Soares, 1.2001). Estamos face ao embrião da personalidade de cada sujeito. O conceito legal do superior interesse da criança, entendido à luz destas alterações legislativas, inclui o direito da criança ao respeito pelas suas relações afectivas profundas, ainda que não coincidentes com os vínculos jurídicos e biológicos de parentalidade, permitindo alcançar a uniformização e a segurança jurídica da interpretação da lei, no preenchimento valorativo de um conceito indeterminado, e alargar o âmbito das situações de perigo, conferindo-lhe um conteúdo preventivo”.
O princípio básico nesta matéria é óbvio: a escolha da medida de promoção dos direitos e protecção das crianças em perigo deve ser norteada, prioritariamente, pelos direitos e interesses da criança ou jovem, devendo ser aplicada a medida que, atendendo a esses interesses e direitos, se mostre mais adequada a remover a situação de perigo em que a criança ou jovem se encontra.
Por outro lado, segundo o art. 36.º da CRP, os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos e estes não podem ser separados daqueles salvo quando não cumpram os seus deveres fundamentais para com os filhos e sempre mediante decisão judicial.
Por outro lado, a intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança ou jovem em perigo deve ser proporcional e actual, no sentido de que deverá ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontra no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade [cfr. artigo 4º, al. e), da LPCJP].
De entre as medidas aplicáveis, deve ser dada prevalência àquelas que mantenham a criança ou jovem na sua família, desde que essas medidas se mostrem adequadas a remover a situação de perigo. E não sendo isso possível e desde que verificados os demais requisitos legalmente exigíveis, deverá ser dada prevalência às medidas que, promovendo a adopção, visam a integração da criança ou jovem numa nova família, que possa assegurar-lhe a satisfação e protecção das suas necessidades e direitos.
Sendo que a colocação em instituição deve ser encarada sempre em termos provisórios.
O MP quer, desde já dar início ao processo de adopção do menor AA, por considerar que os seus progenitores representam o maior perigo ao desenvolvimento saudável do mesmo.
E daí, discorda da decisão que mandou aguardar pela decisão a tomar no processo crime, e entende que se pode desde já avançar, independentemente dela.
A primeira reacção, diríamos, visceral, quando se fala em o Estado separar um menor dos pais, é de que tal intervenção é antinatural e constitui uma violência inaceitável.
Todavia, infelizmente a natureza não é perfeita, e há situações extremas que exigem soluções igualmente extremas. O que legitima em última análise essa intervenção do Estado no seio da família natural é o propósito que o move -a protecção dos menores-, e o respeito absoluto pelos procedimentos impostos por lei.
Estamos inteiramente de acordo com o princípio de prevalência da família natural, o qual deve sempre servir de fio condutor à intervenção do Estado.
A questão agora é saber se com os factos indiciados disponíveis, se deve avançar já para o corte dos laços com a família natural.
Ou se se justifica esperar mais algum tempo. Nomeadamente, esperar pela definição da responsabilidade penal dos progenitores no processo comum colectivo 622/22.... e a definição da identidade do pai biológico na acção de impugnação da paternidade 88/23.....
É verdade que a prova já constante dos autos é extremamente impressiva, sobretudo a prova pericial que incide sobre a personalidade dos progenitores.
Afirma o recorrente que nenhum dos processos se reveste de carácter de prejudicialidade relativamente aos presentes autos de promoção e protecção.
O que, técnico-juridicamente, é verdade.
Afirma ainda o recorrente que os critérios de apreciação da prova são completamente distintos no processo penal e no processo civil.
Também é verdade.   No processo penal, o protegido é o arguido. Neste processo de promoção e protecção, é o menor. Não tenhamos dúvidas quanto a isso.
Mas a verdade é que o núcleo essencial de factos que está em discussão, num e noutro, é essencialmente o mesmo: saber se os progenitores praticaram os factos, gravíssimos, que lhes estão imputados pelo MP, num caso e noutro, sobre o menor AA.
Duas decisões contraditórias nestes dois processos poderiam dar lugar a uma realidade insustentável. Imagine-se que esta Relação decide revogar o despacho recorrido, e mandar prosseguir o processo com vista à colocação do menor em família com vista à adopção. Entretanto os progenitores vêm a ser absolvidos de todos os crimes que lhes são imputados no processo penal. E vêm pretender recuperar o poder paternal sobre o seu filho. Ficaria criada uma situação quase ingerível, em que por um lado se diria que o menor foi retirado aos pais biológicos e dado em adopção porque estes atentaram contra a sua saúde e integridade física de forma gravíssima, mas por outro os pais biológicos foram absolvidos em processo penal da acusação que lhes imputava esses factos.
E o que pensaria e faria o menor AA, daqui a mais uns anos, quando já tiver discernimento e viesse a saber que foi retirado da sua família natural por uma acusação contra os seus pais da qual eles foram absolvidos em Tribunal ? Sabendo nós que é natural que qualquer pessoa tenha um instinto incontrolável de querer saber quem são os seus pais naturais, a sua verdadeira família de sangue ?
É um cenário que deve, na medida do possível, ser evitado. Sem esquecer, como refere o MP recorrente, que a urgência é um factor a ter em conta.
Para tanto, importa acrescentar ainda o seguinte: não consideramos que seja necessário aguardar uma decisão penal transitada em julgado para então declarar encerrada a instrução nestes autos.
O princípio da presunção de inocência é um princípio que vigora no processo penal, mas não neste processo de promoção e protecção. Aqui, recordemos, o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” (art. 987º CPC). Significa isto que, para efeitos da decisão a tomar quanto ao futuro do menor AA, neste momento entendemos, tal como o despacho recorrido, que se deve aguardar a decisão penal em primeira instância. Se esta for de condenação dos progenitores tal como vinham acusados, para efeitos destes autos de promoção e protecção, consideramos que em tal cenário a presunção de inocência deixou de existir, e foi substituída por uma presunção de culpabilidade. E não será necessário aguardar pelo trânsito em julgado da condenação, sabendo que com os vários graus de recurso, mais arguições de nulidades, etc, tal poderá demorar demasiado tempo, de que o menor não dispõe. E aí restará apenas mandar encerrar a fase da instrução, e seguir com o processo, para definir o futuro do menor.
Quanto ao processo de impugnação da paternidade, e onde se aguarda o envio do relatório médico legal, vamos limitar-nos a dar por reproduzido o teor da decisão recorrida, na parte pertinente, com inteira concordância: “Nesse processo, o Ministério Público instaurou acção, pedindo que seja declarada sem efeito a perfilhação averbada no assento de nascimento do menor, ordenando-se o cancelamento do averbamento de paternidade. Ora, a confirmar-se que o pai registado não é o pai biológico, e a lançar mão, desde já, do instituto da adopção, é violar o princípio da prevalência da família, no âmbito do qual, na promoção dos direitos e na protecção da criança e do jovem, deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, com preferência na biológica. E apenas quando esta não seja uma alternativa, na família adoptiva (artigo 4º, al. h) da LPCJP e artigo 67º da CRP). De facto, estar-se-ia a obstaculizar qualquer possibilidade de o verdadeiro pai biológico, a julgar-se procedente aquela acção, ser uma alternativa ao projecto de vida do menor ou até de outros seus familiares. Sem esse esgotar das intervenções possíveis junto da família natural, não se estará a observar o princípio da prevalência da família, o que também constitui um direito do próprio menor”.
Acresce que actualmente, com os avanços da ciência, a prova da paternidade, ou a sua exclusão, são resultado de prova pericial, rápida e incontroversa. E como tal, justifica-se aguardar pela decisão desse processo, também em primeira instância.
Resumindo e concluindo, consideramos que o despacho recorrido fez a melhor ponderação dos interesses em conflito, mostra-se muito bem fundamentado, e por isso não merece censura.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente, e confirma na íntegra a decisão recorrida.
Sem custas (art. 4º,2,f RCP).

Data: 25.1.2024

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto Paulo Reis)
2º Adjunto (José Carlos Dias Cravo)