COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (UE) 2019/1111 DE 25.06
Sumário


I - A competência do Tribunal, em geral, deve ser aferida em função do pedido formulado pelo autor e dos fundamentos (causa de pedir) que o suportam, ou seja, de acordo com a relação jurídica tal como é configurada pelo autor.
II - A competência internacional pressupõe que o litígio, tal como o autor o configura na acção, apresenta um ou mais elementos de conexão com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.
III - Caindo determinada situação no âmbito de aplicação v.g. de um concreto Regulamento comunitário, e porque as regras internacionais integram-se no ordenamento jurídico de cada Estado, quando o Tribunal português é chamado a conhecer de uma causa em que haja um elemento de conexão com a ordem jurídica de outro Estado contratante, deverá ignorar as regras de competência internacional da lex fori, antes deve aplicar as regras uniformes do Regulamento.
IV – Estabelecendo o art.º 3º, nº 1, do Regulamento (UE) 2019/1111 de 25.06, dois critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para de uma acção de divórcio poder conhecer, sendo um o da residência habitual e o outro o da nacionalidade de ambos os cônjuges, verificando-se um deles (o da nacionalidade de ambos os cônjuges) e apontando ele para Portugal, ter-se-á, forçosamente, que julgar o tribunal português onde a acção foi interposta como o competente (internacionalmente) para a tramitar.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA, com residência em ...2 ..., ..., ..., ..., no Canadá e, quando em Portugal no Edifício ..., ..., em ..., intentou acção especial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, contra
BB, residente em ..., ..., ..., ..., no Canadá,
pedindo que seja declarado dissolvido o casamento entre ambos, por divórcio.
A ré contestou, arguindo, no que ora interessa, a litispendência e a excepção dilatória da incompetência internacional do tribunal, por considerar serem competentes os tribunais do Canadá, nos termos previstos no art.º 62º, do NCPC, por ser naquele país que o autor e a ré residem e onde ocorreram os factos integradores da causa de pedir do divórcio, tendo já aí sido proposta pela ré uma acção de divórcio, sendo certo que o autor não invocou qualquer necessidade de instaurar a acção em território português.
O autor respondeu por escrito, pronunciando-se pela improcedência das aludidas excepções, dizendo, quanto à excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses, que se está perante um conflito plurilocalizado com elementos de conexão com Portugal e com o Canadá, sendo aplicável o Regulamento (CE) nº 2019/1111, de 25.06, a que Portugal está vinculado e apesar do Canadá não ser um Estado-Membro da União Europeia, concluindo assim que o tribunal português é competente para decidir das questões relativas ao divórcio, por ser o tribunal do Estado-Membro da nacionalidade do autor e da ré, nos termos do disposto no art.º 3º, nº 1, alínea b), do referido Regulamento.
Foi, então, proferido despacho saneador, que julgou improcedente quer a excepção de litispendência, quer a excepção de incompetência internacional, constando da fundamentação da decisão, quanto a esta última excepção, o seguinte:
“Na sua contestação, a ré invoca a excepção dilatória de incompetência internacional do Tribunais Portugueses, porquanto o autor não reside em Portugal.
O autor defende a improcedência da invocada excepção.
Apreciando.
Nos termos do art. 72.º do Código de Processo Civil: «Para as ações de divórcio e de separação de pessoas e bens é competente o tribunal do domicílio ou da residência do autor.».
O autor, nos autos, indicou duas moradas, uma no Canadá (...2 ..., ..., ...), outra em Portugal (Edf. ..., ..., Concelho ...).
Dispõe o art. 82.º, n.º 1, do Código Civil que: «A pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual; se residir alternadamente, em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles.».
Ou seja, nos termos da lei civil portuguesa, nada impede que o autor tenha simultaneamente domicílio no Canadá e em Portugal.
Tendo o réu domicílio em Portugal, mesmo que alternativo, são internacionalmente competentes os Tribunais Portugueses para a presente acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge.
Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 98/13.1TBPVC-AL1-1, de 21-12-2015, relator JOÃO RAMOS DE SOUSA, disponível in www.dgsi.pt.
Por conseguinte, nos termos citados, indefiro a invocada excepção dilatória de incompetência internacional.”.
Inconformada, apelou a ré, pedindo que a decisão recorrida seja revogada e que se declare o tribunal a quo internacionalmente incompetente para conhecer do divórcio entre autor e ré, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
“I. - Autor e ré tem residência habitual e permanente no Canadá, pois, desde que casaram em 1985, ali fixaram o seu lar conjugal, que se manteve após a separação, ele em ...2 ..., ..., ..., ..., ... e ela em ...09 ..., ..., Canadá. Arts. 4º e 6º da petição inicial;
II. - Os factos que conduziram à sua separação ocorreram naquele país;
III. - Não foi celebrado qualquer acordo entre as partes no sentido de definirem a lei aplicável ao seu divórcio;
IV. - Não tendo os cônjuges residência, nem domicilio em Portugal, para que o Tribunal português pudesse ser competente internacionalmente para apreciar e julgar a presente ação, teria que ser praticado em Portugal o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum facto que a integre;
V. - Ora, neste caso, a separação de facto por um ano consecutivo ocorreu no Canadá, onde os cônjuges estão separados, fazendo vidas completamente separadas, desde junho de 2020, sendo que todos os factos demonstrativos da rutura definitiva do casamento ocorreram nesse país onde os cônjuges têm residência permanente;
VI. - Daí que o Tribunal português é internacionalmente incompetente para o julgamento da ação, devendo sê-lo no Canadá, onde tal ação já se encontra a decorrer, desde há três anos, e nela já intervieram ambos os cônjuges;
VII. - Não o entendendo assim, pelo douto despacho recorrido, foram violados o disposto nos artigos 82º, do C.C., 62º do C. P. C., nº 3º e 7º, do Regulamento (CE) 2201/2003, de 27 de novembro, e o Regulamento (UE) nº 1259/2010, de 20 de dezembro.”.
O autor contra-alegou, defendendo que deve ser mantida a decisão recorrida, alinhando as seguintes conclusões:
“1. Resulta da facticidade alegada que a apelante e apelado são de nacionalidade portuguesa;
2. Na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, há que respeitar o que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais que vinculem internacionalmente o Estado e que prevalecem sobre os restantes critérios – art. 59º do CPC e art. 8º, nº 4, da CRP;
3. Os Tribunais dos Estados-Membros têm de aplicar obrigatoriamente as normas do Regulamento (EU) 2019/1111 do Conselho, de 25 de Junho, para determinar se tem competência internacional perante uma acção de divórcio, separação ou nulidade matrimonial, ou relativa às responsabilidades parentais, assim como, para o reconhecimento de uma decisão proferida noutro Estado-Membro relativa a estas matérias;
4. Com efeito, os critérios de atribuição de competência previstos do Regulamento 2019/1111 aplicam-se de forma plena e obrigatória, no que se refere, nomeadamente, a matéria de divórcio, prevalecendo e substituindo, portanto, os critérios previstos nos art.ºs 62.º e 63.º do CPC;
5. O cônjuge demandante apresentando a acção perante o tribunal do Estado-Membro da nacionalidade comum de ambos os cônjuges, este é o tribunal competente, independentemente, de se verificar outra ou outras situações relativas à residência habitual;
6. O Regulamento 2019/1111, no art. 3º, reconhece, na al. b), o tribunal competente, com base, no critério da nacionalidade, pelo que, atribui a competência aos tribunais do Estado-Membro de que ambos os cônjuges sejam nacionais;
7. Ainda que não se esteja perante um conflito de jurisdições ou ainda que mais nenhuma das jurisdições em jogo, para além de Portugal, seja a de um Estado-Membro da União Europeia, o referido Regulamento tem aplicação, sendo de acordo com o mesmo que deve ser aferida a competência internacional dos tribunais portugueses;
8. Assim, porque ambos os cônjuges têm nacionalidade portuguesa, tendo até casado em Portugal, pode o A. fazer funcionar o critério da nacionalidade de ambos os cônjuges, tal como o refere a apontada alínea b) do art. 3º do Regulamento 2019/1111 do Conselho, como o fez, para intentar aacção no tribunal português;
9. Sendo, pois, totalmente irrelevante o lugar do domicílio das partes ou o lugar da ocorrência dos factos que constituem a causa de pedir do divórcio;
10. Para efeitos da aplicabilidade do Regulamento é indiferente o país onde os cônjuges tiverem a sua residência habitual – seja um Estado-Membro ou um terceiro Estado.”.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º nº4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
No caso vertente, a questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, é tão só a de saber se, no caso, os tribunais portugueses são ou não, internacionalmente, competentes para preparar e julgar uma acção de divórcio de dois cônjuges de nacionalidade portuguesa e que celebraram o casamento em Portugal, mas que residem no Canadá, lugar onde residem habitualmente e ocorreram os factos que constituem a causa de pedir do divórcio.
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III. Fundamentação

3.1. Fundamentos de facto
Com relevo para a apreciação do objecto do presente recurso, destaca-se o que consta do relatório que antecede e a seguinte factualidade, que se encontra demonstrada nos presentes autos, através de documento com força probatória plena e pelo acordo das partes (cfr. art.ºs 607º, nºs 3 e 4 e 663º, nº 2, todos do NCPC):
1. O autor nasceu em Portugal, na freguesia ..., do Concelho ..., conforme assento de casamento junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. A ré nasceu em Portugal, na freguesia ..., do Concelho ..., conforme assento de casamento junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. Autor e ré casaram, entre si, civilmente, no dia 10.07.1985, sem convenção antenupcial, em primeiras núpcias de ambos, e, catolicamente, na Igreja Paroquial de ..., no dia .../.../1985, conforme assento de casamento junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4. A presente acção especial de divórcio foi proposta no dia 22.05.2023.
5. Na respectiva petição inicial o autor alegou, para além do mais, o seguinte:
“4º - O lar conjugal de A. e R. foi fixado, em ...2 ..., ..., ..., ..., ....
5º - Sucede que, a R. sem que nada o fizesse prever, dado o bom ambiente que viviam, saiu, em Junho de 2020, do lar conjugal, onde o casal residia.
6º - Desde então, a R. passou a residir em ...09 ..., ..., ....
7º - Não mais A. e R. comeram juntos, dormiram juntos ou receberam amigos juntos, na casa de morada de família.
8º Por isso, A. e R. deixaram de partilhar cama, mesa e de ter quaisquer projectos comuns, mantendo as respectivas economias separadas.
9º - Desde a data referida em 5º, que o A. e a R. não voltaram a viver na mesma habitação, fizeram refeições à mesma mesa ou dormiram no mesmo leito”.
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3.2. Fundamentos de Direito

Vejamos, então, se os tribunais portugueses são, internacionalmente, competentes para preparar e julgar a presente acção de divórcio.
Como é sabido, a competência dos tribunais expressa a medida da sua jurisdição.
No caso da competência internacional está em causa o poder jurisdicional dos tribunais portugueses em face dos tribunais estrangeiros, sendo aferida em função das regras que a delimitam.
Com efeito, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora referem que a competência internacional constitui a “fração do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto em face dos tribunais estrangeiros para julgar as ações que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras” (cfr., Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Atualizada, p. 198).
É entendimento pacífico, entre todos, que a matéria do pressuposto processual que constitui a competência do Tribunal, deve ser determinada face à relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial, devendo na sua apreciação e julgamento ter-se presente o alegado nos articulados pelas partes, sem perder de vista, naturalmente, as regras que regulam o ónus de alegação e prova de tal excepção.
E a infracção das regras de competência internacional determina a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96º, al. a) do NCPC), o que constitui uma excepção dilatória (art.º 577º, al. a) do NCPC) de conhecimento oficioso (art.ºs 97º e 578º do NCPC), que implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar (art.ºs 99º, nº 1, 278º, nº 1, al. a), 576º, nº 2, e 590º, nº 1, também todos do NCPC).
No caso concreto, estamos seguramente perante um litígio emergente de uma relação plurilocalizada ou transnacional, sendo que existem elementos de conexão com a ordem jurídica portuguesa (a nacionalidade dos cônjuges e o lugar da celebração do casamento – cfr. pontos 1 a 3 do elenco dos factos apurados) e com o ordenamento canadiano (a residência habitual de ambas as partes e os factos que constituem a causa de pedir do divórcio – cfr. ponto 5 do elenco dos factos apurados).
A circunstância da transnacionalidade da relação jurídica coloca, pois, o problema da competência internacional para o julgamento da acção, ou seja, quer através das partes interessadas, quer pelo seu próprio objecto, a existência de conexão com várias ordens jurídicas exige a determinação de qual o tribunal que, no âmbito destas, tem competência para dirimir o litígio.
As regras relativas à competência internacional usam de certos elementos de conexão para determinar a jurisdição nacional competente.
Tais regras “não são, consideradas em si mesmas, normas de competência, porque não se destinam a aferir qual o tribunal concretamente competente para apreciar o litígio, mas apenas a definir a jurisdição na qual se determinará, então com o recurso a verdadeiras regras de competência, qual o tribunal competente para essa apreciação.
Dada esta função, as normas de competência internacional podem ser designadas por normas de recepção, pois que visam somente facultar o julgamento de um certo litígio plurilocalizado pelos tribunais de uma jurisdição nacional.” – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª Edição, Lisboa 1997, p. 93-94.
A legislação portuguesa, como as dos outros países, define os critérios em função dos quais reconhece aos tribunais portugueses competência internacional, que se encontram vertidos nos art.ºs 62º, 63º e 94º do NCPC (cfr. ainda art.º 37º, da LOSJ).
De acordo com os factores de atribuição da competência internacional previstos naquele primeiro normativo – art.º 62º, do NCPC -, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (critério da coincidência);
b) Quando foi praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram (critério da causalidade);
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (critério da necessidade).
Sucede, porém, que na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, importa ainda salvaguardar o que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais que vinculem internacionalmente o Estado e que prevalecem sobre os restantes critérios.
Isso mesmo é o que resulta do prescrito no art.º 59º do NCPC e no art.º 8º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Com efeito, o referido art.º 59º, do NCPC estabelece que: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.”.
Por seu lado, o nº 1 do art.º 8º da CRP estabelece um regime de recepção automática das normas e princípios de direito internacional geral, que fazem parte integrante do direito português.
E o nº 4 do referido preceito constitucional, introduzido pela Lei Constitucional nº 1/2004, de 24.07 (Sexta Revisão Constitucional) estatui que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”.
Assim, tal normativo constitucional reflecte o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário, tal como tem vindo a ser sustentado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
Como se refere no ac. do STJ de 27.11.2018, relatado por Cabral Tavares, disponível in www.dgsi.pt: “No quadro da assinatura do Tratado de Lisboa, na declaração nº 17 anexa à ata final, sobre o primado do direito comunitário, «A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adotado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência».
Primado do direito comunitário sobre o direito nacional reconhecido no nº 4 do art.º 8º da Constituição: uma das dimensões de tal primado consiste, precisamente, em «afastar as normas de direito ordinário internas preexistentes e em tornar inválidas, ou pelo menos ineficazes e inaplicáveis, as normas subsequentes que o contrariem. Em caso de conflito, os tribunais nacionais devem considerar inaplicáveis as normas anteriores incompatíveis com as normas de direito da UE e devem desaplicar as normas posteriores, por violação da regra da primazia» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., 2014, anotação XXIII ao art. 8º, pág. 271; realce acresc.).”.
Significa isto que na ordem jurídica portuguesa vigoram em simultâneo dois regimes gerais de competência internacional: o regime comunitário e o regime interno.
Quando a acção estiver compreendida no âmbito de aplicação do direito comunitário, é esse regime que prevalece sobre o regime interno por ser de fonte hierarquicamente superior e face ao referido princípio do primado do direito europeu.
Neste sentido, atente-se na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, mormente a referida no ac. da RP de 23.02.2017, relatado por Aristides Rodrigues de Almeida, disponível in www.dgsi.pt: “Conforme foi afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia entre vários outros no Acórdão de 8.09.2010, no processo C-409/06 (Winner Wetten GmbH contra Bürgermeisterin der Stadt Bergheim) […] “(…) resulta de jurisprudência assente [que], por força do princípio do primado do direito da União, as disposições do Tratado e os actos das instituições directamente aplicáveis têm o efeito de, nas suas relações com o direito interno dos Estados - Membros, impedir de pleno direito, pelo simples facto da sua entrada em vigor, qualquer disposição contrária da legislação nacional (v., designadamente, acórdãos Simmenthal, já referido, n.º 17, e de 19 de Junho de 1990, Factortame e o., C-213/89, Colect., p. I-2433, n.º 18). 54. Com efeito, como salientou o Tribunal de Justiça, as normas do direito da União directamente aplicáveis, que são uma fonte imediata de direitos e obrigações para todos, sejam Estados-Membros ou particulares partes em relações jurídicas abrangidas pelo direito da União, devem produzir a plenitude dos seus efeitos de modo uniforme em todos os Estados-Membros, a partir da sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.os 14 e 15, e Factortame e o., n.º 18). 55. Resulta igualmente de jurisprudência assente que qualquer juiz nacional, no âmbito da sua competência, tem, enquanto órgão de um Estado-Membro, a obrigação, por força do princípio da cooperação consagrado no artigo 10.º CE, de aplicar integralmente o direito da União directamente aplicável e de proteger os direitos que este confere aos particulares, não aplicando nenhuma disposição eventualmente contrária da lei nacional, seja anterior ou posterior à norma do direito da União (v., neste sentido, designadamente, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.os 16 e 21, e Factortame e o., n.º 19).”.
Decorre do acima expendido e do próprio art.º 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que o regime interno de competência internacional só será aplicável se o não o for o regime comunitário, posto que este advém de uma fonte normativa superior, face ao primado do direito europeu.
Por conseguinte, uma vez que Portugal - país da nacionalidade de ambas as partes - integra a União Europeia, tal significa que a aludida transnacionalidade da relação jurídica em causa nos autos demanda que se convoquem as normas jurídicas europeias que estatuem sobre a matéria da competência judiciária.
Este é o entendimento que vem sendo acolhido de forma praticamente unânime pela jurisprudência nacional. Vejam-se, nomeadamente, o ac. do STJ de 7.10.2020, relatado por Rosa Tching; o ac. da RP de 11.07.2018, relatado por Manuel Domingos Fernandes; os acs. da RC de 1.07.2014, relatado por Anabela Luna de Carvalho e de 12.09.2023, relatado por Moreira do Carmo; o ac. da RL de 23.02.2023, relatado por Rui Oliveira; o ac. da RE de 18.12.2023, relatado por Maria João Sousa e Faro e os acs. desta Relação de Guimarães de 23.11.2017, relatado por Ana Cristina Duarte; de 4.10.2018, relatado por Elisabete Coelho de Moura Alves; de 17.12.2018 e de 7.05.2020, ambos relatados por Sandra Melo e de 24.03.2022, relatado por Afonso Cabral de Andrade, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
Isto posto, no caso, importa analisar, em primeiro lugar, se existe algum regulamento europeu ou instrumento internacional que atribua aos tribunais portugueses competência para julgar a presente acção de divórcio e só, em caso negativo, se se verifica alguns dos elementos de conexão referidos nos art.ºs 62º e 63º do NCPC.
Como tal - não tendo nós conhecimento da existência de qualquer instrumento internacional que vincule em simultâneo e de forma recíproca Portugal e o Canadá sobre esta matéria -, é evidente que para efeitos de definição do foro internacionalmente competente haverá que ter presente, como bem defende o recorrido, as regras estabelecidas no Regulamento (EU) 2019/1111 do Conselho, de 25.06, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças.
Note-se que tal Regulamento veio, nos termos do seu art.º 104º, nº 1, revogar o Regulamento (CE) nº 2201/2003, sendo aplicável às acções intentadas a partir de 1.08.2022 (cfr. ainda o art.º 100º), como ocorre com a presente (vide, ponto 4. do elenco dos factos apurados).
O art.º 1º do mesmo diploma estabelece expressamente, quanto ao seu âmbito de aplicação material, que o mesmo se aplica, em matéria civil, relativamente ao divórcio [cfr. al. a)].

E no que concerne à competência em “questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento” estabelece o art.º 3º do dito Regulamento que a mesma se defere aos tribunais do Estado-Membro:
a) Em cujo território se situe:
i) a residência habitual dos cônjuges,
ii) a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida,
iii) a residência habitual do requerido,
iv) em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges,
v) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos um ano imediatamente antes da data do pedido, ou
vi) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos durante seis meses imediatamente antes do pedido e se for nacional do Estado-Membro em questão;
ou
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges.” (o sublinhado é nosso).
Em face das normas referidas, manifesto é que, do art.º 3º, nº 1, decorre a existência de dois critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para de uma acção de divórcio poder conhecer, sendo um o da residência habitual e o outro o da nacionalidade de ambos os cônjuges, como sucedia já no âmbito do Regulamento Bruxelas II-A e do Regulamento Bruxelas I [em matéria matrimonial, as disposições do regulamento ora vigente pouco diferem das disposições equivalentes dos referidos Regulamento Bruxelas II-A e do Regulamento Bruxelas I].
Acresce dizer que os critérios de competência enumerados no referido art.º 3º são, inequivocamente, alternativos, não sendo estabelecida qualquer hierarquia ou ordem de precedência entre uns e outros. Cfr., a este propósito, o “Guia prático para a aplicação do Regulamento Bruxelas II-B”, da Comissão Europeia, disponível no Portal Europeu da Justiça, com referência ao acórdão do TJUE de 16.07.2009, Hadadi/Hadadi, no processo C-168/08, Colet. 2009, p. I-6871 em que o TJUE teve de decidir se essa hierarquia existia, respondendo que “O sistema de repartição de competências instituído pelo Regulamento em matéria de dissolução do vínculo matrimonial não visa excluir a pluralidade de foros competentes. Pelo contrário, prevê-se expressamente a existência paralela de vários foros competentes hierarquicamente equiparados”.
Neste mesmo sentido, ver ainda Anabela Susana de Sousa Gonçalves, in Matérias Matrimoniais e Responsabilidades Parentais na União Europeia, O Regulamento (UE) 2019/1111, Editora D’Ideias, p. 68, apud ac. da RE de 18.12.2023 e toda a demais jurisprudência acima já citada.
Indiscutível é, também, que o Regulamento (CE) 2019/1111 se aplica directamente na ordem jurídica portuguesa e é vinculativo para os tribunais portugueses, nos termos do citado art.º 8º, nº 4, da CRP.
Aliás, o próprio Regulamento prevê que “O presente regulamento é obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável nos Estados-Membros, em conformidade com os Tratados”.
E, se assim é, então a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses para julgar, nomeadamente, acções de divórcio deve ser feita à luz dos critérios (alternativos) consagrados no art.º 3º, nº 1, als. a) e b), do Regulamento 2019/1111.
Com efeito, os critérios de atribuição de competência previstos do Regulamento (CE) 2019/1111 aplicam-se de forma plena e obrigatória, no que se refere, nomeadamente, a matéria de divórcio, prevalecendo e substituindo, portanto, os critérios previstos nos art.ºs 62º e 63º do NCPC.
Daqui se pode concluir com toda a segurança que, no caso que nos ocupa, o tribunal a quo não podia ter gizado toda a sua decisão apenas apoiada no direito interno português.
Mas, também temos por absolutamente seguro que falece de razão a recorrente quando invoca a aplicação das normas do art.º 82º, do CC e dos art.ºs 62º e 63º do NCPC para excluir a competência internacional dos tribunais portugueses (não podendo, pois, nós concordar com o entendimento preconizado no aresto citado nas alegações de recurso da apelante).
Resta salientar que o disposto no Regulamento (EU) nº 1259/2010 do Conselho, de 20.12 não resolve a questão em discussão nos presentes autos de recurso, pois o mesmo destina-se a aferir a lei aplicável em matéria de divórcio, e não da competência internacional dos tribunais para julgar a acção de divórcio.
No caso, ainda que não se esteja perante um conflito de jurisdições ou ainda que mais nenhuma das jurisdições em jogo, para além de Portugal, seja a de um Estado-Membro da União Europeia, é o referido Regulamento (CE) 2019/1111 que tem aplicação, sendo de acordo com o mesmo que deve ser aferida a competência dos tribunais portugueses.
É que tal regulamento não visa regular conflitos de jurisdições (entre Estados-Membros), mas atribuir competência internacional aos tribunais dos diversos Estados-Membros para decidir das matérias nele previstas.
Com efeito, o Regulamento nº 2019/1111 tem um âmbito de aplicação espacial universal, o que significa que ele não se limita a regular, apenas, situações conexas com Estados-Membros, mas qualquer situação, tenha ou não alguma ligação relevante com a União Europeia.
Sobre o referido carácter universal do âmbito de aplicação espacial do Regulamento nº 2019/1111, veja-se igualmente o que escreveu no supra citado ac. da RE de 18.12.2023, o qual trata uma situação em que também estava em causa um litígio plurilocalizado que continha elementos de conexão com Portugal e com a Suíça, ou seja com um Estado –Membro da União Europeia e com outro que não o é:
«[A] actuação da União em matéria de regulamentação do direito de conflitos, não tem, exclusivamente, por objecto a regulamentação de conflitos transnacionais no âmbito do seu espaço de integração, mas, visa contribuir, também, para a unificação universal.
De facto, relativamente às “regras de competência internacional, para o Regulamento ser aplicável não é necessário que estejam em causa situações transfronteiriças no interior da União, ou seja, não se aplica apenas aos litígios que implicam relações entre órgãos jurisdicionais de Estados-Membros. É necessário, sim, que os factores de competência nele previstos atribuam a jurisdição a um Tribunal de um Estado-Membro. De acordo com o TJUE, aquela delimitação territorial não resulta do Regulamento e “as regras uniformes de competência contidas no Regulamento (…) não se destinam a ser aplicadas unicamente a situações que tenham um vínculo efectivo e suficiente com o funcionamento do mercado interno que envolvam, por definição, vários Estados-Membros [Anabela Susana de Sousa Gonçalves, in Matérias Matrimoniais e Responsabilidades Parentais na União Europeia, O Regulamento (UE) 2019/1111, Editora D’Ideias, p. 54]”.
Por conseguinte, poder-se-á afirmar a aplicabilidade do Regulamento ao caso concreto se, mercê de um dos factores nele previstos, tal competência for deferida aos Tribunais Portugueses (já que a Suíça não integra a UE).».
Temos, pois, que, no presente caso, apesar do Canadá não ser Estado-Membro da União Europeia, à luz da definição de Estado-Membro contida no art.º 2º, nº 3, do Regulamento nº 2019/1111, o caso vertente não pode deixar de estar coberto pelo âmbito espacial deste Regulamento, na medida em que, sendo Portugal um Estado-Membro da UE, a competência internacional dos tribunais nacionais para preparar e julgar a presente acção tem de ser aferida de acordo com as regras de competência internacional consagradas no referido respectivo art.º 3º, nº 1, als. a) e b), e nunca à luz da legislação processual civil interna (nomeadamente, os art.ºs 62º e 63º do NCPC).
Aqui chegados, e porque, como vimos supra, é em função da relação jurídica pelo autor, delineada na petição, que cabe determinar a competência do tribunal para de determinada acção poder/dever conhecer, certo é que, tal como o alegado pelo autor, ambos os cônjuges têm a nacionalidade portuguesa, o que equivale a dizer que se verifica o critério da nacionalidade de ambos os cônjuges, tal como o refere a al. b), do art.º 3º, do Regulamento (CE) 2019/1111 de 25.06.
E, sendo assim, como é, em face de tudo o supra exposto, ter-se-á, forçosamente, que julgar o tribunal português onde a acção foi interposta como competente (internacionalmente) para a tramitar, sendo totalmente irrelevante o lugar do domicílio/residência das partes ou o lugar da ocorrência dos factos que constituem a causa de pedir do divórcio.
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Ante todo o exposto, impõe-se julgar improcedente o recurso e, em consequência, decide-se manter a decisão recorrida, ainda que com fundamentos manifestamente diversos.
As custas do recurso ficam a cargo da recorrente, atento o seu decaimento integral (cfr. art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC).
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IV. Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da recorrente.
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Guimarães, 25.01.2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Juíza Desembargadora Relatora: Dr(a). Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Eva Almeida
2º Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Raquel Baptista Tavares