PROVA EXTRA-PROCESSUAL
CASO JULGADO MATERIAL
Sumário

I - A admissão da valoração da prova extra-processual é possível, mas obedece a determinados condicionalismos, que, na falta de norma específica em processo penal, terão de ser encontrados, com as devidas adaptações, no artº 421º do CPC, por força do artº 4º do CPP.
II - O caso julgado material só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença, sem prejuízo de, para a interpretação do dispositivo do acórdão, ser legítimo recorrer à motivação da decisão, quando tal se revele necessário.
III - Os fundamentos de facto de uma sentença não adquirem força de caso julgado noutro processo autónomo.

Texto Integral

1ª secção criminal
Proc. nº 8462/20.3T9PRT.P1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal singular), do Juízo Local Criminal do Porto, juiz 6 da Comarca do Porto, o arguido AA, nascido em .../.../1987 foi submetido a julgamento e a final foi proferida sentença de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
Por todo o exposto, decide-se:
A) Condenar o arguido AA, pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de corrupção activa, p. e p. pelo art.º 374.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, que se decide suspender na sua execução por igual período, com Regime de Prova.
B) Condenar o arguido AA, pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo art. 3º n.º 1 e 3 da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, na pena de 220 dias de multa à taxa diária de € 6, num total de € 1.320.
C) Declaro perdida a favor do Estado a carta de condução apreendida ao arguido AA e determino que esta decisão seja comunicada ao IMTT e à ANRS.
D) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

(…)

*
Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, no qual formula as seguintes conclusões:
(…)
1 - Alguns apontamentos sobre a previsão e estrutura dos crimes de corrupção activa e falsidade informática de que o arguido vem acusado;
2 - A factualidade que foi dada como provada nos pontos 1) a 16), apenas e só foi baseada nas declarações do arguido donde o tribunal retirou que este “mudou de escola porque o seu vizinho BB lhe disse que a escola era boa e por isso mudou para lá.” e” porque já tinha reprovado anteriormente noutra escola de condução”, acabando por concluir que “Ora, o arguido não apresentou uma justificação muito válida e convincente das razões pelas quais decidiu mudar de escola de condução, acompanhando o identificado BB.” (sublinhado nosso).
3 - Não se percebe porque o Tribunal veio qualificar, nestes termos, a justificação do arguido, porquanto, o arguido disse que a sua saída da escola anterior onde se encontrava inscrito e tinha reprovado em exame se deveu à indicação de um vizinho de que a nova escola era boa.
4 - Pelo que não se percebe donde resulta a justificação como não muito válida e convincente, sem mais.
5 - Tal conclusão não é sequer fundamentada porque, se foram prestadas declarações pelo arguido que não foram contraditadas, nada coloca em causa a sua credibilidade, logo foram prestadas com coerência e espontânea;
6 - Ainda que fosse questionada a sua credibilidade, não foi indicado pelo Tribunal qualquer factor que tivesse prejudicado o seu discurso, nem sequer foram questionadas com base em algum elemento probatório quer articulados ou conjugados entre si.

7 - A prova produzida é baseada no princípio da livre apreciação (art.º 127.º do CP), mas não deve ser arbitrário e deve ser assente em raciocínio lógico objectivos e nas regras da experiência. Aliás, a este propósito refere-se no Ac. TC 1165/96 que:” o actual sistema da livre apreciação da prova não deve definir-se negativamente pela ausência das regras e critérios legais predeterminantes do seu valor, havendo antes de se destacar o seu significado positivo. Acompanhando Figueiredo Dias, (…)dir-se-á que “o principio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (como já dissemos que a tem toda a discricionariedade jurídica) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever — o dever de perseguir a chamada ‘verdade material’ —, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos)». A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão. (Cfr. sobre esta matéria, para além dos autores já citados, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, pp. 107 e segs.; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, 1986, pp. 257 e segs., e J. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, Coimbra, 1981, pp. 566 e segs.).”(negrito nosso)
8 - De acordo com estes critérios, naturalmente que nos parece razoável, que qualquer pessoa que possa estar inscrita em escola ou entidade, em que tenha de prestar provas de conhecimentos e outros, tendo reprovado e ouvindo opinião ou conselho de outrem sobre outra escola ou entidade que é melhor cotada, opte por inscrição nesta.
9 - Ainda para justificar o injustificável, a sentença socorre-se de um preconceito de que "...o arguido tem pouca instrução, portanto, a possibilidade de apresentar dificuldades na realização do exame de código é grande...", quando, todos sabemos que tal fundamentação não tem qualquer fundamento ou justificação, pois, como é do conhecimento geral, existem pessoas com a quarta classe que passam no exame de código logo à primeira vez e outras à segunda, e existem licenciados que passam no exame de código à primeira vez e outros à segunda e terceira vez.
10 - Acresce que não foi produzida PROVA com as testemunhas FULCRAIS como consta da sentença ao referir que“(…)apesar de a testemunha BB não ter admitido que angariou este cliente para pagar pelo exame de código, nem as testemunhas (examinadores de condução), CC e DD lograram identificar o arguido como sendo uma das pessoas que comprou o exame de código através do pagamento de avultada quantia, (…)”, e, “estas duas últimas testemunhas afirmaram e confirmaram que o referido BB, era um angariador de examinandos que pretendiam obter a aprovação no código através do pagamento de uma quantia.”.
11 - Com o devido respeito, destes dois factos, temos que, do primeiro, encontra-se totalmente afastado o envolvimento do arguido na factualidade imputada, já que o BB (o angariador) não admitiu que angariou ESTE cliente (o que permite concluir que angariou outros), conforme resulta do seu depoimento cuja audição se requer a V. Exas. e se encontra gravada entre os alvos 10:24:34 e 10:36:38, até porque, segundo esta testemunha que negou ter recebido 4.000, 00 do arguido, referiu que este não tinha capacidade financeira para os pagar.
12 - Nem as outras testemunhas, que são os examinadores de condução - CC e DD – não lograram identificar o arguido, referindo aquele que "não conheço a pessoa; nunca o vi", conforme referiu nos seus depoimentos realizados, o primeiro por videoconferência no dia 20 de Setembro de 2022, cuja audição se requer e consta do alvo 10:40:36 e 10:58:29, e o segundo presencialmente em Tribunal no dia 09 de Janeiro de 2023, cujo depoimento se encontra gravado entre o alvo 14:43:24 e 14:58:44 cuja audição igualmente se requer a V. Exas. e donde resulta entre o mais que este confrontado com o arguido reafirma não o conhecer, e que não tem a certeza de ter metido o aparelho nesse dia.
13 - Por outro lado, confrontado com o nome "Pedro" que consta da transcrição dos autos, refere que o seu filho também se chama Pedro e que não sabe se estava a falar para ele ou para o filho.
14 - O segundo facto foi constatado pelo Tribunal por ter valorado a prova testemunhal prestada por BB. E se o valorou não o pode fazer PARCIALMENTE, porque esta testemunha também disse que não tinha angariado o arguido.
15 - É inadmissível concluir que por BB ser angariador de examinandos para obter aprovação no código, não permite “esticar”, de forma a concluir que o arguido praticou os factos.
16 - A única prova que o tribunal valorou (para além do facto de BB ser angariador de examinandos), foi a seguinte: “Por outro lado, nos manuscritos das testemunhas que foram condenadas por corrupção passiva num outro processo, estando a cumprir pena de prisão efectiva por tais factos, consta que no dia 22/05/2015 uma pessoa apelidada de “Pedro” fez o exame de código, às 14h, trazido pelo “BB” e em que foi examinador “DD”. Acontece que estas testemunhas confirmaram que esta Listagem manuscrita / contabilidade de CC apreendida em 17.11.2015 (fls. 1089, onde consta que a 22.05.2015 – 14h, fez exame o Pedro em que examinador foi DD e angariador BB) correspondia às anotações sobre as pessoas que naqueles dias/horas efectuaram exames através do pagamento de quantia que conduziam à aprovação no exame de código.”
17 - Estranha-se que os nomes atribuídos aos intervenientes, “BB” e “DD”, permitem com clareza identificar os seus sujeitos por serem os seus apelidos, mas em relação à “pessoa apelidada de Pedro”, havia que “encaixar” qualquer elemento com o arguido.
18 - O Tribunal faz o seguinte raciocínio: “Se analisarmos tal documento de fls. 1088 a 1096 (manuscrito) verificamos que apenas existe um “Pedro” a realizar exame no dia 22/05/2015, às 14h, designados (angariado pelo “BB”, da sala do DD”). (…);
19 - “Mas da listagem oficial das pessoas que realizaram exame de código nesse dia e hora, existem um outro “Pedro” (EE) que também realizou exame de código no dia 22/05/2015, às 14h, com o examinador “DD”, tendo sido este EE acusado no processo principal, conforme consta da certidão da acusação de fls. 3 e seguintes (designadamente, nos factos 1273 a 1281 da acusação pública).” (…)
20 - “Dessa audiência de julgamento, resultou que esse “Pedro” foi afastado e absolvido, por declarações ali prestadas pelo ali arguido CC, autor dos manuscritos, que negou que o EE fosse o “Pedro” da listagem manuscrita.
21 - Atendamos que nos presentes autos e outros, temos como certo que o arguido chama-se AA, que realizou o exame de código no dia 22/05/2015, às 14h; Existe um outro EE, que realizou o exame de código no dia 22/05/2015, às 14h; “Pedro” foi afastado e absolvido, por declarações ali prestadas pelo ali arguido CC, autor dos manuscritos, que negou que o EE fosse o “Pedro” da listagem manuscrita!!!; CC e (…) não lograram identificar o arguido como sendo uma das pessoas que comprou o exame de código através do pagamento de avultada quantia, (…)”;
22 - E face a isto o Tribunal conclui "Das transcrições resulta, ainda, que a pessoa que estava a realizar o exame chamava-se “Pedro” e que estava em contacto com o CC, que ia transmitindo àquele as respostas ao exame. Deste modo, e inexistindo mais nenhum “Pedro” a realizar exame com o examinador DD no dia 22/05/2015, às 14h, concluímos, sem margem para dúvidas que o arguido cometeu os factos descritos na acusação
23 - Atente-se na frase: inexistindo mais nenhum “Pedro” a realizar exame com DD, no dia em causa; Isto, com todo o devido respeito, é “arranjar” um “culpado” forçado e por exclusão de hipóteses, quando estamos perante um processo crime.
24 - Efectivamente, se o arguido não tem o nome “Pedro” como principal, como é possível concluir-se que, embora exista o outro “Pedro” (que o tem como nome principal), este foi absolvido noutro processo, logo, ainda que sem elementos probatórios neste processo que permitam concluir que era sujeito em causa, por exclusão…dá-se como provados os factos.(!)
25 - Se o tribunal valora o que foi demonstrado no outro processo, designadamente, o depoimento de CC e igualmente o fez sobre este depoimento neste processo (!), como é possível atribuir a factualidade constante da acusação pública ao arguido, se esta testemunha também não logrou identificar o arguido...
26 - O princípio in dubio pro reo, decorre do princípio da presunção de inocência do arguido, com assento no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República, dando resposta ao problema da dúvida sobre o facto [e não sobre a interpretação da norma] e impondo ao julgador que o non liquet da prova seja sempre resolvido a favor do arguido.
27 - Como ensina o Prof. Figueiredo Dias «À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo» (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213).
28 - A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dubio pro reo não é uma qualquer dúvida, devendo ser insanável, razoável e objectivável, que é o que indubitavelmente acontece no caso dos autos, pois permanece esse estado de dúvida insuperável neste caso e que tem de ser valorado a favor do arguido, quanto ao facto de não se ter provado de ter sido o mesmo o autor dos ilícitos que lhe eram imputados e pelos quais foi condenado.
29 - Como refere Cristina Líbano Monteiro: «O universo fáctico – de acordo com o “pro reo” – passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos factos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige a certeza.» (Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», pág. 53).
30 - A este propósito, lê-se no acórdão desta Relação, de 14.12.2010, processo 518/08.7PLLSB.L1-5 (Relator: Desemb. Neto de Moura): «(…), um primeiro aspecto cumpre realçar: o in dubio pro reo só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa. O segundo aspecto a assinalar é o de que não é qualquer dúvida que há-de levar o tribunal a decidir “pro reo”. “Tem de ser uma dúvida razoável, que impeça a convicção do tribunal (vide AC TRL de 9.04.2013, in www.dgsi.pt).
31 - Decorre do princípio que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
32 - Deve ser alterada a decisão do Tribunal “a quo”, porque as provas analisadas supra, não conduzem àquela factualidade que se deram como provados, porque foram violadas as regras da livre apreciação das provas e principio in dubio pro reu, que se traduz exactamente o caso dos autos.
33 - Da factualidade dada como provada constantes dos pontos 1) a 16), não é possível enquadrar os elementos objectivos e subsequente os elementos subjectivos, que permitam qualificar a prática de crime de falsidade informática.
34 - No que tange ao tipo objectivo deste crime, encontramos no art. 3.º, n.ºs 1 a 4, da Lei n.º 109/2009, cinco modalidades de conduta típica:
a) Introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos (n.º 1);
b) Introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, sempre que os dados que sejam alvo dessa manipulação estejam registados ou incorporados em cartão bancário de pagamento ou em qualquer outro dispositivo que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento, a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado (n.º 2);
c) Usar documento produzido a partir de dados informáticos que foram objecto de
introdução, modificação, apagamento ou supressão ou cujo tratamento informático foi alvo de interferência por qualquer outra forma (n.º 3, 1.ª parte);
d) Usar documento produzido a partir de dados informáticos registados ou incorporados em cartão bancário de pagamento ou em qualquer outro dispositivo que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento, a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado e que foram objecto de introdução, modificação, apagamento ou supressão ou cujo tratamento informático foi alvo de interferência por qualquer outra forma (n.º 3, 2.ª parte);
e) Importar, distribuir, vender ou detiver para fins comerciais qualquer dispositivo que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento, a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado, “sobre o qual tenha sido praticada qualquer das acções previstas no n.º 2” (n.º 4).
35 - Relativamente à primeira modalidade de conduta típica (art. 3.º, n.º 1) e começando pelo conceito de “Dados informáticos”, estes deverão ser entendidos na acepção do art. 2.º, al. b), da Lei n.º 109/2009.
36 - Passando à questão de saber em que consiste o “introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados ou programas informáticos ou, por qualquer outra forma, interferir num tratamento informático de dados”, consideramos que os conceitos de “introduzir”, “modificar”, “apagar”, “suprimir” e “interferir” deverão ser interpretados partindo do significado corrente de tais palavras, sendo que, de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a) “Introduzir” significa, entre outras coisas, «fazer inclusão de; incluir, inserir»; b) “Modificar” significa, entre outras coisas, «fazer ou sofrer alteração (em)», sendo que o sentido que para aqui interessa é a vertente activa (“fazer alteração em”); c) “Apagar” significa, entre outras coisas, «fazer desaparecer ou desaparecer, sem deixar traço; eliminar(-se)»; “Suprimir” significa, entre outras coisas, «agir no sentido de acabar com (algo); extinguir, eliminar, cancelar; tirar (uma parte) de (um todo); cortar, retirar; fazer desaparecer; ocultar, afastar»; e e) “Interferir” significa, entre outras coisas, «interpor-se, misturar-se, alterando a estrutura ou as características (de algo); afectar».
37 - Não se encontram reunidos quaisquer dos elementos objectivos do crime “in casu”.
Em primeiro lugar, o conceito de “Crime” na noção contida na alínea a) do artigo 1º do Código de Processo Penal, é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais” de entre eles avultando o elemento subjectivo do tipo de crime.
38 - Se os factos da acusação não constituem crime devia a mesma ter sido rejeitada nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal.
39 - A propósito deste preceito, Germano Marques da Silva, em Processo Penal, III, 207/8, entende que, “esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”
40 - Na senda de tal doutrina, da conjugação do disposto nos artigos 283º, nº 3 e 311º, nº 3 do Código de Processo Penal, resulta que a nulidade da acusação por falta de descrição de factos que constituam crime não é suprível e pode ser conhecida a todo o tempo até ao trânsito em julgado da decisão final (cfr. o acórdão desta relação de 22.5.2013 publicado em www.dgsi.pt) viciando todos os actos que sejam praticados posteriormente (artigo 122º, nº 1 do Código de Processo Penal).
41 - Assim, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver – isto é, quando os novos factos conhecidos na audiência não excedem o âmbito do objecto do processo, tal como foi definido na acusação – o tribunal pode deles conhecer, desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunique tal alteração ao arguido e lhe conceda, se requerido, o prazo necessário para a preparação da respectiva defesa, salvo se os novos factos tiverem sido alegados pela defesa (artigo 358º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal).
42 - Se a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia for substancial – tal como é definida no artigo 1º, f), do C. Processo Penal – já o tribunal só pode deles conhecer se, feita a sua comunicação, o Ministério Público, o arguido e o assistente concordarem com a continuação do julgamento pelos novos factos, e a alteração não determinar a incompetência do tribunal (artigo 359º, nº 3, do C. Processo Penal).
43 - Como refere Francisco Isasca (Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português 2ª Ed., 200 e ss.), dá-se uma reformulação do objecto do processo, operada pelo acordo dos sujeitos processuais com vista à rápida resolução do litígio, tudo sem a menor intervenção do julgador e portanto, sem trair o princípio do acusatório. Ora, o artigo 1º, alínea f) do Código de Processo Penal define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
44 - Se, porém, os factos constantes da acusação não integram sequer um crime, afastada está a possibilidade do julgador suprir a falta da alegação dos factos integradores do tipo subjectivo, com recurso às aludidas normas.
45 - Pressuposto necessário é que se verifiquem os elementos objectivos e subjectivos do tipo, essenciais à estrutura e conceito do crime. Se os factos exarados na acusação não constituem crime, torna-se impossível a imputação de crime diverso, porque então estaríamos perante a realidade da imputação de um crime “ex novo” e não diverso. Aliás, o STJ, no Acórdão 1/2015, DR Iª Série de 27.1.2015, fixou jurisprudência no sentido de que a falta de descrição do elemento subjectivo não pode ser suprido em audiência por recurso ao artigo 358º do Código de Processo Penal, por maioria de razão não o poderá ser por recurso ao artigo 359º ainda que obtido o acordo a que se refere o seu nº 3.
46 - O fundamento da não aplicabilidade de tais preceitos radica na mesma causa; a inexistência de imputação de factos que constituem crime que é pressuposto de qualquer tipo de alteração. Perfilhamos, que a imputação genérica de uma conduta, ou seja, sem a descrição fáctica integradora de um ilícito penal, é insusceptível de conduzir à aplicação, ao arguido, de uma pena ou de uma medida de segurança, consequentemente, a falta de narração, na acusação, quer do tipo objectivo, quer do tipo subjectivo de crime, traduz uma pura inexistência de tipicidade, não sendo, neste contexto, admissível, em julgamento, a alteração posterior dos factos, neste ou noutro procedimento, por forma a que daquela passem a constar factos integrantes de um comportamento típico do agente. Nesse caso, tal alteração consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica, em patente violação do princípio constitucional do acusatório.
47 - Por todo o exposto, impõe-se, sem mais, declaração de absolvição do arguido pela prática do crime de falsidade informática.

Nestes termos e no mais que doutamente vier a ser suprido, deve a sentença ser revogada proferindo-se decisão que absolva o arguido AA, ora recorrente, dos crimes de corrupção activa e falsidade informática de que vem acusado, por manifesto erro na apreciação da prova e sempre deve ser aplicado o principio “in dubio pro reu”, nomeadamente dos pontos aqui postos em crise, tudo ao abrigo do disposto nomeadamente do art. 410º do C. P. Penal,

(…)

A Magistrada do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, a Exmº Procurador-Geral Adjunto acompanhando a resposta do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
*
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
Da prova produzida em audiência, resultaram provados os seguintes factos:
1) Em data e local não concretamente apurados, mas anterior a 22 de Maio de 2015, BB - angariador de alunos para a escola de condução “...” - e AA acordaram que, mediante o pagamento €4.000,00, o segundo seria aprovado no exame multimédia do Código da Estrada.
2) Em concretização desse acordo, AA entregou aquele montante a BB, o qual posteriormente entregou uma parte, pelo menos €1.500,00, a CC para este dividir com o examinador presente na sala de exame.
3) Ao início da tarde de 22.05.2015 e em local não concretamente determinado, CC colocou em AA um equipamento composto por uma bateria, uma microcâmara para captar as questões do exame do Código da Estrada, um emissor para, através do telemóvel, transmitir a este candidato as respostas certas às mesmas e um auricular sem fios para que este as ouvisse.
4) AA transportou consigo de forma dissimulada a câmara no botão da camisa, colocada ao nível do peito e apoiada num cartão, de forma a captar as questões exibidas no monitor do exame e transmiti-las para o computador portátil que se encontrava com CC.
5) Além da câmara e da bateria, AA transportou consigo um auricular sem fios, que lhe permitia ouvir as indicações de CC, entre as quais, naturalmente, as respostas certas às questões apresentadas.
6) Após a colocação do referido equipamento de imagem e som, ambos dirigiram-se para o A....
7) Alguns minutos antes do exame, DD, examinador, soube que AA iria ser ajudado a partir do exterior por CC.
8) No dia 22 de maio de 2015, entre as 14h08 e as 14h31, CC auxiliou, através do equipamento referido, o candidato AA, da escola de condução ..., a ser aprovado no exame do Código da Estrada, transmitindo-lhe por essa via as respostas corretas às questões apresentadas.
9) Antes, durante e depois desse exame, CC disse a AA, através do referido equipamento:
- “não há problema, com calma, com calma, quando for possível, isso mesmo, abra a casaquinha com calma, isso, o cartão tá todo torto o cartão, dê um jeito ao cartão quando for possível, faça assim com calma, com calma, dê um jeito ao cartão que ele tá todo torcido, quando você depois puder dar um jeito ao cartão, com calma dá um jeito ao cartão, que ele tá todo virado, quando puder, faça isso com calma, ainda tem que ser mais, tem que ser mais, com as duas mãos se for preciso ó caramba, faça isso com calma, isso, tá a ficar melhor, agora tem que se virar p’a esquerda que isto tá muito p’a direita, assim pr’a já”;
- “vamos ter um clarão na imagem, vamos ter alguma dificuldade porque temos um reflexo na parte esquerda de cima do écran, é das luzes do teto sabe, das luzes do teto, isso depois se calhar pode-se ter que pôr a mão por cima, como você tivesse, quando apanha sol nos olhos, isso, vamo lá ver, vire-se p’a esquerda um bocadinho, assim, com calma, assim, assim, tá bom”;
- “tem que virar p’a esquerda um bocadinho e tá muito alto, isso tá muito alto, dê um jeitinho na camisa, puxe a camisa com cuidado por causa dos fios, puxe a camisa um bocadinho pr’a baixo, com a mão esquerda, puxe a camisa um bocadinho pr’a baixo, com calma, com calma, isso, já está melhor e depois é assim, ó, ó Pedro, nós temos um clarão, vamo lá ver se eu consigo fazer entender o que é que está a acontecer, aí no canto, no canto superior esquerdo do écran, onde tem, onde diz ali sistema, bem vindo ao sistema multimédia”;
- “vire-se agora, puxe a camisa um bocadinho pr’a baixo, puxe a camisa pr’a baixo um bocadinho, mão esquerda, puxe a camisa, ou vergue-se um bocadinho, vergue-se um bocadinho p’a frente, vergue-se um bocadinho, isso, mai, isso, tá bom assim, calma, calma, tá bom”;
- “chegue o rabo p’a trás, chegue o cu p’a trás, chegue o cu p’a trás, chegue o cu p’a trás, mais, e agora vergue-se um bocadinho p’a frente, vergue-se p’a frente um bocadinho, quase que não é preciso mexer na camisa, vergue-se mais um bocadinho, mais, ou puxe a camisa um bocadinho também, puxe a camisa também um bocadinho, ponha lá a mão, puxe a camisa, só na beirinha da camisa, assim, puxe mais um bocadinho e deixe lá estar a mão, nos casos em que a passagem de nível não tenha proteção ou sinalização, só posso iniciar o seu atravessamento depois de me certificar que não se aproxima nenhum comboio, concorda com a afirmação, puxe a camisa pr’a baixo um bocadinho, puxe a camisa pr’a baixo um bocadinho, puxe a camisa e deixe tar a mão na camisa caralho, puxe a camisa e deixe tar a mão na camisa, isso, assim, deixe tar assim, deixe tar assim, tá bom, tá bom, tá bom, tá bom, tá ok, ok”;
- “venha com o cartão à frente, é redondo, tá bem, deixe tar aí, deixe tar aí o cartão”;
- “sinalização temporária prevalece sobre as regras de trânsito e sinais luminosos verticais, sim, ponha a primeira, a primeira, vire-se p’a direita um bocadinho, você mexe-se muito caralho, assim, tá bom, passe p’a frente”;
- “tá tudo respondidinho, tá, pronto, então não mexa em mai nada, descontraia-se, tire a mão da camisa, descontraia, meta, pouse, pouse o seu cartão, pouse o cartão de cidadão, meta a mãozinha lá na, na camisa, portanto na casaca não é, meta a mãozinha na casaca, vai ao interruptor desligar a imagem, com calma, vai lá, empurre p’as costas o botãozinho, com calma, desligue lá isso com calma, isso mesmo, já está, pronto, agora pega, componha-se da melhor maneira e feche a casaca, componha-se da melhor maneira, com calma, veja se não está ninguém a reparar muito, puxa o fechozinho da casaca até lá cima, mais ou menos pronto, de maneira a que esse botão esteja, teja encoberto e agora vai fazer o seguinte, não se esqueça, que você está aí do lado da parede, você ponha a mãozinha lá na orelha, com calma, descontrair, e vai puxando o coisa com calma, mete depois no bolso do lado esquerdo que você do lado direito tem o telemóvel e vai desligar, portanto vai meter o auricularzinho no bolso, depois fecha o, o, o fecho da casaca, não se esqueça disso com cuidado, você tem tempo, você ainda tem dezasseis minutos que vai ter que esperar, portanto você não precisa de correr, você põe a mão na orelha e tal, vai tentando ver da melhor maneira, tira-o fora, com calminha p’a ninguém ver, mete na casaquinha e feche-me o fecho da casaca, pronto tá, até já, não fale com ninguém, tá tudo bem, e portanto boa sorte, deve ter corrido tudo bem, penso eu que está tudo bem, tá, até logo então, até logo que depois ele que o leve lá, é isso, diga-lhe a ele que vá levá-lo lá que ele tem tempo e é preciso por causa do, do, do, da (impercetível), da sua roupa tá bem, até já, até já”.
10) DD vigiou a realização desse exame e sabia que esse candidato estava a ser auxiliado pelo arguido CC, tendo recebido indevidamente cerca de €750,00 por permitir que tal ocorresse com sucesso.
11) Alguns dias depois desse exame, CC entregou no A... o montante de pelo menos €750,00, em numerário e em mão, àquele arguido examinador.
12) AA sabia que o pagamento que fez a BB, no montante de 4.000,00€ não se destinava apenas ao pagamento da formação legalmente imposta e à realização do exame, mas sim e sobretudo para que, como pretendia e conseguiu:
- pudesse receber do exterior da sala de exame as respostas correctas ao mesmo durante a sua realização;
- o examinador não levantasse quaisquer problemas e até o ajudasse, se necessário;
- fosse aprovado sem ter e/ou sem demonstrar os conhecimentos do Código da Estrada necessários e exigidos para o efeito;
- obtivesse a licença de aprendizagem da prática de condução e, mais tarde, a carta de condução.
13) O arguido estava ciente das responsabilidades e deveres funcionais que resultavam do exercício de poderes conferidos pelo Estado ao examinador, tendo agido livre e conscientemente, bem sabendo que as suas descritas condutas configuravam a prática de crimes
14) Ao seleccionar as respostas às questões do exame multimédia do Código da Estrada apenas em resultado das indicações de CC, o arguido agiu com a intenção concretizada de criar a aparência de se tratar de respostas exclusivamente suas.
15) Sabia ainda o arguido que frustrava por completo a finalidade da realização desse exame e colocava em causa a segurança, a fiabilidade e a força probatória dos respetivos registos informáticos assim como o crédito de que, no tráfico jurídico-probatório, goza o documento que lhe foi entregue no final atestando, nesse caso sem correspondência com a realidade, que a aprovação naquele exame resultava unicamente do seu desempenho individual.
16) Ao usar posteriormente esse documento, gerado automaticamente a partir do sistema multimédia de exames do Código da Estrada com base nas respostas que lhes foram indicadas por CC e a conivência de DD, o arguido agiu com a intenção, concretizada, de obter a licença de aprendizagem, frequentar as aulas práticas de condução e ulteriormente obter a habilitação para a condução de veículos e a inerente emissão de carta de condução, bem sabendo que assim atentava contra o crédito de que, para esse efeito em particular, goza tal documento.
Das condições sócio-económicas do arguido:
17) O arguido exerce a actividade profissional de serralheiro.
18) É solteiro, tem 3 filhos, com 13, 4 e 2 anos de idade, vive em casa arrendada, vive com a sua família e a sua mãe que está doente.
19) Recebe mensalmente o vencimento de 850€ e de vez em quando faz horas extra pelas quais recebe, em média, € 100 a € 200.
20) A companheira do arguido trabalha umas horas no café de uma colectividade e ganha mensalmente € 250, sendo que os filhos andam na escola.
21) Paga mensalmente, de Renda 180€; de Luz € 110 e € 62 à B….
22) Gasta no transporte do filho € 150 da carrinha da escola e € 100 de creche. 23) Gasta em medicação para o filho mais velho, hiperactivo, € 70 por mês 24) Tenho um carro, de marca Renault, modelo ..., do ano de 1998.
25) O arguido concluiu a 4.ª classe. Dos antecedentes criminais do arguido:
26) Nada consta do certificado de registo criminal do arguido. *
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem factos não provados com relevo para a boa decisão da causa. *
C) MOTIVAÇÃO
O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida, analisada na audiência de discussão e julgamento e valorada à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, designadamente:
O arguido quis prestar declarações, tendo negado a prática dos factos. Porém, admitiu que realizou o exame de código no ano apontado na acusação (o que também é confirmado pelo documento de fls. 1113 a 1115), bem como admitiu que fez a instrução na Escola de condução ...; que já tinha reprovado anteriormente noutra escola de condução, por uma vez e que mudou de escola porque o seu vizinho BB lhe disse que a escola era boa e por isso mudou para lá. Referiu que frequentou as aulas de código, ia sempre às aulas, a partir das 5h, que andou cerca de um mês e tal nas aulas e que já estava pronto para ir a exame, que não foi com qualquer dificuldade.
Ora, desde logo, apesar de as testemunhas BB não ter admitido que angariou este cliente para pagar pelo exame de código, nem as testemunhas (examinadores de condução), CC e DD lograram identificar o arguido como sendo uma das pessoas que comprou o exame de código através do pagamento de avultada quantia, certo é que estas duas últimas testemunhas afirmaram e confirmaram que o referido BB era um angariador de examinandos que pretendiam obter a aprovação no código através do pagamento de uma quantia.
Ora, o arguido não apresentou uma justificação muito válida e convincente das razões pelas quais decidiu mudar de escola de condução, acompanhando o identificado BB. Certo é também que o arguido tem pouca instrução, portanto, a possibilidade de apresentar dificuldades na realização do exame de código é grande, como o próprio admitiu que reprovou uma vez em tal exame e que depois mudou para a escola do BB.
Por outro lado, nos manuscritos das testemunhas que foram condenadas por corrupção passiva num outro processo, estando a cumprir pena de prisão efectiva por tais factos, consta que no dia 22/05/2015 uma pessoa apelidada de “Pedro” fez o exame de código, às 14h, trazido pelo “BB” e em que foi examinador “DD”. Acontece que estas testemunhas confirmaram que esta Listagem manuscrita / contabilidade de CC apreendida em 17.11.2015 (fls. 1089, onde consta que a 22.05.2015 – 14h, fez exame o Pedro em que examinador foi DD e angariador BB) correspondia às anotações sobre as pessoas que naqueles dias/horas efectuaram exames através do pagamento de quantia que conduziam à aprovação no exame de código. Se analisarmos tal documento de fls. 1088 a 1096 (manuscrito) verificamos que apenas existe um “Pedro” a realizar exame no dia 22/05/2015, às 14h, designados (angariado pelo “BB”, da sala do DD”). Mas da listagem oficial das pessoas que realizaram exame de código nesse dia e hora, existem um outro “Pedro” (EE) que também realizou exame de código no dia 22/05/2015, às 14h, com o examinador “DD”, tendo sido este EE sido acusado no processo principal, conforme consta da certidão da acusação de fls. 3 e seguintes (designadamente, nos factos 1273 a 1281 da acusação pública). Dessa audiência de julgamento, resultou que esse “Pedro” foi afastado e absolvido, por declarações ali prestadas pelo ali arguido CC, autor dos manuscritos, que negou que o EE fosse o “Pedro” da listagem manuscrita. Veja-se, pois, certidão do acórdão proferido no processo 3110/13.0JFLSB, em particular, fls. 721, bem como, a intercepção do alvo 70612040, CD de fls. 1111; à sessão 140 de 22.05.2015 e sessão 3259/60 de 12/05/2015; fls. 1098-1103; à transcrição das declarações prestadas por CC, perante o JIC do processo 3110/13.0JFLSB, de fls. 1040-1087; às declarações de CC, CD de fls. 1111 e a informação do IMT de fls. 1113-1115.
Das transcrições resulta, ainda, que a pessoa que estava a realizar o exame chamava-se “Pedro” e que estava em contacto com o CC, que ia transmitindo àquele as respostas ao exame.
Deste modo, e inexistindo mais nenhum “Pedro” a realizar exame com o examinador DD no dia 22/05/2015, às 14h, concluímos, sem margem para dúvidas que o arguido cometeu os factos descritos na acusação.
Em face da conjugação crítica da prova escrita e documental, dúvidas não subsistiam ao tribunal que o arguido cometeu os factos tal como estão descritos na acusação, bem como foi o seu autor.
A prova das condições sócio-económicas do arguido assenta nas suas próprias declarações, que não foram infirmadas por qualquer outro meio de prova e nessa parte foram igualmente credíveis.
Os antecedentes criminais do arguido resultam da análise do certificado de registo criminal actualizado junto aos autos.

(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
.Se a factualidade dada como provada sob os pontos 1 a 16 foi erradamente dada como provada, em violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio in dubio pro reo, e por manifesto erro na apreciação da prova, devendo o arguido ser absolvido dos crimes pelos quais foi condenado;
.Se os factos provados não integram a prática pelo arguido do crime de falsidade informática pelo qual o arguido foi condenado;
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
O recorrente alega que a factualidade provada sob os pontos 1 e 16 não o devia ter sido dada como provada, “porque as provas analisadas supra não conduzem aquela factualidade porque foram violadas as regras da livre apreciação das provas e princípio in dubio pro reo”.
Ante demais esclarece-se que, como bem refere o MP nesta Relação, embora o recorrente alegue a existência de erro relativamente à matéria de facto provada, o mesmo não cumpre o ónus da impugnação especificada previsto no artº 412º nºs 3 e 4 do CPP.
Efectivamente embora indique os factos que considera incorrectamente provados e as provas, depoimento gravados das testemunhas BB, CC e DD, o recorrente limita-se a remeter para o início e fim de cada um dos depoimentos - cf. conclusões 11 e 12 - sem nunca indicar nos termos do nº4 do artº 412º nº3 a) e 4 as concretas passagens em que se funda a impugnação.
A indicação das concretas passagens, exigida por lei, ainda que efectuada por remissão ao consignado na acta da audiência, não se satisfaz com a referência a toda extensão dos depoimentos, ainda que indicando o seu início e fim, antes devendo o recorrente identificar as passagens concretas desses depoimentos que impõem decisão diversa da tomada pelo tribunal.
Como se escreveu no ac.do STJ de 21/4/2021, proferido no proc. 522/18.7PBELV.E1, “A indicação da totalidade do depoimento das testemunhas ou uma sua súmula proposta pelo recorrente não cumpre as exigências processuais contidas no artigo 412, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal. O ónus que recai sobre o recorrente é de uma impugnação especificada, impugnatória de factos concretos, fazendo em cada ponto referência aos meios de prova que considere relevantes.
Não pode ater-se a indicar todo o depoimento, pois tal redunda em apelo a nova apreciação de facto de todo o depoimento, e até de todos os outros depoimentos. O resumo de depoimento é uma elaboração (ou narrativa) do recorrente sobre um depoimento, sem valor probatório.” [1]
Como tal, tendo sido as provas gravadas e não tendo o recorrente impugnado a matéria de facto nos termos do artº 412º nº3 e 4 do CPP, não logrando indicar provas que imponham uma outra convicção, a discordância do Arguido relativamente à matéria de facto dada como provada na perspectiva da violação do princípio da livre apreciação da prova, apenas poderá relevar se do texto da decisão recorrida resultar a valoração de alguma prova proibida ou violação de alguma regra da experiência, detectável pelo homem médio face ao texto da sentença, para efeitos de eventual verificação do vício do erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º nº2 al.c) do CPP.
Como se escreveu em acórdão do STJ de 27/10/2010, “o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410º, nº 2, al. c) do CPP, é uma anomalia de confecção técnica decisória, a resultar do texto da decisão recorrida, quando nela existam ou se revelam distorções de ordem lógica entre factos provados e não provados ou que traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, que, por isso mesmo não passa despercebida imediatamente a uma verificação e observação sem esforço, tomando-se como ponto de referência o homem médio (…)”[2]
Tal como os demais vícios do artº 410º nº2 do CPP, a respectiva existência, tem que forçosamente resultar do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo permitido, para a demonstração de que existem, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida, já que como escreve o conselheiro Pereira Madeira, “(…) os tribunais superiores, procedem imperativamente apenas e só ao teor do texto da decisão recorrida e, se necessário, também às regras da experiência comum.” [3]
Tendo presentes estas noções e lida a decisão recorrida desde já se adianta entendermos que a mesma incorreu no vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artº 410º nºal.c do CPP, CPP cujo conhecimento é oficioso, conforme jurisprudência fixada pelo STJ no ac. de 19/10/95, publicado no DR- 1ª Série de 28/12/95.
Efectivamente resulta da decisão recorrida que para dar como provada a factualidade nestes autos, a mesma atendeu a provas extra processuais produzidas no processo 3110/13.0JFLSB do Juízo Central Criminal do Porto Juiz 10, no qual foi determinada a extracção da decisão que deu origem aos presentes autos.
A fundamentação da matéria de facto valorou para além das declarações do arguido e das testemunhas, da listagem manuscrita de fls1089-1096, listagem oficial de fls.1097, e transcrição das intercepções telefónicas, sessão 140 de 22/5/2015 e sessão 3259/60 de 12/5//2015, as declarações prestadas naquele processo pelas referidas testemunhas, na qualidade de arguidos, a factualidade dos pontos 1273 a 1281 da acusação proferida em tais autos e a valoração da prova efectuada no acórdão proferido naquele referido processo, 3110/13.0JFLSB, fazendo referência à fundamentação de facto do mesmo, e remetendo expressamente para alicerçar a convicção nestes autos, para a fundamentação e apreciação crítica da prova constante de fls.721ss, daqueles autos, que incidiu sobre a apreciação das declarações prestadas naqueles autos pelo então Arguido CC .
Assim escreveu-se na fundamentação de facto destes autos, “Se analisarmos tal documento de fls. 1088 a 1096 (manuscrito) verificamos que apenas existe um “Pedro” a realizar exame no dia 22/05/2015, às 14h, designados (angariado pelo “BB”, da sala do DD”). Mas da listagem oficial das pessoas que realizaram exame de código nesse dia e hora, existem um outro “Pedro” (EE) que também realizou exame de código no dia 22/05/2015, às 14h, com o examinador “DD”, tendo sido este EE sido acusado no processo principal, conforme consta da certidão da acusação de fls. 3 e seguintes (designadamente, nos factos 1273 a 1281 da acusação pública). Dessa audiência de julgamento, resultou que esse “Pedro” foi afastado e absolvido, por declarações ali prestadas pelo ali arguido CC, autor dos manuscritos, que negou que o EE fosse o “Pedro” da listagem manuscrita. Veja-se, pois, certidão do acórdão proferido no processo 3110/13.0JFLSB, em particular, fls. 721, bem como, a intercepção do alvo 70612040, CD de fls. 1111; à sessão 140 de 22.05.2015 e sessão 3259/60 de 12/05/2015; fls. 1098-1103; à transcrição das declarações prestadas por CC, perante o JIC do processo 3110/13.0JFLSB, de fls. 1040-1087; às declarações de CC, CD de fls. 1111 e a informação do IMT de fls. 1113-1115.
Das transcrições resulta, ainda, que a pessoa que estava a realizar o exame chamava-se “Pedro” e que estava em contacto com o CC, que ia transmitindo àquele as respostas ao exame.
Deste modo, e inexistindo mais nenhum “Pedro” a realizar exame com o examinador DD no dia 22/05/2015, às 14h, concluímos, sem margem para dúvidas que o arguido cometeu os factos descritos na acusação.” (negrito nosso).
Para além de ao sustentar a convicção formada nestes autos na fundamentação do acórdão proferido naqueles autos, a sentença recorrida ter acabado por não conter fundamentação em relação a parte da factualidade provada, por falta de apreciação critica da prova invocada, não se alcançando em que concretas provas o tribunal firmou convicção quanto à existência do acordo de pagamento e efectividade do mesmo referido nos pontos 1 e 2 da factualidade provada, e quais as concretas razões pelas quais na decisão deste processo, ora sob recurso, o tribunal logrou concluir que o “Pedro” constante das listas manuscritas é o arguido nestes autos, a sentença recorrida viola o princípio da proibição de valoração de provas consagrado no artº 355º nº1 do CPP, e bem assim o princípio do contraditório.
Não estamos a considerar nesta afirmação a prova documental constante dos autos, nem a transcrição das intercepções telefónicas validadas naqueles autos, 3110/13.0JFLSB, e que cujo conhecimento estaria legalmente abrangido nos termos do artº 187º nº7 e 8 do CPP.
Já não assim, ao considerar, sem mais, o teor das declarações da testemunha CC prestadas na qualidade de Arguido naqueles autos, e a própria fundamentação e factualidade não provada nos mesmos.
A admissão da valoração da prova extra processual, é possível, mas obedece a determinados condicionalismos, que na falta de norma específica em processo penal terão de ser encontrados no artº 421º do CPC, por força do artº 4º do CPP.
Desde logo, há que considerar que o aqui Arguido AA, não era Arguido naqueles autos 3110/13.0JFLSB, não lhe tendo sido imputada a factualidade ora em causa, pelo que com as devidas adaptações, não podem os depoimentos ali prestados ser invocados/utilizados contra ele nos termos do artº 421º nº1 do CPC.
Acresce que se estranha que estando descrita na factualidade imputada na acusação destes autos uma situação de co-autoria entre o aqui arguido e as testemunhas BB, CC e DD, não tenha sido deduzida por esses factos acusação quanto aos mesmos, já que a acusação deduzida nos autos 3110/13.0JFLSB,foi relativa a uma co-autoria com o ali Arguido EE, tendo todos os Arguidos sido absolvidos da imputação dos crimes aquele respeitantes como resulta a fls 1336 da parte decisória ao constar da mesma “Absolver o arguido DD da prática, em coautoria e em concurso efetivo:
- de dois imputados crimes de corrupção passiva, na forma consumada, p. e p. pelo art. 373º, nº1 do CP, referentes aos exames efetuados por um “candidato de nome FF” e EE;
- de quatro imputados crimes agravados de falsidade informática, na forma consumada, p. e p. pelo art. 3º, nº1 e 5 da Lei nº 109/2009, de 15.09, com referência ao art. 10º do CP, referentes aos exames efetuados por “um candidato de nome FF”, um candidato de nome GG”, HH e EE”,
Absolver o arguido BB da prática, em coautoria, de um imputado crime de corrupção passiva, na forma consumada, p. e p. pelo art. 373º, nº1 do CP, por referência ao art. 28º, nº1 do CP (ou de corrupção ativa, operada a convolação, p. e p. pelo art. 374º, nº1 do CP), referente ao exame do candidato EE. …”,
Absolver o arguido CC da prática, em coautoria e em concurso efetivo:
- de dez imputados crimes de corrupção passiva, na forma consumada, p. e p. pelo art. 373º, nº1 do CP, por referência ao art. 28º, nº1 do CP; de dois imputados crimes de corrupção passiva, na forma tentada, p. e p. pelo art. 373º, nº1 do CP, por referência ao art. 28º, nº1 do CP e aos arts. 22º e 23º do mesmo diploma legal;
- de dois imputados crimes de falsidade informática, na forma consumada, p. e p. pelo art. 3º, nº1 da Lei nº 109/2009, de 15.09;”
Ora, caso o arguido nestes autos tivesse sido acusado em co-autoria, com aquelas testemunhas, estaríamos perante uma situação de conexão nos termos do arº 24º c) do CPP, o que implicaria o impedimento previsto artº 133º al.a) do CPP, o que não foi o caso.
Assim, a sentença sob recurso, ao invés de fazer a apreciação crítica da prova produzida nestes autos contra o arguido, antes “agarrou” a fundamentação de facto constante do acórdão proferido no proc. 3110/13.0JFLSB, esquecendo, com o devido respeito que como escreve o Prof. Manuel de Andrade, “(…) o caso julgado só se forma em princípio sobre a decisão contida na sentença”, sem prejuízo de para a interpretação do dispositivo do acórdão ser contudo legítimo recorrer à motivação da decisão, quando tal se revele necessário.[4]
Isto mesmo resulta do que expende o mesmo Prof. quando escreve “a) Os limites dentro dos quais opera a força do caso julgado material são traçados pelos elementos identificativos da acção em que foi proferida a sentença: as partes, o pedido e a causa de pedir (arts.497º e 498º). Mais rigorosamente se dirá que são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objecto e a fonte ou título constitutivo. b) Por outro lado é preciso atender aos termos dessa definição (estatuída na sentença). Ela tem autoridade - faz lei para qualquer processo futuro, mas só em exacta correspondência com o seu conteúdo. Não pode portanto impedir que em novo processo se dirima aquilo que a mesma não definiu”.[5]
É certo que a jurisprudência e também a doutrina, vem admitindo a figura da autoridade de caso julgado fora da verificação da identidade dos referidos pressupostos, nos casos em que num novo processo esteja em causa a invocação de um direito em que seja pressuposto a relação material já anteriormente definida.
Porém, quer a doutrina quer a jurisprudência vêm afirmando que no que concerne à motivação de facto da sentença, nunca se verificará tal figura.
Assim decidiu o Ac do STJ de 5/5/2005 no sentido de que não pode “confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial.
Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria da de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.”[6]
Também, o Prof. Manuel de Andrade escreve acerca do “problema do caso julgado sobre os motivos da decisão final” que “(…) a sentença, certamente há-de valer como caso julgado, pelo menos, até onde contenha a resposta do tribunal a pedido do Autor, quando mesmo se lhe deva negar, sempre e inalteravelmente, um tal valor no tocante aos antecedentes lógicos dessa resposta -aos vários juízos preliminares (sobre pontos de fato e de direito) com que o tribunal a tenha motivado.”[7]
No sentido de que “Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final” pronuncia-se de igual modo o Prof. Antunes Varela.[8]
Assim e no caso dos autos, verifica-se por um lado não estarem verificados os pressupostos da valoração dos depoimentos prestados extra processualmente, e que ainda que assim não fosse, nunca o tribunal poderia “utilizar” nestes autos a motivação de facto utilizada no processo em que os depoimentos, concretamente da testemunha CC, enquanto arguido foi prestado.
Como se escreveu no ac. do STJ de 19/7/2006 “O erro notório na apreciação da prova consubstancia-se na incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.” [9]
Sobre o alcance do vício do erro notório na apreciação da prova escreve o Conselheiro Pereira Madeira em anotação ao artº 410º do CPP que “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém a ser assim, com um alcance tão restrito, o preceito acabaria por perder grande parte do seu interesse prático, acabando afinal por deixar encobertas, situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum, todavia, que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.(…)” [10]
Sendo que no ac. do STJ 11/10/2017 escreveu-se “IX - O erro notório na apreciação da prova é um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, nomeadamente, através da leitura da matéria de facto e da fundamentação da matéria de facto, mas nem sempre detetável por um simples homem médio sem conhecimentos jurídicos. Na verdade, o erro pode não ser evidente aos olhos do leitor médio e, todavia, constituir um erro evidente para um jurista de modo que a manutenção da decisão com base naquele erro constitui uma decisão que fere o elementar sentido de justiça.”[11] STJ 11/10/2017, 480/14.7PASXL.L1.S1 (relator Conselheira Helena Moniz) negrito nosso.
Como supra se expôs decorre teor da fundamentação, que o tribunal recorrido incorreu num erro de apreciação das provas, detectável no próprio texto da decisão sem recurso a elementos exteriores, já que se tem presente que a existência de todos os vícios previstos no nº 2 do artº 410º do CPP tem que forçosamente resultar do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo permitido, para a demonstração de que existem, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida. – cfr., por todos, ac. do STJ, de 19/12/90, citado por Maia Gonçalves em anotação a este preceito.
Nos termos do artº 426º nº1 do CPP, «Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº2 do artigo 410º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
A matéria provada relativa à participação do aqui Arguido nos factos, respeita aos factos estruturantes da matéria de facto, e como tal não é possível decidir da causa, sob pena de proceder esta relação a novo julgamento sobre toda a matéria de facto, havendo que concluir que, face à existência do vício do artº 410º nº 2 al. c) do CPP, nos termos em que o mesmo foi assinalado, há que ordenar, nos termos do artigo 426º, nº 1, do CPP, o reenvio do processo, para novo julgamento à totalidade do objecto do processo, com prejuízo das demais questões suscitadas no recurso.
*
*
III – DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em nos termos dos artº 426º nº1 e 426º-A, ambos do CPP, determinar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo.

Sem tributação

Elaborado e revisto pela relatora

Porto, 10/1/2023
Lígia Figueiredo
Paula Natércia Rocha
Paulo Costa
_________________
[1] Ac. STJ de 21/4/2021, proferido no proc. 522/18.7PBELV.E1 (relator conselheiro Paulo Cunha). No mesmo sentido o ac desta Rel. de 10/5/2017, proferido no proc. 324/14.0SGPRT.P1 (relator desembargador Pedro Pato).
[2] Ac.STJ 27/10/2010 cfr. CJ - ASTJ – Ano XVIII, tomo III, pág. 243 e ss.
[3] Conselheiro Pereira Madeira, Código de Processo Penal, Comentado, Almedina 2014, pág 1357.
[4] Manuel. A Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 1979. Pág 318.
[5] Ob.cit pág. 309.
[6] Ac. STJ 5/5/2005 proc. 05B691 (relator Araújo de Barros). No mesmo sento o Ac da rel. de Coimbra de 11/10/2016 proferido no proc 2560/10.9TBPBL.C1, (relator Jorge Arcanjo), com profusa referência a jurisprudência e doutrina.
[7] Ob.cit. pág. 328.
[8] Prof. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra editora, 1984, pág. 697.
[9] Ac. STJ 19/7/2006 proc. 1932/06 -3º Rel. Oliveira Mendes, ct. Por Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, notas e comentários Coimbra Editora 2008 pág. 916.
[10] Conselheiro Pereira Madeira, Código de Processo Penal comentado, 2014Almedina, pág.1359
[11] Ac STJ 11/10/2017, 480/14.7PASXL.L1.S1 (relator Conselheira Helena Moniz)