PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

I - O princípio in dubio pro reo não pode soçobrar face às certezas que os sujeitos processuais encontram na decisão ou na sua (subjectiva) interpretação da factualidade descrita nos autos – é, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
II - A insuficiência da matéria de facto para a decisão supõe a existência de factos que hajam sido alegados ou que resultem indiciados da discussão da causa, e que, sendo relevantes para a decisão, devendo ser averiguados, não o foram.

Texto Integral

Proc. nº 16/20.0T9STS.P1

Tribunal de origem: Juízo Local Central de Santo Tirso, Juiz 1 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

No âmbito do processo comum (tribunal singular) nº 16/20.0T9STS que corre termos no Juízo Local Criminal de Santo Tirso – Juiz 1, em 27/10/2022 foi proferida Sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor:
«V. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente a acusação deduzida, em função do que se decide:
a) Absolver o arguido AA da prática, como autor material, na forma consumada e continuada, de um crime de violação da obrigação de alimentos, p. e p. nos termos do art. 250.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
b) Sem custas, conforme art. 522.º do Código de Processo Penal.
E,
c) Quanto ao pedido de indemnização civil formulado pela demandante BB, por si e na representação do menor CC, julga-se o mesmo totalmente improcedente, e, em consequência decide-se:
Absolver o demandado AA do pedido de indemnização civil contra si formulado;
- Sem custas, atenta a isenção legal prevista no art. 4.º, n.º 1, al. n), do R.C.P...»

Inconformada com a decisão, dela recorreu, em 01/12/2022, a assistente BB, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
A-) A Recorrente discorda da decisão que absolveu o arguido AA da acusação como autor material, na forma consumada e continuada, de um crime de violação da obrigação de alimentos, previsto e punido pelo art. 250º, nºs 1 e 2, e 30º, nº 2, ambos do CPenal (e, concomitantemente, do pedido de indemnização civil deduzido) aplicada pela sentença absolutória proferida pelo Tribunal a quo;
B-) A Recorrente não pode concordar e conformar-se com a decisão que absolveu o arguido AA da acusação como autor material, na forma consumada e continuada, de um crime de violação da obrigação de alimentos, previsto e punido pelo art. 250º, nºs 1 e 2, e 30º, nº 2, ambos do CPenal (e, concomitantemente, do pedido de indemnização civil deduzido) aplicada pela sentença absolutória proferida pelo Tribunal a quo,
C -) Salvo melhor opinião, o tribunal a quo, não decidiu da melhor forma quando absolveu o arguido AA da acusação como autor material, na forma consumada e continuada, de um crime de violação da obrigação de alimentos, previsto e punido pelo art. 250º, nºs 1 e 2, e 30º, nº 2, ambos do CPenal (e, concomitantemente, do pedido de indemnização civil deduzido);
D-) Desde logo, não devia o Tribunal Recorrido ter dado como provado a matéria dada como provada nos pontos 12, 13 e 14 da mesma:
“12. A esposa do arguido é doméstica, não beneficiando de qualquer rendimento.
13. Nos anos de 2020 e 2021, por períodos de tempo não concretamente apurados, o arguido esteve impossibilitado de trabalhar devido a uma intervenção cirúrgica a uma hérnia e a um internamento por distúrbios psiquiátricos.
14. Nos anos de 2020 e 2021, em meses não concretamente apurados, o arguido, por incapacidade financeira, chegou a incorrer no incumprimento do pagamento da renda da habitação onde reside, teve cortes de eletricidade e viu-se impossibilitado de colocar a sua filha no infantário.”
E-) Através do presente Recurso, pretende a Recorrente que tais factos passem a constituir matéria de facto dada como não provada, pois considera que o douto Tribunal Recorrido fez uma incorrecta apreciação da valoração da prova produzida quanto a estes factos.
F-) Relativamente ao ponto “12. A esposa do arguido é doméstica, não beneficiando de qualquer rendimento.”, a prova produzida, e tida em conta pelo Tribunal Recorrido para dar como provado o mesmo, é insuficiente para poder dado como provado que a esposa do Arguido não beneficia de qualquer rendimento;
G-) Na fundamentação constante da sentença relativamente à formação da sua convicção quanto a este ponto, o Tribunal recorrido suporta-se apenas no depoimento das testemunhas DD e EE, amigos de longa data do Arguido, depoimentos por natureza parciais, em acréscimo à falibilidade da prova testemunhal;
H-) Em nenhum momento, o Tribunal recorrido retirou do depoimento daquelas duas testemunhas que a esposa do Arguido não beneficiasse de qualquer outro rendimento, e nem é, sequer, necessário recorrer ao senso e à experiência comum, a verdade é que, com base apenas no depoimento dessas duas testemunhas (DD e EE), apenas se poderá retirar, quando muito, que a esposa do Arguido é doméstica e que não trabalha;
I-) Razões pelas quais deve ser expurgado do ponto 12 da matéria dada como provada a parte “não beneficiando de qualquer rendimento.”.
J-) Já quanto ao ponto 13 da matéria dada como provada, a prova produzida, e tida em conta pelo Tribunal Recorrido para dar como provado o mesmo, é insuficiente para poder dado como provado que “Nos anos de 2020 e 2021, por períodos de tempo não concretamente apurados, o arguido esteve impossibilitado de trabalhar devido a uma intervenção cirúrgica a uma hérnia e a um internamento por distúrbios psiquiátricos.”,
K-) Na fundamentação constante da sentença relativamente à formação da sua convicção quanto a este ponto, o Tribunal recorrido volta a suportar-se unicamente no depoimento das mesmas testemunhas DD e EE, desprovido de qualquer outro meio de prova documental que corrobore a referida intervenção cirúrgica e o internamento por distúrbios psiquiátricos, sendo nada verosímil que, o Arguido nunca tivesse vindo a alegar nos presentes Autos esses factos em sua defesa, nem tenha apresentado documentos comprovativos de tal intervenção cirúrgica e de tal internamento, emitidos pelas respectivas entidades de saúde que prestaram tais serviços ao mesmo, ou de documentos que atestassem a incapacidade para trabalhar daí decorrente e o período efectivo que duraram as mesmas (nomeadamente as vulgarmente conhecidas por baixas médicas);
L-) Por isso, mal andou o Tribunal Recorrido ao valorar o depoimento de testemunhas para prova de um facto favorável ao Arguido que este podia (e devia, sendo verdade e querendo usar isto a seu favor) ter facilmente alegado e provado através de documentos emitidos pelas entidades de saúde competentes;
M-) Por último, igualmente, a prova produzida e tida em conta pelo Tribunal Recorrido para dar como provado o mesmo, é insuficiente para poder dado como provado que “14. Nos anos de 2020 e 2021, em meses não concretamente apurados, o arguido, por incapacidade financeira, chegou a incorrer no incumprimento do pagamento da renda da habitação onde reside, teve cortes de eletricidade e viu-se impossibilitado de colocar a sua filha no infantário.”,
N-) Na fundamentação constante da sentença relativamente à formação da sua convicção quanto a este ponto, o Tribunal recorrido, mais uma vez, a suportar-se unicamente no depoimento das mesmas testemunhas DD e EE, desprovido de qualquer outro meio de prova documental que corrobore tais depoimentos, designadamente quanto às quantias por si auferidas nos demais meses (designadamente entre Agosto e Dezembro de 2019), aos pagamentos efectuados alegadamente fora de prazo referentes à electricidade e renda da habitação,
O-) Pelo que, o Tribunal Recorrido, fazendo uso a essas mesmas regras da experiência comum, conjugadas com os factos que deu como provados nos outros pontos da matéria da como provada, deveria ter desvalorizado a prova produzida com base unicamente nesses depoimentos, sem qualquer suporte documental que os infirmasse, para mais pelo modo e momento em que os mesmos chegaram aos Autos, e que acima se referiu;
P-) Entende a Recorrente que existiu erro notório da apreciação da prova por parte do Tribunal Recorrido, na apreciação da matéria dada como não provada, uma vez que, salvo melhor opinião, entende que a motivação para não dar como provada factualidade contraria à lógica e às regras da experiência comum, detectável por qualquer cidadão de formação cultural média, bem como uma errada aplicação do princípio in dubio pro reo por parte do Tribunal Recorrido, com que este justificou a decisão de dar como não provada a matéria por si assim designada;
Q-) Não compreende a Recorrente como podem ter sido dados como não provados os seguintes factos e que, no seu entender, deveriam ter sido dado como provados:
“b) (…) apesar de ter possibilidades económicas para efetuar o pagamento da pensão de alimentos devida ao seu filho CC, decidiu, logo após terem sido reguladas as responsabilidades parentais nos termos acima descritos, não proceder ao pagamento de qualquer quantia.
c) O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, pois apesar de saber que estava obrigado mensalmente a pagar ao seu filho a pensão de alimentos que tinha sido fixada no processo de regulação das responsabilidades parentais, decidiu não proceder ao pagamento de qualquer quantia, pese embora soubesse que tinha condições económicas suficientes para efetuar esse pagamento, nem que fosse parcialmente.
d) O arguido sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei penal.”
R-) Quando da matéria de facto dada como provada, em conjugação com as regras da experiência comum e do conhecimento da vida, deveria ter dado como provados os factos constantes das alíneas b), c) e d) dos factos dados como não provados.
S-) Entende a Recorrente que resulta do teor dos supra identificados factos dados [als. b), c) e d)] como não provados pela sentença recorrida, que se está perante factos que, pela sua natureza intrínseca devido a constituírem decisões interiores do seu autor, só podem ser provados através da confissão do Arguido;
T-) Pelo que, relativamente às alíneas b), c) e d) dos factos dados como não provados, decidiu mal o Tribunal Recorrido ao, valorar erradamente a prova produzida, e não integrar estes factos nos factos dados como provados, uma vez que o Tribunal Recorrido deu como provado que o Arguido, durante todo o período temporal em que é acusado de não efectuar o pagamento de quaisquer quantias por conta do pagamento mensal da pensão de alimentos a que estava obrigado perante o seu filho CC, e, paralelamente, auferiu através da empresa onde trabalha, pelo menos, rendimentos mensais líquidos quase sempre superiores a € 800 e nunca inferiores a € 650 (cfr. ponto 11 da matéria de facto dada como provada), bem como, durante esse mesmo período, o Estado Alemão ainda pagou a quantia mensal de € 190 a cada uma das menores FF e GG, a título de abono de família, (cfr. ponto 9 da matéria de facto dada como provada) o que totaliza a quantia mensal de €380;
U-) Resulta demonstrado da prova e da matéria de facto que o Arguido auferiu rendimentos líquidos dessa ordem de grandeza (superiores a € 1.000 mensais) durante aquele período de mais de dois anos (desde o mês de Setembro de 2019 até à data da dedução da acusação, 15 de Janeiro de 2022),
V-) Resultou claramente provado que, durante esse período, pelo menos o Arguido auferiu prestações pecuniárias por doença da Segurança Social (ou entidade equivalente) da República Federal da Alemanha, uma vez que se encontra empregado neste país desde 03 de Setembro de 2012 ao serviço da mesma entidade patronal (cfr. ponto 10 da matéria dada como provada),
W-) Pelo que, se durante aquele período não enviou um euro que fosse para contribuir para o sustento do seu filho CC, foi porque simplesmente decidiu que não pretendia contribuir, ainda que de forma parcial e/ou residual, para o sustento do mesmo,
X-) Por último, é flagrante que o Arguido conhecia que a sua conduta era prevista e punida por lei penal, até porque, nomeadamente, o Arguido nada alegou em contrário e inclusive negou a sua prática em sede de contestação, e estamos perante um tipo de crime que é do conhecimento geral da população.
Y-) Nesse sentido, recorrendo à conjugação dos factos acima enumerados com as regras da experiência comum, só se pode concluir que andou mal o Tribunal recorrido ao considerar como não provados os factos que identificou nas alíneas b), c) e d) da matéria dada como não provada, - devendo o Tribunal ad quem, com recurso a esses mesmos critérios, passar a incluir os supra referidos factos descritos nas alíneas b), c) e d) da matéria dada como não provada, na matéria dada como provada, - e aplicou o princípio in dubio pro reo, pois ao tê-lo feito fez uma flagrante má aplicação desta vertente do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP);
Z-) Uma vez acrescentados aos factos dados como provados as supra referidas alíneas b), c) e d) dos factos dados como não provados, e expurgados os factos 12, 13 e 14 da matéria da dada como provada nos termos sobreditos, verifica-se que está reunida toda a factualidade para alterar a decisão recorrida no sentido de proceder à condenação do Arguido AA pela prática de um crime de de violação da obrigação de alimentos, previsto e punido pelo art. 250º, nºs 1 e 2, e 30º, nº 2, ambos do CPenal (e, concomitantemente, do pedido de indemnização civil deduzido);
AA-) Efectivamente, encontram-se provados os elementos constitutivos do crime em apreço:
- A vinculação do Arguido a uma obrigação legal de alimentos;
- Que o Arguido estivesse em condições de os prestar;
- O não cumprimento da obrigação no prazo de dois meses seguintes ao vencimento;
AB-) Também é patente que o crime em crise foi praticado pelo Arguido AA com dolo directo intenso, tendo em conta o período temporal pelo qual o incumprimento total se vem prolongando (mais de 3 anos em algumas das prestações vencidas),
AC-) Pelo que verificando-se a prática do crime por que foi acusado o Arguido AA, este deverá ser condenado como autor material, na forma consumada e continuada, de um crime de violação da obrigação de alimentos, previsto e punido pelo art. 250º, nºs 1 e 2, e 30º, nº 2, ambos do CPenal, em pena de prisão, por só esta ser adequada a realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição previstas nos arts. 40º, nº1, 70º, ambos do CPenal,
AD-) Devendo a medida da pena ser fixada em período nunca não inferior a um ano, atenta a gravidade da sua conduta (nomeadamente, a total omissão de contribuição para o sustento do seu filho menor de 10 anos durante mais de três anos), a forma continuada e reiterada como o crime em questão foi praticado (desde o nascimento da obrigação alimentícia, em Setembro de 2019, até à presente data), de continuar não assumir a prática do crime em questão, nem cumprir a obrigação a que está adstrito, ainda que de forma parcial ou residual, bem como o facto de já possuir duas condenações penais averbadas no seu registo criminal no presente ano de 2022;
AE-) A Recorrente admite que a pena possa ser suspensa na sua execução, na condição deste efectuar o pagamento das prestações da pensão de alimentos em falta desde Setembro de 2019 até à data do transito em julgado da decisão condenatória, que a simples censura do facto e ameaça da prisão do Arguido ainda poderão ser suficientes para assegurar, de forma adequada e suficiente, as exigências de prevenção;
AF-) Deverá também ser deferido o pedido de indemnização cível deduzido nos presentes Autos, o valor a fixar ao mesmo deverá corresponder ao que for alcançado pelo prudente arbítrio do julgador, pois havendo condenação pela prática do ilícito criminal, existe a obrigação do Arguido em indemnizar a ora Recorrente pelos danos que lhe causou, nomeadamente, pela revolta e indignação por ter de suprir as necessidades básicas do seu filho CC, nomeadamente através do auxílio económico do seu actual marido, em virtude do incumprimento doloso do Arguido.
AG-) Ao ter julgado no sentido em que decidiu – absolvendo o Arguido AA -, salvo melhor opinião e com o devido respeito pela mesma, a sentença recorrida fez uma desajustada interpretação, valoração e aplicação, entre outras, das normas constantes dos arts. 30º, nº 2, 40º, nº1, 70º e 250º, nºs 1e 2 do CPenal, do art. 127º do CPPenal, e dos arts. 31º, nº 5, e 32º, nºs 1 e 2 (1ª parte), da CRPortuguesa, e o art. 496º, nºs 1 e 3, do CCivil.

O recurso foi admitido.

A este recurso respondeu o Ministério Público, concluindo da seguinte forma:
A Sentença em crise aplicou de forma correta e ponderada a Lei e o Direito, face aos elementos de prova produzidos em audiência os quais, com base em critérios de valoração da prova adequados, impõem a absolvição do arguido nos termos em que ocorreu.
Nos presentes autos não ocorreu qualquer violação de norma penal ou outra, impondo-se a manutenção do decidido, o que se pugna.
Termos em que negando provimento ao recurso e confirmando a sentença absolutória proferida nos autos, se fará a costumada Justiça.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que se deverá ter por verificado que a sentença recorrida se mostra afectada por uma situação de «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, integradora do mencionado vício da alínea a) do nº 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal – C.P.P..», e em conformidade «se deverá julgar o presente recurso parcialmente procedente e ao abrigo da disciplina normativa contida nos artigo 426.º n.º 1 e 426.º A do Código de Processo Penal – C.P.P. reenviar-se os autos à primeira instancia para suprimento e correção do aludido vício, com todas as legais consequências».

Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.

*
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
*
II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. 91/14.7YFLSB.S1)[1], e de 30/06/2016 (proc. 370/13.0PEVFX.L1.S1)[2]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre:
1. saber se se verifica na Sentença do tribunal a quo algum dos vícios previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo
2. saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal;
3. saber se estão reunidos os pressupostos da condenação do arguido pelo crime de violação de alimentos de que vinha acusado e pelo pedido de indemnização civil correspondente.
*
Comecemos por fazer aqui presente o teor da decisão recorrida, na parte da mesma que releva para a presente decisão.

a. É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância:
«II. FUNDAMENTAÇÃO:
A) Factos Provados:
Da prova produzida, resultou provada a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
1. CC, nascido a .../.../2010, é filho do arguido e de BB.
2. Desde pelo menos 21 de agosto de 2019 o menor reside com a progenitora na Rua ..., n.º ..., 10.º E, Santo Tirso.
3. Com efeito, por sentença proferida a 21 de agosto de 2019, no âmbito do processo n.º 4880/12.9TBSTS-C, que correu termos no Juízo de Família e Menores de Santo Tirso, foi alterada a regulação das responsabilidades parentais deste menor, tendo sido fixado que o menor passava a residir com a progenitora e, no que diz respeito à pensão de alimentos, que o progenitor tinha o dever de contribuir com duzentos euros (200,00 €) mensais, quantia a pagar até ao dia 8 de cada mês, com início no mês de Setembro, sendo certo que esta pensão deveria ser atualizada anualmente, com início em janeiro de 2020, de acordo com os índices de preços ao consumidor, publicados pelo Instituto Nacional de Estatística.
4. Sucede que desde o mês de setembro de 2019 e até à data da dedução da acusação, 15 de janeiro de 2022, o arguido nunca liquidou qualquer prestação da pensão de alimentos.
5. Em 20 de maio de 2016 o arguido casou com HH.
6. Em .../.../ de 2016 nasceu GG, filha do arguido e de HH.
7. HH é ainda mãe de FF, nascida a .../.../2006, fruto de um anterior relacionamento.
8. Desde data não concretamente apurada, mas anterior ao ano de 2016, o arguido reside com a sua esposa e com estas duas menores na República Federal da Alemanha.
9. Desde dezembro de 2016 o Estado alemão paga a cada uma desta menores a quantia de € 190,00 € a título de abono de família.
10. Na Alemanha o arguido é trabalhador da sociedade denominada “A... GmbH” desde 03 de setembro de 2012.
11. Por conta do trabalho na referida empresa, o arguido auferiu os seguintes vencimentos:
- Janeiro de 2019 auferiu o rendimento líquido de 1.221,52 €;
- Fevereiro de 2019 auferiu o rendimento líquido de 1.022,99 €;
- Março de 2019 auferiu o rendimento líquido de 1.091,17 €;
- Janeiro de 2020 auferiu o rendimento líquido de 868,46 €;
- Fevereiro de 2020 auferiu o rendimento líquido de 659,20 €;
- Março de 2020 auferiu o rendimento líquido de 799,82 €;
- Abril de 2020 auferiu o rendimento líquido de 969,26 €;
- Maio de 2020 auferiu o rendimento líquido de 944,25 €;
- Junho de 2020 auferiu o rendimento líquido de 799,81 €;
- Julho de 2020 auferiu o rendimento líquido de 868,46 €;
- Agosto de 2020 auferiu o rendimento líquido de 730,17 €.
12. A esposa do arguido é doméstica, não beneficiando de qualquer rendimento.
13. Nos anos de 2020 e 2021, por períodos de tempo não concretamente apurados, o arguido esteve impossibilitado de trabalhar devido a uma intervenção cirúrgica a uma hérnia e a um internamento por distúrbios psiquiátricos.
14. Nos anos de 2020 e 2021, em meses não concretamente apurados, o arguido, por incapacidade financeira, chegou a incorrer no incumprimento do pagamento da renda da habitação onde reside, teve cortes de eletricidade e viu-se impossibilitado de colocar a sua filha no infantário.
15. O arguido possui antecedentes criminais, tendo sido condenado:
- A 07.06.2022, na República Federal da Alemanha, pela prática de um crime de furto, cometido a 15.04.2021;
- A 16.08.2022, na República Federal da Alemanha, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado a 24.03.2022;
16. Tem sido BB, mãe do menor CC, quem tem suprido as necessidades básicas deste, nomeadamente através do auxílio económico do seu atual marido.
17. O descrito no ponto 16 causa a BB revolta e indignação.

B) Factos Não Provados:
Com interesse para a decisão da causa, resultou não provado que:
a) No mês de agosto de 2020 o arguido passou três semanas de férias em Portugal.
b) O arguido auferiu outros rendimentos para além dos descritos no ponto 11 dos factos provados, e apesar de ter possibilidades económicas para efetuar o pagamento da pensão de alimentos devida ao seu filho CC, decidiu, logo após terem sido reguladas as responsabilidades parentais nos termos acima descritos, não proceder ao pagamento de qualquer quantia.
c) O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, pois apesar de saber que estava obrigado mensalmente a pagar ao seu filho a pensão de alimentos que tinha sido fixada no processo de regulação das responsabilidades parentais, decidiu não proceder ao pagamento de qualquer quantia, pese embora soubesse que tinha condições económicas suficientes para efetuar esse pagamento, nem que fosse parcialmente.
d) O arguido sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei penal. e) Em consequência da conduta do arguido o menor CC sente-se triste e magoado.»

b. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo Tribunal de 1.ª Instância:
«Para a formação da sua convicção, na indicação dos factos provados e não provados acima transcritos, o tribunal analisou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em audiência de discussão e julgamento de acordo com o art. 127.º do C.P.P., respeitando os critérios da experiência comum e da lógica.
Desde logo foram valorados os documentos juntos aos autos, cuja genuinidade ou veracidade não foi posta em causa, nomeadamente, a cópia da decisão de fls. 4 e segs. extraída do processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais n.º 4880/12.9 TBSTS-C, os documentos de fls. 30 e segs., a informação de fls. 48, o requerimento e documentos anexos de fls. 73 e segs., o requerimento e documentos anexos de fls. 97 e segs., o requerimento e documentos anexos de fls. 157 e segs., a certidão de fls. 178 e segs., e o certificado de registo criminal atualizado do arguido.
O arguido não foi ouvido em audiência, tendo sido julgado na sua ausência a pedido do próprio, dado se encontrar a residir e a trabalhar na Alemanha.
Foram ouvidas as testemunhas:
- BB, progenitora do menor CC, a qual confirmou que o arguido nunca liquidou, total ou parcialmente, a pensão de alimentos que foi fixado pelo Tribunal de Família e Menores em agosto de 2019 (no montante de € 200,00 mensais), revelando desconhecer quais os concretos rendimentos que, desde essa data, vêm sendo auferidos pelo arguido. Neste sentido declarou somente saber que o arguido reside e trabalha na Alemanha, fazendo parte de outro agregado familiar, mais concretamente que o mesmo é casado e possui uma outra filha. Descreveu ainda, de forma pormenorizada, o constrangimento e revolta sentidos devido ao comportamento omissivo do arguido, sendo o seu atual marido quem vem ajudando a depoente a fazer face às despesas do menor.
- II, marido da testemunha BB, o qual corroborou o relatado por esta, nomeadamente quanto ao incumprimento da obrigação de prestar alimentos por parte do arguido e as dificuldades financeiras que vêm sentindo para fazer face às despesas familiares, mais afirmando que a sua esposa fica constrangida e revoltada por ter necessidade de recorrer à ajuda monetária do depoente. Demonstrou desconhecer quais as concretas condições de vida do arguido, mormente de que rendimentos o mesmo beneficia.
- JJ e KK, sogros da testemunha BB, os quais revelaram não conhecer sequer o arguido, sabendo que este não vem liquidando a pensão de alimentos a que está obrigado, confirmando o relatado pelo filho II e pela nora BB quanto às dificuldades financeiras que os mesmos vêm sentindo em virtude do não pagamento, por parte do arguido, da pensão de alimentos devida ao menor CC.
- DD, amiga do arguido desde há cerca de dez anos, igualmente residente na Alemanha, a qual demonstrou conhecimento direto acerca das condições pessoais do arguido ao longo dos últimos anos, tendo a mesma prestado um depoimento que se afigurou sincero e credível. Referiu a depoente que o arguido ficou emocionalmente afetado por ter deixado de ter o menor CC consigo a partir do verão de 2019, tendo inclusive tido uma depressão, com subsequente tentativa de suicídio, a qual veio a originar o seu internamento durante algum período de tempo (o que situou algures no ano de 2021), sendo que, para além disso, no ano de 2020 foi igualmente sujeito a intervenção cirúrgica devido a uma hérnia. Por tal motivo, o arguido esteve bastante tempo sem trabalhar e teve sérias dificuldades financeiras, dado que a sua esposa não trabalha, as quais inclusive determinaram que o arguido tivesse atrasos no pagamento da renda de casa, tenha sofrido cortes de eletricidade e a sua filha estivesse bastante tempo sem frequentar o infantário (porque o arguido não possuía meios económicas para suportar tais despesas).
- EE, amigo do arguido desde há dez anos e igualmente residente na Alemanha, o qual atestou as dificuldades financeiras que vêm sendo sentidas pelo arguido, tendo este inclusive lhe solicitado dinheiro emprestado em algumas ocasiões. Confirmou o depoente o já relatado pela testemunha DD, no sentido de que o arguido foi sujeito a uma intervenção cirúrgica e foi alvo de um internamento numa clínica psiquiátrica (por ter tentado o suicídio), tendo por isso estado períodos sem poder trabalhar, o que levou a que até tivesse atrasos no pagamento da renda. Mais esclareceu que a esposa do arguido não trabalha, nem nunca trabalhou, tomando conta das duas menores que vivem com o casal.
Em suma, apreciando globalmente a prova produzida nos presentes autos, temos que, não tendo restado qualquer dúvida acerca da factualidade acima dada como provada, a qual se mostra confirmada pelos elementos documentais juntos aos autos e/ou foi relatada pelas testemunhas ouvidas em audiência nos moldes acima descritos, já o mesmo não se poderá dizer quanto aos factos constantes das alíneas a) a e) dos factos provados, relativamente aos quais não se mostrou possível afirmar, com o necessário grau de certeza, a sua prática por parte do arguido, ou bem assim que o menor CC se venha sentindo psicologicamente afetado devido ao comportamento omissivo do arguido.
Na verdade, à exceção dos concretos salários descritos na factualidade dada como provada, não se demonstrou o recebimento de qualquer outro concreto montante por parte do arguido, revelando aliás as testemunhas BB, II, JJ e KK completo desconhecimento acerca das concretas condições de vida do arguido na Alemanha. Por outro lado, as testemunhas DD e EE, revelando conhecimento direto dos factos e sinceridade nos seus relatos, descreveram de forma pormenorizada a vivência do arguido desde o ano de 2019, atestando que este vem passando por vicissitudes várias que lhe determinaram relevantes condicionalismos financeiros, sendo este o único elemento do agregado familiar que beneficia de rendimentos, agregado esse que tem duas menores a seu cargo.
Ora, mesmo considerando os meses relativamente aos quais se apurou o salário liquido auferido pelo arguido (nos termos constantes dos factos dados como provados), se atendermos às demais condições pessoais do mesmo, mormente que o arguido integra um agregado familiar de quatro pessoas (sendo duas delas menores), sendo o único titular de rendimentos do mesmo, temos que não se mostra possível afirmar que tivesse efetivas possibilidades financeiras de proceder à liquidação dos alimentos em causa nos presentes autos, e bem assim que tivesse atuado dolosamente com o intuito de incumprir essa sua responsabilidade. Tal sucede não só relativamente aos meses em que se apurou o concreto salário liquido do arguido, como também quanto aos restantes, dado que, caso o arguido tenha igualmente recebido salário nos mesmos, sempre este seria da mesma ordem de grandeza daqueles que se encontram descritos nos factos dados como provados. Por tal motivo, não poderíamos tomar outra opção que não a de considerar como não provada a factualidade descrita nas alíneas a) a d).
Com direta decorrência do princípio da presunção de inocência, encontramos o denominado princípio “in dúbio pro reo”, de acordo com o qual, só podem dar-se como provados quaisquer factos ou circunstâncias desfavoráveis ao arguido, quando eles se tenham, efetivamente, provado para além de qualquer dúvida, pelo que, em caso de dúvida, na apreciação da prova, a decisão não pode ser desfavorável ao arguido, (cfr. Jesheck, “Tratado de Derecho Penal – Parte General”, trad. de Mir Puig e Munõz Conde, Bosch, Barcelona, 1981, pág. 195).
Sobre esta matéria Figueiredo Dias ensina que “à luz do principio da investigação bem se compreende, efetivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminosos, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados, (cfr. artigo “Direito Processual Penal”, I Vol., Reimpressão de 1984, pág. 213).
E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, ou seja, relativamente aos factos desfavoráveis ao arguido, a dúvida conduzirá a que os mesmos se deem como não provados. É com este sentido e conteúdo que se afirma o principio “in dubio pro reo”.
A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio terá de ser insanável, razoável e objetivável.
Em primeiro lugar, a dúvida terá de ser insanável, pressupondo, por conseguinte, que houve empenho e diligência no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.
Deverá ser razoável, ou seja, impõe-se que se trata de uma dúvida séria, argumentada e racional. A dúvida que é gerada, unicamente, pela preguiça ou pelo medo de decidir, não é uma verdadeira dúvida.
A dúvida deverá ainda ser objetivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjeturas e suposições.
Recentrando a nossa atenção no caso “a quo”, identificadas as provas, feita a sua apreciação critica e considerando os explicitados critérios de valoração, não se dissiparam as dúvidas surgidas quanto à verificação da factualidade indicada nas alíneas a) a d), pelo que, face à persistência da dúvida razoável, entendemos que a mesma deve ser resolvida de acordo com o princípio in dubio pro reo, que irá necessariamente aproveitar à arguida, permitindo ao Tribunal decidir no sentido que lhe é mais favorável, ou seja, no sentido da não verificação dos factos acima referidos, com a óbvia repercussão final em matéria subsunção jurídica.
Quanto ao facto contido na alínea e), nenhuma prova cabal do mesmo foi produzida em audiência, tendo, pelo contrário, sido afirmado pelas testemunhas ouvidas familiares do menor que não falam com o mesmo sobre o não pagamento dos alimentos por parte do arguido. »

c. É como segue a apreciação e qualificação jurídico–penal da matéria de facto que foi efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância:
«Em função do circunstancialismo fáctico supra descrito, cumpre, por ora, fazer a subsunção jurídico-legal da conduta do arguido.
Do crime de violação de alimentos:
Ao arguido é imputada a prática de um crime de violação da obrigação de alimentos, p. e p. no art.º 250º, nº 1 do Cód. Penal.
Vejamos, então, se os factos, integram a prática do ilícito referido:
Dispõe o art.º 250º, nº 1 do Cód. Penal que “Quem, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação, no prazo de dois meses seguintes ao vencimento, é punido com pena de multa até 120 dias.”
O tipo legal em causa visa a proteção de bens jurídicos de caráter patrimonial, e, também bens jurídicos eminentemente pessoais, na medida em que a prática do crime põe em perigo as necessidades fundamentais do alimentando, que podem até ser decisivas para o seu salutar desenvolvimento físico, (cfr. Neste sentido Maia Gonçalves in Cód. Penal Anotado e Comentado, 14ª edição, pág. 766).
São elementos constitutivos do crime em apreço:
a) A vinculação de uma pessoa a uma obrigação legal de alimentos;
b) Que essa pessoa esteja em condições de os prestar;
c) O não cumprimento da obrigação no prazo de dois meses seguintes ao vencimento;
O preceito legal em causa, integrado no capítulo dos “crimes contra a família”, visa, precisamente, proteger os membros da família carenciados de auxílio material para a sua subsistência, mormente os menores, sancionando criminalmente a omissão daqueles que, por lei, têm a obrigação de prestar esse auxílio e o não prestam, podendo fazê-lo, desde que dessa omissão resulte perigo para a satisfação das necessidades fundamentais do alimentando, nos moldes já acima referidos.
Desde logo, importa referir que “alimentos” é um conceito normativo, estabelecido pelo art. 2003º, do Cód. Civil, conceito que o direito penal acolheu com a amplitude que tem no direito civil: tudo o que é indispensável ao sustento, habitação, vestuário e, ainda, instrução e educação do alimentando, no caso de este ser menor.
Cabe, agora, verificar se, em concreto, os factos dados por assentes preenchem, ou não, o tipo legal de crime pelo qual o arguido vem acusado.
Quanto ao primeiro elemento - estar o arguido obrigado, legalmente, a prestar alimentos e não cumprir - é manifesta a verificação deste requisito. O arguido, por sentença judicial, foi condenado a prestar alimentos à sua filha menor, no montante mensal de € 200,00, não tendo cumprindo, nem sequer parcialmente, esta obrigação, que se iniciou em setembro de 2019.
É hoje pacífico que a expressão legalmente abrange as decisões judiciais transitadas em julgado. (A este propósito, Ac. RE, de 03-06-86, BMJ 360, 674; M. Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 9ª ed.-1996, pag. 810; Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal Anotado, Ed. Rei dos Livros - 1996, II vol., pag. 700).
Quanto ao segundo requisito - estar o arguido em condições de prestar os alimentos - exige-se, evidentemente, que aquele se encontre em condições, mormente económicas, que lhe permita contribuir, de algum modo, para o sustento do alimentando, no entanto, saliente-se que não é necessário a quantificação dos proventos e réditos do arguido. (A este propósito, entre outros, Ac. RE, de 19-04-83, CJ, VIII, tomo 2º, pag. 338; Ac. RP, de 27-02-85, citado por Simas Santos e Leal Henriques in “Jurisprudência Penal”, Ed. Rei dos Livros - 1995, pag. 436; Ac RE, de 05-05-87, BMJ 367, 591; Ac STJ de 13-01- -88, BMJ 373, 274.)
No caso sub judice, apurou-se que o arguido se encontra emigrado na Alemanha, tendo-se apurado os rendimentos auferidos pelo mesmo entre janeiro a agosto de 2020, nos termos constantes da factualidade acima dada como provada, mais concretamente: janeiro de 2020 - 868,46 €; fevereiro de 2020 - 659,20 €; março de 2020 - 799,82 €; abril de 2020 - 969,26 €; maio de 2020 - 944,25 €; junho de 2020 - 799,81 €; julho de 2020 - 868,46 €; agosto de 2020 - 730,17 €.
Mais se apurou que o arguido reside com uma esposa, a qual é doméstica e não beneficia de qualquer rendimento, e tem duas menores a seu cargo.
Resulta ainda da factualidade apurada que o arguido, durante os anos de 2020 e 2021, esteve incapacitado para exercer a sua atividade durante alguns períodos, mais concretamente devido a uma intervenção cirúrgica e a um internamento em sede de psiquiatria. Mais se apurou com o arguido, por incapacidade financeira, chegou a incorrer no incumprimento do pagamento da renda da habitação onde reside, teve cortes de eletricidade e viu-se impossibilitado de colocar a sua filha no infantário.
Do exposto resulta, assim, não ser possível afirmar que o arguido dispunha de uma situação económica-financeira que lhe permitia proceder ao pagamento do montante fixado a título de alimentos (€ 200,00 mensais), ou seja, que só não realizou tais pagamentos nas datas do respetivo vencimento, nem nos dois meses subsequentes, apenas por sua livre vontade.
Conclui-se, assim, face do exposto, que não se encontram preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de violação da obrigação de alimentos, previsto e punido no artigo 250º, nº 1 do Código Penal, pelo qual o arguido veio acusado.»

d. É como segue a apreciação do pedido de indemnização civil que vem efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância:
«Do pedido de indemnização civil:
Cabe agora analisar e decidir do fundamento e procedência do pedido civil deduzido.
Dispõe o art. 129.º do CP que: “A indemnização de perdas e danos emergente de crime é regulada pela lei civil.” Será, portanto, com referência aos art. 483.º e ss. e 562.º do CC que iremos analisar esta questão.
À apreciação do presente pedido não obsta o facto de o arguido ter sido absolvido dos crimes pelos quais vinha acusado, atendendo ao disposto no art. 377.º, n.º 1, do CPP e o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n º 7/99, de 17/06 1, segundo o qual, “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377 º, n º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade contratual.”.
De acordo com o referido no art. 483.º “Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da indemnização.” Este é o princípio geral segundo o qual só o lesado teria direito a ser indemnizado, todavia comporta excepções, designadamente, as previstas nos art.s 495.º e 496.º, n.º 1 e 2 do CC, em conformidade com os quais deverá ser interpretado o estipulado no art. 74.º do CPP.
Segundo a terminologia de Antunes Varela e Pires de Lima, in Código Civil Anotado, 4.ª Ed. revista e atualizada, pág. 471, são pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, constantes do art. 483.º, n.º1 do CC:
(1) “que haja um facto voluntário do agente (não um mero facto natural causador de danos), pois só o homem, como destinatário dos comandos emanados pela lei, é capaz de violar direitos alheios ou de agir contra disposições legais”;
(2) “é preciso que o facto do agente seja ilícito («Aquele que … violar ilicitamente…»)”;
(3) “que haja um nexo de imputação do facto ao lesante («Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar …»)”;
(4) “que à violação do direito subjetivo ou da lei sobrevenha um dano, pois sem o dano não chega a pôr-se qualquer problema de responsabilidade civil”(…);
(5) “por último, que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação”.
Atenta a factualidade apurada, conclui-se que em concreto tais pressupostos não se mostram integralmente preenchidos.
Efetivamente, no que respeita aos factos consubstanciadores do crime de violação da obrigação de alimentos, e, consequentemente, dos invocados danos não patrimoniais, foram os mesmos dados como não provados.
Consequentemente, é de concluir não ser de proceder o pedido de indemnização civil deduzido contra o arguido.»

Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, por forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes.

1. De saber se se verifica na Sentença do tribunal a quo algum dos vícios previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo.

Vem a recorrente impugnar a decisão recorrida desde logo em quanto respeita à matéria de facto considerada na mesma.

Como é consabido, a decisão da matéria de facto adoptada em primeira instância pode ser sindicada em sede de recurso por duas vias alternativas:
– no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º/2 do Cód. de Processo Penal,
– ou através da designada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º/3/4/6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410.º, cuja indagação, como resulta imposto do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento ; no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal.

Tratar–se–à nesta parte agora da aludida primeira vertente, suscitada em recurso pelo recorrente, e em que estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410º.
Estabelece, assim, este art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) o erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, como acima já se enunciou, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível apelar a elementos estranhos àquela para o fundamentar – como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, em ‘Código de Processo Penal Anotado’, 10ª ed., pág. 729 ; Germano Marques da Silva, em ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª ed., pág. 339 ; ou ainda Simas Santos e Leal Henriques, em ‘Recursos em Processo Penal’, 6.ª ed., pág. 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
Serão, pois, falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
Assumem–se, pois, como erros de julgamento a relevar da contextualização interna da decisão, ou da própria estrutura da decisão, congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico-socialmente situado.
Cumpre realçar que não sustenta a configuração de tais vícios, o esgrimir de argumentos opinativos quanto ao julgamento de facto a que o tribunal chegou e que verteu no texto da decisão, nem a mera crítica ao processo formativo cognitivo–racional que sustentou uma tal apreciação factual ou valoração probatória – a menos que ofendam em tal grau o senso comum que por isso não viabilizem sequer a validação do acto de julgamento efectuado.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova: «com efeito, aqui, e num momento logicamente anterior, é a prova produzida que é insuficiente para suportar a decisão de facto ; ali, no vício, é a decisão de facto que é insuficiente para suportar a decisão de direito», cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/12/2014 (proc. 155/13.4PBLMG.C1)[3]. Ou, como se consigna no Acórdão do S.T.J. de 6/10/2011 (proc. 88/09.9PESNT.L1.S1)[4], «A insuficiência da matéria de facto para a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP), implica a falta de factos provados que autorizam a ilação jurídica tirada; é uma lacuna de factos que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, mas não se confunde com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideraram provados».
Assim, Para que se verifique o vício da alínea a) do nº 2, do art. 410º do Cód. de Processo Penal, «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada» (cfr. Prof. Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 339/340), vício que tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, e «só existe quando o tribunal de recurso se vê perante a impossibilidade da própria decisão, ou decisão justa, por insuficiência da matéria de facto provada». Tal vício só se concretizará quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal ficam aquém do necessário para concluir pela decisão jurídica adoptada nos termos em que o é.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art. 410º/2/b) do Cód. de Processo Penal), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados, entre os meios de prova invocados na fundamentação de facto, ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre maxime quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Como indicado por Simas Santos e Leal–Henriques em ‘Recursos em Processo Penal’, 6ª ed., pág. 71, “contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão - incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados ; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada ; e há contradição entre os factos quando os provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem–se mutuamente”.

Finalmente, o erro notório na apreciação da prova (cfr. art. 410º/2/c) do Cód. de Processo Penal) verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em processo penal”, 5.ª edição, pág. 61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª Ed., pág. 341).

Revertendo à presente alegação recursória, suscita a assistente a verificação na sentença recorrida de uma situação de erro notório na apreciação da prova, especificamente no que se refere à matéria dada como não provada nos pontos b), c) e d), e nos seguintes segmentos:
«b) (…) apesar de ter possibilidades económicas para efetuar o pagamento da pensão de alimentos devida ao seu filho CC, decidiu, logo após terem sido reguladas as responsabilidades parentais nos termos acima descritos, não proceder ao pagamento de qualquer quantia.
c) O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, pois apesar de saber que estava obrigado mensalmente a pagar ao seu filho a pensão de alimentos que tinha sido fixada no processo de regulação das responsabilidades parentais, decidiu não proceder ao pagamento de qualquer quantia, pese embora soubesse que tinha condições económicas suficientes para efetuar esse pagamento, nem que fosse parcialmente.
d) O arguido sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei penal.»
Alega a recorrente que a motivação para não dar como provada tal factualidade contraria à lógica e às regras da experiência comum, detectável por qualquer cidadão de formação cultural média, bem como faz uma errada aplicação do princípio in dubio pro reo por parte do tribunal recorrido, devendo aqueles factos ter sido antes dados como provados.

Apreciando se dirá que, como claramente deflui do alegado, assenta a recorrente/assistente a sua invectiva no essencial na consideração como não demonstrada (em sede de sentença recorrida) da circunstância de o recorrido/arguido ter condições financeiras que lhe permitiriam cumprir com a obrigação de alimentos devidos ao filho comum de ambos e fixada por sentença proferida no âmbito de processo de regulação de responsabilidades parentais, em Agosto de 2019, no Juízo de Família e Menores de Santo Tirso (cfr. ponto 3. da matéria de facto provada).
Entende a recorrente que, em face dos rendimentos auferidos pelo arguido entre 2019 e 2020, e elencados nos pontos 9. e 11. da matéria de facto provada, deverá concluir–se «claramente» que se durante aquele período não enviou um euro que fosse para contribuir para o sustento do seu filho CC, «foi porque simplesmente decidiu que não pretendia contribuir, ainda que de forma parcial e/ou residual, para o sustento do mesmo».
E, nesta sequência, mais se deverá considerar que actuou sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei penal, tanto mais que «estamos perante um tipo de crime que é do conhecimento geral da população».
Como facilmente se poderá constatar, para o tribunal recorrido não decorreu a evidência, que a recorrente aqui propugna, da disponibilidade financeira do arguido naquele período a que se reportam os factos (2019 e 2020) no sentido de permitir concluir pela atitude voluntária e deliberadamente relapsa que o preenchimento do tipo legal do crime de violação de alimentos aqui em causa exige.
Na verdade, e em sede de motivação da decisão sobre a matéria de facto, ali consignou o tribunal recorrido, muito especificamente sobre este fulcral thema decidendum, o seguinte:
«Na verdade, à exceção dos concretos salários descritos na factualidade dada como provada, não se demonstrou o recebimento de qualquer outro concreto montante por parte do arguido, revelando aliás as testemunhas BB, II, JJ e KK completo desconhecimento acerca das concretas condições de vida do arguido na Alemanha. Por outro lado, as testemunhas DD e EE, revelando conhecimento direto dos factos e sinceridade nos seus relatos, descreveram de forma pormenorizada a vivência do arguido desde o ano de 2019, atestando que este vem passando por vicissitudes várias que lhe determinaram relevantes condicionalismos financeiros, sendo este o único elemento do agregado familiar que beneficia de rendimentos, agregado esse que tem duas menores a seu cargo.
Ora, mesmo considerando os meses relativamente aos quais se apurou o salário liquido auferido pelo arguido (nos termos constantes dos factos dados como provados), se atendermos às demais condições pessoais do mesmo, mormente que o arguido integra um agregado familiar de quatro pessoas (sendo duas delas menores), sendo o único titular de rendimentos do mesmo, temos que não se mostra possível afirmar que tivesse efetivas possibilidades financeiras de proceder à liquidação dos alimentos em causa nos presentes autos, e bem assim que tivesse atuado dolosamente com o intuito de incumprir essa sua responsabilidade. Tal sucede não só relativamente aos meses em que se apurou o concreto salário liquido do arguido, como também quanto aos restantes, dado que, caso o arguido tenha igualmente recebido salário nos mesmos, sempre este seria da mesma ordem de grandeza daqueles que se encontram descritos nos factos dados como provados. Por tal motivo, não poderíamos tomar outra opção que não a de considerar como não provada a factualidade descrita nas alíneas a) a d).»
Ou seja, procede o tribunal recorrido a um exercício de ponderação entre aqueles rendimentos do arguido que resultam demonstrados nos autos, e as demais circunstâncias e constrangimentos inerentes à sua situação económica, laboral e familiar na Alemanha, onde reside – e por reporte, sempre, ao período temporal em causa nos autos.
Exercício que, diga–se, desde logo se mostra em absoluto ausente da alegação da recorrente, que apenas apela àqueles que foram os rendimentos laborais do arguido neste período, desconsiderando todos os demais factores que, nos termos também consignados na sentença recorrida, inevitavelmente devem ser ponderados como contraponto daquela disponibilidade financeira.
Este exercício, assim efectuado pelo tribunal a quo, e percorrido todo o teor da decisão recorrida, não se revela assente em premissas ilógicas, nem se revela contrário àquelas que são as regras de experiência comum relativas a quanto é possível percepcionar em termos de equilíbrio financeiro entre aqueles rendimentos do arguido neste período, e os constrangimentos que os afectam, e a que o tribunal recorrido faz adequado apelo.
Como decorre de quanto inicialmente se disse, para que de um erro notório na apreciação da prova pudesse falar–se, necessário seria que estivéssemos perante um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidenciasse aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, e in casu, em dar-se como não provado o que manifestamente teve de ter acontecido.
Esta interpretação, para além acolhida por todos os Tribunais da Relação, é também sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça, podendo referenciar–se neste sentido, e entre muitos outros, o Acórdão do S.T.J. de 09/03/2023 (1368/20.8JABRG.G1.S1)[5], «O erro notório na apreciação da prova é um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, nomeadamente, através da leitura da matéria de facto e da fundamentação da matéria de facto».
Não obstante, e como adverte o Acórdão do S.T.J. de 23/09/2010 (proc-, 427/08.0TBSTB.E1.S2)[6], «O vício da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP – erro notório na apreciação da prova (…) tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida».
Ou seja, não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Julga–se ser quanto se passa no presente caso.
As dúvidas que a recorrente refere não ter e não se justificarem, assolaram no critério decisório do tribunal a quo em face da ponderação da globalidade da prova e da globalidade dos factos – contrariamente ao que vemos efectuado pela recorrente, como se disse.
E, nessa perspectiva, como também expressamente decorre da decisão recorrida, fez uso do princípio do in dúbio pro reo, o qual, respeitando ao direito probatório, implica, em termos sintéticos, que o julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto. Ou seja, a ter-se por afectada a necessária certeza probatória que qualquer condenação penal exige como seu fundamento – quando, por via das circunstâncias ligadas à produção de prova nos autos se tenha por inquinado o processo de formação da convicção do Tribunal na correspondente parte – não será de assacar ao arguido a actuação imputada.
Realça–se que o princípio in dubio pro reo não pode soçobrar face às certezas que os sujeitos processuais encontram na decisão ou na sua (subjectiva) interpretação da factualidade descrita nos autos – é, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
Detectando-se, pois, o aludido estado de dúvida na explanação efectuada na sobredita motivação, não poderia o tribunal recorrido deixar de lançar mão, como lançou, do princípio in dubio pro reo – ficando deste modo afastada a também invocada violação do mesmo.

E assim deverá considerar–se igualmente no que tange à invocada vertente do aludido erro notório relativa ao conhecimento que o arguido teria de que a sua conduta era prevista e punida por lei penal.
Crê–se indiscutível que, como assinala a recorrente, «estamos perante um tipo de crime que é do conhecimento geral da população».
Porém, aquilo a que a matéria de facto não provada aqui especificamente se reporta é à consciência e vontade do arguido em levar a cabo aquela que era a conduta típica e penalmente punida que em concreto lhe era imputada em sede de acusação nos autos – e não à consciência in abstracto da ilicitude e punibilidade penal de uma actuação típica que integre os pressupostos do crime aqui em causa.
Donde, é assentando no pressuposto de não se haver demonstrado a montante que o arguido haja preenchido tais requisitos típicos, que aqui se considera também não provado que soubesse que a concreta actuação afinal tipicamente anódina que encetou era proibida e punida por lei penal.

Em suma, no presente caso, e analisando a sentença recorrida, designadamente a fundamentação de facto nela considerada em confronto com a respectiva motivação, constata-se que a mesma enuncia os meios de prova produzidos e dá conta dos critérios adoptados para a sua decisão. Essa apreciação da prova revela haver seguido critérios 1ógicos e objectivos e em obediência a adequadas regras de experiência comum, segundo o princípio da livre (mas vinculada) apreciação da prova consagrado no artigo 127° do Cód. de Processo Penal.
Não se considera, pois, verificado o vicio do erro notório na apreciação da prova que vem invocado pela recorrente.

Assim como não se tem por verificado qualquer dos outros vícios estruturais em sede de decisão sobre a matéria de facto, que se mostram previstos no citado nº2 do art. 410º do Cód. de Processo Penal.
Muito em especial, diga–se, não se tem por verificado aquele previsto na respectiva alínea a), de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que, embora não invocado pela recorrente, se mostra aludido pelo Digno Procurador–Geral Adjunto (PGA) no seu parecer exarado nos autos.
Para chegar a tal conclusão, e muito sucintamente, parte o Senhor PGA parte de uma série de considerações, como a de que «não deixa de ser deveras estranho a particular circunstancia o menor enquanto permaneceu na casa do arguido e integrado na família onde vivia, este possuísse as condições necessárias para alimentar e educar o filho, mas quando a criança foi viver para a casa da mãe o arguido deixasse de ter essas mesmas condições», mais considerando, nesta mesma linha, que «ficou demonstrado que o arguido sempre teve dinheiro e condições financeiras para alimentar o filho em sua casa, mas deixou subitamente de o ter e as condições desapareceram quando a criança foi morar com a mãe.» ; adita que «nos tempos de hoje e segundo o pensamento mais progressista, nem o eventual desemprego nem a baixa por doença, poderiam constituir motivos justificadores que desobrigassem o arguido de pagar as prestações de alimentos quando desacompanhados de factos que demonstrassem de forma inequívoca que o arguido estava de boa fé e tudo fez para demonstrar o seu estado de insuficiência económica impeditivo do cumprimento daquela obrigação alimentar».
E nesta sequência propugna que deveria também ser indagado e levado em conta pelo tribunal a quo «se o progenitor revelou no período de tempo em equação condutas associais desviantes relacionadas com um dispêndio monetário supérfluo, desnecessário e sumptuário em actividades lúdicas ou de lazer que não se coadunem com a condição que aparentasse possuir, bem como, hábitos ligados ao consumo de substâncias aditivas, alcoólicas ou estupefacientes, em suma, importava também investigar e saber se o requerido adoptou condutas socialmente perdulárias, possuía níveis de vida extravagantes, ou então se revela condutas de ócio, inércia ou de imobilismo profissional e/ou laboral injustificado que não sejam susceptíveis de serem oponíveis, quer por via de acção ou de excepção, aos legítimos, superiores e melhores interesses do filho».
Suscita assim, e em conclusão, que a sentença recorrida carece de indagação factual reportada a alguns aspectos a que no mesmo parecer se alude, o que se traduz em insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Salvo o muito devido respeito, não assiste razão ao assim propugnado em sede de parecer pelo Digno PGA.
Desde logo se dirá que grande parte da argumentação edificada no aludido parecer melhor se coaduna com o objecto processual de uma acção com a natureza de regulação de responsabilidades parentais, e de eventual execução (designadamente a nível pecuniário) daquelas que nela sejam determinadas.
Na verdade, aqui estamos em sede de processo criminal, em que, para determinar uma condenação do agente dos factos, é necessária a demonstração de uma atitude voluntária e deliberada de não cumprir a obrigação de alimentos, mostrando–se demonstrado que o agente tinha capacidade para o fazer.
Ou seja, e fazendo apelo às básicas regras decorrentes do princípio do acusatório, plasmado desde logo designadamente no art. 32º/5 da Constituição da República Portuguesa, e nos arts. 48º e 53º do Cód. de Processo Penal, não é o arguido quem tem o ónus de demonstrar a ausência da sua culpa criminal, mas antes quem a acusa – aqui o Ministério Público – que tem que fazer prova dos factos relevantes para demonstrar essa mesma culpa criminalmente relevante.
Ora, liminarmente se dirá que nenhum dos factos a que o Digno PGA apela, encontra respaldo sequer em sede da acusação pública que foi oportunamente formulada nos autos e submetida a julgamento.
O que significa, por um lado, que mal se compreende de onde retira o Digno PGA – a partir do teor da sentença recorrida – a conclusão de que «ficou demonstrado que o arguido sempre teve dinheiro e condições financeiras para alimentar o filho em sua casa» enquanto viveu, em união conjugal com a mãe do menor filho de ambos.
Depois, se se compreende e aceita que nem «o eventual desemprego nem a baixa por doença, poderiam constituir motivos justificadores que desobrigassem o arguido de pagar as prestações de alimentos quando desacompanhados de factos que demonstrassem de forma inequívoca que o arguido estava de boa fé e tudo fez para demonstrar o seu estado de insuficiência económica impeditivo do cumprimento daquela obrigação alimentar», a verdade é que, ao contrário daquilo parece indiciar quanto pressupõe o Digno PGA, lida a decisão recorrida, é patente que o tribunal a quo efectuou em audiência um adequado exercício de indagação sobre as condições económicas (ao nível dos rendimentos e despesas) do arguido, sendo nos autos produzida prova reportada a tal indagação, e de que dá nota também a sentença.
Assim, e além de elementos probatórios de natureza documental, o tribunal a quo ouviu as testemunhas indicadas nos autos e que o próprio Ministério Público entendeu adequadas a demonstrar as circunstâncias e contexto de vida do arguido no período a que se reportam os factos.
O que aqui sucede é que o Digno PGA entende que a conclusão a que o tribunal de primeira instância chegou em resultado dessa indagação não será adequada, propondo assim indagar mais factos que eventualmente pudessem vir a reverte-la.
Ora, para isso apela o Digno PGA a uma omissão de indagação sobre um conjunto de factos – como saber se o arguido adoptou «condutas associais desviantes relacionadas com um dispêndio monetário supérfluo, desnecessário e sumptuário em actividades lúdicas ou de lazer que não se coadunem com a condição que aparentasse possuir, bem como, hábitos ligados ao consumo de substâncias aditivas, alcoólicas ou estupefacientes, em suma, importava também investigar e saber se o requerido adoptou condutas socialmente perdulárias, possuía níveis de vida extravagantes, ou então se revela condutas de ócio, inércia ou de imobilismo profissional e/ou laboral injustificado» – que, repete–se, não só não encontram qualquer menção em sede de acusação, como também não se mostram minimamente indiciados em sede de prova produzida em audiência, não dando a sentença nota de que assim pudesse suceder.
A insuficiência da matéria de facto para a decisão supõe a existência de factos que hajam sido alegados ou que resultem indiciados da discussão da causa, e que, sendo relevantes para a decisão, devendo ser averiguados, não o foram. Ora, não constando tais factos da acusação, nem sendo suscitada a sua eventual verificação por via da discussão da causa, dificilmente se poderá falar de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão, enquanto vício da sentença, pois que a insuficiência da matéria de facto para a decisão só ocorre quando essa matéria – em falta – faça parte do objecto do processo, delimitado pela acusação, pela defesa ou pela demais factualidade que ao tribunal venha a ser dado licitamente conhecer.
Salvo, mais uma vez, o devido respeito, o que se afigura é que o Digno PGA, no presente caso, confunde a insuficiência da matéria de facto para a decisão, com uma insuficiência da matéria de facto para a condenação – sendo em bom rigor nesta última perspectiva que invoca aquela ausência de indagação de mais factos.
Ora, para que se verifique o vício da alínea a) do nº 2 do art. 410º do Cód. de Processo Penal, «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada» (cfr. Prof. Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 339/340), pois que este vício «só existe quando o tribunal de recurso se vê perante a impossibilidade da própria decisão, ou decisão justa, por insuficiência da matéria de facto provada». Tal vício só se concretizará quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal ficam aquém do necessário para concluir pela decisão jurídica adoptada nos termos em que o é.
Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito, isto é, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto] ou, dito de outra forma, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal – cfr. Simas Santos e Leal Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69).
Ora, no presente caso, e muito claramente, a matéria de facto averiguada e considerada pelo tribunal a quo é suficiente para a decisão jurídico–penal que, a jusante, vem a ser adoptada.
Como, por todos, se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/02/2010 (proc. 671/08.0JAPRT.P1)[7], «Verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta é insuficiente para uma solução correcta de direito, dado não conter todos os elementos necessários à mesma, não permitindo, por esse motivo, um juízo seguro de qualificação dos factos num dos tipos legais eventualmente aplicáveis».
In casu, e como já se disse o tribunal a quo indagou a prova adequada à demonstração de quaisquer circunstâncias atinentes ao contexto de vida do arguido, designadamente a nível de disponibilidade económica, chegando à conclusão – que já vimos integrada num adequado exercício processual de valoração probatória – de que não se verificará uma tal disponibilidade financeira que permita integrar os pressupostos típicos do crime de violação de alimentos,
E, em conformidade, munido de toda a matéria de facto necessária para o efeito que lhe era lícito apreciar, e suscitada na conformação do objecto dos autos desde a acusação até à discussão da causa, decidiu juridicamente em termos que se mostram suficientemente sustentados por aquela primeira.
Não se julga, pois, verificado também este vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão.

Em suma, improcede esta vertente do recurso interposto.

2. De saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal.

Vem também a recorrente apelar à supra referenciada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º/3/4/6 do Cód. de Processo Penal.
Neste caso, e como já se aludiu, a apreciação suscitada não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) valorada em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal.
Estamos, pois, em sede de invocação de erro de julgamento quanto à matéria de facto, que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Notar–se–á, não obstante, que nos casos de tal impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, mas antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, e sempre na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exactamente por o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituir um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, os aludidos erros que o recorrente deverá expressamente indicar, que se impõe a este o ónus de proceder a uma especificação sob três vertentes, conforme estabelecido no art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal, onde se impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar :
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados,
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida,
c) as provas que devem ser renovadas.
A assim exigida tríplice especificação traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal exercício recursivo com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõem decisão diversa da recorrida, com a explicitação da razão pela qual assim se entende.
Sendo que, com relação ás duas últimas especificações, recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência : sendo invocada prova que haja sido objecto de gravação, tais especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal – é o que resulta do nº4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal, que exactamente exige que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Retomando quanto se vinha dizendo, quando se pretenda efectivamente sindicar a decisão recorrida no âmbito desta apreciação mais alargada resultante da impugnação da matéria de facto, resulta imposto pelo texto do nº3 do art. 412º do Cód. de Processo Penal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto. Quando, no artigo 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
Notar–se–á que a remissão para o verbo impor, especificamente estipulada no art. 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal, consubstancia a exigência de verificação de uma obrigação impreterível, de um imperativo, de um dever mandatório inquebrável e sem alternativas. Assim, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo, não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal.
Estas ideias encontram eco indisputado na jurisprudência, podendo citar–se, por todos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2005 e de 09/03/2006 (procs. nº 2951/05 e 461/06)[8], onde se escreve que «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» ; ou ainda o acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2011 (proc. 158/09.3GBAVV.G2.S1)[9], onde se consigna o seguinte :
«IV – Como o STJ vem decidindo, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova (art. 430.º do CPP), uma nova ou suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP. V - O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento pela 2.ª instância, dirigindo-se somente ao reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa, indicadas pelo recorrente, e não a todas as provas produzidas na audiência.
VI - Por isso, o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, sendo certo que ao exercício dessa tarefa o tribunal de recurso apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas, pelo que, se entender que a valoração e apreciação feitas se mostram correctas, se pode limitar a aderir ao exame crítico das provas efectuadas pelo tribunal recorrido.».
É que, como se refere por exemplo no acórdão da Relação do Porto de 26/11/2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, págs. 176 e segs.), e citado pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/05/2022 (proc. 299/20.6GAVGS.P1)[10], «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido directamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância».
A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/01/2003, proc. nº 024324)[11], fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2003, proc. nº 3100/02)[12].
Como se escreve no supramencionado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/05/2022, «o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário».

Efectuadas estas considerações – como forma de enquadramento dos limites em que se move a invocação desta forma de impugnação ampliada do exercício de fundamentação de facto por parte do tribunal a quo –, vejamos quanto sucede no caso concreto dos autos.

No caso, a recorrente vem invocar o incorrecto julgamento da matéria de facto por parte do tribunal de primeira instância, reportando a sua impugnação à consideração como incorrectamente dados como provados os factos constantes nos pontos 12., 13. e 14., cujo teor, recorde–se, é o seguinte:
12. A esposa do arguido é doméstica, não beneficiando de qualquer rendimento
(dirigindo a recorrente a sua crítica em especial ao segmento final, onde se consigna «não beneficiando de qualquer rendimento»)
13. Nos anos de 2020 e 2021, por períodos de tempo não concretamente apurados, o arguido esteve impossibilitado de trabalhar devido a uma intervenção cirúrgica a uma hérnia e a um internamento por distúrbios psiquiátricos.
14. Nos anos de 2020 e 2021, em meses não concretamente apurados, o arguido, por incapacidade financeira, chegou a incorrer no incumprimento do pagamento da renda da habitação onde reside, teve cortes de eletricidade e viu-se impossibilitado de colocar a sua filha no infantário.

Ora, a liminar nota que desde logo cumpre efectuar é a de que resulta absolutamente cristalino dos termos recursórios que o exercício de impugnação efectuado pela recorrente neste caso passa no essencial pela crítica à convicção adquirida pelo tribunal recorrido, pretendendo ver o seu próprio juízo pessoal prevalecer sobre a livre apreciação que serviu de base àquela, e ao resultante juízo de absolvição, isto é, aquilo que o recorrente pretende é operar a substituição da convicção formada pelo tribunal pela sua própria – numa inversão legal de papéis funcionais que não está, de todo, no sustento do regime processual aqui em causa.
Por outras palavras, com base nos argumentos que veio aduzir, pretende que este tribunal de recurso formule uma nova e diversa convicção, e por essa via modifique ou altere os factos provados de molde a ir ao encontro dos seus interesses.
Ora, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” - Acórdão do Tribunal Constitucional nº 198/2004 de 24/03/2004 [13].

Revertendo à materialidade da impugnação recursória, no essencial discorda o recorrente da circunstância de a convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto provada, e na fundamental parte que consubstanciaria os pressupostos do crime que vinha imputado ao arguido, assentar desde logo na valoração das declarações prestadas nos autos pelas testemunhas DD e EE, amigos de longa data do arguido, cujos depoimentos «por natureza parciais», refere, não são suficientes para sustentar aquela matéria de facto. Donde, contra a valoração do tribunal, propugna dever sobrepor–se a sua própria valoração – que, crê–se, considerará por sua vez perfeitamente imparcial – comparativa desses depoimentos com a demais prova produzida nos autos.
Pois bem, e desde logo no que se reporta ao teor destes depoimentos testemunhais, cumpre assinalar que é acentuadamente redutora a invocação da respectiva razão de ciência por contraponto a quanto resulta dos autos, e se consigna em sede de decisão recorrida. Na verdade, para além de serem amigos do arguido, logo na sentença se dá nota também (o que não se mostra contrariado) de que ambas as testemunhas residem igualmente (isto é, como o arguido) na Alemanha há vários anos, por isso tendo demonstrado conhecimento directo acerca das condições pessoais do arguido ao longo dos últimos anos – o que, adianta–se, ouvidos os respectivos depoimentos se secunda.
Ora, é certo que todo o julgador deve ter presente que, por mais honesto e por mais prudente que seja um homem, pode estar enganado ou errar ele próprio sobre o assunto sobre o qual fala. Por isso mesmo, tendo em conta a extrema relatividade que tem a prova testemunhal em face da certeza judiciária, particularmente estando em causa um objecto processual com a natureza daquele dos presentes autos, há que ter muita ponderação na sua apreciação.
Porém, nada obsta a que uma testemunha – no caso, duas – possa ser suficiente para convencer o juiz de determinadas ocorrências e contra a versão trazida por outros meios de prova.
Tudo se resume à credibilidade que merecem para o julgador aqueles que surgem à sua frente, desde que o caminho de convicção trilhado pelo tribunal no âmbito da utilização das ferramentas da imediação e da oralidade de que dispõe, não ofenda patentemente as regras da lógica e da experiência comum, e que, no âmbito da imediação e da oralidade, se fundamentem racionalmente os factos dados como provados com base nas respectivas declarações.
Como expressivamente se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/02/2023 (proc. 446/19.0T9CTB.C1)[14], «I - O único limite que o princípio da livre apreciação da prova impõe à discricionariedade de apreciação da prova oral por parte do julgador resulta das regras da experiência comum e da lógica supostas pela ordem jurídica. II - A livre apreciação da prova oral é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, porque é a 1ª instância que vê e ouve o arguido e testemunhas, que aprecia os seus gestos, hesitações, espontaneidade ou a falta dela, em suma, os seus comportamentos não verbais, é a 1ª instância que formula as perguntas que entende pertinentes, que encaminha o interrogatório e/ou a inquirição da forma que considera ser a mais conveniente, tudo faculdades de que o tribunal da relação não pode lançar mão e que impõem severas limitações à reapreciação da prova».

Pois bem, desde já se adianta que foi exactamente aquilo que o tribunal a quo aqui fez, por via de um exercício de indagação incidente sobre vários elementos probatórios e de exame crítico dos mesmos – remetendo–se nesta parte desde já quanto se expressa em sede de fundamentação da sentença.
Ora, como facilmente se pode comprovar pelo teor da decisão recorrida – e se comprova pela audição da produção de prova em audiência – o tribunal recorrido não se limitou a ser um mero espectador apático, ou receptor passivo da informação e prova que se produziu em imediação e oralidade na audiência de discussão e julgamento. Com efeito, no estrito cumprimento e observância das prerrogativas legais que lhe então funcionalmente atribuídas, interveio activamente, com profundidade e firmeza, pois questionou as testemunhas (recorde–se que o arguido foi julgado na sua ausência a pedido do próprio, dado encontrar–se a residir e a trabalhar na Alemanha) e interpretou os diversos documentos e depoimentos, sopesando-os a todos, procurando descobrir a verdade material por meios processualmente válidos, articulando as declarações ou testemunhos de uma forma cuidadosa, racional e coerente, de acordo com as regras de normalidade, experiência comum e razoabilidade, assim procurando criar a sua convicção quanto à forma como ocorreram historicamente os factos, tentando reproduzir com a fidedignidade possível esse «pedaço-de-vida» em julgamento.
Resulta também claro da análise da motivação da decisão da matéria de facto que para o tribunal a quo a imagem global dos factos resultou da correlação e conjugação entre vários elementos de prova, e não numa análise fragmentada e descontextualizada dos mesmos.
Também constatamos, nesta ordem de ideias, que o julgador não emitiu nenhum dado de raciocínio que pudesse sugerir arbitrariedade ou preconceito na decisão, nem tão pouco subverteu, ocultou ou extrapolou o significado de nenhum dado probatório.
A explicação do tribunal a quo é lógica, assenta em critérios de senso comum, está respaldada nos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório que são característicos da audiência, revelando absoluto respeito do princípio de livre apreciação da prova previsto no art. 127º do Cód. de Processo Penal.
E terá assim de prevalecer, sobre a divergente convicção do arguido acerca do sentido global da prova.

E a verdade é que a argumentação expendida, quer nas motivações, quer nas conclusões do recurso, não é de todo eficiente para produzir qualquer alteração da matéria de facto, porque tudo quanto vem invocado como putativas fontes do erro de julgamento, parte da diversa valoração que a recorrente faz de elementos de prova ponderados e analisados pelo tribunal recorrido.
Cumpre, aliás, fazer precisamente notar que, percorrido o teor do recurso ora em análise, não se descortina que venha invocado qualquer meio probatório ou sequer segmento do mesmo, que contrarie o teor daqueles que o tribunal a quo vem a valorar.
De forma bem elucidativa, a recorrente não apela sequer a trechos das declarações e depoimentos de qualquer das outras testemunhas ouvidas em audiência – nomeadamente o seu próprio depoimento –, o que bem se compreende, pois que, como da motivação da decisão de facto da sentença também decorre, as mesmas ou nada sabem sobre a vida do arguido na Alemanha, ou quanto muito sabem ser ele casado e ter uma filha em comum com a actual esposa, nada mais.
Ao contrário, como se disse, dos depoimentos das aludidas testemunhas DD e EE, contra que se insurge a recorrente.

Assim, e no que respeita ao ponto 12. da matéria de facto provada, impugna a recorrente que se tenha dado por provado que a actual esposa do arguido «não beneficia[ndo] de qualquer rendimento», argumentando que tal conclusão não pode extrair–se do facto de a mesma ser doméstica.
Ora, não só decorre da mais elementar lógica em sede de regras de experiência comum que quando se refere, sem mais, que alguém tem como actividade a de ser doméstica – cujo significado absolutamente usual é o de essa pessoa desenvolver a muitíssimo meritória e árdua tarefa de cuidar do local de residência onde habita conjugalmente e, como é o caso concreto, das necessidades quotidianas básicas nomeadamente do cônjuge e de filhos menores –, isso significa que não tem quaisquer fontes de rendimento de natureza profissional, como também se constata que isso mesmo foi referenciado pelas aludidas testemunhas, ao contrário do que vem alegado : as mesmas disseram que, porque a esposa do arguido é doméstica, quando este último ficou impedido (por doença) de trabalhar, o casal passou por acentuadas dificuldades financeiras por falta de outros rendimentos.
Assentando a conclusão de facto em causa em elementares regras de experiência corroboradas testemunhalmente, e não vindo invocado um único fragmento de prova que inculque conclusão contrária, a convicção assim formada pelo tribunal recorrido não se mostra, de todo, abalada.

Quanto ao ponto 13. da matéria de facto provada, invectiva a recorrente o valor atribuído aos dois depoimentos testemunhais referenciados, pois que dos autos não resulta qualquer outro meio de prova documental que corrobore a referida intervenção cirúrgica e o internamento por distúrbios psiquiátricos do arguido, ou de documentos que atestassem a incapacidade para trabalhar daí decorrente e o período efectivo que duraram as mesmas.
Nesta parte, só duas notas.
A primeira para dizer que, se é certo que por regra a matéria de facto aqui em causa melhor se comprova por via documental, certo é que não estamos no campo de factos sujeitos a prova vinculada, isto é, factos cuja demonstração apenas e só possa efectuar–se por via de específicos meios probatórios – designadamente de natureza documental ou outra. Donde, também aqui o julgamento dos mesmos pelo tribunal poderá ser levado a cabo de acordo com as regras da experiência e a livre convicção.
A segunda para referir que, em todo o caso, não é rigorosa a afirmação da recorrente de que os depoimentos testemunhais em causa, e nesta parte, sejam «desprovido de qualquer outro meio de prova documental que corrobore a referida intervenção cirúrgica e o internamento por distúrbios psiquiátricos», pois tal documentação existe, mostra–se junta a fls. 157 e segs. dos autos, e é expressamente referenciada pelo tribunal a quo em sede de motivação da decisão da matéria de facto na sentença recorrida.
Ou seja, aqueles depoimentos mostram–se efectivamente corroborados documentalmente, e pela forma a que a recorrente alude, sendo assim manifesta a sua falta de razão.

Finalmente, e no que tange ao ponto 14. da matéria de facto provada, entende a recorrente que os depoimentos das duas aludidas testemunhas, nesta parte, se encontra desprovido de qualquer outro meio de prova documental que os corrobore, designadamente – e sendo certo que o ponto da matéria de facto aqui em causa se reporta apenas e só a ocorrências nos anos de 2020 e de 2021 – quanto aos pagamentos efectuados alegadamente fora de prazo referentes à electricidade e renda da habitação.
Também aqui se dirá não estarmos no campo de exclusividade probatória por via de qualquer tipo de prova vinculada, donde valarem aqui inteiramente as considerações acima expostas quanto à valoração que o tribunal a quo efectuou dos depoimentos testemunhais em causa, assente na credibilidade que os mesmos lhe mereceram – sendo que, repete–se, não vem invocado qualquer meio de prova que contrarie a conclusão probatória a que aqui chegou o tribunal.

Em suma, não se julga que quanto vem referenciado pela ora assistente/recorrente – isto é, a apreciação alternativa que dos meios de prova produzidos nos autos a mesma propugna no seu recurso – permita inquinar a leitura que o tribunal a quo fez da prova produzida, isto é, não se demonstra, como seria necessário, a existência de prova que imponha decisão diversa, nem uma valoração errática daquela que tal também pudesse determinar.
O que decorre dos termos do recurso, nesta parte, é que não agrada ao recorrente a convicção a que chegou o tribunal em resultado da avaliação feita pelo mesmo efectuada da prova produzida em audiência de discussão e julgamento.
Ora, o recorrente poderá não concordar com a apreciação que nessa parte é feita pelo julgador, mas em momento algum a sua própria apreciação alternativa permite contrapor a decisão que foi adoptada e os alicerces da mesma, tendo–se já verificado que, nos aspectos essenciais assinalados, inexiste qualquer elemento de prova que imponha uma decisão diversa.
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, não se considera verificado qualquer erro de julgamento da matéria de facto dada por assente na decisão recorrida.

E em conformidade improcede também esta parte do recurso.

3. De saber se estão reunidos os pressupostos da condenação do arguido pelo crime de violação de alimentos de que vinha acusado e pelo pedido de indemnização civil correspondente.

Propugnava enfim a assistente/recorrente pelo preenchimento dos pressupostos típicos do crime de violação de alimentos pelo qual o arguido vem absolvido, e bem assim dos correlativos pressupostos da responsabilidade civil indemnizatória contra o mesmo arguido deduzida também nos autos.
Não pode, porém, ter sucesso esta derradeira pretensão da ora recorrente.
Sucintamente se dirá que tal pretensão recursória assentava em pressupostos que, como resulta da análise já acima efectuada, não se verificam.
Tais pressupostos passavam, naturalmente, pela procedência das alterações pelas quais pugnava em sede de matéria de facto assente, e por via quer da respectiva impugnação restrita, quer da invocação de erro de julgamento – que, nos termos do disposto, respectivamente, nos arts. 410º/2 e 412º/3 do Cód. de Processo Penal, vinham efectuadas
Era, pois, a inversão do sentido pelo qual os pontos da matéria de facto ali impugnados se mostram considerados na sentença recorrida – isto é, quer no rumo da sua não demonstração, quer da sua demonstração, consoante os casos –, que sustentaria, a jusante, o preenchimento dos pressupostos de tipicidade, ilicitude e culpa do crime em causa por parte do arguido (desde logo no que respeita à fulcral circunstância de o mesmo haver incumprido a obrigação de alimentos a que se mostrava vinculado de forma consciente e deliberada, não obstante mostrar–se dotado da suficiente e adequada capacidade financeira para cumprir com os pagamentos em causa) – e, correspondentemente, demonstrariam também os inerentes requisitos da sua responsabilidade indemnizatória.
Ora, com relação a tais factos vimos já não merecer censura a sentença recorrida, devendo assim ser mantida integralmente a sua decisão quanto a tal matéria.
Donde, naturalmente, daí decorre, e tal como decidido pelo tribunal a quo, não se mostrarem preenchidos pelo arguido os pressupostos típicos objectivos do crime em causa, e, concomitantemente – porque daqueles desde logo dependente –, os requisitos da aludida responsabilidade civil.
Pelo que não merece censura a decisão de absolvição do arguido também pelo crime de violação de alimentos e do pedido de indemnização civil contra si formulado, devendo manter–se a mesma decisão absolutória, e improcedendo assim o recurso interposto.
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III. DECISÃO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em não conceder provimento ao recurso interposto pela assistente BB e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas da responsabilidade do recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UC´s a taxa de justiça (cfr. art. 513º do Cód. de Processo Penal e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último).
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Porto, 10 de Janeiro de 2024
Pedro Afonso Lucas
Paula Natércia Rocha
Raúl Esteves

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)
_________________
[1] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[2] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[3] Relatado por Vasques Osório, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[4] Relatado por Souto de Moura, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[5] Relatado por Helena Moniz, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf [6] Relatado por Souto de Moura, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[7] Relatado por Paula Guerreiro, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[8] Relatados ambos por Simas Santos, e acedidos em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[9] Relatado por Oliveira Mendes, acedido em www.dgsi.pt/jtstj.nsf
[10] Relatado por Pedro Vaz Pato, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[11] Relatado por Afonso Correia, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[12] Relatado por Leal Henriques, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[13] Disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040198.html
[14] Relatado por Luís Ramos, disponível em www.dgsi.pt/jtrc.nsf.