DIREITO À HABITAÇÃO DO INSOLVENTE
DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO DA CASA DE HABITAÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
DOENÇA
DIFICULDADES DE REALOJAMENTO
Sumário

1– Face à remissão operada pelo nº5 do art. 150º do CIRE para o art. 862º do CPC, o insolvente que veja a sua habitação apreendida e liquidada em processo de insolvência, diferentemente do executado, beneficia dos dois regimes: sempre com as devidas adaptações, o do diferimento de desocupação, previsto nos arts. 864º e 865º do CPC e o do nº6 do art. 861º que compreende os nºs 3 a 5 do art. 853º do CPC.

2–No entanto, o facto de o insolvente poder beneficiar – preenchidos os respetivos requisitos – de ambos os regimes de proteção da habitação não lhes retira o carater autónomo e perfeitamente independente.

3–A exigência prevista no nº3 do art. 863º do CPC de que no atestado médico que certifica doença aguda se indique o prazo durante o qual “se deve suspender a execução”, impõe-se como requisito de seriedade e como ponto de partida para a fixação do prazo de suspensão.

4–Para que se considere preenchido o requisito basta a referência à duração provável da crise, ainda que por simples menção às características da doença e à sua normal evolução de que a duração se infira, mas a sua total omissão não pode ser oficiosamente suprida: sem a declaração de um prazo, ao menos por indicação da duração provável da doença aguda, o juiz não tem qualquer elemento para decidir da duração da suspensão que visa, a proteção da saúde da pessoa a desalojar, mas que tem que ser equilibrado com o direito à propriedade que está a ser feito valer nos autos.

5–A tempestividade da formulação de pedido de diferimento de desocupação pelo insolvente é feita em função da fase em que o processo de insolvência se encontra, afigurando-se evidente, atenta a inserção sistemática do preceito, no Capítulo I, que o pedido de diferimento da desocupação só pode/deve ser formulado na fase da apreensão de bens; ultrapassada essa fase e abrindo-se a fase da liquidação, com as diligências encetadas pelo administrador da insolvência com vista à venda do imóvel habitado pelo insolvente, não mais tem cabimento, nem oportunidade, a dedução do pedido de diferimento da desocupação do imóvel habitado pelo insolvente.

6–A regra prevista no nº6 do art. 861º do CPC, transposta para a insolvência, implica que, caso se suscitem sérias dificuldades de realojamento do insolvente, o Administrador da Insolvência comunica antecipadamente, ou seja, antes da diligência de entrega efetiva, o facto à camara municipal e às entidades assistenciais competentes.

7–O disposto no nº6 do art. 861º do CPC não vincula nem o tribunal, nem o exequente, nem o agente de execução, Administrador da Insolvência ou credores, a assegurar o efetivo realojamento ao executado/insolvente e seu agregado familiar, mas apenas a informar previamente as entidades com competência para, em caso de dificuldade de realojamento, lhe prestarem apoio, no quadro das suas competências legais, a fim de a diligência de entrega do imóvel poder ter lugar na data designada.

8–O direito à habitação previsto no art. 65º da CRP é incumbência do Estado e não de particulares pelo que, sendo também a propriedade privada um direito fundamental, o equilíbrio entre estes dois direitos se conforma com a solução legal do nº6 do art. 861º do CPC: os que suportam o prejuízo pelo diferimento da desocupação concedido não têm que suportar também os custos inerentes ao prolongar desse diferimento até à concretização, pelo Estado, da plenitude do direito.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


1.–Relatório


JTA e mulher MAA, entretanto falecida, apresentaram-se à insolvência, a qual veio a ser decretada por sentença de 25/02/2019.
Foi apreendido para a massa insolvente, em 09/04/19, o prédio urbano de casa de rés-do-chão e l.° andar, com logradouro, destinado a habitação, sito no Lugar … S____M____A____, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° .. da freguesia de … e inscrito na matriz sob o artigo … da mesma freguesia e concelho.
Os autos prosseguiram para liquidação do ativo, conforme proposto no Relatório do Sr. Administrador da Insolvência e despacho proferido em 30/10/2019.
No apenso C (reclamação de créditos) foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos em 20/05/2020.
Em 14/03/2022 o Sr. Administrador da Insolvência informou, no apenso D (liquidação), ter obtido uma proposta de compra do imóvel apreendido no valor de € 121.000,00, que tencionava aceitar.
Em 30/03/2022 o insolvente veio requerer o diferimento da desocupação do imóvel pedindo seja suspensa a diligência de desocupação da habitação do insolvente JTA e seja diferida a entrega da habitação ao representante da massa insolvente por um período não inferior a 2 (dois) anos, nos termos conjugados dos artigos 150º nº5 do CIRE, artigo 862º do CPC, artigo 863º nº 3 do CPC, artigo 864º do CPC e artigo 65º nº1 da CRP, juntando documentos e arrolando testemunhas.
Alegou, em síntese, tendo sido notificado, em 14/03/2022, pelo administrador da insolvência para entrega do imóvel, ter 76 anos de idade e ser viúvo, vivendo sozinho, com uma pensão de € 632,13. Padece de vários problemas de saúde que exigem a toma de medicamentação diária e tendo apneia do sono tem que dormir com um aparelho CPAP. Já sofreu uma cirurgia para remoção de um pólipo, estando a aguardar a marcação de outra. Não tem outra casa onde habitar, nenhum dos seus filhos tendo condições para o acolher. A desocupação do imóvel vai colocar em risco a saúde e a vida do requerente dado que a mudança de domicílio poderá agravar as suas doenças agudas, colocando em risco a sua saúde. Pede um prazo não inferior a 2 anos, por ser o espaço temporal que se prevê para que lhe seja atribuída uma habitação.
Foi notificada a parte contrária e ordenada a junção por parte do requerente de comprovativo do processo de atribuição de habitação e prazo previsível.
O Sr. Administrador da Insolvência veio pronunciar-se, pedindo o indeferimento do requerido apontando que o processo se iniciou em fevereiro de 2019, pelo que os insolventes sabiam, desde essa altura que os seus bens seriam apreendidos e vendidos para pagar aos credores. Deixa os insolventes permanecerem nos imóveis até à venda para que diligenciem por novo alojamento. O insolvente teve cerca de três anos para localizar uma habitação. Comunicou as condições da venda não tendo sido exercido o direito de remição.
Após insistência do tribunal, o requerente juntou comprovativo de estar inscrito na plataforma eletrónica de arrendamento apoiado juntando mensagem originado na respetiva plataforma, informando ter o pedido sido encaminhado, datada de 12/07/2022.
Após convite do tribunal “para, em cumprimento do art. 863.º, n.º 3, do CPC, e sob pena de indeferimento, vir aperfeiçoar o seu requerimento de diferimento da desocupação, indicando o prazo durante o qual entende que se deve suspender a execução, bem como comprovando a necessidade de tal prazo através de atestado médico fundamentado”, o requerente veio reafirmar o já alegado e juntar novo atestado médico.
Foi ainda ordenada a solicitação de informação ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IP sobre a decisão que recaiu sobre o pedido de habitação social formulado pelo requerente ou qual o prazo expectável para decisão.
Em resposta foi confirmada a receção do pedido e informado que “por virtude das regras do procedimento concursal, poderá não ser atribuída ao cidadão uma habitação com a rapidez desejada, dado o elevado número de candidatos/inscritos na Plataforma supracitada e a escassez de fogos para satisfação de todas as candidaturas.”
O Sr. Administrador da Insolvência veio, entretanto, informar ter o comprador perdido o interesse, dada a ocupação do imóvel, tendo procedido à devolução do sinal.
Foi ordenado o exercício do contraditório.
O requerente veio reiterar o interesse no deferimento da desocupação do imóvel até que lhe seja atribuída nova habitação e até que seja intervencionado ao estômago.
O Sr. Administrador da Insolvência reiterou o pedido de que seja recusado o pedido de deferimento de desocupação.

Em 04/05/2023 foi proferido o seguinte despacho:
“Veio JTA, Insolvente nos autos apensos, requerer o presente incidente de diferimento da desocupação do imóvel apreendido e suspensão da execução, por motivos de saúde e por período não inferior a 2 anos, para possibilitar a atribuição de habitação social. Posteriormente veio requerer diferimento até realização de intervenção cirúrgica ainda não agendada.
Juntou declarações médicas comprovativas de vários problemas de saúde, incluindo pólipos cuja remoção implicará alegada intervenção cirúrgica, insuficiência renal, diabetes, problemas psicológicos, etc., bem como de que a alteração de morada pode acarretar risco para a saúde/vida.
Foi o Requerente notificado para, em cumprimento do art. 863.º, n.º 3, do CPC e sob pena de indeferimento, vir aperfeiçoar o seu requerimento de desocupação, indicando o prazo durante o qual entende que se deve suspender a execução, bem como comprovando a necessidade de tal prazo através de atestado médico fundamentado.
O Requerente veio juntar atestado médico descritivo dos problemas de saúde, mas não juntou atestado comprovativo do prazo durante o qual é necessário suspender a execução por razões de saúde.
Vejamos.
Nos termos do art. 150.º, n.º 5, do CIRE, “À desocupação da casa de morada de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no art. 862.º do Código do Processo Civil”.
O art. 862.º remete para os artigos 863.º a 866.º, em que se incluem os art. 863.º/3, 864.º e 865.º, todos do Código de Processo Civil (CPC).
Nos termos do art. 863.º, n.º 3, do CPC, suspendem-se “…as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda”.
Ora, no caso concreto, o Requerente, notificado expressamente para o efeito, não juntou atestado médico que indique qualquer prazo de suspensão da execução e que o fundamente medicamente por razões de doença aguda, conforme exigido pelo art. 863.º, n.º 3. Note-se que as doenças crónicas de que o Requerente padece, como insuficiência renal, diabetes e outras, não são fundamento de suspensão, à luz deste preceito, mas apenas uma doença aguda, com período de duração delimitado e atestado por médico, de modo fundamentado, à luz das leges artis da Medicina.
Analisemos agora o preceituado no art. 864.º do CPC sobre o incidente de diferimento da desocupação.
Nos termos do art. 865/1, al. a) e 864.º , n.º 1, do CPC deve haver lugar a indeferimento no caso de o incidente de desocupação ser apresentado fora de prazo. O prazo corresponde ao da oposição no caso da execução (art. 864/1), mas não há norma expressa para a insolvência, execução universal.
No caso concreto, a insolvência foi declarada em 2019, pelo que desde tal data existe conhecimento da necessidade de entrega do imóvel para liquidação em processo de execução universal, sendo que apenas em 2022 veio o Requerente apresentar este requerimento. É certo que neste período houve legislação específica que impediu a desocupação em virtude da pandemia, mas tal legislação já cessou a sua vigência.
Ainda que se entenda que o prazo se deve contar desde a receção da comunicação para entrega do imóvel (em 14/3), o requerimento que deu início a este incidente data de 30/3, pelo que decorreu prazo superior ao prazo supletivo legal de 10 dias para dedução de incidente, aplicável na ausência de norma expressa que indique prazo diverso, nos termos do art. 149.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 17.º do CIRE.
Assim, haverá que indeferir o presente por extemporâneo.
Por outro lado, há informação nos autos principais, corroborada por declarações fiscais, que o Requerente, nos dois primeiros anos de cessão de rendimentos, auferiu valores superiores ao rendimento indisponível fixado, estando em dívida o valor de €6.161,83. Tal realidade afasta a carência de meios exigida para efeitos do art. 864.º, n.º 2, al. a), do CPC, não tendo sido alegada matéria suscetível de integrar a alínea b) do mesmo preceito.
Termos em que o requerido diferimento seria também manifestamente improcedente (art. 865.º, n.º 1, al. c), do CPC).
Acresce que o período máximo de diferimento é de 5 meses (art. 865.º, n.º 4, do CPC), pelo que o diferimento por dois anos ou até data de intervenção cirúrgica ainda não agendada seria sempre legalmente inadmissível.
Por último, o invocado art. 65.º, n.º 1, da CRP, que consagra o direito à habitação é uma norma programática, com conteúdo social mas não diretamente aplicável de modo a afastar legislação ordinária, por não configurar direito análogo a direitos, liberdades e garantias.
Termos em que indefiro in totum o requerido.
Custas do incidente pelo Requerente, no mínimo legal, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficia.
Valor: o indicado.
DN.”

Inconformado apelou o insolvente, pedindo a revogação do despacho recorrido e a audição das testemunhas arroladas no requerimento inicial e a final sendo julgado procedente o pedido de suspensão das diligências de desocupação, diferindo-se a entrega da casa de habitação por um prazo de 5 meses, formulando as seguintes conclusões:
a.-O recorrente tem 77 anos de idade e a casa apreendida no apenso de liquidação é a casa de habitação do recorrente, onde habita há aproximadamente 40 anos;
b.-O atestado médico / relatório médico emitido no dia 28.03.2022 pelo Médico X, juntado na petição inicial como documento nº 5, está completo e bem fundamentado cumprindo com os requisitos legais, mormente o disposto no nº3 do artigo 863º do Código de Processo Civil;
c.-O Médico Dr. X referiu que o recorrente sofre de múltiplas patologias, discriminando-as, e, no final do seu relatório, referiu que qualquer alteração ou mudança de domicílio poderia colocar o recorrente em risco de vida;
d.-Foi ainda juntado aos autos no dia 21.12.2022 outro relatório médico emitido pelo Dr. Y, no qual vêm devidamente descritos os problemas de saúde do recorrente;
e.-Com base nas informações constantes nos autos, em particular os relatórios médicos emitido pelo Dr. X e do Dr. Y, não restam dúvidas de que a diligência de desocupação do recorrente poderia colocar em risco a sua vida por razões de doença aguda, conforme previsto no artigo 863º nº3 do Código de Processo Civil;
f.-O pedido de diferimento de desocupação da casa de habitação apresentado não é extemporâneo porquanto não se aplica a regra geral supletiva de 10 dias prevista no artigo 149º nº1 do Código de Processo Civil;
g.-O pedido de diferimento de desocupação da casa de habitação deve ser apresentado no prazo de 20 dias contados desde o recebimento da notificação para desocupação da casa, ou seja, no prazo de oposição à execução, nos termos conjugados dos artigos 150º nº5 do CIRE, artigo 862º CPC, artigo 864º nº1 do CPC, nº1 do artigo 856º do CPC e nº2 do artigo 868º do CPC, que se aplicam por remissão ao presente caso;
h.-Não existe base nos autos – documentos das Finanças ou da Segurança Social relativos ao ano de 2022 – para se concluir que o recorrente auferiu valores superiores ao rendimento indisponível fixado no montante de €6.161,83;
i.-Não foram ouvidas as testemunhas arroladas no requerimento de diferimento de desocupação da casa, o que constitui um atropelo ao princípio do dispositivo previsto na lei processual civil, em especial nos artigos 3º, 410º e 495º nº3 todos do Código de Processo Civil.
j.-Com base nos factos alegados e na prova documental juntada encontram-se reunidos os pressupostos para conceder o diferimento de desocupação da habitação do insolvente, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 864º do Código de Processo Civil;
k.-O recorrente ainda aguarda a atribuição de uma nova habitação em regime de arrendamento apoiado, nos termos do Aviso 22600-B/2021, de 30 de Novembro (Regulamento de Acesso e Atribuição de Habitações do IHRU, I.P., em Regime de Arrendamento Apoiado);
l.-O artigo 861º nº6 do CPC, aplicável por remissão a este caso, estipula que “tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.os 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes”;
m.-Em face da lei constitucional e de toda a legislação ordinária que a apoia, o recorrente terá de ser realojado antes de se proceder às diligências de desocupação que o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência pretende levar a cabo.
n.-Ao indeferir in totum o pedido de diferimento de entrega da casa de habitação do recorrente, o despacho recorrido violou ou interpretou erradamente os artigos 150º nº5 do CIRE, artigo 862º do CPC, nº3 do artigo 863º do CPC, artigo 864º nº1 do CPC, nº1 do artigo 856º do CPC, nº2 do artigo 868º do CPC, artigo 149º nº1 do CPC, artigo 17º do CIRE, artigo 864º nº2 alínea a) do CPC, artigo 865º nº1 alínea c) do CPC, nº4 do artigo 865º do CPC, artigo 861º nº6 do CPC, artigo 3º do CPC, artigo 410º do CPC, artigo 495º nº3 do CPC e artigo 65º nº1 da Constituição da República Portuguesa.”

PDC, credora reclamante nos autos, respondeu ao recurso pedindo a sua improcedência e a manutenção da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
I–Dispõe a letra da lei que “tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda” – vide número 3 do artigo 863.º do CPC.
II–Nenhum dos relatórios médicos apresentados pelo Recorrente cumpre os requisitos previstos no identificado artigo, nomeadamente, nenhum indica «fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução».
III–Aqueles documentos limitam-se a elencar as doenças de que padece, não apresentando qualquer justificação e/ou fundamento a definir o prazo durante a qual deve ser suspensa a execução.
IV–Pelo que andou bem o Tribunal a quo ao decidir não aplicar o disposto no citado artigo.
V–De igual modo, o incidente de diferimento de desocupação do imóvel foi apresentado extemporaneamente: o insolvente tem conhecimento há mais de quatro anos da inevitabilidade de abandonar o imóvel, nunca tendo diligenciado pela procura de moradas alternativas.
VI–In casu, o insolvente apresentou-se voluntariamente à insolvência (que foi decretada) e o imóvel foi apreendido ainda em 2019.
V–Durante todo este período – prazo mais do que razoável para encontrar uma alternativa -, o insolvente continuou a residir na sua casa de morada de família, sem nada fazer.
VI–No máximo, o Recorrido apenas poderia ter requerido o diferimento de desocupação do imóvel aquando do registo de apreensão da sua casa de morada de família – que, recorde-se, ocorreu em 26/08/2019.
VII–Isto porque o incidente de diferimento de desocupação do imóvel é aplicado ao processo de insolvência por via do artigo 150.º, n.º 5 do CIRE – preceito normativo cujo campo de aplicação se cinge apenas e tão-somente à fase da apreensão dos bens.
Caso assim não se considere, o que apenas se admite por mero dever de patrocínio,
VIII–As normas previstas nos artigos 863.º a 865.º do CPC são normas de carácter excepcional e, consequentemente, não são susceptíveis de interpretação analógica.
IX–Pelo que não é aplicável, in casu, o prazo de vinte dias previsto no artigo 856.º do CPC – preceito normativo pensado e redigido para a tramitação do processo executivo.
X–Na ausência de lei a definir um prazo para estas situações em processo de insolvência, deverá aplicar-se o prazo supletivo de dez dias.
XI–Pelo que a petição inicial para o diferimento da desocupação do imóvel foi apresentada intempestivamente: dezasseis dias após a recepção da carta, por parte do Recorrente, para abandonar o imóvel.
XII–Pelo que também aqui, andou bem o Tribunal a quo.
XIII–Paralelamente, e ao contrário do que defende o Recorrente, dos factos carreados para o processo não é verdade que aquele tenha «carência de meios económicos», conforme impõe o artigo 864, n.º 2, alínea a) do CPC.
XIV–Caso assim fosse, nunca existiram valores a ceder à fidúcia – o que sucede in casu.
XV–Pelo que também por esse motivo inexiste fundamento para o pedido do insolvente seja julgado procedente.
XVI–Atentas as singularidades do caso concreto, admitir o diferimento de desocupação do imóvel requerido pelo insolvente seria subverter toda a justiça, o que violaria o princípio da proporcionalidade e da igualdade.
XVII–Devendo, consequentemente, manter-se inalterada o douto despacho recorrido que indeferiu in totum o requerido pelo insolvente.
O recurso foi admitido por despacho de 15/07/2023 (ref.ª 157647090)[1].

Cumpre apreciar.
*

2.–Objeto do recurso

Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.

Consideradas as conclusões acima são as seguintes as questões a decidir:
- como questão prévia, a admissibilidade da junção de documento com as alegações de recurso;
- violação do disposto nos arts. 863º nº3, 864º e 861º, nº 6, do CPC, aplicáveis ex vi art. 150º. nº. 5, do CIRE e afronta ao princípio constitucional da proteção do direito à habitação, previsto no art. 65º da CRP.
*

3.–Fundamentos de facto:

Além dos factos contantes do relatório, resultam dos autos os seguintes factos, relevantes para a decisão do recurso:
1.–JTA nasceu no dia 1 de fevereiro de 1946 (cfr. certidão de assento de nascimento da Conservatória do Registo Civil de Vila Franca de Xira junta com o requerimento inicial do processo de insolvência).
2.–Por despacho de 06/01/2021, proferido nos autos principais, foi liminarmente admitida a exoneração do passivo restante dos insolventes e, considerando-se um agregado familiar apenas composto por ambos foi fixado como rendimento indisponível, o valor equivalente a dois salários mínimos nacionais.
3.–Em 07/06/2021, o devedor comunicou aos autos o falecimento da sua esposa, juntando certidão de assento de óbito comprovando o falecimento daquela em 21/01/2021 (requerimento refª 39097937).
4.–Por decisão de 11/11/2021 foi declarado extinto o incidente de exoneração do passivo restante quanto à falecida devedora, prosseguindo quanto ao devedor, e consignou-se prosseguir a liquidação contra a herança aberta por morte da mesma.
5.–O Sr. Fiduciário apresentou, em 12/10/2022 relatório anual relativo ao 1º ano do período de cessão, concluindo que o devedor deixou de entregar, neste ano, € 664,68, tendo auferido no ano pensão anual de velhice e sobrevivência de € 11.636,39 (requerimento refª 43535490).
6.–Por requerimento de 23/01/2023 o insolvente veio requerer o pagamento da quantia de € 664,68 em prestações mensais e sucessivas de € 100,00, com início em janeiro de 2023, estando a primeira já paga e a última de 164,68 em junho de 2023 (requerimento refª 44483542).
7.–O Sr. Fiduciário apresentou, em 13/03/2023 relatório anual relativo ao 2º ano do período de cessão corrigindo o cálculo relativo aos valores em dívida no 1º ano, atento o falecimento da devedora e concluindo ser o rendimento disponível no ano de 2021 a quantia de € 2.941,02 e no ano de 2022 a quantia de € 3.220,81, num total de € 6.161,83, tendo o devedor entregue apenas a quantia de € 100,00 (requerimento ref.ª 44987421).
8.–O Ministério Público, em 15/03/2023, requereu a notificação do insolvente para cumprir as obrigações em falta, sob a cominação de ser recusada antecipadamente a exoneração do passivo restante (requerimento ref.ª 28569).
9.–Nenhum dos requerimentos referidos em 6 a 8 foi até 21/11/2023 objeto de despacho – autos principais.
10. O presente incidente deu entrada no dia 30/03/2022.
11.–O devedor juntou, com o requerimento inicial, atestado médico, datado de 28/03/2022, com o seguinte teor:
“X, Médico, Mestrado em Medicina pelo Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar Universidade do Porto, inscrito na Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos, Cédula Profissional n.° … com domicílio profissional na Unidade Saúde Familiar S____ M____ A____, na qualidade de Médico Assistente do utente supracitado, declara para os devidos efeitos legais que o Senhor JTA, viúvo, nascido no dia 01 de Fevereiro de 1946, titular do cartão de Cidadão n.° …, NIF: …, residente na Rua … S____ M____A____, é meu utente desde Outubro de 2016 e sofre de múltiplas patologias devidamente codificas no processo clínico (S. Clinico) que se afigura acesso nomeadamente:
- Perturbação do sono
- Pobreza/problema económico
- Problema legal
- Perturbação de ansiedade
- Obesidade
- Incontinência urinária
- Alteração dos lípidos
- Cálculo urinário
- Hipertensão sem complicações
- Dermatofitose
- Diabetes não insulinodependente, retinopatia diabética (Observado na Consulta de Rastreio oftálmico de Retinopatia diabética. Resultado: Necessidade de consulta de Oftalmologia que já ficou agendada).
Mais informa que foi submetido a intervenção cirurgia ao estômago (polipectomia) e aguarda nova intervenção.
Considerando a idade do doente e doenças de que ele padece, estou certo que alteração do domicílio fiscal/morada neste momento poderá agravar as suas doenças, colocando em causa ou em risco a sua saúde/vida.
Por ser verdade e ter sido pedido, passa, data e assina o presente Atestado Médico que entrega o próprio para fins pretendidos.”
12.–O devedor juntou, em 21/12/2022, relatório médico e atestado de doença, datados de 10/12/2022, com o seguinte teor:
“Y, médico portador da cédula profissional n.º …, não sendo médico de família do Sr. JTA, nascido a 01-02-1946, entrego à família a seu pedido a lista de problemas de saúde que constam nesta data na ficha do utente nesta unidade de saúde.

Problema Activo Data

Síndrome do ombro doloroso S 06-04-2022

Perturbação do sono S 22-11-2018

Pobreza/Problema económico S 21-11-2018

Sensação de ansiedade/Nervosismo/Tensão S 16-11-2018

Obesidade S 05-07-2018

Incontinência urinária S 28-12-2016

Alteração dos lípidos S 13-06-2016

Cálculo urinário S 13-06-2016

Hipertensão sem complicações S 04-03-2014

Diabetes não insulino-dependente S 14-06-2011                                                                                                            

*

4.–Questão prévia – admissibilidade da junção de documentos com as alegações de recurso.
O recorrente juntou, sem qualquer fundamentação adicional um documento, datado de 29/12/2022, que consiste em cópia de relatório de endoscopia.
A recorrida não se pronunciou quanto à admissibilidade da junção.
Apreciando:
Estabelece o artigo 651.º do CPC, sob a epígrafe “Junção de documento e de pareceres:
«1.- As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
2.- As partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão.»
A jurisprudência e a doutrina, de forma unânime, consideram que a junção de documentos em fase de recurso é de natureza excecional e ocorre mediante a alegação e demonstração de um de dois tipos de situações:
- a impossibilidade, objetiva ou subjetiva, de junção anterior, reportada ao momento temporal que se situa depois do encerramento da discussão em 1.ª instância, nos termos do art. 425º do CPC;
- quando a junção apenas se mostre necessária em virtude do julgamento proferido[2].
Na sua materialidade, o documento cuja junção se requer não se analisa em parecer de jurisconsulto, pelo que o nº2 do preceito não é aplicável.
No mais compreende-se que se trata de junção de documento para prova do facto, já alegado, de que aguarda uma intervenção cirúrgica para extração de um pólipo, factualidade que, mesmo sem o referido documento, não foi colocada em causa pelo tribunal recorrido no despacho sob recurso, quedando sem qualquer explicação a junção, em 07/06/2023 de um documento datado de 29/12/2022 para prova de um facto anteriormente alegado.
Nestes termos, não se admite a junção do referido documento nesta sede de recurso.
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5.–Apreciação do mérito do recurso
O recorrente pediu, em incidente processado por apenso, o diferimento da desocupação do imóvel onde reside, apreendido em 2019, por um prazo de dois anos, que reputou de suficiente para a atribuição de habitação social.
Alegou, para o efeito, em síntese, a sua idade, estado de saúde e situação de carência económica, não dispor de qualquer outra alternativa, não podendo qualquer dos filhos, recebê-lo, sendo que a desocupação do imóvel irá colocar em risco a sua saúde e vida. Invoca o disposto no art. 863º nº3 do CPC e o disposto no art. 864º do mesmo diploma, considerando ainda ser o direito à habitação um direito fundamental nos termos do art. 65º da CRP.
O administrador da insolvência opôs-se, essencialmente dado a insolvência ter sido decretada e o imóvel apreendido desde 2019, devendo o devedor ter diligenciado por uma solução de habitação desde então e não apenas agora, após vendido o imóvel.
A decisão recorrida no tocante ao disposto no art. 863º nº3 do CPC, entendeu não ter sido dado cumprimento à exigência ali imposta de junção de atestado médico que indique, fundamentadamente o prazo pelo qual se deve suspender a execução e que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.
Quanto ao disposto no art. 864º, o tribunal de 1ª instância considerou ter o pedido sido deduzido fora de prazo – que entendeu ser de 10 dias contados da interpelação para entrega e ainda não existir carência de meios para os efeitos da al. a) do nº1. Apontou ainda o prazo máximo de diferimento legalmente fixado, de cinco meses.
Considerou ainda, finalmente, que o art. 65.º, n.º 1, da CRP, que consagra o direito à habitação é uma norma programática, com conteúdo social, mas não diretamente aplicável de modo a afastar legislação ordinária, por não configurar direito análogo a direitos, liberdades e garantias.
O recorrente alinha, em sede de recurso, os seguintes argumentos:
- o atestado médico junto elencou as múltiplas patologias do requerente e a final referiu que qualquer alteração ou mudança de domicílio poderiam colocar o mesmo em risco de vida, preenchendo a previsão do nº3 do art. 863º do CPC;
- o prazo previsto no CPC para a dedução do incidente é de 20 dias nos termos dos arts. 865º nº1 e 868º nº2 do CPC, e não de dez dias, motivo pelo qual o incidente foi tempestivamente deduzido;
- não existe informação nos autos para concluir que o recorrente auferiu valores superiores ao rendimento indisponível no montante de € 6.161,83; ainda que assim não fosse, tal não significa que não se encontre em situação de carência económica; se dúvidas houvesse deveriam ter sido ouvidas as testemunhas arroladas;
- o facto de o diferimento ter sido pedido por dois anos não impediria a sua concessão por cinco meses,
- foi violado o art. 65º da CRP, não existindo na decisão recorrida qualquer menção ao direito a uma nova habitação em regime de arrendamento apoiado, sendo aplicável o disposto no art. 861º nº6 do CPC, terá o recorrente que ser realojado antes de se proceder às diligências de desocupação.
A recorrida contrapôs:
- nenhum dos relatórios médicos juntos aos autos cumpre as exigências do nº3 do art. 863º do CPC nomeadamente a exigência da indicação fundamentada de prazo;
- o incidente deveria ter sido deduzido aquando da apreensão não sendo aplicável na fase da liquidação, tendo-se o recorrente remetido à inércia durante quatro anos; ainda que assim se não entendesse nunca poderia ser considerado um prazo de 20 dias, uma vez que as regras em causa têm natureza excecional, sendo a norma supletiva a aplicável;
- há dados nos autos que permitem concluir que o recorrente recebeu valores superiores aos do rendimento indisponível, dados que só agora optou por impugnar pelo que não existe prova da sua insuficiência económica.
Apreciando:
O primeiro exercício necessário é o da determinação da regras aplicáveis e respetivo âmbito.
«O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.» – art. 1º nº1 do CIRE.
É um processo especial que, quanto à sua natureza, pode ser considerado misto, com uma fase marcadamente declarativa (até à declaração de insolvência) e outra claramente executiva (após a declaração de insolvência com liquidação de todo o património do devedor que integra a massa insolvente para satisfação dos credores ou através da aprovação de um plano de insolvência)[3].
Nos termos do nº1 do art. 17º do CIRE, o processo de insolvência é regido pelas regras deste código e, subsidiariamente pelo Código de Processo Civil.
Sem prejuízo, ao longo do CIRE, o legislador remeteu especificamente para algumas regras do CPC, em especial para as normas que regulam o processo executivo na parte relativa à tramitação de feição “executiva”, ou seja, a apreensão e liquidação. A regra geral do art. 17º, no entanto vale também para as remissões expressas, ou seja, a aplicação dos preceitos do CPC dá-se enquanto os mesmos não contrariem disposições do CIRE.
Decretada a insolvência, prescreve o art. 149º nº1 do CIRE, procede-se à imediata apreensão da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolventes, ainda que penhorados, arrestados ou por qualquer forma apreendidos ou objeto de cessão aos credores.
Nos termos do nº1 do art. 150º do CIRE, o poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados.
O nº5 do preceito estabelece que «À desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil.»
O art. 862º do CPC estabelece a aplicabilidade à execução para entrega de coisa imóvel arrendada, dos arts. 859º a 861º (as disposições anteriores do presente título, na linguagem da lei) e os arts. 863º a 866º do mesmo CPC, entre os quais os artigos 863º - suspensão das diligências de entrega efetiva - 864º e 865º do CPC – diferimento de desocupação de imóvel arrendado para habitação e termos do diferimento da desocupação.
O CPC prevê dois mecanismos de proteção do executado, conforme se trate de desocupação de local arrendado para habitação, motivada por cessação do contrato de arrendamento (864º e 865º), ou, quando o imóvel seja a casa de habitação do ex-proprietário, executado, caso em que, nos termos do nº6 do art. 861º, é aplicável o disposto nos nºs 3 a 5 do artigo 863º, ou seja, suspensão da execução para entrega do imóvel se a diligência puser em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda e “caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica, antecipadamente o facto à camara municipal e às entidades assistenciais competentes.”
São, em processo executivo, dois mecanismos diversos e autónomos que a jurisprudência tem decidido, de forma consistente, não serem passíveis de aplicação analógica ou extensível, não beneficiando o ex-proprietário do diferimento de desocupação e vice-versa – neste sentido, entre outros, ver os Acs. STJ de 17/03/2016 (Oliveira Vasconcelos - 217/09), TRP de 12/01/2021 (Ana Lucinda Cabral - 18018/17), TRP de 18/12/2018 (Inês Moura - 2384/08), TRC de 17/01/17 (Maria Domingas – 59/14) e TRG de 06/06/19 (José Barroca Penha – 5608/17)[4].
Face à remissão operada pelo nº5 do art. 150º do CIRE para o art. 862º do CPC, temos por certo que o insolvente que veja a sua habitação apreendida e liquidada em processo de insolvência, diferentemente do executado, beneficia dos dois regimes: sempre com as devidas adaptações, o do diferimento de desocupação e a suspensão das diligências para desocupação. Isto porque o sentido da remissão do CIRE para o CPC não pressupõe a existência de um contrato de arrendamento, determinando apenas que, “com as devidas adaptações, se deve seguir aquele regime numa perspetiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo ao insolvente (…) usar de um prazo de diferimento de desocupação.” – como se escreveu no Ac. TRP de 24/11/2011 (Filipe Caroço - 1924/10).
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5.1.– Suspensão das diligências de desocupação – art. 863º nº3 do CPC
Nos termos do nº3 do art. 863º do CPC que trata da suspensão da execução para entrega de coisa móvel arrendada, «Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.»
A aplicação desta regra em processo de insolvência implicará sempre a demonstração por atestado médico, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda e que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução.
Adiantando, o diferimento de desocupação apenas é possível pelo prazo máximo de cinco meses (art. 865º nº4 do CPC) não se encontrando art. 863º qualquer limitação temporal equiparável.
Ambos os atestados médicos juntos aos autos pelo recorrente enumeram doenças de que o mesmo padece, algumas com indicação de gravidade e o 1º atestado refere, a final “Considerando a idade do doente e doenças de que ele padece, estou certo que alteração do domicílio fiscal/morada neste momento poderá agravar as suas doenças, colocando em causa ou em risco a sua saúde/vida.”
Como se referiu no Ac. TRC de 20/06/17, relatado por António Carvalho Martins (2939/14) “a locução «doença aguda» do art. 863.° do NCPC (suspensão da execução) está empregue com o significado comum de doença ou estado de doença agudizada ou em crise que, pelo despejo, possa pôr em risco a vida das pessoas a desalojar.” pelo que, nesta parte, a menção ao agravamento das doenças enumeradas[5] satisfaz a exigência da menção a risco para a vida do requerente com a alteração de domicílio.
Mas, como apontado pelo despacho recorrido, nenhum dos atestados juntos[6] indica, por qualquer forma, o prazo durante o qual se deve suspender a execução/a desocupação, nem, logicamente qualquer fundamento para tal.
Voltando ao Ac. TRC de 20/06/17 “A exigência do texto em que no atestado médico certificador de doença e sua acuidade se indique o prazo durante o qual «deve suster-se o despejo», impõe-se como manifestação de compromisso e seriedade que o certificado deve revestir não constituindo uma directiva ou comando a que o tribunal deva acato. Na indicação do prazo basta que se refira a duração provável da crise, ainda que por simples menção às características da doença e sua normal evolução de que a duração se infira (Ac. RL, de 20.2.1980: CJ, 1980, 1.°-257 e BMJ, 301.°-452).”
É precisamente esse o motivo pelo qual o preceito não prevê qualquer prazo máximo. O prazo há-de ser indicado, em razão da doença aguda, pelo profissional de saúde, avaliando o juiz a razoabilidade do prazo[7] com os elementos de que dispõe. O ponto de partida será sempre o prazo indicado no atestado médico, sendo a avaliação do juiz apenas a derivada da realidade processual em mãos, que, obviamente, o atestado não contempla.
Ou seja, não estamos ante um elemento que possa ser oficiosamente suprido: sem a declaração, ao menos por indicação da duração provável da doença aguda, de um prazo, o juiz não tem qualquer elemento para decidir da duração da suspensão que, recorde-se, visa, antes de mais a própria saúde da pessoa a desalojar, mas que tem que ser equilibrado com o direito à propriedade que está a ser feito valer nos autos.
Acresce que se trata de um elemento claramente exigido na lei e cuja falta, no caso concreto, foi atempadamente advertida, possibilitando o respetivo suprimento, o que não sucedeu. Assim, nada há a censurar ao despacho recorrido que, nesta parte se mostra correto, não se podendo suspender a desocupação do imóvel apreendido ao abrigo do nº3 do art. 863º do CPC por não estarem preenchidos os respetivos requisitos.
Acrescenta-se que a esperada intervenção cirúrgica não é assinalada, por qualquer dos atestados médicos juntos, como integrando risco de vida por doença aguda.
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5.2.–Diferimento de desocupação – arts. 864º e 865º do CPC
Passamos agora ao também requerido diferimento da desocupação nos termos do art. 864º do CPC.
Prevê o artigo 864º do CPC, sob a epígrafe «Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação»:
1- No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2- O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a)- Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b)- Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
3- No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.
Relembrando que, nos termos do nº1 do art. 17º do CIRE, sempre teremos que adaptar as regras do CPC, mesmo nos casos de remissão direta pelo CIRE, encontramos logo neste nº1 a questão do prazo para a dedução do pedido. O prazo aqui previsto, – o prazo de oposição à execução, ou seja, 20 dias após a citação, nos termos do artigo 859º do CPC, - não tem qualquer hipótese de aplicação direta no processo de insolvência atenta a estrutura processual diversa entre a execução singular e a execução universal.
O que releva não é verdadeiramente se se trata de um prazo de 10 ou 20 dias, mas se foi deduzido, de acordo com a tramitação em insolvência, na fase processual adequada.
Na execução para entrega de coisa certa, o executado é citado para deduzir oposição à execução mediante embargos (ou proceder à entrega) especificamente quanto à entrega do bem em causa – o imóvel onde reside habitualmente como arrendatário. Na insolvência, decretada a mesma, são apreendidos todos os bens do insolvente, incluindo o imóvel de sua propriedade onde resida habitualmente, por força da lei, podendo o insolvente solicitar a todo o tempo, a restituição e separação de bens a partir da apreensão (arts. 141º, 143º, 144º e 146º nº2, proémio, todos do CIRE) e não havendo qualquer citação ou notificação para este específico efeito.
Porquanto a oposição à declaração de insolvência, por embargos, não respeita a qualquer bem apreendido ou a apreender, mas à própria situação de insolvência, não logramos localizar o trâmite processual mais aproximado da oposição à execução para entrega de coisa certa.
Ensaiámos já a hipótese de que tal poderia ser o pedido de separação ou restituição de bem ou direito[8], mas prosseguindo o raciocínio ali iniciado, é muito claro que não se trata de situação comparável ou adaptável: os bens já se encontram apreendidos e os fundamentos para pedir a sua separação passam apenas pela sua indevida apreensão – cfr. as alíneas do nº1 do art. 141º do CIRE.
Como se escreveu no Ac. TRL de 28/02/2023 (2160/22), relatado por Isabel Fonseca e que a aqui relatora subscreveu como 1ª adjunta, “Em sede de execução – salientando-se que se trata de execução para entrega de coisa certa –, o pedido de diferimento da desocupação deve ser formulado no prazo para dedução da oposição (art.º 864.º, nº1 do CPC), não tendo cabimento reverter diretamente esta estipulação para o processo de insolvência, desde logo porque esta pode ser requerida pelo próprio devedor, como aqui aconteceu; assim, a aferição do pedido formulado pelo insolvente deve ser feita, necessariamente, em função da fase em que o processo de insolvência se encontra, afigurando-se-nos evidente, atenta a inserção sistemática do preceito, na Capítulo I, que o pedido de diferimento da desocupação só pode/deve ser formulado na fase da apreensão de bens; ultrapassada essa fase e abrindo-se a fase da liquidação, com as diligências encetadas pelo administrador da insolvência com vista à venda do imóvel habitado pelo insolvente, não mais tem cabimento, nem oportunidade, a dedução do pedido de diferimento da desocupação do imóvel habitado pelo insolvente.”
Trata-se da solução também seguida pelo Ac. TRP de 14/05/2020 (Aristides Rodrigues de Almeida – proc. nº 3910/06) onde se fundamentou “Não é impeditiva da apreensão a aplicação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual se o bem constituir a casa de habitação do executado (por remissão, do insolvente) é ele que deve ser nomeado depositário. O que sucede é que embora continue a poder habitar a casa o executado/insolvente passa a fazê-lo na qualidade de depositário e por isso está obrigado a entregar a casa assim que tal lhe for pedido (artigo 1185.º do Código Civil).
Portanto, quando o n.º 5 do artigo 150.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê a aplicação do disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil à desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente, o seu campo de aplicação é o do momento da realização da apreensão dos bens para a massa insolvente quando o administrador da insolvência pedir a entrega do bem para concretizar essa apreensão.
Ao invés do que está pressuposto no pedido da insolvente, essa disposição legal já não se aplica na fase da liquidação dos bens, isto é, quando a entrega for pedida para fazer a entrega do bem ao adquirente do mesmo na venda realizada na liquidação da massa insolvente e obtenção do produto para distribuir pelos credores.”
No mesmo e exato sentido foi decidido no Ac. TRL de 16/05/2023 (701/14), também relatado por Isabel Fonseca “Sendo o pedido de diferimento da entrega judicial da casa de morada da família do insolvente formulado depois de encetada a fase da liquidação e no decurso desta, tendo já sido realizada a venda do bem imóvel, impõe-se o indeferimento dessa pretensão se o insolvente não provar verificar-se o condicionalismo previsto no art. 863.º, nº3 do CPC, aplicável ex vi do disposto no art. 861.º, nº6 do mesmo diploma, sendo o regime processual civil aplicável aos autos de insolvência nos termos do art. 17.º, nº1 do CIRE.”
Ora, no caso dos autos, quando foi deduzido o pedido, em 30/03/2023, a apreensão havia ocorrido em 09/04/2019 e o que se procurava obstar era à entrega ao comprador, ou seja, o processo estava em plena fase de liquidação. Ou seja, o que o requerente pretende – e transitoriamente logrou – é impedir a entrega do bem ao respetivo adquirente.
Retomando o já citado Ac. TRL de 28/02/2023, “o regime processual consagrado para a fase da liquidação, seja esta realizada no âmbito da execução (singular) para pagamento de quantia certa, seja no âmbito da insolvência, não se compadece com a formulação de pedidos de diferimento da desocupação como o que ora está em análise, “por razões sociais imperiosas”. Assim, o adquirente do bem em venda coerciva tem direito a receber os bens que adquire livre de ónus e encargos, devendo o bem ser entregue acompanhado do título de transmissão (art.º 824.º do Código Civil e art.º 827.º, nº1 do CPC); nos termos do art.º 828.º do CPC, o adquirente pode agir contra o detentor no próprio processo, podendo este obstar à entrega apenas por via do mecanismo a que alude o art.º 861.º, nº6 do CPC – atenta a remissão feita no citado preceito para o regime do referido art.º 861.º do CPC–, com a consequente possibilidade de suspensão da diligência executória no estrito condicionalismo indicado nos números 3 a 5 do art.º 863.º do CPC, que não se confunde com a ratio subjacente ao incidente de diferimento da desocupação.”
Embora com fundamentos diversos, estritamente jurídicos, é, assim, de confirmar a decisão recorrida de indeferimento do pedido de diferimento da desocupação do imóvel apreendido por extemporaneidade do pedido, quedando-se prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos de indeferimento (inexistência de carência de meios e pedido formulado para prazo superior ao legalmente previsto).
É assim, de confirmar, embora com diversa fundamentação, o fundamento do despacho recorrido que julgou intempestiva a formulação do pedido de diferimento da desocupação do imóvel apreendido, nos termos dos arts. 864º e 865º do CPC.
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5.3.– Violação do disposto no art. 861º, nº. 6, do CPC, aplicável ex vi art. 150º. nº. 5, do CIRE e afronta ao princípio constitucional da proteção do direito à habitação, previsto no art. 65º da CRP
O recorrente argumenta finalmente com a regra prevista no nº6 do art. 861º do CPC como argumento para a conclusão de que não poderá ser desalojado enquanto não lhe seja atribuída habitação social.
A diligência prevista no nº6 do art. 861º do CPC não se confunde com o diferimento de desocupação, previsto nos arts. 864º e 865º do CPC nem com a suspensão das diligências de desocupação prevista no nº3 do mesmo art. 861º.
Prevê-se no preceito citado que «Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos nºs 3 a 5 do artigo 863º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à camara municipal e às entidades assistenciais competentes.»
O apelante alega que o despacho recorrido, não se tendo pronunciado quanto às já conhecidas dificuldades de realojamento, dado que pediu informação sobre o mesmo, violou o disposto no nº6 do art. 861º do CPC, afrontando também o princípio constitucional do direito à habitação previsto no art. 65º da CRP.
Nos termos do nº 6 do art. 861º do CPC, em execução para entrega de coisa certa, aquando da efetivação da entrega da coisa, se a coisa a entregar for a casa de habitação principal do executado:
- aplica-se o disposto nos nºs 3 a 5 do art. 863º, que prevê a suspensão das diligências executórias quando a diligência puser em risco a vida de pessoas que se encontram no local por razões de doença aguda;
- caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à camara municipal e às entidades assistenciais competentes.
Transpondo para a insolvência, o segundo segmento implica que, caso se suscitem sérias dificuldades de realojamento do insolvente, o Administrador da Insolvência comunica antecipadamente, ou seja, antes da diligência de entrega efetiva[9], o facto à camara municipal e às entidades assistenciais competentes.
Da letra da lei resulta, com clareza, que a norma não vincula nem o tribunal, nem o exequente, nem o agente de execução, Administrador da Insolvência ou credores a assegurar o efetivo realojamento ao executado/insolvente e seu agregado familiar mas apenas “a informar previamente as entidades com competência para, em caso de dificuldade da executada em encontrar outra habitação, lhe prestarem o apoio tido por conveniente, no quadro das suas competências legais; e o façam atempadamente, a fim de a diligência de entrega do imóvel poder ter lugar na data designada” – cfr. Ac. TRL de 12/03/2019 (Diogo Ravara - 23647/09).
A interpretação defendida pelo recorrente – de que o recorrente terá de ser realojado antes de se proceder às diligências de desocupação - não tem qualquer apoio nem na lei, nem no texto constitucional.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[10] “Se o imóvel  entregar constituir a casa de habitação principal do executado, pode ocorrer a suspensão das diligências executivas, verificados os requisitos enunciados no nº3 do art. 863º. Suscitando-se sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução, antecipadamente, e em tempo útil, deve comunicar o facto à Câmara Municipal e às entidades assistenciais competentes (nº6). A jurisprudência vem decidindo que a comunicação em causa não determina a suspensão das diligências executivas para entrega do imóvel, entendendo que, na data designada, a diligência se executará, no pressuposto de que as entidades notificadas tiveram oportunidade para analisar a situação e providenciar pela solução do problema do executado. Mesmo que tal não tenha ocorrido, a execução de entrega de imóvel não se suspende, uma vez que a lei não o afirma, ao contrário do caso previsto no nº3 do artigo 863º, sendo que o legislador terá ponderado que não seria justo onerar o exequente com a inércia ou a incapacidade dos organismos oficiais, cometendo-lhe uma tutela de facto que legalmente não lhe caberia coma inerente e injustificada compressão dos seus direitos (RG 21-03-2019, 153/15, RG 29/11-2018, 2098/08 e RL 22-1-15, 161/06).”
No caso, como resulta dos factos relevantes, o próprio insolvente tomou a iniciativa de requerer a atribuição de habitação social após a dedução do incidente (em julho de 2022), pelo que, confirmada que seja a decisão recorrida, o tribunal só terá que ordenar o cumprimento desta notificação previamente à entrega efetiva para se assegurar se se mantêm as dificuldades de realojamento, estando o escopo da norma assegurado.
A interpretação seguida pela jurisprudência, e que aqui se acolhe, não viola a proteção constitucional do direito à habitação, previsto no art. 65º da CRP essencialmente por duas ordens de razões.
Nos termos do nº1 art. 65º da CRP «Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.»
Dos nºs 2, 3 e 4 do preceito resulta que é incumbência do Estado assegurar o direito à habitação.
“No entanto, também não podemos esquecer que o dever de assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado e não de particulares (cf. nºs 2, 3 e 4 do mesmo preceito constitucional).” Ac. TRP de 07/11/19 (Carlos Portela - 6784/17).
Como se escreveu no Ac. TRE de 11/07/2019 (Maria Domingas – 25/16) assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado, não de particulares (cf. n.ºs 2, 3 e 4 do preceito), pelo que se afigura conforme à lei fundamental a opção legislativa no sentido de limitar a tutela legal ao arrendatário e insolvente e desde que verificados determinados pressupostos condicionantes.” Ver também, da mesma relatora o Ac. TRC de 17/01/2017, nº 59/14.
Não sendo incumbência dos particulares – designadamente o exequente, ou, em insolvência, os credores ou o comprador – assegurar o direito à habitação do executado/insolvente, são eles que suportam os prejuízos advenientes da tutela efetivamente concedida, seja a sustação de entrega, seja o diferimento de desocupação, que claramente protegem este direito fundamental.
Daí que, e sendo também a propriedade privada um direito fundamental, o equilíbrio entre estes dois direitos se ache na consagração da solução legal do nº6 do art. 861º do CPC. Os que suportam o prejuízo pelo diferimento da desocupação concedido – no caso dos insolventes, que beneficiam das duas tutelas – não têm que suportar também os custos inerentes ao prolongar desse diferimento até à concretização, pelo Estado, da plenitude do direito.
“É certo que o direito à habitação vem previsto no art.º 65.º da CRP, tal como alega o Recorrente, mas o direito à propriedade privada também tem consagração constitucional no art.º 62.º da CRP e só pode ser limitado nos casos previstos na lei. Não compete aos privados mas sim ao Estado diligenciar para a concretização do direito à habitação de cada um, daí precisamente a previsão do art.º 861.º n.º 6 do C.P.C. aplicável ao caso, que determina que o agente de execução comunique antecipadamente às entidades assistenciais competentes e à câmara municipal a situação do executado que tenha sérias dificuldades de realojamento. Ac. TRP de 18/12/2018 (Inês Moura).”
No mesmo e exato sentido, e numa linha jurisprudencial que se afigura unânime, podemos ainda citar os Acs. TRL de 16/05/2023 (Isabel Fonseca – 701/14), TRG de 28/05/2020 (Margarida Fernandes - 6686/17), TRG de 06/06/2019 (António José Barroca Penha – 5608/17), de 01/03/2018 (Eugénia Cunha - 26/15), de 21/03/2019 (Maria João Matos - 153/15), de 08/02/2018 (José Cravo – 164/13) e de 29/11/2018 (José Alberto Moreira Dias - 2098/08), bem como o Ac. TRP de 11/09/2017 (Manuel Domingos Fernandes - 3481/10).
A decisão recorrida não viola, assim, seja no seu conteúdo positivo, seja por omissão, os arts. 65º da CRP e nº6 do art. 861º do CPC, aplicável nos termos do nº5 do art. 150º do CIRE.
Improcede, assim, integramente, a apelação.
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As custas devidas na presente instância recursiva devem ser suportadas pelo insolvente, porque vencido – cfr. arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6 e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC – sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
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6.–Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em, julgando improcedente a apelação, manter a decisão recorrida.
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Custas pelo insolvente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Notifique.
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Lisboa, 16 de janeiro de 2024



Fátima Reis Silva
Manuel Marques
Isabel Fonseca



[1]Tendo o recurso sido remetido a este Tribunal da Relação em 03/11/2023, conforme refª 158664583.
[2]Cfr. Abrantes Geraldes em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pg. 242 e, entre muitos outros o Ac. STJ de 29/03/2022 relatado por Isaías Pádua (1104/19), disponível em www.dgsi.pt.
[3]Cfr. Lebre de Freitas em Apreensão, separação, restituição e venda, em I Congresso de Direito da Insolvência, coord. Catarina Serra, Almedina, 2013, pgs. 229 e 230, Maria do Rosário, Epifânio em Manual de Direito da Insolvência, 8ª edição, Almedina, 2019, pg. 19, Catarina Serra em A falência no quadro jurisdicional dos direitos de crédito – o problema da natureza jurídica do processo de liquidação aplicável à insolvência no direito português, Coimbra Editora, 2009, pg. 72, Gisela César em Os efeitos da insolvência sobre o contrato-promessa em curso, 2ª edição, Almedina, 2017, pg. 38, entre outros.
[4]Todos disponíveis, como os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt.
[5]E apenas destas, não relevando o agravamento de outras condições também indicadas, como problemas legais.
[6]E o segundo foi junto após o tribunal alertar, precisamente, para a falta de indicação de prazo no primeiro.
[7]No sentido de que o juiz não está vinculado ao prazo indicado no atestado médico, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa em Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2020, pg. 297.
[8]Ac. TRL de 27/04/2021 (929/13).
[9]Neste sentido o Ac. TRL de 22/01/2015 (Maria de Deus Correia – 161/06).
[10]CPC Anotado, II Vol., …, pg. 294