HABEAS CORPUS
PENA DE PRISÃO
CUMPRIMENTO DE PENA
PRISÃO ILEGAL
REJEIÇÃO
Sumário


I. Encontrando-se o requerente em cumprimento de uma pena de prisão transitada em julgado e cujo termo está longe de ser atingido, inexiste prisão ilegal.
II. Na legalidade da prisão não interfere a circunstância de ter ocorrido uma indevida libertação prematura do arguido, na sequência da emissão de mandados de libertação em detrimento da emissão dos mandados de desligamento que em concreto se justificavam.
III. Anomalias e demais vicissitudes processuais que extravasam o círculo da legalidade da prisão nos estritos termos delineados no art. 222.º, n.º 2, do CPP, não podem constituir fundamento de habeas corpus.

Texto Integral

1. Relatório

1.1. No processo n.º 21/13.3GFELV-A, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, Juízo Central Cível e Criminal de ... - Juiz 3, o arguido AA veio apresentar pedido de habeas corpus, subscrito pelo seu mandatário, ao abrigo do disposto no art. 222.º, n.º 2, do CPP, com os fundamentos seguintes:

“O recluso Requerente encontra-se preso, desde 14 de Dezembro de 2023, (segunda reclusão mas sem se saber da razão para tal), detido e conduzido ao Estabelecimento Prisional de ... desde essa data, por via de Mandado de Detenção emitido a 13 de Dezembro de 2023.

Ali, no referido Estabelecimento Prisional de ..., Psicóloga, Educadora, Chefe de Guardas e Direcção, dado que o recluso, a saber, já cumpriu a totalidade da pena em que foi condenado, encontram-se na absoluta ignorância relativamente a esta referida segunda reclusão que, segundo parece, terá consubstanciado um erro judicial grosseiro.

No caso vertente, e perante Mandado Judicial de libertação, datado de 1 de Setembro de 2023, o Estabelecimento Prisional de ..., onde o Requerente cumpria a primeira pena de prisão, mandou, conforme tal Mandado, libertar de imediato o Requerente, então recluso inicialmente.

O recluso viu-se privado da liberdade, de que então já gozava, salvo elevado respeito, de uma forma inadmissível e inesperada, dado que, não se lhe pode imputar culpa relativamente a erros judiciais, dos tribunais, a quo, a ser assim, e com o devido respeito, reitera-se, mesmo que se tenham equivocado e mandado libertar o Requerente erroneamente, o que parece não ser o caso, não obstante, dado que, a saber, cumpriu integralmente a sua pena de prisão.

De facto, no dia 14 de Dezembro, foi, o Requerente, «interceptado», na via pública (concretamente no interior do jardim municipal de ..., fazendo-se acompanhar da sua companheira), perante inúmeras pessoas, pela GNR, algemado imediatamente, sem que lhe fosse apresentada qualquer justificação, a não ser posteriormente o referido mandado, pelos senhores agentes do OPC, e conduzido ao Estabelecimento Prisional de ....

Certo é que, a GNR, apesar de desconhecer da razão pela qual mantinha ordem para deter o Requerente, se limitou a cumprir o Mandado Judicial remetido pelo Tribunal.

De referir que o Requerente detinha morada e residência do conhecimento do Tribunal, se encontrava bem localizado, na pacata vila de ..., não se vislumbrando da razão da sua detenção na via pública nos termos em que foi levada a cabo.

Ou seja, o Requerente foi reposto à liberdade, pelo Estabelecimento Prisional ..., a 1 de Setembro de 2023 e, sem sequer saber da razão e nada o fizesse prever, detido e conduzido ao Estabelecimento Prisional de ..., por via de um possível erro judicial, segundo lhe diriam posteriormente, mas ignorando, ainda hoje, que espécie de erro, por via de que erro, por quanto mais tempo, e surpreendentemente, privado da liberdade de que já beneficiava.

Não cometeu qualquer crime após a sua libertação.

Não foi presente a um Juiz de Instrução Criminal, para que lhe fosse explicitada a razão da sua detenção, nem constituído novamente arguido ou sujeito a novo Termo de Identidade e Residência, como deveria, salvo melhor entendimento, ter sucedido.

Foram violados os Princípios da Segurança e Certeza Jurídicas relativamente à sua pessoa, ou mesmo o Princípio da Legalidade, entre outros, que V. Exas. melhor enquadrarão.

Como decorre do Artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, da CRP, o próprio interessado ou qualquer cidadão, no gozo dos seus direitos políticos, pode requerer, perante o Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus, em virtude de prisão ou de detenção ilegais. É, humildemente, segundo se crê, o caso.

Estava, o Requerente, a iniciar a sua reintegração na sociedade, a procurar emprego e a constituir família aquando da factualidade expressa. Mas, tudo foi gorado de uma forma errática e grosseiramente errada.

Não pode, salvo elevadíssimo respeito, um cidadão, fora de flagrante delito, libertado mediante emissão de Mandado de Libertação, porquanto a sua «dívida» perante a justiça e a sociedade, se encontra paga, e sem existência de cometimento de qualquer crime outro crime, após a sua libertação, ser uma outras vez preso.

Na verdade, entende o Requerente, modestamente, tratar-se de um quase bis in idem.

Existiu um erro judicial? A ter existido, será grosseiro e inadmissível. E, salvo melhor entendimento, o «remédio» nunca poderia consubstanciar-se no cumprimento de uma nova prisão.

Liberta-se um cidadão e, constatando-se que tal não deveria ter acontecido, por erro, emitem-se mandados de detenção para corrigir tal erro grosseiro sem sequer se providenciar pela apresentação do Recorrente a um Meritíssimo Juiz de Instrução.

Não existiu um despacho, apresentado (ou não), que se saiba, ao Requerente, respeitando o Princípio da Fundamentação das decisões judiciais, deixando o Requerente na absoluta obscuridade e, reposto anteriormente à liberdade, mediante Mandado Judicial, novamente preso, sem ter cometido qualquer crime como aludido.

O n.º 2 do Artigo 222.º do CPP, no desenvolvimento das normas constitucionais, refere que, sendo a prisão ilegal, a petição pode ser formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, especificando as alíneas a), b) e c) as situações de prisão ilegal que podem constituir fundamento da providência de habeas corpus.

O recluso vive na «obscuridade» factual e jurídica, detido e conduzido ao Estabelecimento Prisional de ..., inesperadamente, sem motivo aparente, em vias de lograr uma vida organizada, uma reintegração e ressocializada, levando, designadamente em conta, a sua idade (trata-se de um jovem com pouco mais de 30 anos de idade).

Tudo com base num Mandado de libertação que ora parece ter sido erróneo e errático, com todo o respeito.

Tem sido entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que o habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, que não um recurso, (como é o caso), mas sim um remédio excecional que não pode ser utilizado para impugnar irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o recurso como sede própria para a sua reapreciação, o que não acontece no caso vertente.

Um recurso para o douto Tribunal da Relação de Évora revelar-se-ia inadequado, porquanto poderia resultar inútil, dado que o Requerente nem sabe qual o período em que permanecerá em reclusão.

Evidencia-se uma violação direta, patente, ostensiva e grosseira dos pressupostos e das condições de aplicação da medida de prisão efectiva do Requerente, razão pela qual não deve ser indeferido o pedido de habeas corpus, por manifesta falta de fundamento legal e erro judicial grosseiro.

A liberdade permite que sejamos «nós próprios». Ela consiste no desenvolvimento pleno de todas as faculdades e poderes de cada ser humano. É eminentemente social, porque só pode ser concretizada em sociedade, mas nunca em isolamento.

O Habeas Corpus, é reservado, para os casos indiscutíveis de ilegalidade actual, manifesta, grosseira e inequívoca, e diretamente verificável a partir dos documentos e informações juntos aos autos e das averiguações realizadas ao abrigo do artigo 223º, nº 4, al. b), do CPP.

A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso das decisões tomadas numa tramitação processual em que foi determinada a prisão do requerente ou um sucedâneo dos recursos admissíveis.

É, pois, da legalidade da prisão actual, da que se mantém no momento da apreciação do pedido, que se ocupa o habeas corpus e não de qualquer outra medida limitativa da liberdade da mesma pessoa que tenha eventual e anteriormente tido lugar, entende o Requerente modestamente.

Nesta sequência, o CPP conformou o habeas corpus em virtude de prisão ilegal, ut artigos 222º, 223º e 224º do diploma, em providência simples e expedita, com fundamentos taxativos, dirigida diretamente ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e a ser conhecida em julgamento pela secção criminal do mesmo douto Tribunal (Artigo 11º, nº 4, al. c), do CPP).

Passou a ser, desde há muito, a mais sólida garantia da liberdade individual, privando os regimes despóticos de uma das suas armas mais terríveis. Com ela se visa suprimir as prisões e as detenções arbitrárias.

O Requerente entende o Habeas Corpus, humildemente, como uma ordem de apresentação pessoal, em que o Juiz vai requerer a presença do «corpo da pessoa» através de uma ordem escrita, de uma «writ», ou seja, feita corpo presente, por via da arbitrariedade que lhe subjaz.

Face a tudo o exposto, e sem mais delongas, por desnecessárias, dada a sapiência do douto tribunal, que se leva em conta no presente desiderato, não detendo mais informação, o Requerente, sendo que não lhe foi fornecida,

APENAS REQUER,

Seja reposto à liberdade por existir notório constrangimento ilegal em função de um erro grosseiro, que o privou da liberdade ilegal e inesperadamente, e por via da nulidade da decisão que ordenou a segunda detenção e prisão subsequente do Requerente.”

1.2. A informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1 do CPP foi a seguinte:

“I. REQUERIMENTO DE HABEAS CORPUS DE 27.12.2023 (REF. CITIUS N.º .....91):

AA («AA» ou «ARGUIDO»), ao abrigo do disposto nos arts. 31.º da Constituição («CRP») e dos arts. 222.º e 223.º, ambos do Código de Processo Penal («CPP»), veio requerer PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS, para tanto alegando e em síntese, que se encontra detido, no Estabelecimento Prisional de ..., desde 14.12.2023, por força de mandado emitido no dia 13.12.2023, sendo que refere já ter cumprido a totalidade da pena em que foi condenado, neste processo, porquanto foi libertado no dia 01.09.2023, do Estabelecimento Prisional .... A ser assim, este novo aprisionamento consubstanciará erro judicial grosseiro.

O Ministério Público («MP»), por Promoção datada do dia de hoje (ref. Citius n.º ......76), advoga pela falta de fundamento do pedido, porquanto a prisão determinada à ordem dos presentes autos é legal, dado que a mesma destina-se ao cumprimento do remanescente da pena de 12 anos e 6 meses de prisão, a que acrescem 133 dias de prisão subsidiária, em que AA foi condenado por Acórdão transitado em julgado, neste processo.

Nos termos do disposto no art. 31.º da CRP há lugar a pedido de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o tribunal judicial ou militar, consoante os casos e a apresentar pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

Refere o art. 222.º do CPP que «A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus».

Nas palavras do Conselheiro EDUARDO MAIA COSTA, poder-se-á definir a providência de habeas corpus «(…) não [como] um recurso de uma decisão processual (…)», mas antes como «(…) uma providência extraordinária e expedita, que se destina exclusivamente a salvaguardar o direito à liberdade, não visando, pois a reapreciação da decisão que decretou a prisão» .

A petição é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual o requerente se mantenha preso e deve fundamentar-se em ilegalidade da prisão por um dos seguintes motivos:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou decisão judicial;

Assenta o Requerente a sua pretensão na alínea c) atrás citada, por entender que se encontra integralmente cumprida a pena em foi condenado nos presentes autos.

Ora:

Como resulta da certidão datada de 31.01.2023 (constante do Apenso 1 e com a ref. Citius n.º ......79), o Arguido foi condenado, por Acórdão de 20.04.2016 (e transitado em julgado no dia 20.05.2016), proferido nos autos principais, como autor material de um crime de furto qualificado, previsto e punido («p. e p.») pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2 al. e), ambos do Código Penal («CP»), na pena de 2 anos e 8 meses de prisão efetiva.

Sucede que, em 24.11.2016, foi proferido Acórdão Cumulatório (transitado em julgado no dia 23.01.2017), também nestes autos, mormente no Apenso de Cúmulo Jurídico, por força do qual procedeu-se ao cúmulo jurídico da pena aplicada neste processo com as penas aplicadas nos Processos Comuns n.os 31/13.0..., 99/12.7..., 93/13.0..., 119/11.2..., 308/12.2..., 10/13.8..., 78/13.7..., 152/12.7..., 124/13.4..., 239/11.3... e 101/13.5..., pelo que foi AA condenado na pena única de 12 anos e 6 meses de prisão, a que acrescem 133 dias de prisão subsidiária.

Como resulta da já mencionada certidão (que espelha a tramitação destes autos), em 07.03.2017 (ref. Citus n.º ......89), procedeu-se a uma primeira liquidação da pena, a qual foi homologada por despacho de 08.03.2017 (ref. Citius n.º ......09), sendo que de tal liquidação resulta, entre o mais e para o que aqui releva, que:

- o meio da pena de prisão será atingido em 29 de janeiro de 2020;

--os dois terços da pena serão atingidos em 28 de fevereiro de 2022;

--os cinco sextos da pena serão atingidos em 30 de março de 2024;

--o termo da pena ocorrerá em 30 de abril de 2026.

Na sequência da informação oriunda do processo n.º 428/13.6... (a correr termos no Tribunal de Execução das Penas - «TEP» - de Lisboa – Juiz 2), em 31.05.2019 (cfr. comunicação de decisão com data Citius de 09.07.2019 e ref. n.º .....85), AA estava sujeito ao cumprimento, em sucessão, das seguintes penas:

a) 12 anos e 6 meses de prisão, [pena única] à ordem dos Autos de Cúmulo Jurídico n.º 21/13.3GFELV, com termo inicial reportado a 21.06.2013.

Beneficia de 3 dias de desconto.

b) 133 dias de prisão subsidiária, à ordem do processo n.º 185/11.0..., que cumpriu de 25.02.2016 até 06.07.2016.

Beneficiou de 1 dia de desconto.

c) 1 ano de prisão, à ordem do processo n.º 189/11.3...

d) 6 meses de prisão, à ordem do processo n.º 185/10.8...

e) 5 meses de prisão, à ordem do processo n.º 3956/17.0...

Mais se refere que o Arguido se encontra recluído ininterruptamente, desde 21.06.2013, beneficiando de 4 dias de desconto, pelo que, para efeitos da concessão de liberdade condicional indicaram-se as datas seguintes:

- i. Termo das penas: 29.03.2028. [Somatório das penas a) a e)];

- ii. 1/2 das penas: 30.06.2021. [Metade das penas a) e c) + Totalidade das penas b), d) e e)];

- iii. 2/3 das penas: 27.09.2023. [Dois Terços das penas a) e c) + Totalidade das penas b),d),e)];

- iv. 5/6 das penas: 12.10.2025. [Cinco Sextos das penas a) a e)].

Posteriormente, em 21.04.2023 (ref. Citius n.º ......77), é remetido novo expediente por parte do processo n.º 428/13.6...-A, do qual resulta que foi emitido mandado de desligamento / ligamento, por via do qual se solicitava que AA fosse desligado, em 29.03.2023, do processo n.º 268/19.9... (à ordem do qual se encontrava a cumprir pena) para ser ligado, a partir dessa data, a este processo n.º , para continuação do cumprimento da pena única de 12 anos e 6 meses de prisão em que foi condenado.

Nessa sequência, de acordo com o novo expediente datado de 10.05.2023 (ref. Citius n.º .....15) oriundo do mesmo processo do TEP de Lisboa, foi efetuada e homologada nova liquidação de pena da qual resultava que (em relação à pena aplicada nestes autos) que:

- o meio da pena já havia sido atingido;

- os 2/3 da pena seriam atingidos em 28.04.2025;

- os 5/6 da pena alcançar-se-iam em 30.05.2027;

- o termo da pena ocorreria em 30.06.2029.

Ora, em 02.09.2023 (ref. Citius n.º .....46) é recebido e-mail, nestes autos, informando que deu entrada, no Estabelecimento Prisional ..., onde o Arguido se encontrava a cumprir pena, mandado de libertação imediata de AA, tendo sido questionado se interessava a prisão deste à ordem do processo.

Após a efetivação das diligências necessárias para apurar de tal pertinência, em 05.12.2023 (ref. Citius n.º .....69), foi recebido novo expediente, oriundo, uma vez mais, do processo n.º 428/13.6...A, do TEP de Lisboa, no qual se dá nota que AA foi desligado, do processo n.º 21/13.3GFELV, em 29.01.2020, tendo sido religado, a este processo, em 29.03.2023. Posteriormente, foi desligado, do processo n.º 21/13.3GFELV, em 07.06.2023, tendo sido libertado, em 01.09.2023, por mandado emitido no âmbito do processo n.º 189/11.3... Mais se lê no expediente remetido que AA ainda tem por cumprir, ainda, à ordem do processo n.º 21/13.3GFELV, um remanescente de 6 anos de pena de prisão, pelo que se remete, para estes autos, uma eventual emissão de mandados de captura para cumprimento do remanescente de pena.

Ora, nessa sequência, como resulta da Promoção de 11.12.2023 (ref. Citius n.º ......09) e do despacho do dia subsequente (ref. Citius n.º ......94), foi determinada a emissão de tais mandados, tendo os mesmos sido emitidos em 12.12.2023, tendo tal emissão resultado na detenção de AA, em 14.12.2023.

No caso vertente, cabe ainda referir, como resulta do excurso produzido aquando da Promoção de 11.09.2023 (ref. Citius n.º ......85) e do despacho do dia subsequente (ref. Citius n.º 32826620), que, pese embora o Arguido não contasse com 30 anos à data da prática dos factos pelos quais foi condenado, o certo é que a pena aplicada tem limite superior a 8 anos, pelo que não poderá beneficiar do perdão e amnistia a que se reportam a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

Destarte e face ao iter que se desenvolveu, crê-se que a emissão dos mandados de detenção à ordem dos presentes autos, que determinaram a captura e aprisionamento de AA, desde 14.12.2023, no Estabelecimento Prisional de ..., não enfermam de qualquer ilegalidade ou de erro judicial grosseiro, porquanto encontram-se amparados pelo Acórdão Cumulatório prolatado nestes autos (e pacificamente transitado em julgado) e na liquidação de pena de 10.05.2023 efetuada no âmbito do processo do TEP de Lisboa, à espera, no entanto, de nova liquidação de pena, que tenha em atenção os dias que AA esteve a cumprir pena à ordem do processo n.º 189/11.3... (entre 07.06.2023 e 01.09.2023), sendo que tal liquidação não infirmará, certamente, a decisão proferida nestes autos, porquanto subsistem por cumprir cerca de 6 anos da pena única em que aqui foi condenado.

Face ao supra exposto, entende-se ser de manter a reclusão para cumprimento da pena única em que foi condenado, à ordem destes autos, nos seus exatos termos e, por isso mesmo, não se ordena, nesta instância a imediata libertação do Arguido AA.”

1.3. A presente certidão integra ainda os seguintes elementos:

- Certidões com nota de trânsito em julgado do acórdão de 20.04.2016, proferido nos autos, e do acórdão cumulatório de 24.11.2016, constante do Apenso do Cúmulo Jurídico;

- Informações constantes do Apenso do Cúmulo oriundas do TEP de Lisboa e datadas de 09.07.2019 (ref. n.º .....85); 21.04.2023 (ref. Citius n.º ......77); 10.05.2023 (ref. Citius n.º .....15); 05.12.2023 (ref. Citius n.º .....69);

- E-mail de 02.09.2023 com a ref. Citius n.º .....46

- Despachos e Promoções do Apenso de Cúmulo: Promoção de 11.09.2023 (ref. Citius n.º ......85) e do despacho do 12.09.2023 (ref. Citius n.º ......20); Promoção de 11.12.2023 (ref. Citius n.º ......09) e despacho 12.12.2023 (ref. Citius n.º ......94); Mandados de detenção emitidos no Apenso de Cúmulo e Expediente de 14.12.2023 constante do Apenso de Cúmulo (refs. Citius n.os .....99 e .....02).

1.4. Notificados o Ministério Público e o defensor do arguido, realizou-se a audiência na forma legal, tendo-se reunido para deliberação.

2. Fundamentação

2.1. O habeas corpus é uma providência com assento constitucional, destinada a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal, podendo ser requerida pelo próprio detido ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente (art. 31º da CRP).

A petição tem os fundamentos previstos taxativamente no art. 222.º, n.º 2. do CPP, que consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. O “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus” (Cláudia Cruz Santos, “Prisão preventiva – habeas corpus – recurso ordinário”, in RPCC, ano 10, n.º 2, 2000, pp. 303-312, p. 310).

Os autores convergem no sentido de que “a ilegalidade que estará na base da prevaricação legitimante de habeas corpus tem de ser manifesta, ou seja, textual, decorrente da decisão proferida. Pela própria natureza da providência, que não é nem pode ser confundida com o recurso, tem de estar em causa, por assim dizer, uma ilegalidade evidente e actual. (…) O habeas corpus nunca foi nem é um recurso; não actua sobre qualquer decisão; actua para fazer cessar «estados de ilegalidade»” (José Damião da Cunha, “Habeas corpus (e direito de petição «judicial»): uma «burla legal» ou uma «invenção Jurídica»?”, in Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva (coord. José lobo Moutinho et al.), vol. 2, lisboa: uce, 2020, pp. 1361-1378, pp 1369 e 1370).

E constitui também jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça a excepcionalidade da providência e a sua distanciação da figura dos recursos. O habeas corpus não é um recurso e não se destina a decidir questões que encontram no recurso o seu modo normal de suscitação e de decisão. Em obediência aos ditames constitucionais, a lei ordinária desenhou-o como meio processual de reação expedita contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, e não como meio processual para reexame ou avaliação de pressupostos de facto e de direito que em concreto determinaram a aplicação de uma medida de privação da liberdade ou de uma pena de prisão.

Assim tem decidido sem divergência o Supremo Tribunal de Justiça, repete-se, como se constata por exemplo no acórdão de 16-03-2015 (Rel. Santos Cabral) – “II - A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis. III - Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP. IV - Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida.” (itálico nosso)

2.2. Preceitua, então, o art. 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”, que o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa (n.º 1).

Por força do n.º 2 da mesma norma jurídica, a ilegalidade da prisão deve (ou tem de) provir de uma das seguintes circunstâncias:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite;

c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

2.3. No presente caso, o requerente invoca o n.º 2 do art. 222.º, sem especificar nenhuma alínea. Mas ressalta à evidência que não é sequer enunciada qualquer circunstância susceptível de configurar as hipóteses previstas nas alíneas a) e b).

Relativamente ao requisito da alínea c), tem-se entendido que ele ocorre com a ultrapassagem de prazos legais ou judiciais, como sejam a manutenção da prisão preventiva para lá dos prazos fixados no art. 215.º CPP, ou a manutenção da prisão para lá do termo da pena ou dos tempos de ponderação legal obrigatória da liberdade condicional.

Neste quadro legal, o Supremo Tribunal de Justiça considera desde há muito e de forma pacífica que a providência de habeas corpus tem uma natureza excepcional destinando-se a assegurar o direito à liberdade. Não é um recurso, e sim um remédio único a ser usado quando falham as demais garantias do direito de liberdade, não podendo ser utilizado para impugnar deficiências ou irregularidades processuais que tenham no recurso a sua sede própria de apreciação.

E sendo um remédio único só é adequado usá-lo para ultrapassar as tais situações de prisão decretada a coberto de ilegalidade grosseira. O que não é manifestamente o caso, na situação apresentada.

De acordo com todos os elementos que instruem a presente certidão, o arguido encontra-se em cumprimento de pena de prisão à ordem do processo n.º 21/13.3GFELV, tendo por cumprir um remanescente de 6 anos de prisão. Foram por isso emitidos mandados judiciais de detenção em 12.12.2023, e o arguido foi detido em 14.12.2023.

Como se refere na promoção do Ministério Público que também integra a presente certidão, e como a senhora juíza narra depois, detalhadamente, na informação, com a entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, foi no âmbito do processo 189/11.3..., no dia 01-09-2023, emitido mandado de libertação do arguido, sem que tenha sido operado o ligamento aos presentes autos, para cumprimento do remanescente da pena aplicada em cúmulo jurídico.

Tal colocação (indevida) em liberdade, pelo Estabelecimento Prisional ..., foi detectada no dia 05-12-2023, no âmbito do processo n.º 428/13.6...-A do TEP de Lisboa. Nessa sequência, e comunicado tal facto aos autos, foi pelo Ministério Público promovida, no dia 11-12-2023, a emissão de mandados de detenção do condenado para efeitos de cumprimento do remanescente da pena nos presentes autos, promoção deferida por despacho de 12-12-2023, e mandado cumprido pelo OPC no dia 14-12-2023.

Mais se refere que foi, entretanto, dado início ao procedimento tendo em vista a reformulação da liquidação da pena, com cumprimento do disposto no artigo 80.º do CP (promoção de 18-12-2023 e despacho de 21-12-2023). E que a prisão do condenado à ordem dos autos é legal, porquanto se destina ao cumprimento do remanescente da pena de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de prisão, a que acrescem 133 dias de prisão subsidiária, a que foi condenado por acórdão de cúmulo jurídico, transitado em julgado. Todas estas referências se encontram suportadas nos elementos que instruem a presente certidão.

Peticiona o requerente que “seja reposto à liberdade por existir notório constrangimento ilegal em função de um erro grosseiro, que o privou da liberdade ilegal e inesperadamente”. Mas, como resulta de todos os elementos que instruem a certidão, e que o arguido, em concreto e no seu núcleo essencial, nem contraria, inexiste ilegalidade na privação de liberdade.

O requerente encontra-se privado da liberdade porque está em cumprimento de pena de prisão há muito transitada em julgado. Daí que não faça igualmente sentido a referência a uma ausência de apresentação a um juiz de instrução, pois a privação de liberdade respeita a cumprimento de pena de prisão, e não a medida de coacção.

No cumprimento da pena de prisão em causa, o arguido está longe de atingir o termo ou qualquer momento anterior, de libertação legal obrigatória. E é apenas desta (i)legalidade da prisão que cumpriria conhecer no âmbito da presente providência, nada mais podendo constituir aqui objecto de sindicância.

Não o poderia constituir, seguramente, uma situação oposta à prevista na lei. Como seja, a da alegada libertação prematura do arguido, indevidamente antecipada na sequência da emissão de mandados de libertação em detrimento da emissão dos mandados de desligamento que em concreto se justificariam. Mas de nada disto compete conhecer, sob pena de o Supremo extravasar os seus poderes de cognição em providência de habeas corpus.

Eventuais vicissitudes (ou mesmo ilegalidades) processuais que extravasam o círculo da legalidade da prisão nos estritos termos legalmente delineados no art. 222.º, n.º 2, do CPP, e já expostos inicialmente, não podem constituir fundamento de habeas corpus.

Assim, encontrando-se certificado no processo o trânsito em julgado da condenação do requerente, em conformidade com os restantes elementos enunciados e que permitem confirmar tal asserção, bem como as demais expostas na informação judicial, só pode concluir-se que o requerente se encontra legalmente em cumprimento de pena e que, consequentemente, inexiste uma situação de ilegalidade de prisão.


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3. Decisão

Pelo exposto, delibera-se neste Supremo Tribunal de Justiça indeferir o pedido de habeas corpus por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, do CPP).

Custas pelo requerente, com 4 UC de taxa de justiça.

Lisboa, 10.01.2024

Ana Barata Brito (relatora)

Ernesto Vaz Pereira (adjunto)

Teresa Féria de Almeida (adjunta)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)