IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DE CONCLUIR
RECURSO DE REVISTA
OBJETO DO RECURSO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRESSUPOSTOS
DIREITO AO RECURSO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário


I- O artigo 640.º, 1, al. b) do CPC não impõe que o recorrente relacione um por um os factos com os meios de prova discriminados também isoladamente por cada um deles.

II- É de conhecer a impugnação do julgamento de facto sem estas características se os recorrentes expõem a sua pretensão com delimitação clara do objecto do recurso, permitindo que a recorrida exerça o contraditório de uma forma esclarecida e que o juiz tenha a possibilidade de fazer actuar os seus poderes de cognição desse recurso.

Texto Integral



Processo n.º 653/22.9T8PTM.E1.S1


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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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AA, BB, CC e DD instauraram ação declarativa, com processo comum, contra EE pedindo:


A) A condenação da Ré a reconhecer que os Autores são os únicos e universais herdeiros de FF;


B) Seja declarada a anulação do testamento lavrado de fls. cinquenta e sete verso a folhas cinquenta e oito do Livro de Notas para Testamentos Públicos número quinze do Cartório Notarial de GG, em ..., por o testador se encontrar em estado de incapacidade acidental aquando da sua outorga;


C) Subsidiariamente, seja declarada nula a deixa testamentária a favor da Ré por a mesma não versar sobre bens ou direitos determinados ou determináveis por interpretação e integração da vontade do testador, tudo com as legais consequências.


Alegaram que autora é a viúva e os restantes autores são filhos de FF, falecido em ...-03-2021. O de cujus deixou testamento lavrado em Cartório Notarial no dia 18-03-2022, constando do mesmo que «lega a quota disponível dos seus bens a EE.».


Porém, na data da outorga do testamento encontrava-se doente, sofrendo de várias patologias e sob o efeito de medicação que lhe afectava o estado de consciência e a capacidade de decisão ou de vontade, pelo que é de presumir que se encontrava impossibilitado de expressar e entender o sentido e o alcance do que declarou, o que determina a anulação do testamento. Subsidiariamente, alegam que a deixa testamentária é nula por instituir um legado de uma quota-alíquota e não de bens concretos.


A Ré alega, em contestação, que o falecido, apesar das doenças e medicação que tomava, não padecia de demência ou incapacidade cognitiva, bem sabendo o que queria, tendo expressado essa vontade no testamento de forma livre e consciente.


Após o julgamento foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo a Ré de todos os pedidos.


Inconformados, os autores apelaram, tendo concluído a respectiva minuta da seguinte forma:


«1. Os recorrentes consideram que o tribunal não fez a melhor aplicação da norma do artigo 607º do CPC face à prova produzida nos presentes autos.

(…)

15. Em terceiro lugar, os recorrentes consideram terem sido produzidas provas que no seu conjunto alteram ou infirmam a matéria de facto constante do ponto 12 e permitem concluir pela prova das alíneas b), c) d), f), h), e i) da matéria tida por não provada.

16. A importância desta prova para a decisão da causa assenta na afirmação em sede de sentença que a única hipótese do discernimento de FF se encontrar afetado no momento da realização do testamento teria de decorrer do consumo em excesso de benzodiazepinas.

17. As provas em causa resultam quer do registo clínico quer das declarações de parte/depoimento de parte da ré quer dos depoimentos das testemunhas HH, médico que assistiu FF e II, médica que reviu o processo clínico após o falecimento deste.

18. O registo clínico relativo a FF faz prova plena que os aí intervenientes nele registaram os factos que dele constam, pelo que o que o médico assistente/testemunha HH mencionou no registo acerca da medicação habitual de FF deve ser considerado provado, porquanto se trata de um documento particular que faz prova plena do que nele se encontra escrito.

19. Pois não foi alegada a respectiva falsidade, vindo o seu conteúdo a ser aceite pela ré em sede de audiência de discussão e julgamento.

20. Em sede de declarações de parte/depoimento de parte a ré confirmou que lhe foi solicitada a entrega no hospital dessa medicação o que ela fez através do Serviço de Urgência – cf. suporte digital ............45 do minuto 00:29:58 (declarações de parte) ao minuto 00:31:56 e suporte digital ............31 do minuto 00:11:28 a 00:12:02 (depoimento testemunha HH).

21. A inserção daquela informação por parte do médico assistente no registo clínico do doente não pode ser classificada como uma mera indicação, como também o não será a identificação da ré como cuidadora, a anotação do seu primeiro nome (EE) e até o seu telemóvel de contacto, o que mostra a existência de contacto e de comunicação entre aquele e esta.

22. E também não pode ser classificada como uma mera indicação, porquanto os dados clínicos constantes daquele registo e para os quais a ré em nada contribuiu mostram precisamente o contrário do decidido.

23. Na esteira do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/04/2020 proferido no Processo 1765/12.2TVLSB.L1-1 o registo clínico é “(…) a prova essencial do ocorrido num episódio de urgência num hospital (…), vislumbrando-se muito pouca probabilidade de sucesso na demonstração de factos que não constem de tais registos ou sejam contrários ao seu conteúdo.”

24. De uma leitura atenta do registo clínico podemos concluir que a FF foi diagnosticada uma insuficiência respiratória, respiração lenta, quando da entrada no serviço de urgência.

25. O primeiro médico de clínica geral que o atendeu medicou-o e solicitou exames complementares, no caso, análises clínicas, raio x torácico e, eletrocardiograma.

26. Tudo aconteceu por volta das 21:00, mas pelas 22:56 o clínico optou por transferir a responsabilidade pelo tratamento do doente para um médico diferenciado, de medicina interna, no caso, HH.

27. Perante os dados constantes do registo clínico e as informações dadas pela ré este médico colocou várias hipóteses de diagnóstico, sendo que em duas delas figurava a suspeita da presença no organismo de FF de excesso de benzodiazepinas – cf. suporte digital 20230124160031do minuto 00:12:15 ao minuto 00:32:07.

28. Por causa dessas informações, a sua única opção terapêutica foi fazer o designado “washout” de benzodiazepinas através da administração a FF de um antagonista do efeito das benzodiazepinas no organismo humano e, em consequência, melhorar a função respiratória do doente – suporte digital 20230124160031do minuto 00:12:15 ao minuto 00:32:07.

29. Para tanto, ordenou a administração a FF da substância flumazenil que é um antídoto para as benzodiazepinas, o que aconteceu pelas 23 horas e 8 minutos – suporte digital ............31do minuto 00:12:15 ao minuto 00:32:07. 30. Passado pouco tempo “segundos ou minutos” a função respiratória de FF melhorou e este que até então se apresentava prostrado e pouco reativo aos estímulos externos recuperou a consciência assim se mantendo, pelo menos pelas 7 horas e 58 minutos – cf. suporte digital ............31do minuto 00:12:15 ao minuto 00:32:07.

31. Por essa hora foi anotado no registo clínico pela enfermeira que FF se encontrava calmo, orientado e colaborante.

32. Entre a administração do antagonista das benzodiazepinas e esta anotação não há qualquer registo da administração de qualquer outra terapêutica, além da manutenção do fornecimento de oxigénio.

33. Deste modo, face aos dados constantes do registo clínico e ao depoimento da testemunha HH mostra-se claramente incorreto o julgamento da matéria de facto, ao menos, quanto ao consumo excessivo de benzodiazepinas por parte de FF.

34. Na realidade, a probabilidade da insuficiência respiratória de que sofria FF se encontrar agravada em contexto de consumo de benzodiazepinas, com alteração do estado de consciência, confirmou-se após administração do antídoto ou antagonista.

35. O que foi confirmado quer pelo médico assistente HH ao confirmar ter inserido os dados no registo clínico e aceitar que eles correspondem à realidade ainda que não se lembrasse do doente quer pela médica II, igualmente de medicina interna, que analisou o processo clínico e que de forma esclarecedora se pronunciou sobre esta matéria em sede de audiência de discussão e julgamento - cf. suporte digital ............31 do minuto 00:12:15 ao minuto 00:32:07 e suporte digital .............49 do minuto 00:01:46 ao minuto 00:16:03.

36. Do depoimento desta médica resulta ainda que na ausência da toma por FF de alprazolam 1mg, este apresentava sintomas de privação e reclamava a sua administração de forma insistente, só acalmando depois de tomar a referida benzodiazepina, ficando desde logo sonolento ainda que despertável – cf. suporte digital .............49 do minuto 00:01:46 ao minuto 00:16:03.

37. Deste modo, face à prova produzida é seguro afirmar que FF nos últimos dias da sua vida dependia da toma de doses excessivas de alprazolam, substância que o acalmava, mas que também lhe provocava sonolência ou flutuações de consciência, como decorre da troca de mensagens entre a ré e o terceiro autor, do registo clínico e da prova testemunhal supra citada.

38. A testemunha II indicou no seu testemunho que a probabilidade de FF apresentar aqueles sintomas de sonolência e flutuação de consciência nos dias anteriores ao seu internamento era bastante elevada – cf. suporte digital .............49 do minuto 00:01:46 ao minuto 00:16:03.

39. Acresce que de acordo com as declarações prestadas pela ré ao médico assistente, FF tinha deixado de andar sem ajuda, estando mais prostrado nos últimos dias, não se alimentando sequer – cf. Suporte digital ............31 do minuto 00:12:15 ao minuto 00:32:07.


40. Só a troca de informação entre o médico assistente e a ré podem justificar a presença no registo clínico da informação: “(…) alprazolam SOS posologia variada, conforme necessidade, muitas vezes titulada pelo próprio - cf. suporte digital ............31 do minuto 00:12:15 ao minuto 00:32:07.


41. E a inserção no âmbito da história da doença atual da informação de que “(…) a cuidadora não revelou a dose de benzodiazepinas efetuada nestes últimos dias – cf. suporte digital ............31 do minuto 00:12:15 ao minuto 00:32:07.


42. Se concatenarmos o registo clínico onde se afirma que a cuidadora referiu que neste momento não tem capacidade para cuidar do doente por falta de experiência e conhecimento da patologia de base, com as mensagens trocadas com o terceiro autor, só podemos concluir que a fonte desta informação registada pelo médico assistente foi a própria ré, pois queixa idêntica foi apresentada pela ré quando da troca de mensagens com o terceiro autor – cf. suporte digital ............31 do minuto 00:12:15 ao minuto 00:32:07.


43. Pelo que nada aponta no sentido da alegada falta de credibilidade destas informações por causa de uma qualquer dificuldade linguística.


44. Até porque se provou que no dia 19 de março de 2021 a ré acompanhou FF ao hospital.


45. Assim, a afirmação pela testemunha II de que FF que ela ainda conheceu enquanto médico, se encontrava nos dias que antecederam o seu internamento numa situação de incapacidade para reger a sua própria pessoa e os bens não pode ser afastada com fundamento numa alegada capacitação da senhora notária para apreciar a situação em que se encontrava o testador quando da assinatura do testamento - – cf. suporte digital .............49 do minuto 00:01:46 ao minuto 00:16:03.


46. Estas razões de ciência e regras da medicina não foram suficientes para o tribunal considerar provado que FF se encontrava sobre o efeito do consumo excessivo do benzodiazepinas e que esta era uma medicação habitual no seu dia a dia. 47. Todavia, não foram invocados pelo Tribunal quaisquer conhecimentos especiais de medicina que pudessem infirmar esta realidade nem o tribunal recorreu ao apoio de especialistas que o pudessem esclarecer, pelo que não pode manter-se o julgamento da matéria de facto quanto aos pontos que vimos referindo.


48. Foi considerada pelo Tribunal uma realidade que embora possa ter assento nos depoimentos das testemunhas apresentadas pela ré e nas suas próprias declarações, colide com a lógica e as probabilidades que decorrem dos elementos de prova de registos efetuados por quem nenhuma relação tinha com FF, além da relação profissional, ao invés das testemunhas da ré com envolvimento pessoal nos factos.


49. Mais prova dessa desconformidade entre a matéria dada como não provada e a realidade dos factos retratada nos autos é a matéria que consta da alínea h) do elenco dos factos não provados.


50. Não só consta do registo clínico que o diagnóstico de entrada de FF foi uma insuficiência respiratória como quando da triagem se registou um valor de saturação de oxigénio no sangue com ar atmosférico, ou seja sem qualquer auxílio respiratório, de 76% quando o normal é cerca de 95% como referiu o médico assistente HH – cf. Suporte digital ............31 do minuto 00:12:15 ao minuto 00:32:07.


51. Pelo exposto, entendem os recorrentes que sofrendo o testador de ansiedade provocada pelas várias doenças de que sofria, nomeadamente pela doença degenerativa neuromuscular, ansiedade que combatia através do recurso à substância alprazolam cujos efeitos adversos se faziam já sentir através de comportamentos tais como dormir no chão, não estar em si mesmo quer no dia anterior ao testamento quer no dia posterior é de presumir que tal situação também se verificasse no dia de assinatura do testamento.


52. Em consequência, pelas razões supra expostas entendemos que deve ser alterada a matéria de facto provada do seguinte modo;


1. Alteração dos factos provados:


12. Porque era médico reformado, prescrevia a si próprio medicamentos.


2. Dos factos não provados que se devem ter por provados:


a) A sua medicação habitual consistia em Clomipramina, alprazolam SOS, magnésiocard, AAS, Riluzol e Amlodipina SOS;


d) FF na fase final da sua vida tomava em excesso benzodiazepinas que lhe provocavam alterações de consciência e agravavam a insuficiência respiratória decorrente da doença neuromuscular de que padecia.


f) A ansiedade de que sofria era tratada por FF através da auto prescrição de alprazolam que é uma benzodiazepina.


g) À data de realização do testamento FF não tinha condições para se deslocar pelos seus próprios meios, nem para se determinar a fazê-lo;


h) Quer no dia que antecedeu o testamento quer no dia posterior à sua realização estava sob o efeito de alprazolam que é uma benzodiazepina.


i) Quando do acompanhamento de FF ao hospital a ré declarou ao médico assistente que aquele estava mais prostrado nos últimos dias, estado de prostração que foi verificado também em ambiente hospitalar.


53. Deste modo, salvo melhor opinião, o estado de saúde do testador no dia anterior à realização do testamento e no dia seguinte quando foi hospitalizado apontam para que seja razoável presumir que ao longo desses dias, e por efeito da utilização das benzodiazepinas, o seu estado de consciência era oscilante.


54. E que por via disso, FF se encontrava à data do testamento diminuído na sua capacidade de tomar decisões assentes numa vontade sã fosse sobre a sua vida ou sobre os seus bens.


55. Na sequência da impugnação da matéria de facto, entendem os recorrentes encontrar-se demonstrada uma situação de incapacidade acidental por consumo excessivo de benzodiazepinas com efeitos no estado de consciência do testador e na manifestação de uma vontade sã, situação que preenche os requisitos da anulabilidade do testamento previstos no artigo 2199º do Código Civil.


56. De outro lado, e assim se não entender, entendem os recorrentes que nos presentes autos não se fez qualquer prova sobre qual foi a vontade manifestada pelo testador: instituir um legado ou instituir a ré herdeira da quota disponível.


57. Sinal disso mesmo é a completa ausência de factos no elenco dos factos provados que versem acerca dessa vontade.


58. Apenas uma expressão nesse elenco se reporta ainda que indiretamente a esta matéria e que consiste no ponto 16 da matéria de facto provada, segundo o qual e apesar da reconhecida falta de rigor, quando no testamento se referiu lega a quota disponível dos seus bens, foi o mesmo que dizer deixa a quota disponível dos seus bens.


59. Esta afirmação não é um facto, é uma conclusão.


60. E estes factos não se encontram porque pura e simplesmente não foram alegados pela ré, limitando-se esta a fazer equivaler a expressão lega à expressão deixa ou, em rigor, à instituição de herdeira da quota disponível.


61. Como se referiu supra, o facto se encontrarem inscritas na matriz predial urbana duas frações autónomas a favor da ré e da herança na proporção de 1/6 e 5/6 respectivamente, mostra que quando uma autoridade pública perante a qual é obrigatório apresentar um testamento como foi o caso da administração tributária para efeitos de imposto do selo teve de interpretar o testamento, o que dele retirou foi a instituição de um legado e não a instituição de um herdeiro.


62. Como dispõe o artigo 238º do Código Civil no texto dos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do documento, salvo no caso do testamento, mas é então necessário provar qual a vontade efectiva do testador.


63. No caso dos presentes autos, não pode, sem mais, afastar-se a prova de qual tenha sido essa vontade através de uma conclusão inserta no elenco dos factos provados, ainda por cima cujo rigor jurídico é reconhecidamente frágil, até pela sentença».


O Tribunal da Relação entendeu que o apelante não tinha satisfeito, relativamente a estes segmentos, os ónus legalmente exigíveis para impugnar o julgamento de facto, e não sindicou esse julgamento.


Ainda inconformados, os autores interpuseram competente revista, cuja minuta concluíram da seguinte forma:

1ª- Foi parcialmente rejeitada pelo Acórdão da Relação de Évora a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante dos factos b), d), f), g), h) e i) dos factos não provados;

2ª- A alteração da matéria de facto não provada é essencial à procedência do pedido de

declaração de que FF se encontrava em situação de incapacidade acidental por consumo excessivo de benzodiazepinas com efeitos no seu estado de consciência e na sua capacidade de manifestação de uma vontade sã.

3ª- Os recorrentes consideram ter sido produzidas provas que, no seu conjunto, permitem concluir pela prova das alíneas b), c), d), f), e h) da matéria dada como não provada.

4ª- O Acórdão da Relação de Évora rejeitou o recurso quanto à análise deste segmento da impugnação por considerar que os alegantes incumpriram o ónus de relacionar os concretos meios de prova com os concretos pontos impugnados, não fazendo uma impugnação alínea por alínea, referenciando, em relação a cada uma delas, os meios de prova que impunham decisão diversa com referência das concretas passagens da gravação.

5ª- O Acórdão recorrido justifica a rejeição por entender que fica prejudicada a

inteligibilidade do fim e do objeto do recurso e, em consequência de um contraditório esclarecido o facto de o recorrente ter indicado os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, sem os relacionar com cada meio de prova.

6ª- De acordo com o entendimento do STJ, o critério para apreciar o cumprimento dos ónus previstos no art. 640º do CPC é o critério da adequação à função, de modo a garantir um contraditório esclarecido.

7ª-Aquele critério deve terem conta, na sua aplicação, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade nomeadamente quanto à dificuldade imposta pelo Tribunal de recurso para a análise crítica da prova.

8ª- É também entendimento do STJ que, quando o conjunto de factos impugnados se

refere à mesma realidade e os concretos meios de prova indicados pelo recorrente são comuns aos vários factos, a sua impugnação em bloco não obstaculiza a perceção da matéria que se pretende impugnar pelo que esta não deve ser rejeitada.

9ª- Nas alegações apresentadas ao Tribunal da Relação de Évora os recorrentes indicaram os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados nos termos do disposto no art. 640º nº1 al. a) do CPC.

10ª- Indicaram, também, nas suas alegações e conclusões a decisão que no seu entender

deveria ser proferida sobre aquelas questões de facto, nos termos do disposto na al. c) do nº1 do art. 640º do CPC.

11ª- E, indicaram os concretos meios de prova constantes do processo e das gravações

nele realizadas que, no seu entender, impunham decisão diversa sobre aqueles pontos de facto.

12ª- Do encadeamento lógico das alegações apresentadas, facilmente se percebe que por

estar a discutir a mesma questão os concretos meios de prova oferecidos são comuns aos factos impugnados nos termos do disposto na al. a) do nº2 e b) do nº1 do art. 640º do CPC não sendo posta em causa nem a inteligibilidade do fim e do objeto do recurso.

13ª- Pelo que viola os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade a rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto relativa aos factos não provados constantes dos pontos b), d), f), g), h) e i).

14ª- A recusa do Acórdão em pronunciar-se sobre a impugnação da decisão da matéria

de facto relativamente aos factos não provados constantes de b), c), d), f), h) e i) por rejeição em violação do disposto nos artigos 666º nº1 e 615 nº1 d) do CPC consubstancia nulidade por omissão de pronúncia, que se invoca expressamente.

15ª- A interpretação do art. 640º do CPC no sentido da rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto não provada com fundamento em incumprimento do ónus de impugnação quando estes individualizaram concretamente os factos que consideram incorretamente julgados e indicam a decisão que pretendem ver proferida sobre as questões de facto impugnadas quando se impõe, para todas elas, a indicação da mesma prova é inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade e do acesso ao direito previstos nos artigos 18º nº2 e 20º nº2 da constituição da República Portuguesa, violação que expressamente se invoca.

16ª- A procedência da impugnação da matéria de facto cuja apreciação foi rejeitada

teria influência na decisão da causa pelo que a recusa da sua análise põe em crise o principio da descoberta da verdade material previsto nos artigos 411º e 436º do CPC pois a decisão do Tribunal da 1ª Instância decidiu contra as regras da experiência e da ciência.

17ª- Dos factos dados como provados em 5, 8, 10, 11, 12, 15 da sentença podemos concluir que FF sofria de várias comorbilidades que lhe causavam dores e ansiedade e que prescrevia a si próprio medicamentos que lhe aliviavam as dores.

18ª- E também que no dia 17 tomou comprimidos para a ansiedade e para a depressão, que não queria comer, que tinha dificuldade em mover-se, pelo que ficou no chão, e não tinha controlo sobre as suas necessidades fisiológicas.

19ª- E, que, no dia 19 a Ré acompanhou FF ao hospital e informou que este

era parcialmente dependente até há dois dias.

20ª- As informações constantes da ficha clínica das quais fazem parte as informações fornecidas ao médico pela ré são necessárias para a descoberta da verdadeira situação de saúde de FF e devem ser consideradas pois não foi impugnado o documento de que constam e é um documento elaborado por terceiro sem interesse na causa no exercício de atividade profissional pelo que anotou o que lhe disse a acompanhante do doente e o que resultou da anamnese que realizou.

21ª- A Ré admitiu ao médico que FF era parcialmente dependente até há dois dias, tal como tinha, por SMS, no dia 17 informado o filho deste, 3º Autor, da situação do pai idêntica à que deu ao médico, ou seja, se até dia 17 estava parcialmente dependente, a partir daí ficou totalmente dependente pelo que não é plausível de acordo com as regras da experiência que estivesse bem de modo a exprimir a sua vontade no dia 18.


22ª- Na matéria dada como não provada encontram-se factos que a ciência médica tem como assentes e que os médicos ouvidos explicaram: o efeito sobre a consciência do aumento de dióxido de carbono no sangue e o efeito confirmador da existência de benzodiazepinas noorganismo quando administrado flumazenilossintomas apresentados melhoram pois trata-se de um antagonista dos efeitos hipnóticos, sedativos e da inibição psicomotora provocados pelas benzodiazepinas.

23ª- Pelo que, quer de acordo com as regras da experiência comum quer de acordo com

as regras da ciência médica, perante o quadro de saúde de FF nos dias 17 e 19 seria normal que o mesmo se encontrasse sob o efeito de benzodiazepinas no dia 18, que lhe retiravam a capacidade para uma manifestação sã da sua vontade, razão pela qual estava como uma “aparência normal” perante a Sra. Notária.

24ª-Impõe-se assim a reapreciação da matéria de facto recusada pelo tribunal da Relação de Évora

Termos em que deve deve ser concedida revista e, por via disso, ser decidida a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Évora para que seja proferida nova decisão após apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de factos no que concerne aos pontos b), d), f), g), h) e i) dos factos não provados, tudo com as legais consequências para que se faça a costumada JUSTIÇA».


A recorrida apresentou contra-alegações em que pugna pela confirmação do julgado.


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Constitui questão decidenda saber se a decisão do segundo grau sobre o julgamento de facto deve ser anulada para conhecimento de matéria de facto cuja reapreciação o segundo grau terá omitido.


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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes nas instâncias:


1. A primeira Autora é a viúva e os segundo, terceiro e quarto Autores são os filhos de FF.


2. No dia 18 de março de 2021, no Cartório Notarial da Notária GG, em ..., FF outorgou a favor da Ré um testamento.


3. Do testamento referido em 2) consta que FF “lega a quota disponível dos seus bens a EE”.


4. A notária lavrou o testamento, após se certificar que o testador se encontrava em condições de testar, consciente e capacitado.


5. Em 19 de março de 2021, a Ré acompanhou FF ao hospital.


6. FF faleceu em ... de março de 2021 na unidade de P....... .. ...., EPE.


7. FF vivia em Portugal, desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 1989, país onde exerceu a profissão de médico e onde pretendeu continuar a viver depois de se reformar.


8. Tinha 82 anos e sofria de cardiopatia isquémica, de monoparesia do membro superior esquerdo, doença neuromuscular, e de insuficiência respiratória crónica restritiva.


9. Tinha já sido submetido a três bypass.


10. Era uma pessoa fisicamente debilitada, com algumas limitações motoras que lhe causavam dependência de terceiros e o obrigavam a ser assistido constantemente.


11. Todas estas doenças causavam-lhe dores e ansiedade.


12. Porque era médico reformado, prescrevia a si próprio, medicamentos não concretamente apurados, e em quantidades não concretamente apuradas, que lhe aliviavam as dores.


13. Sofria desta doença há muito tempo e também usava medicação há muito tempo (datas não concretamente apuradas).


14. Há muito tempo que tinha como cuidadora, por si escolhida, a ora Ré.


15. No dia 17 de março de 2021, a Ré enviou ao terceiro Autor uma mensagem via telemóvel, pelas 19:40H em que o informava que o pai, nesse dia, tinha tomado 1 e ½ comprimido para a ansiedade e 1 para a depressão, que nesse dia teve de o forçar a comer um iogurte e um pouco de pão, que o encontrou caído no chão e que este só queria dormir, tendo feito as suas necessidades fisiológicas na roupa, e que teve de o deixar deitado no chão.


16. Quando no testamento referido em 2) se referiu “Lega a quota disponível dos seus bens”, foi o mesmo que dizer “deixa a quota disponível dos seus bens”.»


Factos Não Provados:


«a) Foi anotado na ficha clínica do doente que a Ré se recusou a informar os médicos da quantidade de Benzodiazepinas ingeridas por FF nos dias que antecederam a ida ao hospital.


b) A sua medicação habitual consistia em Clomipramina, Alprazolam SOS, Magnesiucard, AAS, Riluzol e Amlodipina SOS.
c) A medicação a que se refere em 13) é Clomipramina e Alprazolam e causavam-lhe

alteração do estado de consciência, ansiedade, agitação, dificuldade de concentração e despersonalização.

d) FF tomava grandes quantidades de medicamentos para a ansiedade, que lhe causavam alteração do estado de consciência.

e) Alteração do estado de consciência que era agravado pela Hipercapnia, ou seja, aumento do nível de dióxido de carbono no sangue.

f) As patologias de que sofria e a medicação que fazia alteravam o estado de consciência.

g) Não tinha condições para se deslocar pelos seus próprios meios, nem para se determinar a fazê-lo.

h) Estava com dificuldade em respirar, com cansaço extremo por falta de oxigénio e por dificuldades cardíacas, desorientado e ansioso devido ao elevado uso de benzodiazepinas.

i) Nas circunstancias referidas em 5) a Ré declarou que FFestava mais prostrado nos últimos dias”, estado de prostração confirmado pelos médicos quando da realização do exame objetivo.

j) A Ré, enquanto cuidadora, levou FF, a um cartório notarial para fazer um testamento, quando intuiu que não teria muito mais tempo de vida e o estado de vulnerabilidade e incapacidade para tomar decisões do pai dos Autores era já muito grande.

k) Nas circunstâncias referidas em 15), a Ré informou que, por FF ter tido um comportamento tonto, deu-lhe os comprimidos aí referidos.»

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Da satisfação do ónus de discriminação probatória (artigo 640.º, 1 alínea b)


Sabido é que ao Supremo Tribunal de Justiça compete, no âmbito da revista, sindicar a decisão da matéria de facto nas circunstâncias referidas no artigo 674.º, 3 do Código de Processo Civil (serão deste código os artigos ulteriormente citados sem diferente menção), e apreciar criticamente a suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável, nos termos do artigo 682.º, n.º 3.


No caso sujeito, como vimos, não foi reapreciado pelo segundo grau o julgamento que a primeira instância fez em relação às alíneas b), d),f),g),h) e i) dos factos não provados, porquanto a Relação entendeu que os autores não tinham satisfeito os ónus que sobre si impendiam, desenvolvendo a seguinte argumentação:


«Como se pode ler das Conclusões do recurso que se reportam à impugnação deste segmento da decisão de facto, os Apelantes não fazem uma impugnação alínea por alínea, referenciando em relação a cada uma delas, os meios de prova que impunham decisão diversa, com referenciação das concretas passagens das gravações da prova gravada como é seu ónus em face do disposto no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) a c) e n.º 2, do CPC.


Optaram, ao invés, por mencionarem o que, no seu entender, consta do registo clínico e realçar aspetos do depoimento de parte da Ré e dos depoimentos das testemunhas HH e II, centrando-se na fita do tempo do período do internamento, para concluírem que se provaram os factos dados como não provados, embora com a redação que apresentam na Conclusão 52, ponto 2, alíneas a) a i) e que não corresponde exatamente aos factos dados como não provados nas mencionadas alíneas, introduzindo outra factualidade ou alterando a ali mencionada.


Ora, esta forma de impugnação não cumpre os ónus de impugnação previstos no preceito supra citado. O STJ tem proferido inúmeros acórdãos onde analisa o modo como deve ser interpretado o disposto no artigo 640.º do CPC no que diz respeito ao acatamento dos ónus ali previstos por parte do impugnante, existindo uma nítida evolução jurisprudencial no sentido da interpretação do normativo.


(…)


Seguindo esta interpretação quanto aos requisitos da impugnação da decisão de facto, e voltando a nossa análise para o recurso dos Apelantes, não nos suscita qualquer dívida que os recorrentes indicaram os concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados, referenciando-o no corpo da alegação e nas conclusões, e indicaram nas conclusões a decisão que deveria ter sido proferida. Porém, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não cumpriram o ónus de fundamentação concludente da impugnação.


Como decorre do artigo 640.º, n.º 1, al. b), do CPC, o impugnante deve relacionar cada um dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados com cada um dos meios de prova relevantes.


(…)


No caso sub judice, os recorrentes em vez de relacionar especificadamente cada um dos concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados com cada um dos meios de prova que invocam, optaram por indicar, em bloco, todos os concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados e relacionaram-nos, também em bloco, com aqueles meios de prova, ou seja, não discriminaram cada facto impugnado e a respetiva prova que, no seu entender, impunha decisão diferente da proferida.


Ora, o modo como os recorrentes impugnaram este segmento da decisão de facto, por um lado, coloca em causa a possibilidade da parte contrária exercer um contraditório esclarecido e, por outro lado, transpõe para o julgador que reaprecia a prova, o ónus de identificar e procurar não só os meios de prova que, em relação a determinada e concreta factualidade, impunham decisão diversa, como ainda o de perscrutar quais os segmentos relevantes do(s) depoimento(s) que militam no sentido propugnado pelos recorrentes em relação a cada facto, impondo com tal conduta um grau de dificuldade excessivo e desadequado à reapreciação da decisão de facto. Ou seja, o incumprimento do ónus de relacionar os concretos meios de prova com os concretos pontos impugnados, situando os depoimentos com exatidão nas passagens da gravação, tem consequências manifestamente graves, pelo que não pode deixar de conduzir à rejeição do recurso quanto a este segmento da impugnação.


Mas mesmo que assim não se entendesse, e à cautela, sempre se dirá que a impugnação nunca poderia proceder, porquanto os Apelantes fazem tábua rasa da fundamentação expressa na decisão de facto quanto à não prova dos concretos medicamentos e quantidades que o falecido prescrevia a si próprio como já se referiu a propósito da impugnação do ponto 12 dos factos provados, bem como do depoimento da Sr.ª Notária que lavrou o testamento e da patente inexistência de prova quanto à afetação das capacidades cognitivas do testador quando assinou o testamento, prova que competia aos Apelantes e que os mesmos não lograram fazer (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).


Sendo que do estado clínico do falecido à data do internamento e do óbito, posterior, embora contemporâneo da assinatura do testamento, não se pode inferir com a necessária segurança que, no momento em que foi assinar o testamento, estivesse afetado ou diminuído nas suas capacidades cognitivas, ainda que acidental e momentaneamente, ou seja, que estivesse afetado na sua capacidade de querer e decidir. Seria sempre necessário que os Autores lograssem provar que, naquele concreto momento, as doenças que acometiam o testador e/ou os medicamentos que tomava o impediam de consciente e voluntariamente declarar a sua vontade. Mas na verdade, não resulta da prova que, nessa altura, tivesse o seu estado de consciência alterado ou diminuído.


Donde, também por este prisma da análise da impugnação, a mesma não poderia proceder».


Os recorrentes não se conformam com esta posição. Vejamos se têm razão.


Comecemos por dizer que, não tendo sido alterado o artigo 608.º, tal como previa a Proposta de Lei n.º 92/XIV/2.ª, entretanto caducada com a dissolução do Parlamento, o juiz continua a não estar dispensado de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e, por isso, não pode limitar a sua atenção àquelas que são mais líquidas, isto é, que mais facilmente permitem chegar a uma decisão, quando não existe verdadeiramente um laço de prejudicialidade entre elas.


Vejamos agora o núcleo central do recurso.


Todos aqueles que queiram impugnar a decisão relativa à matéria de facto devem satisfazer quatro tipos de ónus:


i) um ónus de alegação;


ii) um ónus de conclusão;


iii) um ónus de discriminação fáctica;


iv) um ónus de discriminação probatória.


As primeiras duas categorias de ónus estão previstas no artigo 639.º, 1:


A lei exige não só que o recorrente alegue, mas também que diga, na alegação, em forma de conclusões sintéticas, quais os fundamentos do seu recurso.


Tendo os recorrentes claramente satisfeito tais ónus, prossigamos para o exame dos restantes.


O ónus de discriminação fáctica traduz-se, ex artigo 640.º:


a) na necessidade de especificar os concretos pontos de facto da decisão proferida que considera erradamente julgados;


b) na indicação da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida em alternativa à decisão de facto impugnada.


O ónus de discriminação probatória, por sua vez, implica que o recorrente:


c) especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele , que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;


d) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indique com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.


Porquê estas últimas exigências?


O DL 39/95, de 15 de Fevereiro, consagrou, pela primeira vez entre nós, a possibilidade de documentação do registo das audiências finais e das provas nelas produzidas.


Lê-se no preâmbulo desse diploma que «a consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto não deverá redundar na criação de factores de agravamento da morosidade na administração da justiça civil».


Por isso, o legislador manifestou a vontade de «adoptar um sistema que realizasse o melhor possível o sempre delicado equilíbrio entre as garantias das partes e as exigências de eficácia e celeridade do processo de modo a obviar que o aparente reforço daquelas pudesse redundar na violação do fundamental e básico direito à obtenção de uma decisão final em prazo razoável».


«A consagração desta nova garantia das partes no processo civil-acrescenta o preâmbulo- implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.


Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (…) - e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1.ª instância - possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta».
Em 1995, não se exigia ainda que o recorrente indicasse a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, o que só veio a acontecer com a versão de 2013 do código.


As exigências legais impostas ao recorrente, servindo objectivamente de filtro ao recurso, desempenha duas funções: uma, que aproveita o juiz na aplicação do artigo 662.º; outra, que beneficia a parte contrária, na medida em que a delimitação do objecto do recurso constitui, em grande medida, uma protecção do recorrido, que fica a saber do que se deve defender.


Nos já 28 anos de aplicação do novo regime de jurisdição em matéria de facto, a jurisprudência deste tribunal parece percorrer dois caminhos diferentes, quanto às exigências a fazer ao recorrente na delimitação do objecto do recurso.


No que toca ao segundo grupo de ónus, que acima referimos, uma parte da jurisprudência entende que está vedado ao recorrente fazer uma impugnação por blocos de facto, devendo antes impugnar cada facto de per se, indicando, também em relação a cada facto isoladamente considerado, os meios de prova que devem conduzir á solução alternativa que propõe (cfr. entre outros, acórdãos do STJ de 21.3.2023, Proc. 296/19.4.T8ESP.P1.S1, de 25.5.2023, Proc. 6713/19.6T8GMR.G1.S1, citados pelo segundo grau); uma outra corrente tem sido menos exigente, quanto à discriminação fáctica, considerando «que não pode deixar de se considerar suficiente qualquer outra referenciação feita pelo recorrente - com as variações inerentes ao estilo e à competência de quem redige o texto –, desde que elaborada em termos tais que não deixem dúvidas sobre aquilo que pretende ver sindicado, assim definindo o objeto do recurso nessa parte, através da enunciação suficientemente clara da questão que submete à apreciação do tribunal de recurso» (STJ 12.9.2019, Proc. 1238/14.9TVLSL1.S2).


Integra-se nesta última corrente, o recente acórdão do STJ de 7.12.2023, Proc. 2037/21.7.T8FAR.E1.S1, o qual, num caso idêntico, não seguiu o critério adoptado pelo segundo grau, tendo doutrinado: «Ciente de que a imposição de ónus de impugnação representa um condicionamento ao direito de acesso aos tribunais e, em especial, ao direito ao recurso (cfr. artigo 20.º, n.º 1, da CRP), este Supremo Tribunal de Justiça tem-se esforçado por interpretar o disposto na norma com certa cautela, evitando leituras excessivamente formalistas que possam conduzir a restrições injustificadas das garantias associadas ao processo equitativo e convocando sempre, para o efeito da melhor interpretação da norma, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.


Exemplo, entre tantos outros, desta orientação do Supremo Tribunal de Justiça é o recente Acórdão de 12.10.2023 (Proc. 1/20.2T8AVR.P1.S1)1 em cujo sumário pode ler-se:


No caso dos autos, e de acordo com um critério de razoabilidade, a rejeição liminar do recurso de impugnação de facto desrespeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º,n.os 2 e 3, da CRP, e da garantia do processo equitativo, consagrada noart. 20.º, n.º 4, da CRP”.


Ilustrativo é também, ainda mais recentemente, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2023, de 17.10.2023 (publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 14.11.2023, pp. 44-65), no qual se sustenta uma interpretação visivelmente (mais) flexível do ónus imposto na al. c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC do que poderia resultar da sua interpretação literal, fixando-se o seguinte segmento uniformizador».


Parece-nos melhor seguir esta segunda orientação, pelas seguintes ordens de razões:


i) nenhuma norma do código de rito (portanto também não o artigo 640.º, 1, al.b)) exige que o recorrente relacione um por um os factos com os meios de prova discriminados também isoladamente por cada um deles


ii) a nossa legislação processual civil, desde o código de 1939 está toda ela inspirada «na doutrina salutar de não sacrificar o fundo à forma, de não fazer perder o direito por simples inobservância de formalismos legais» (Alberto dos Reis).


iii) acrescentar aos já de si rigorosos ónus legais um outro ónus, traduz uma exasperação dos instrumentos processuais em chave formal.


iv) os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade impõem antes uma interpretação do artigo 640.º do Código de Processo Civil, em termos menos severos. É um problema de justa medida, delicado como todos os problemas de limites.


v) porquanto nem o juiz vê a sua tarefa particularmente dificultada na aplicação do artigo 662.º se o recorrente não fizer aquela ligação individualizada, nem a parte recorrida deixa de saber, e bem, defender-se, sem aquela estrita conexão.


vi) o acórdão do STJ de 19.12.2018, Proc. 433/11.7TVPRT.P1.S2 decidiu que: «a fundamentação [da sentença] deve conter, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador e ainda a indicação, na medida do possível, das razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto»; «a imposição da fundamentação não impede necessariamente que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os mesmos meios de prova. Essa motivação conjunta pode até ser concretamente aconselhável».


Não se vislumbram razões para que esta doutrina não seja transposta, mutatis mutandis para sindicar a autossuficiência do recurso.


vii) há, como vimos, jurisprudência deste supremo tribunal que já faz esta transposição.


viii) a tudo isto acrescem outros argumentos, não menos importantes, de ordem constitucional e convencional.


O princípio da economia processual, cada mais presente na exegese das normas processuais, não pode levar a que o juiz esqueça outras normas processuais orientadas para a realização de outros valores e princípios, tais como os que consubstanciam num processo equitativo, com base nos artigos 20.º, 4 da CRP e 6.º da CEDH, designadamente o direito de defesa e o direito a um processo no qual as partes estejam em condições de intervir com completude nas várias fases em que articula. Para isso é preciso que, a montante, se garanta um efectivo acesso ao tribunal.


vii) Lembra Ireneu Cabral Barreto (As relações entre a Convenção e Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e as Instâncias Nacionais, 2008) que compete às jurisdições internas dos Estados-membros respeitar a Convenção acima das leis ordinárias e que, por isso, os tribunais daqueles Estados, entre outras autoridades internas, devem acolher a doutrina que deriva dos acórdãos do TEDH, até para evitar futuras condenações.


Ora a superação do rigor formalístico parece imposto por vários acórdãos do TEDH dos quais se extrai o propósito de fazer ancorar as «sanções» processuais em cânones de proporcionalidade e de dar prevalência a soluções interpretativas destinadas a permitir que o processo tenha uma decisão de mérito que examine o fundo da questão. É o caso dos acórdãos proferido nos casos Reklous and Davourlis v. Greece, de 15 de Janeiro de 2009, e Efstathiou e outros c. Grèce, de 27 de Julho de 2006.


Neste último, o TEDH refere que «Prononcer l’irrecevabilité des moyens en question au motif que les requérants « [n’avaient] pas relaté dans leur pourvoi en cassation ce que la cour d’appel avait en substance retenu », s’inscrit dans une approche par trop formaliste, qui a empêché ceux-ci de voir la Cour de cassation examiner le bien-fondé de leurs allégations (voir, en ce sens, Běleš et autres c. République tchèque, précité, § 69 ; Zvolský et Zvolská c. République tchèque, précité, § 55); «A la lumière des considérations qui précèdent, la Cour estime qu’en l’espèce, la limitation imposée au droit d’accès des requérants à un tribunal n’a pas été proportionnelle au but de garantir la sécurité juridique et la bonne administration de la justice»; «Partant, il y a eu violation de l’article 6 § 1 de la Convention au regard du droit des requérants d’avoir accès à un tribunal».


Regressando ao caso sujeito, não há qualquer dúvida de que os recorrentes identificaram os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados não provados, as alíneas b), d), f), g), h) e i), que são conexos (medicamentos tomados em excesso pelo testador e consequências da toma).


Por outro lado, analisou criticamente ao longo de 37 pontos a prova produzida: o registo clínico do testador, as declarações de parte da ré, e os depoimentos dos médicos HH (que assistiu o falecido) e II (que reviu o processo clínico após o falecimento).


E sublinhou inclusive a relevância que no seu entender tinha essa provas (ponto 16).


Não se pode, pois, dizer que o objecto do recurso não foi claramente delimitado, não se vendo em que medida se possa concluir que o contraditório poderá ficar debilitado ou o trabalho do juiz dificultado.


Daí que se possa concluir que o acórdão ora recorrido interpretou e aplicou erradamente as normas de processo que disciplinam o seu poder de cognição da decisão de facto impugnada, o que importa a sua anulação.


Não tendo havido vencido neste grau, as custas da revista serão suportadas pela parte vencida a final.


***


Pelo exposto, acordamos:


a) Em anular o acórdão recorrido na parte em que não conheceu da impugnação da decisão de facto em relação às alíneas supra referidas;


b) Consequentemente, em ordenar a baixa do processo ao Tribunal da Relação para que tome conhecimento daquela impugnação, e, se for o caso, retire as consequências em sede de direito;


Custas do recurso pela parte vencida a final.


***


16.1.2024


Luís Correia de Mendonça (Relator)


Rui Gonçalves


Luís Espírito Santo (com declaração de voto que segue)


DECLARAÇÃO DE VOTO do 1.º ADJUNTO


Votei favoravelmente o acórdão, sem aderir a toda a sua fundamentação.


Com efeito, embora entenda, em termos gerais, que a alínea b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil impõe ao impugnante a obrigação processual que consiste no dever de efectuar a correspondência directa e objectiva entre os meios probatórios por si indicados e a justificação (por eles representada) para a modificação dos pontos de facto considerados incorrectamente valorados (o que significa que não é suficiente, para se considerar cumprida a exigência, a mera referência aos diversos meios de prova entendidos por relevantes, feita genericamente, sem nenhuma referência concreta e objectiva aos pontos de facto em causa, individualmente identificados), acontece que, na situação sub judice, estão em discussão apenas cinco pontos de facto dados como não provados (alíneas b), c), d), f), h) e i)), perfeitamente interligados entre si, sendo elementar e intuitiva a sua compreensibilidade, bem como a directa interligação relativamente aos meios de prova indicados pelo impugnante, não existindo assim nenhuma dificuldade séria ou aceitável em conhecer da impugnação neste tocante, pelo que a rejeição do conhecimento (parcial) da impugnação, realizada nestas especiais circunstâncias, pela gravidade das consequências jurídicas que acarreta, ofende os princípios gerais da proporcionalidade e razoabilidade, garantes da tutela jurisdicional efectiva e que concorrem para a afirmação do princípio pro actione.