CASO JULGADO
CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS
ALIMENTOS ENTRE EX-CÔNJUGES
Sumário


I - O caso julgado constitui-se com referência à situação de facto existente no momento do encerramento da discussão na audiência final (art. 611/1 do CPC), pelo que é possível a rediscussão com base em factos ulteriores àquele momento que sejam suscetíveis de justificar a modificação do caso julgado ao abrigo da cláusula rebus sic stantibus.
II - Os poderes de cognição do juiz estão, em tais casos, circunscritos à alegada alteração das circunstâncias, não lhe sendo, por isso, permitido conhecer outra matéria de facto, eventualmente corrigindo erros que tenham sido cometidos no seu julgamento.
III - Em matéria de alimentos entre ex-cônjuges, o legislador estabeleceu um princípio de autossuficiência (art. 2016/1 do Código Civil), nos termos do qual, uma vez dissolvido o vínculo matrimonial, independentemente das causas dessa dissolução, cumpre a cada ex-cônjuge prover ao seu próprio sustento.
IV - Só quando isso não seja possível, por um dos ex-cônjuges não poder prover autonomamente à sua subsistência, surge o direito a alimentos, assente na solidariedade pós-conjugal, cuja concretização depende sempre da possibilidade de o outro ex-cônjuge os prestar.
V - Para aferir da necessidade de alimentos há que atender não só aos rendimentos (de bens, capitais, trabalho) do requerente, como também ao respetivo património na sua globalidade.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I.
1 AA intentou a presente ação, sob a forma declarativa comum, contra BB por via da qual pretende a condenação deste no pagamento de alimentos, no montante mensal de € 300,00.
Alegou, em síntese, que: foi casada com o Réu durante mais de 27 anos, tendo o casamento sido dissolvido, por divórcio, através de sentença proferida no dia .../.../2016; durante o casamento, por imposição do Réu, nunca exerceu qualquer atividade profissional, dedicando-se às lides domésticas e à educação dos filhos comuns; tem atualmente, como único rendimento, uma pensão de invalidez de € 400,00; vive em casa arrendada, pagando mensalmente de renda € 200,00; sofre de depressão (bipolaridade) que lhe determina uma incapacidade de 69%, com a consequente redução da capacidade de trabalho; faz acompanhamento médico regular, no que despende mensalmente € 100,00; o seu rendimento é assim insuficiente para prover às despesas, pelo que necessita de alimentos; o Réu, por seu turno, é empresário, aufere “bons rendimentos” (sic), e é proprietário de vários imóveis, estando em condições de prestar alimentos.
2 Citado, o Réu contestou dizendo, também em síntese, que: a presente ação é repetição da que correu termos sob o n.º 291/19...., já julgada improcedente, por sentença transitada em julgado, pelo que ocorre a exceção dilatória do caso julgado; de qualquer modo, a Autora não está incapacitada de exercer uma atividade profissional; na sequência da partilha do património comum do casal que por ambos foi constituído, a Autora recebeu do Réu € 50 000,00, a título de tornas; o Réu é barbeiro / cabeleireiro, tendo um rendimento mensal situado entre os € 500,00 e os € 700,00; com esse rendimento, tem de fazer face às suas despesas e ainda às do seu agregado familiar, no qual se inclui a filha de ambos, para cujo sustento a Autora não contribui. Concluiu que deve ser julgada verificada a referida exceção dilatória, com a consequente absolvição da instância; a não ser entendido dessa forma, a ação deve ser julgada improcedente.
3 Na sequência de despacho, a Autora pronunciou-se sobre a exceção dilatória arguida pelo Ré dizendo, em síntese, que os factos em que se baseia a presente ação são ulteriores à sentença proferida na identificada ação que correu termos sob o n.º 291/19...., pelo que o objeto processual não é o mesmo.
4 Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador no qual: (i) foi julgada improcedente a arguida exceção dilatória do caso julgado material, por se ter entendido que os novos factos “alegados pela Autora [“terá que comprar uma casa de habitação, pelo que, impossibilitada de recorrer a crédito bancário, terá que dispor, de uma só vez, de quantia não inferior a € 40 000,00”; “terá que pagar também a dívida que tem para com a sua irmã CC e que se vem acumulando ao longo dos anos, que atualmente ascende a mais de € 5 000,00”; e “encontra-se a fazer implantes dentários, tratamento que lhe custará mais de € 5 000,00”], a provarem-se, consubstanciam uma alteração da situação invocada (…) no âmbito do processo n.º 291/19....”; (ii) foi afirmada, em termos tabulares, a verificação dos demais pressupostos processuais; (iii) foi fixado, em € 18 000,00, o valor processual da causa. De seguida foi definido o objeto do litígio (“Determinar se o Réu deve ou não ser condenado no pagamento da quantia de € 300,00 mensais à Autora, a título de pensão de alimentos.”) e foram enunciados os temas da prova.
5 Realizada a audiência final, foi proferida sentença a julgar a ação improcedente e a absolver o Réu do pedido formulado.
6 Inconformada, a Autora recorreu, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença final, a qual julgou improcedente, por não provado, o pedido de Alimentos formulado pela Autora, uma vez que que tem possibilidades para o efeito, dele absolvendo o Réu.
II. Além de a Autora não se conformar com a matéria que foi considerada não provada pelo Tribunal “a quo”, assim como não se conforma com a valoração que foi dada à matéria, quer de facto quer de direito, dada como não provada porquanto, no seu entendimento, a prova produzida foi incorretamente julgada e valorada, impondo decisão diversa da proferida sobre a matéria de facto e de direito julgada, a Recorrente não se conforma com a qualificação jurídica atribuída aos factos, e a consequência que da mesma resulta.
III. Deste modo, atendendo à sua falta de conformação com a douta sentença, vem a Recorrente interpor recurso versando sobre matéria de Direito, mais requerendo a reapreciação da prova produzida, bem como a reapreciação e valoração de toda a prova documental constante dos presentes autos.
As questões a decidir são:
Impugnação da Matéria de Facto, quanto à matéria dada como não provada na al. a), b), d), f), g), h) e j);
B) Obrigação de Alimentos.
IV. Quanto à impugnação da matéria de facto, dada como não provada na al. a), b), d), f), g), h) e j) da douta sentença, vejamos o seguinte:
V.Com efeito, quanto à supra indicada matéria, especificamente disse a testemunha CC, a instâncias quer do mandatário da A., quer da Meritíssima Juíza, cujo depoimento se transcreve:
VI. Na al. a), o Tribunal a quo não considerou provado que “Na vigência de 27 anos de casamento, por exclusiva vontade do réu, a Autora não exerceu qualquer atividade profissional remunerada.”
VII. O que não é verdade. Entende a Apelante que ficou (plenamente) demonstrado através do depoimento de CC, tendo o Tribunal dado mais credibilidade ao testemunho de DD, o qual referiu que a Autora “não procurava ativamente trabalho”, não concretizando contudo as razões da tal acontecer, desconhecendo eventualmente a verdade, intencionalmente omitida durante todos esses anos pelo seu pai.
VIII. Como é que o Tribunal a quo considera que a Recorrente, sem experiência profissional, sem formação académica, com incapacidade de 69% e com mais de 53 anos de idade e com a taxa de desemprego em que vivemos, consegue arranjar trabalho para prover ao seu sustento?
IX. Entendemos que, uma vez mais, andou mal o Tribunal a quo, ao decidir com base nesta convicção, até porque a realidade e a atual conjuntura económico social mostram precisamente o contrário.
X. Mais, a verificação da incapacidade da Recorrente de prover à sua subsistência, nos termos do art.º 2016.º, nº 2 do CC, encontra-se demonstrada.
XI. Aliás, é o próprio Tribunal que admite que a Autora tem vindo a ser auxiliada economicamente pela sua irmã CC (Ponto 5 dos factos provados), no que toca a qualquer tipo de despesa, até as despesas mais básicas, nomeadamente a alimentação.
XII. Essa obrigação legal pertence, em primeira linha, nos termos da lei (art.º 2009.º do Código Civil), ao ex-cônjuge, e não à irmã da Recorrente, pelo que, por ter ficado cabalmente demonstrado, os factos h) e j) deveria ter sido dado como provado, invertendo forçosamente o sentido da decisão.
XIII. Assim, e com todo o respeito que é muito, o Tribunal a quo violou a referida norma jurídica, que deveria ter sido interpretada e aplicada em sentido diverso ao da decisão proferida.
XIV. De igual forma o Tribunal a quo decidiu erradamente ao não considerar provado na al. f) que “a Autora não consegue fazer face aos restantes encargos com a sua saúde, alimentação e vestuário”, quando por todos os motivos supra expostos, demonstrou-se que a Recorrente aufere rendimentos de €484,61, pelo que, atualmente e enquanto se mantiver a situação de manifesta carência económica, também não conseguirá suportar os encargos inerentes a uma habitação.
XV. Quando, em contraponto, dá como provado que despende mensalmente quase €350,00 em habitação e alimentação e gastou, no período entre 07/10/2022 e 27/03/2023, quase €5.000,00 num tratamento dentário que ainda está em curso.
XVI. Por outro lado, a Autora tem uma incapacidade de 69%, devidamente demonstrada nos Autos (o que foi dado como provado no ponto 6).
XVII. Contudo, no entendimento do Tribunal a quo, a Recorrente não apresenta debilidade ou doença que a impeçam de trabalhar (com 53 anos) e inclusivamente, apesar da idade, considera-a apta para dar início a uma atividade profissional, sobretudo na atual conjuntura económico-social.
XVIII. Demonstrando, assim, parcialidade e até alguma incoerência na forma como o Tribunal a quo baseia a sua convicção, nesta parte.
XIX. A Recorrente não pode fazer prova de um rendimento que não tem, assim como não pode fazer prova da existência de património de que não é titular.
XX. O Réu, conforme se demonstrou documentalmente, é titular de vasto património imobiliário em ... e ....
XXI. O que daqui se pode retirar, com toda a certeza, é que o Réu, tem rendimentos muito superiores aos que declarou nos autos, o que também foi absolutamente desconsiderado por Tribunal a quo na sua decisão.
XXII. Relativamente à al. h) e al. j) dos factos dados como não provados, uma vez denota-se a incoerência na decisão proferida pelo Tribunal a quo, assim como a respetiva fundamentação.
XXIII. Por um lado, o Tribunal a quo dá como provado, no ponto 5 dos factos provados, que “a autora tem vindo a ser auxiliada economicamente pela sua irmã CC” e, na mesma sentença, admite o seu contrário (cf. alíneas h) e j) dos factos não provados). Mas então, em que ficamos?
XXIV. No entanto, em primeira linha, não é à irmã CC a quem compete prover ao sustento da Recorrente, mas sim ao ex-cônjuge, sobretudo quando este apresenta manifesta capacidade financeira para tal.
XXV. Razão pela qual se impunha, com o devido respeito, que deveria ter sido dado como provado que “Não fosse a ajuda permanente da sua irmã CC, que, desde 2014, lhe vem concedendo empréstimos sucessivos de dinheiro, a A. viveria abaixo do limiar da subsistência e que a dívida da A. para com a sua irmã CC, que se vem acumulando ao longo dos anos, ascende a mais de €5.000,00”.
XXVI. Por outro lado, não ficaram provados factos que impusessem, por equidade a negação do direito a alimentos, devendo aferir-se a medida da respetiva prestação pelos critérios do artigo 2016º-A do CC.
XXVII. Resultou provado que os rendimentos do Réu são manifestamente suficientes para prestar Alimentos à Recorrente, no valor de €300,00, e através de um mero exercício de raciocínio lógico, admitindo a hipótese de o Réu auferir apenas 1.300,00€ mensais, se tivesse de prestar alimentos à Autora no valor de 300,00€ mensais, o Réu ficaria sempre com um rendimento mensal disponível de 1.000,00€.
XXVIII. O que não deixa de ser uma quantia considerável para a sua subsistência, atenta a ausência de despesas que o Réu invocou e se demonstrou ter, à qual acrescem os saldos bancários existentes em contas bancárias tituladas pelo Réu e o seu vasto património imobiliário.
XXIX. Para além disso, o período temporal ocorrido entre o divórcio, ou até mesmo a separação de facto, é irrelevante no que toca à necessidade da atribuição de alimentos ao ex-cônjuge.
XXX. Na verdade, a Recorrente coloca em causa a objetividade de apreciação dos factos materiais que o Tribunal a quo manteve como razão da sua convicção, designadamente ao ter valorado indevidamente o depoimento da testemunha, não obstante o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador consignado expressamente na lei.
XXXI. Pelo exposto, com todo o devido respeito, é ininteligível a motivação do Tribunal a quo para decidir como decidiu, pelo que se requer a revogação da douta decisão proferida e, em sua substituição, ser proferida decisão que fixe a atribuição de uma pensão de alimentos à ora Recorrente, com todas as legais consequências.
XXXII. Quanto à obrigação de alimentos, encontra-se regulada nos artigos 2003º e seguintes do CC e os critérios a que deve obedecer a sua fixação estão previstos no artigo 2004º do CC que prescreve que “os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los” (nº1) e que “na fixação dos alimentos atender-se-á, outrossim, à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência”.
XXXIII. A estes critérios gerais, acrescem os que vêm previstos nos artigos 2015º e seguintes do CC, que contêm as disposições especiais relativas à assistência e aos alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges.
XXXIV. No presente caso, a Apelante, de 53 anos de idade, com um rendimento de €484,61, com uma despesa fixa de €339,00 para habitação e alimentação e despesa a rondar os €100,00 com medicação, sem casa própria, e não ter trabalhado durante a vigência do matrimónio, é manifesto que não tem meios de prover ao seu sustento e que está necessitada de alimentos.
XXXV. Por sua vez, o Réu, tem rendimentos que lhe permite auxiliar a autora, o que se demonstrou, quer através dos seus rendimentos, quer através da ausência de despesas demonstradas nos autos, quer por via dos saldos existentes nas contas bancárias.
XXXVI. Por outro lado, não ficaram provados factos que impusessem, por equidade a negação do direito a alimentos, devendo aferir-se a medida da respetiva prestação pelos critérios do artigo 2016º-A do CC. - Neste sentido, vide o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, 25.01.2018, Proc. 1701/16.7T8LRS-6, Relator Maria teresa Pardal, em dgsi.pt.
XXXVII. Face ao exposto, é forçoso concluir que o R. pode suportar, sem sacrifício de maior, as despesas com o sustento da sua ex-mulher.
XXXVIII. Tendo em conta as despesas da Apelante com o seu sustento, bem como os proventos auferidos pelo R. e a ausência de despesas demonstradas, torna-se evidente que, face ao disposto no art.º 2004º do Cód. Civil, aquela necessita, para o seu sustento, de uma pensão de alimentos mensal. - “Nestes termos, tendo em conta o já citado art.º 2004º, entendemos como perfeitamente justa e equilibrada a fixação de uma pensão de alimentos de (…)” - Assim decidiu o Tribunal da Relação de Évora, Acórdão de 23.11.2017, processo n.º 1388/06.5TBTMRE.E1 (Relator Rui Machado e Moura).
XXXIX. Quanto ao momento do pedido, veja-se o que decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 10.07.2013, processo n.º 304/11.7TMPRT-A.P1 (Relator Maria Amália Santos): “I - A situação de carência económica do ex-cônjuge deve ser analisada no momento em que a pensão de alimentos é pedida. II - Se o ex-cônjuge não conseguir prover à sua subsistência e o outro ex-cônjuge reunir condições económicas suficientes, deve ser decretada a pensão de alimentos a favor daquele, quantificada de acordo com os critérios legais previstos nos art.ºs 2003.º, 2004.º, 2016.º e 2016.º-A, todos do Código Civil.”
XL. A Apelante continua numa situação de absoluta dependência económica da irmã, que suporta o pagamento de todos os seus encargos e despesas, no entanto, não é a irmã que tem essa obrigação legal, em primeira linha.
XLI. Pois na escala dos legalmente obrigados à prestação de alimentos, no primeiro nível surge o ex-cônjuge (art.º 2009.º do Código Civil).
XLII. A obrigação de alimentos está regulada nos artigos 2003º e seguintes do CC e os critérios a que deve obedecer a sua fixação estão previstos no artigo 2004º do CC que prescreve que: “os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los” (nº1) e que “na fixação dos alimentos atender-se-á, outrossim, à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência”.
XLIII. A estes critérios gerais, acrescem ainda os que vêm previstos nos art.º 2015º e seguintes do CC, que contêm as disposições especiais relativas à assistência e aos alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges.
XVIV. Assim, também por uma questão de equidade, demonstrada e confirmada a carência de rendimentos, como poderia a Recorrente pagar as suas despesas à sua irmã, ou até mesmo pagar uma habitação, ou até um quarto, para viver de forma condigna e com a mesma dignidade com o Réu vive.
XLV. Neste sentido decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa n.º 1701/16.7 T8LRS-6 de 25.01.2018, considerou que “provando-se que um dos ex-cônjuges está necessitado de alimentos e que o outro ex-cônjuge está em situação de os prestar e não se provando circunstâncias que, por manifesta equidade, impusessem a negação dos alimentos, deverá o cônjuge requerido prestá-los, na medida das suas possibilidades.”
XLVI. Considera a Apelante que se encontra provado, documentalmente, que o Recorrido encontra-se em situação de poder prestar Alimentos, sendo evidente, também através da prova documental junta aos autos e aceite, que a Recorrente tem necessidade de os receber por carecer de auxílio para se sustentar, inexistindo (por não provadas) circunstâncias que, por equidade, imponham a negação de alimentos à Apelante.
XLVII. Ao não ter interpretado corretamente os artigos 2003.º, 2004.º e 2009.º do Código Civil no sentido exposto, o Tribunal a quo violou tais normas.
XLVIII. Pelo que, no contexto de todo o supra alegado, em consequência, as invocadas disposições legais deveriam ter funcionado e ser considerada procedente, por provada a necessidade da Recorrente em receber Alimentos do Réu e a capacidade financeira deste de os prestar.
XLIX. No seguimento do constante na precedente conclusão, decidindo conforme à mesma, deverá esse Venerando Tribunal “ad quem” decidir pela revogação da Douta Sentença recorrida e proferir uma outra, onde seja decida a procedência do pedido formulado pela Autora nos presentes autos.”
7 O Réu respondeu, pugnando pela rejeição do recurso ou, assim não sendo entendido, pela sua improcedência, com base nas seguintes conclusões (transcrição):
“1.ª Nas suas “Conclusões” a Recorrente não cumpriu o ónus previsto no art. 639.° do CPC, porquanto limitou-se a transcrever, na íntegra, todos os parágrafos da sua motivação, pelo que a repetição exata da motivação nas conclusões, equivale a falta de conclusões, conforme jurisprudência pacífica dos Tribunais Superiores, o que implica a rejeição do recurso.
2.ª A recorrente efetua a impugnação fáctica, unicamente sobre os Factos Não Provados A, B, D, F, G, H e J. No entanto, não especificou, as concretas passagens do depoimento da testemunha CC, que contrariem a matéria dada como Não provada pelo Tribunal a quo, limitando-se a transcrever, previamente, o depoimento (parcial) da referida testemunha, sem depois, indicar, concretamente e com exatidão, e em relação a cada facto não provado que considerou erradamente julgado, as concretas passagens que, no seu entender, impunham decisão diversa, incumprindo, desta forma, o ónus previsto no artigo 640.° n.º 1 e n.º 2 a) do CPC, pelo que deve o seu recurso ser rejeitado.
3.ª Sem prescindir, e no que se refere ao facto A, B e G dos “Factos Não Provados”, bem andou o Tribunal a quo na sua decisão, porquanto, a A. não fez prova que impusesse decisão diversa.
4.ª Provou o R., com a prova testemunhal por si arrolada, que a A. ao longo da sua vida não trabalhou mais porque não quis, como referiu a testemunha DD, no excerto gravado supra aludido, perguntado sobre se o R. proibia a mãe (A.) de trabalhar, responde que: É completamente mentira, ou seja, ela nunca foi obrigada a não trabalhar, antes pelo contrário, sempre teve liberdade para ela fazer o que ela quisesse “, (…) “e nunca neste ponto ele a proibiu de trabalhar. A minha mãe até teve algumas formações. Eu acho que ela teve oportunidade, se ela quisesse, de trabalhar. Mas pelo contrário.” (...) “Ela não procurava ativamente trabalho. Ela podia ter tido a oportunidade de trabalhar nalguma área. Num restaurante, ou coisa do género, mas ela nunca procurou ativamente trabalho.
5.ª No que se refere ao facto D) dos Factos Não Provados não provou a recorrente que sofresse de depressão (bipolaridade), nem a sua testemunha conseguiu concretizar a sua existência. Pelo que, bem andou a Meritíssima Juiz a quo ao considerar tal facto como Não provado.
6.ª No que se refere aos factos F e H dos Factos Não Provados ficou provado que a A. tem possibilidades económicas mais que suficientes para proceder ao pagamento das suas despesas mensais e tem um elevado aforro económico,
7.ª Pois, a única despesa mensal que a A, conseguiu provar, refere-se ao Lar onde a mesma habita (facto 14 dos Factos Provados), e que tem alimentação, água e luz incluída nessa despesa, como refere a testemunha DD, no excerto gravado supra aludido, “[...] Ela está num espaço, numa espécie de lar, (...)”. “Ela disse-me que paga cerca de duzentos e poucos euros para estar lá, ou seja, aquilo também tem alimentação...”, mais respondendo “Sim”, quando foi questionado sobre se o valor também engloba água e luz.
8.ª E a única despesa ocasional que a A, conseguiu provar, refere-se ao pagamento de despesa com tratamentos dentários que realizou (factos 8 a 13 dos factos provados), no montante total de 4842,00 €.
9.ª Não provou a A. a existência de quaisquer outras despesas mensais ou quaisquer outras.
10.º Ora, a A. aufere mensalmente a quantia de 484,61 € (facto 4 dos factos provados), pelo que ainda lhe sobra mensalmente a quantia de 145,61 €.
11.ª E a A. recebeu do R., a título de tornas das Partilhas por Divórcio, a quantia de 50.000,00 €, no dia 16/05/2022 (factos 19 e 20 dos factos provados), o qual tem guardado, conforme resulta do depoimento da testemunha CC, no excerto gravado supra aludido, que refere, em relação a este valor que: “O dinheiro está guardado”.
12.ª Valor este (tornas) que o R. só conseguiu pagar à A. após decurso ao crédito para esse fim, conforme prova documental junta aos autos (facto 19, 20 e 26 dos Factos Provados) e que a testemunha DD, no seu depoimento, cujo excerto gravado supra se aludiu, esclarece que: (...) Paga empréstimo sim. Na altura, quando houve a partilha, o meu pai teve que pedir um empréstimo para pagar à minha mãe. (...) 50.000,00 euros. (...) Ele pagou esse valor. Contrair um empréstimo. Aliás, eu sou fiador.”
13.ª Deste modo, resulta claramente, tal como ficou amplamente provado da douta sentença, que a A. não carece de quaisquer alimentos, nem sofre de quaisquer necessidades económicas, seja a que título for, pelo que, bem andou a Meritíssima Juiz a quo ao considerar como Não Provados os factos F e H.
14.ª No que se refere ao facto J dos “Factos Não Provados, não provou a recorrente em momento algum o facto constante em J, nem a sua testemunha CC conseguiu concretizar o que quer que fosse em relação a esta alegada “dívida”, pelo que a decisão da Meritíssima Juiz a quo ao considerar tal facto como Não provado, não merece qualquer censura.
15.ª No que respeita à obrigação de Alimentos invocada pela Recorrentes ficou provado na douta sentença sub judice, que a A./Recorrente não carece de alimentos,
16.ª Nem o R./Recorrido tem possibilidade de os prestar, conforme resulta também dos factos 19 a 27 dos factos provados, e todos os documentos comprovativos das despesas mensais e anuais, os quais não foram impugnados pela A., e que o Tribunal a quo considerou para prova de tais factos, e nos quais se constatam todas as despesas mensais do R.,
17.ª A que se aliam os parcos rendimentos auferidos pela sua atividade profissional, conforme prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, como refere a testemunha DD, no seu depoimento gravado, a que supra se aludiu, referindo que o seu pai, aufere mensalmente em média: “Ele recebe por volta de 700. Mais ou menos 700. Nas alturas de Verão recebe mais ou bocadinho, mas é por volta disso.”; mais referindo que a título de renda de casa o seu pai paga “250 euros; referindo, ainda, que o seu pai teve que contrair um empréstimo bancário para pagar os 50.000,00 € à sua mãe a título de tornas: “Paga empréstimo sim. Na altura, quando houve a partilha, o meu pai teve que pedir um empréstimo para pagar à minha mãe. (…) 50 000 euros. (…) “Ele pagou esse valor. Contraiu um empréstimo. Aliás, eu sou fiador.”
18.ª Também a testemunha EE, cujo depoimento se encontra gravado e a que supra se aludiu, referiu as condições de trabalho e de clientela do R.: “Não tem empregado nenhum.” (...) trabalha sozinho. (...) tem muito pouca clientela. Está muitas vezes ló sem fazer nada. (…) Leva 7 euros (por corte de cabelo); (...) “Ele chega a estar horas sem fazer nada. Sei lá. 4, 5 homens por dia, talvez.”
19.ª Como tal, a decisão proferida pelo Tribunal a quo na Fundamentação de Direito não merece qualquer censura ou reparo porquanto, resulta amplamente provado, quer a nível de prova documental junta pelo R., quer a nível da prova testemunhal deste, que o Recorrido não tem possibilidades económicas de prestar alimentos à A.., nem esta não tem necessidade de os receber.
20.ª Assim, a A. carece totalmente de razão com o recurso interposto da matéria de facto e de direito.
21.ª O Tribunal a quo, não violou qualquer normativo legal e aplicou corretamente a lei e o direito, fazendo a justiça que se impunha ao julgar a ação totalmente improcedente, absolvendo o R. do pagamento de qualquer quantia a título de pensão de alimentos à Autora.”
8 O recurso foi admitido pela 1.ª instância como apelação, com efeito devolutivo e subida nos próprios autos, o que não foi alterado neste Tribunal ad quem.

***
II.
9 1) Como se constata, o Recorrido suscita a questão da rejeição do recurso dizendo, em suporte, que a Recorrente não observou o ónus de formular conclusões, consagrado no art. 639/1, parte final, do CPC.
Quid inde?
10 Diz o n.º 1 do art. 639 do CPC que “[o] recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.”
Daqui decorre que o recorrente está obrigado a cumprir dois ónus. O primeiro é conhecido como o ónus de alegação, no cumprimento do qual se espera que o recorrente analise e critique a decisão objeto de recurso, identificando as deficiências ou erros, tanto de facto como de direito, que, na sua perspetiva, afetam essa decisão. Deve apresentar argumentos e fundamentar as razões pelas quais discorda da decisão proferida.
O ónus de alegação é satisfeito mediante a exposição detalhada das razões de facto (incluindo a possível impugnação da decisão de facto do tribunal recorrido) e de direito que fundamentam a divergência do recorrente em relação à decisão recorrida. Espera-se, portanto, que o recorrente expresse, de forma mais ou menos desenvolvida, os motivos pelos quais contesta a decisão, destacando as razões pelas quais a considera incorreta ou injusta, através de argumentação sobre os factos, o resultado da prova, a interpretação e a aplicação do direito, além de especificar o objetivo que pretende alcançar com o recurso.
11 O segundo ónus, denominado ónus de concisão ou de conclusão, implica a necessidade de encerrar as alegações recursivas com a formulação resumida de conclusões, onde se resumem ou condensam os fundamentos pelos quais se pretende que o tribunal superior modifique ou revogue a decisão do tribunal a quo. Conforme escreve Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 359), "a palavra conclusões é expressiva. No contexto da alegação, o recorrente procura demonstrar esta tese: que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, no final da minuta.”
Como salienta o mesmo autor, “para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.”
Compreende-se que assim seja, uma vez que no nosso sistema de recursos incide sobre o recorrente um específico ónus de impugnação da decisão recorrida, não lhe sendo lícito limitar-se a colocar à reapreciação do tribunal superior, em termos globais e sincréticos, toda a situação litigiosa, devendo, por isso, especificar nas conclusões da sua alegação quais as questões a decidir, nomeadamente os pontos de facto ou de direito que, por terem sido, na sua ótica, incorretamente julgados pelo tribunal a quo, pretende que sejam reapreciados pelo tribunal ad quem. É precisamente esta a função das conclusões, enunciando sinteticamente o recorrente quais são as questões que integram o objeto do recurso, qual é o preciso âmbito da impugnação deduzida – isto é, se o recurso visa uma impugnação da matéria de facto (devendo então especificar quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados) ou também uma impugnação da solução jurídica da causa, cabendo-lhe então naturalmente especificar quais as normas ou interpretações normativas que tem por violadas, delimitando, assim, o objeto da atividade jurisdicional do tribunal hierarquicamente superior, ou seja o thema decidendum.
12 Como facilmente se percebe, não se pretende que as conclusões sejam uma mera reprodução da alegação, facilitada pelos meios informáticos. Daí que haja, na doutrina e na jurisprudência, quem entenda que a mera reprodução do conteúdo da motivação das alegações redunda numa inobservância do ónus de formular conclusões, devendo ter como consequência a rejeição do recurso, nos termos previstos no art. 641/2, b), do CPC. É o caso de Fernando Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 168), e de João Aveiro Pereira (“O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil”, disponível em https://trl.mj.pt/estudos-e-intervencoes/). De acordo com o último autor, “a prática usual é a reprodução informática do corpo das alegações na área do documento que deveria ser preenchida com as conclusões. Sob esta epígrafe duplica-se e repisa-se o texto expositivo, sem se apresentarem verdadeiras conclusões. (…) Em boa verdade, o recurso a este expediente de “copy paste”, para duplicar as alegações como se fosse para concluir, revela um uso abusivo dos meios automáticos de processamento de texto e conduz à inexistência material de conclusões, pois se, sob este título, apenas se derrama sobre o papel, em termos integralmente repetitivos, o teor da parte analítica e argumentativa, o que de facto se oferece ao tribunal de recurso é uma fraude. Por consequência, apesar de aqui ou ali se mudar, cosmeticamente, uma ou outra palavra, o que realmente permanece, inelutável, é um vazio conclusivo (…)“ Na jurisprudência, podem ver-se, no sentido exposto, inter alia, RC 14.03.2017 (6322/11.8TBLRA-A.C2), RP 27.01.2020 (2817/18.0T8PNF.P1), RL 24.02.2022 (185/21.2YHLSB.L1-PICRS) e RP 17.06.2021 (67960/19.3YIPRT.P1).
13 De acordo com António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 187, nota 321), “[e]mbora seja claramente errada a reprodução no segmento das conclusões do teor da motivação, tal não corresponde a uma situação de falta de conclusões. Mais se ajusta considerar que se trata de conclusões excessivas ou prolixas, dirigindo ao recorrente um despacho de convite ao aperfeiçoamento, sem embargo da aplicação de alguma sanção sustentada na violação clara de um ónus processual.” Este tem sido o entendimento consistente do STJ, como se pode constatar, a título meramente exemplificativo, dos Acórdãos de 9.11.2022 (539/22.7T8STS.P1.S1) e 13.12.2022 (2952/21.8T8OAZ.P1.S1).
Por ilustrativa, respigamos a seguinte passagem do 1.º, relatado pelo Juiz Conselheiro Luís Espírito:
“Trata-se, portanto e diferentemente, de uma situação de conclusões complexas ou excessivas, por contraposição ao respetivo corpo de alegações, a que é aplicável o regime previsto no artigo 639º, nº 3, do Código de Processo Civil.
É o que, de resto, sempre resultaria ainda da aplicação dos princípios gerais pro actione, da proporcionalidade (artigo 18º, nº 2 e 3, e 20º da Constituição da República Portuguesa), da cooperação e colaboração entre os sujeitos processuais e o tribunal (artigos 6º e 7º do Código de Processo Civil).
Tal não significa, como se compreende, permitir livremente a apreciação do recurso sem que a parte tenha dado o devido cumprimento ao referido ónus de síntese conclusiva, mas apenas evitar, por desproporcional e não razoável, a cominação da rejeição do recurso com fundamento neste incumprimento de índole meramente formal, permitindo que a parte o passa sanar, no prazo que venha a fixar-se, salvaguardando-se assim a possibilidade do conhecimento do mérito da sua pretensão.
Conforme enfatizam Jorge Miranda e Rui Medeiros in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora 2005, a páginas 190 a 191:
“O direito ao processo traduz-se no direito de abertura de um processo após a apresentação da pretensão inicial, com o consequente dever do órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada (...)
Em qualquer caso, e antecipando considerações que não podem ser dissociadas da ideia de um processo equitativo, os regimes adjetivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado, nos termos do artigos 13º e 18º, nºs 2 e 3, a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (...) O direito ao processo, conjugado com o direito à tutela jurisdicional efetiva, impõe, por conseguinte, a prevalência da justiça material sobre a justiça formal, isto é, sobre uma pretensa justiça que, sob a capa de “requisitos processuais” se manifeste numa decisão que, afinal, não consubstancie mais que uma simples denegação de justiça.
O princípio pro actione, assim afirmado, não impede, naturalmente, a existência de requisitos ou pressupostos processuais e não significa, mesmo nos litígios que opõem os particulares aos poderes públicos, pro particular, pois não opera no plano do direito material, mas no plano do direito processual. Por isso, em rigor, a titularidade do direito de acesso aos tribunais não pressupõe a efetiva titularidade de um direito ou interesse legalmente protegido, lesado ou ameaçado. Aliás, bem vistas as coisas, no âmbito do artigo do artigo 20º, e uma vez que é legítima a interposição por lei de ónus processuais às partes, o tribunal nem sequer está vinculado “a que, seja qual for a conduta processual da parte, se profira sempre uma decisão sobre o mérito da causa” (e ainda que no meio processual utilizado se visa a tutela de hipotéticos direitos fundamentais) e se faculte, enquanto ela não for proferida, o recurso da mais alta instância dos tribunais judiciais.
Porém, o princípio pro actione impede que simples obstáculos formais sejam transformados em pretextos para recusar uma resposta efetiva à pretensão formulada. A ideia da favor actionis aponta outrossim para a atenuação da natureza rígida e absoluta das regras processuais.
Tais princípios de natureza constitucional – artigos 18º, nº 2 e 3, e 20º da Constituição da República Portuguesa –, absolutamente estruturantes do sistema judiciário português, consagram e impõem, neste sentido, a superior prevalência dos vetores fundamentais que exigem a salvaguarda da real e substantiva possibilidade de afirmação material das pretensões formuladas em juízo, sem a colocação de obstáculos de índole processual desproporcionados ou excessivamente formalistas que, as impeçam, diminuam ou dificultem injustificadamente, impondo-se o primado da substância (verdade material) sobre a forma (verdade estritamente processual), enquanto concretização do princípio pro actione.
Não se aceita, de todo, a perspetiva puramente rigorista e formalista adotada no acórdão recorrido que, na sua longa dissertação, parece ter esquecido o essencial: a possibilidade de afirmação em juízo da pretensão material apresentada pela parte (concretamente o direito à impugnação de uma decisão judicial, através da legítima interposição de um recurso onde estão presentes alegações e conclusões) prevalece no sistema processual civil contemporâneo sobre a excessiva e não imperiosa valorização de entraves formalistas e desproporcionais marcados pela injustificada definitividade do efeito cominatório que desse modo produzem.”
14 A nosso ver, a repetição das alegações nas conclusões é uma prática que, além de evidenciar má técnica processual, é desprovida de qualquer racionalidade. A repetição nada acrescenta, redundando num mero desperdício de espaço e, quando há lugar à impressão, de papel e tinta. Sem prejuízo, tratando-se de uma questão estritamente formal, aceitamos o entendimento do STJ e acrescentamos-lhe mesmo que, em determinadas situações, não se justifica sequer a prolação de um despacho de convite, com o inerente atraso que o mesmo provoca na regular tramitação do recurso. Referimo-nos às situações em que, não obstante o vício, se consegue, a um tempo, descortinar, sem margem para dúvidas, qual é o objeto da pretensão recursiva e, a outro, perceber que dali não resultou qualquer prejuízo para que o recorrido exercesse o seu direito ao contraditório. São, no fundo, aquelas situações em que o que consta das conclusões, sendo embora repetição da alegação, não deixa, no entanto, de cumprir a função que está pensada pelo legislador para a parte da alegação recursiva em causa. A isto soma-se ainda a constatação de que, na maioria das vezes em que o convite ao aperfeiçoamento é dirigido à parte que não cumpriu o ónus de sintetizar a sua pretensão, o que ocorre é uma mera operação de cumprimento formal do despacho proferido pelo Relator para não dar azo à imediata rejeição do recurso, reduzindo-se aqui ou ali as conclusões, por vezes com mera junção de dois parágrafos num. Deste modo, entendemos que, quando verificados aqueles dois requisitos, o vício é inócuo. Neste sentido, escreve-se em RP 13.07.2022 (1708/19.2T8VNG.P1), relatado pelo Juiz Desembargador Mendes Coelho, que, “[n]ão obstante (…) as conclusões repetirem de forma praticamente integral o texto utilizado no corpo das alegações, as mesmas cumprem perfeitamente a sua função de delimitação do objeto do recurso (como previsto nos arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), já que, independentemente de qualquer juízo de procedência ou improcedência sobre o seu conteúdo, enunciam de forma clara as questões suscitadas pelos recorrentes (a alteração da matéria de facto por si pretendida e a sua discordância da sentença quanto à não ponderação da redução do preço da empreitada, quanto à validade e tempestividade da invocação de defeitos e quanto ao seu direito à resolução do contrato) e, como se vê das contra-alegações do recorrido, foram perfeitamente percecionadas por este, que exerceu o seu contraditório pronunciando-se sobre elas.”
15 É precisamente o que sucede no caso vertente: apesar de a Recorrente se ter, pura e simplesmente, demitido de formular conclusões qua tale, limitando-se a reproduzir, ipsis verbis, sob esse título, a alegação, com exceção das transcrições do depoimento da testemunha em que baseou a sua pretensão de ver modificada a decisão quanto à matéria de facto, tal em nada prejudicou a resposta do Recorrido nem nos impede de compreender a pretensão da Recorrente.
16 Deste modo, improcede esta questão prévia.
***
III.
17 Tendo em conta o objeto da pretensão recursiva, as questões colocadas pela Recorrente podem ser sintetizadas nos seguintes termos:
1.ª Impugnação da matéria de facto: a prova produzida impõe que as afirmações de factos das alíneas a), b), d), f), g), h) e j) do rol dos factos não provados sejam consideradas como provadas, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo;
2.ª Erro na subsunção dos factos às normas jurídicas aplicáveis, mais concretamente as dos arts. 2003, 2004, 2009/1, a), e 2016/2 do Código Civil, o que pressupõe que se apure se: a situação coeva do encerramento da discussão da ação que correu termos sob o n.º 291/19.... sofreu alteração, encontrando-se agora a Autora necessitada de alimentos e o Autor com possibilidades de os prestar.
***
IV.
18 1) Vejamos a resposta a dar às questões enunciadas, começando, para esse efeito, por reproduzir a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
19 Assim, foram ali considerados como provados os seguintes factos (transcrição):
“1. Autora e Réu contraíram casamento católico no dia 29 de julho de 1989.
2. Autora e Réu deixaram de viver juntos (de partilhar habitação, de dormir juntos e de tomar as refeições em conjunto) a partir do Verão de 2014.
3. Por sentença proferida em .../.../2016 no âmbito da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge n.º 209/14...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre a Autora e o Réu.
4. A autora aufere uma pensão de invalidez no montante mensal de € 484,61.
5. A autora tem vindo a ser auxiliada economicamente pela sua irmã CC.
6. A Autora possui um grau de incapacidade de 69%.
7. A Autora tem acompanhamento médico e toma medicação regularmente.
8. A Autora despendeu em tratamentos dentários a quantia de € 270,00, por fatura datada de 07/10/2022 e paga.
9. A Autora despendeu em tratamentos dentários a quantia de € 2.137,50, por fatura datada de 06/09/2022 e paga.
10. A Autora despendeu em tratamentos dentários a quantia de € 135,00, por fatura datada de 30/08/2022 e paga.
11. A Autora despendeu em tratamentos dentários a quantia de € 1.125,00, por fatura datada de 30/01/2023 e paga.
12. A Autora despendeu em tratamentos dentários a quantia de € 1.125,00, por fatura datada de 02/03/2023 e paga.
13. A Autora despendeu em tratamentos dentários a quantia de € 49.50, por fatura datada de 27/03/2023 e paga.
14. A Autora despende a quantia mensal de € 339,00 a título de despesas de habitação e alimentação pelo local onde reside, com supervisão de terceiros.
15. A Autora depende de terceiros para satisfazer as suas necessidades de alimentação, higiene e vestuário e não é autónoma na toma da medicação diária.
16. Correu termos neste Tribunal a ação de processo comum n.º 291/19...., no qual a ora A. intentou contra o ora R. uma ação na qual pediu que o R. fosse condenado, entre outro pedido, a “Pagar uma pensão de alimentos (...)”.
17. No referido processo foi proferida sentença, tendo o Tribunal julgado a ação totalmente improcedente e absolvido o R. do pedido.
18. Tal sentença transitou em julgado no dia 16/12/2020.
19. A Autora recebeu do Réu, no ano de 2022, a quantia de 50.000 € (cinquenta mil euros), a título de pagamento das tornas a que a mesma tinha direito no âmbito do processo de Inventário n.º ...0... (Partilha por Divórcio), que correu termos neste Juízo de Competência Genérica ..., conforme decorre do Acordo (Ata de Conferência de Interessados), datado de 25.11.2021, homologado por sentença, transitada em julgado em 27.01.2022.
20. O pagamento das tornas à A., no montante de 50.000 €, foi efetuado pelo R. no dia 16.05.2022, para a conta bancária indicada pelo mandatário da ali Requerente no processo de Inventário, ora Autora.
21. O R. é cabeleireiro/barbeiro, trabalha sozinho, sendo a sua clientela diminuta, e não tem empregados a seu cargo.
22. O Réu habita em casa arrendada, pagando mensalmente, a título de renda, a quantia de € 250,00.
23. O R. tem ainda os encargos com o respetivo agregado familiar, incluindo a sua filha atualmente com 18 anos de idade, que é também filha da A., tais como alimentação, vestuário, entre outras despesas.
24. O Réu despendeu em agosto de 2022 o montante de € 18,20 em água para o estabelecimento de cabeleireiro que explora.
25. O Réu despendeu no ano de 2021 com o pagamento de IMI referente à habitação e garagem em ... e loja e garagem em ..., a quantia anual de € 284,54.
26. O Réu é mutuário de um crédito à habitação na Banco 1... que contraiu para pagar o montante devido a título de tornas à Autora referido em 19, pelo qual suporta encargos mensais atualmente no montante de € 403,16.
27. O Réu na sua declaração de IRS referente ao ano de 2022 apresentou como rendimento global (conjuntamente com FF) o valor de € 7.363,95.”
20 E foram considerados como não provadas as seguintes afirmações (transcrição):
“A. Na vigência de 27 anos de casamento, por exclusiva vontade do réu, a Autora não exerceu qualquer atividade profissional remunerada.
B. A Autora dedicou-se, sempre e em exclusivo, às lides domésticas e a cuidar dos filhos do casal.
C. A autora vive em casa arrendada, no que despende cerca de €200,00 mensais.
D. A Autora sofre de depressão (bipolaridade).
E. Que a Autora, nas circunstâncias referidas em 7, despende mensalmente cerca de €100,00 (cem euros) em medicação.
F. A Autora não consegue fazer face aos restantes encargos com a sua saúde, alimentação e vestuário.
G. Enquanto mantiveram vida em comum, a A. esteve privada de desempenhar profissão de carácter permanente, por imposição do Réu, o que lhe gera hoje a impossibilidade de auferir pensão de reforma compatível com as suas necessidades.
H. Não fosse a ajuda permanente da sua irmã CC, que, desde 2014, lhe vem concedendo empréstimos sucessivos de dinheiro, a A. viveria abaixo do limiar da subsistência.
I. Com o valor das tornas pagas pelo Réu a A. terá que comprar uma casa de habitação, pelo que, estando impossibilitada de recorrer a Crédito Bancário, terá que dispor, de uma só vez, de quantia não inferior a 40.000,00€.
J. A Autora tem uma dívida para com a sua irmã CC, que se vem acumulando ao longo dos anos e que, atualmente, ascende a mais de 5.000,00€.
K. A Autora na década de 90 trabalhou, ainda que de forma temporária, em ..., na área da restauração, e entre os anos de 2002 e 2006/2007, aproximadamente, a A. frequentou cursos de formação profissional em Portugal, pois nesse período já cá residia com o Réu, sendo tais cursos remunerados.
L. Desde 2007 até 2014, foi o R. que, além da sua atividade profissional de barbeiro, teve que gerir, quase em exclusivo, a casa de habitação, confecionando as refeições, limpeza da habitação, cuidava da A. e dos restantes dois filhos do casal (a nível de alimentação, higiene e escolaridade).
M. Padecendo de “doença bipolar” a A. não fica, por via disso, impedida de exercer qualquer atividade profissional; pode, querendo, fazê-lo, adequando as suas atividades profissionais à alegada doença.
N. Que o Réu despende com a sua filha uma média mensal de 200/250 €.
O. O Réu despendeu em setembro de 2022 o montante de € 19,48 em água para a habitação onde reside.”
21 A decisão da matéria de facto foi fundamentada, pelo Tribunal a quo, nos seguintes termos (transcrição):
“A convicção do Tribunal sobre a matéria dada como provada e não provada fundou-se na apreciação crítica e conjugada dos depoimentos testemunhais e da prova documental junta ao processo.
Para prova dos factos assentes em 1 e 3 foi tido em conta o teor da certidão junta pela Autora como Doc. ... da petição inicial, as quais atestam a data de casamento e do divórcio celebrado entre a Autora e o Réu.
Para prova do facto assente em 2 foi tido em conta o teor da sentença proferida na ação de processo comum n.º 291/19.... a par do depoimento da testemunha CC, irmã da Autora, que explicou que desde o ano de 2014 a Autora vive consigo.
Para prova do facto assente em 4 foi tido em conta o teor do extrato junto pela Autora como Doc. ... da petição inicial.
Para prova do facto assente em 6 foi tido em conta o teor do documento junto pela Autora como Doc. ... da petição inicial.
Para prova dos factos assentes em 5, 7 e 15 foi tido em conta o teor do depoimento da testemunha CC, irmã da Autora, que explicou que esta não tem atualmente capacidade para residir sozinha, necessitando de apoio de terceiros, e que não é capaz de se organizar na toma de medicação e na gestão das atividades da vida diária.
Por tal motivo, e com base no que afirmou a referida testemunha, resultaram não provados os factos referidos em C) e I), posto que a própria testemunha da Autora afirmou que esta não tem capacidade para viver sozinha, pelo que nunca poderia esta pretender adquirir uma habitação para residir por si própria e sem auxílio de terceiros.
De modo coincidente, a Autora não logrou fazer qualquer prova quanto ao montante de que necessitaria para aquisição de uma habitação, pelo que resultou não provado o referido em I).
Para prova dos factos assentes em 8 a 14 foi tido em conta o teor dos documentos juntos pelo requerimento da Autora datado de 26/06/2023.
Com efeito, da declaração aí junta e datada de 22/06/2023 resulta que a Autora suporta a quantia de € 339,00 mensais, o que de todo o modo se aproxima da quantia de € 300,00 mensais que a testemunha CC referiu que a sua irmã suporta a título de despesas de alimentação.
Daí decorre que, tendo em conta o teor da prova documental junta, o Tribunal ficou convencido que é a quantia referida em 14 que a Autora suporta mensalmente.
Para prova dos factos assentes em 16 a 18, 26 e 27 foi tido em conta o teor da certidão do referido processo junta aos autos pelo Réu por requerimento datado de 23/06/2023 bem como a declaração de IRS junta no mesmo requerimento e a declaração da Banco 1... dele constante.
Para prova dos factos assentes em 19 e 20 foi tido em conta o teor da certidão do referido processo junta aos autos pelo Réu com a respetiva contestação.
Para prova dos factos assentes em 22, 24 e 25 foi tido em conta o teor dos documentos ... a ... juntos aos autos pelo Réu com a respetiva contestação.
Para prova dos factos assentes em 21 e 23 foi tido em conta o depoimento da testemunha EE, cliente do Réu, reformado, que explicou que muitas vezes vê o Réu “desocupado”, e que este tem pouca clientela, o que foi igualmente referido de modo credível pela testemunha GG.
Explicaram ainda as testemunhas GG e EE que a filha da Autora e Réu tem atualmente 18 anos e se encontra a seu cargo, pretendendo frequentar brevemente a universidade, pois tem atualmente 18 anos.
Tais factos foram ainda corroborados pelo depoimento da testemunha DD, filho da Autora e Réu, que explicou que o Réu trabalha sozinho e vive com algumas dificuldades, sendo que a sua irmã pretende frequentar a Universidade no próximo ano e terá de a ajudar financeiramente juntamente com o pai, pois este por si só não tem capacidade económica para suportar tal despesa.
Por outro lado, não se mostrou credível o depoimento da testemunha CC quando referiu que o Réu não “deixava” a Autora trabalhar, ao contrário do que foi referido de forma objetiva e sincera pelo filho de ambos, que explicou inclusivamente que a sua mãe “não procurava ativamente trabalho”. Pelo que por tal motivo resultaram não provados os factos referidos em A, B e G.
Todos os demais factos dados como não provados resultam da ausência de prova bastante a se respeito.”
***
22 2) Vejamos agora a 1.ª questão, começando por lembrar que, na resposta ao recurso, o Recorrido sustenta que a Recorrente “não especificou as concretas passagens do depoimento da testemunha CC, que contrariem a matéria dada como não provada pelo Tribunal a quo, limitando-se a transcrever, previamente, o depoimento (parcial) da referida testemunha, sem depois, indicar, concretamente e com exatidão, e em relação a cada facto não provado que considerou erradamente julgado, as concretas passagens que, no seu entender, impunham decisão diversa, incumprindo, desta forma, o ónus previsto no art. 640/1 e 2, a), do CPC.” Conclui que a pretensão de ver modificada a decisão quanto à matéria de facto deve ser rejeitada.
***
23 2) Os termos a observar na impugnação da decisão da matéria de facto perante a Relação são expostos, de forma exaustiva, no Acórdão desta Relação de 2.11.2017 (212/16.5T8MNC.G1)[1], relatado pela Desembargadora Maria João Matos, que transcrevemos:
“(…) reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto ”nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência”, mas, tão-somente, “detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento” (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recurso”, conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228, …).
Lê-se, assim, no art. 640º, n 1 do C.P.C. que, quando “seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Precisa-se ainda que, quando “os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados”, acresce àquele ónus do recorrente, “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (art. 640º, nº 2, al. a) citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c) do nº 1 do art. 640º citado), “vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes”, “impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 129…).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efetividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional e processual civil - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respetiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).
(…)
Ainda que com naturais oscilações - nomeadamente, entre a 2ª Instância e o Supremo Tribunal de Justiça - (muito bem sumariadas no Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo nº 6617/07.5TBCSC.L1.S1, e no Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 157/12-8TVGMR.G1.S1) -, vêm sendo firmadas as seguintes orientações:
. os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.04.2014, Abrantes Geraldes, Processo nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1);
. não cumprindo o recorrente os ónus impostos pelo art. 640º, nº 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (nesse sentido, Ac. da RG, de 19.06.2014, Manuel Bargado, Processo nº 1458/10.5TBEPS.G1, e Ac. do STJ, de 27.10.2016, Ribeiro Cardoso, Processo nº 110/08.6TTGDM.P2.S1);
. a cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da “exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso”), não funciona aqui, automaticamente, devendo o Tribunal convidar o recorrente, desde logo, a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (neste sentido, Ac. do STJ, de 26.05.2015, Hélder Roque, Processo nº 1426/08.7CSNT.L1.S1);
. dever-se-á usar de maior rigor no apreciação cumprimento do ónus previsto no nº 1 do art. 640º (primário ou fundamental, de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo, mantido inalterado), face ao ónus previsto no seu nº 2 (secundário, destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1);
. o ónus de indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicção com exatidão das passagens da gravação onde se funda o recurso só será idónea a fundamentar a rejeição liminar do mesmo se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (neste sentido, Ac. do STJ, de 26.05.2015, Hélder Roque, Processo nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, Ac. STJ de 22.09.2015, Pinto de Almeida, Processo nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1, e Ac. do STJ, de 19.01.2016, Sebastião Póvoas, Processo nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, onde se lê que o ónus em causa estará cumprido desde que o recorrente se reporte à fixação eletrónica/digital e transcreva os excertos que entenda relevantes, de forma a permitir a reanálise dos factos e o contraditório);
. cumpre o ónus do art. 640º, nº 2 do C.P.C. quando não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento, como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da ata, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1); ou quando o recorrente identificou as testemunhas EE, FF e GG, assim como a matéria sobre a qual foram ouvidas, referenciou as datas em que tais depoimentos foram prestados e o CD onde se encontra a respetiva gravação, indicando o seu tempo de duração, e, para além disso, transcreveu e destacou a negrito as passagens da gravação tidas por relevantes e que, em seu entender, relevavam para a alteração do decidido (neste sentido, Ac. do STJ, de 18.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 476/09.oTTVNG.P2.S1);
. a apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo nº 405/09.1TMCBR.C1.S1); nem o faz o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.05.2015, Granja da Fonseca, Processo nº 460/11.4TVLSB.L1.S1);
. servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, mas bastando quanto aos demais requisitos desde que constem de forma explícita na motivação do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, Ac. do STJ, de 01.10.2015, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 03.12.2015, Melo Lima, Processo nº 3217/12.1TTLSB.L1-S1, Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 861/13.3TTVIS.C1.S1, e Ac. do STJ, de 21.04.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 449/10.0TVVFR.P2.S1);
. não deve ser rejeitado o recurso se o recorrente seguiu uma determinada orientação jurisprudencial acerca do preenchimento do ónus de alegação quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 640º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo nº 6617/07.5TBCSC.L1.S1);
. a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1).
Compreende-se, por isso, que se afirme que a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 128 e 129…).”
Precisando o ónus previsto na alínea c) do n.º 2 do art. 640, o STJ proferiu, recentemente, Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (Acórdão de 17.10.2023, no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1), com a seguinte fórmula uniformizadora: “Nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
***
24 3) Partindo do que antecede, vejamos se, como defende o Recorrido, a Recorrente soçobrou no cumprimento dos apontados ónus.
Assim,
(i) Quanto à indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados: A Recorrente discriminou, nas conclusões, os pontos da matéria da fundamentação de facto da sentença recorrida que, na sua ótica, foram incorretamente julgados, a saber, as afirmações das alíneas a), b), d), f), g), h) e j) do rol dos factos não provados;
(ii) Quanto à indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados: a Recorrente indicou, tanto nas alegações como nas conclusões, o depoimento da testemunha CC, o qual ficou gravado no sistema informático de apoio à atividade dos tribunais;
(iii) Quanto à indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida acerca dos indicados pontos da matéria de facto: a Recorrente afirmou, tanto nas alegações como nas conclusões, que as afirmações das referidas alíneas a), b), d), f), g), h) e j) devem ser consideradas como provadas;
(iv) Quanto à indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes: a Recorrente fez, na alegação de recurso, a transcrição do depoimento da referida testemunha, omitindo, no entanto, qualquer referência às concretas partes do mesmo que impõem decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal a quo quanto a cada um dos factos considerados como não provados. Na verdade, a este propósito, a Recorrente, limitou-se a escrever, genericamente, que, no seu entender, a afirmação da alínea a) ficou plenamente (sic) demonstrada através do depoimento da testemunha CC, não indicando o segmento de tal depoimento em que se baseia para retirar semelhante conclusão. Quanto às demais afirmações que pretende sejam consideradas como provadas, pura e simplesmente demitiu-se de as compaginar com o referido depoimento. E se ainda acrescentou, quanto à decisão de considerar não provadas as afirmações das alíneas f), h) e j), que ficaram cabalmente (sic) demonstradas ou que o Tribunal a quo decidiu erradamente, certo é que nada mais disse quanto às afirmações das alíneas b), d) e g).
Perante isto, concluímos que assiste razão ao Recorrido: a Recorrente não observou o último dos apontados ónus, o que tem como consequência necessária a rejeição da sua pretensão de ver modificada a decisão da matéria de facto.
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25 3)Independentemente do que antecede, sempre seria caso para recusar o conhecimento da impugnação da matéria de facto, pelas razões que, sucintamente, vamos alinhar.
26 Assim, em 1.º lugar, relembramos que esta é a segunda ação que a Recorrente propôs contra o Recorrido pedindo a condenação deste a prestar-lhe alimentos. A anterior ação, que correu termos sob o n.º 291/19...., foi julgada improcedente, por sentença transitada em julgado.
Como é sabido, com o trânsito da sentença em julgado, produz-se o caso julgado. É o que resulta do disposto no n.º 1 do art. 619 do CPC, onde está plasmada a noção de caso julgado material. Aí se diz que, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580 e 582...”
Através deste instituto pretende-se evitar que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, obstando a que sobre uma mesma situação recaiam decisões contraditórias. Trata-se, no fundo, de um meio de garantir a boa administração da justiça, funcionalidade dos tribunais e salvaguarda da paz social, o que só é possível alcançar se sobre os litígios recaírem decisões definitivas. Sem esta proteção, a função jurisdicional seria meramente consultiva; as opiniões – resoluções, na verdade – dos juízes e dos tribunais, não seriam obrigatórias, já que podiam ser provocadas e repetidas de acordo com a vontade dos interessados. Em especial as sentenças, produto mais relevante do poder judicial, deixariam de sujeitar as partes; a sua execução seria sempre provisória; enfim, a segurança do tráfico entre os homens ficaria terrivelmente ameaçada. Não está, portanto, em causa a ideia de que a decisão transitada em julgado é expressão da verdade dos factos, mas a segurança jurídica.
Simplesmente, porque o caso julgado se constitui tendo por referência um determinado momento temporal – o do encerramento da discussão na audiência final (art. 611/1 do CPC) –, entende-se que não há identidade de causa de pedir quando, numa segunda ação, são invocados factos novos – isto é, factos ocorridos ou conhecidos depois daquele momento. Na verdade, todas as sentenças estão sujeitas à cláusula rebus sic stantibus, pelo que a alteração da causa de pedir imposta por aqueles factos novos torna ineficaz o caso julgado. A este propósito, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, pp. 750-751) falam nos limites temporais do caso julgado. É assim possível a rediscussão com base em factos ocorridos depois do referido limite temporal, conforme ensina João de Castro Mendes (Os Limites Objetivos do Caso Julgado Material Civil, Lisboa: Edições Ática, s/d, pp. 25-26), autor que vê na norma do atual art. 619/2 do CPC (correspondente à do art.  671/2 do CPC de 1961) mera expressão dos limites objetivos do caso julgado, limitando-se a permitir, nas situações enunciadas na sua previsão[2], uma nova sentença, sem um novo processo.
Como quer que seja, na nova ação apenas podem ser discutidos os ditos factos novos, o que parece ter sido o entendimento expresso pelo Tribunal a quo no despacho saneador proferido nos autos, na parte em que se pronunciou sobre a exceção dilatória do caso julgado arguida pelo Recorrido. Vale isto por dizer que o poder de cognição do juiz da nova ação é restrito às novas circunstâncias de facto. Quanto às anteriores, o poder jurisdicional do juiz está esgotado, havendo, nessa medida, vinculação ao adrede decidido por força da autoridade do caso julgado. Com efeito, a referida força obrigatória da sentença desdobra-se num duplo sentido: a um tempo, no da proibição de repetição da mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória do caso julgado, prevista e regulada em especial nos arts. 577, i), 580 e 581 do CPC, que pode ser sintetizada através do brocardo non bis in idem; a outro, no da vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, a que corresponde o brocardo judicata pro veritate habetur. Dito de outra forma, o caso julgado não tem apenas relevância negativa: como a doutrina[3] e a jurisprudência[4] reconhecem de forma unânime, o caso julgado material pode  funcionar como exceção, com a referida relevância negativa, ou como autoridade, caso em que a sua relevância é positiva.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, n.º 325, p. 168, os efeitos do caso julgado material projetam-se em processos ulteriores necessariamente como autoridade do caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior, ou como exceção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objeto posterior.
O mesmo autor acrescenta (O Objeto cit., pp. 171–172) que a diversidade entre os objetos de uma e outra ação torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material, e a identidade entre os objetos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, a exceção de caso julgado. Aquela diversidade e esta identidade são os critérios para o estabelecimento da distinção entre o efeito vinculativo, a vinculação dos sujeitos à repetição e à não contradição da decisão transitada: a vinculação das partes à decisão transitada em processo subsequente com distinto objeto é assegurada pela vinculação à repetição e à não contradição do ato decisório e o impedimento à reapreciação do ato decisório transitado em processo subsequente com idêntico objeto é garantido pelo impedimento dos sujeitos à contradição e à repetição da decisão.
Deste modo, pode dizer-se que a questão da autoridade do caso julgado material respeita, sobretudo, à extensão da auctoritas rei iudicatae à solução das questões prejudiciais, assim denominadas as relativas a relações jurídicas distintas da deduzida em juízo pelo autor, mas de cuja existência ou inexistência dependa logicamente o teor da decisão do pedido, sobre as quais não ocorre decisão, mas simples cognitio. É este o papel que na nova ação está reservado para as circunstâncias que se verificavam no momento em que foi encerrada a discussão da ação pretérita. Neste sentido, Isabel Alexandre (Modificação do Caso Julgado Material por Alteração das Circunstâncias, reimpressão, Coimbra: Almedina, 2021, pp. 748-749.), a propósito da sentença modificativa, escreve que “[n]a ação modificativa não pode ter lugar a correção de erros na decisão da matéria de facto que sejam diversos dos erros de prognose. Mesmo que a correção destes erros de prognose não seja o fim último da ação modificativa e esse fim último coincida, antes, com a adaptação da sentença à nova realidade – tal como sucede aquando da modificação dos contratos em virtude da alteração das circunstâncias –, a verdade é que o modo normal de esta adaptação operar é através da via da correção de erros de prognose, só assim se compreendendo a própria exigência de superveniência.” A autora acrescenta (idem) que “a matéria a decidir na ação modificativa é apenas aquela que se prende com a alegada alteração das circunstâncias, não podendo, por isso, apreciar-se outra matéria de facto, eventualmente corrigindo erros que, no seu julgamento, tenham sido cometidos.” O mesmo entendimento é expresso, ao nível da jurisprudência, em STJ 11.09.2012 (1622/04.6TBEVR.E1.S1), relatado pelo Juiz Conselheiro Salazar Casanova, no qual se pode ler que “[n]a segunda ação visando a alteração de alimentos fixados por sentença de divórcio que os homologou, não devem ser considerados, sem ofensa do caso julgado (artigo 498.º e 671.º/2 do C.P.C.), os factos que já tinham sido tomados em consideração na ação anterior, julgada improcedente; devem apenas ser considerados os factos ou circunstâncias supervenientes a essa ação havidos como modificativos das circunstâncias que determinaram a condenação em alimentos.”
Do exposto resulta que não é possível conhecer, na presente ação, dos factos contidos nas afirmações das alíneas a), b), d) e g), pois todos eles são anteriores ao encerramento da discussão na ação que correu termos sob o n.º 291/19..... Em relação a essa realidade pretérita, estamos vinculados ao que em tal ação foi decidido.
27 Em segundo lugar, no que tange às afirmações das alíneas f) e i), ressalta logo a sua natureza conclusiva.
Com efeito, na alínea f) (“A Autora não consegue fazer face aos restantes encargos com a sua saúde, alimentação e vestuário”) mais não se faz que afirmar, ainda que por palavras sinónimas, a situação de necessidade de alimentos por parte da Autora, que é elemento da previsão da norma em que esta estriba a sua pretensão alimentícia. Tal situação de necessidade tem de resultar da análise de factos concretos que substanciem a afirmação feita. Na alínea i) (“A Autora terá de comprar uma casa de habitação”), contém-se uma mera afirmação de natureza determinista, o que é indicado pelo uso do futuro do indicativo do verbo ter, que, como tal, carece de um substrato factual rigoroso. Com a mesma propriedade com que se afirma que a Recorrente terá de comprar um prédio para habitar, sem se concretizar a razão do imperativo, pode afirmar-se que a Recorrente poderá comprar um prédio para habitar, deixando assim em aberto a possibilidade de a sua necessidade habitacional ser suprida por outra forma, como seja o arrendamento. Nesta medida, o único segmento útil é o que expressa a necessidade habitacional, a qual, acrescenta-se, é coeva do encerramento da discussão na ação pretérita, pelo que em relação a ela sempre valeriam as considerações feitas em 1.º lugar.
Assim, tais afirmações nunca poderiam constar da fundamentação de facto. É que do n.º 2 do 607/4 do CPC decorre que o tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, o que exclui a pronúncia, nessa sede, sobre questões de direito, sendo que, tradicionalmente, se englobam neste conceito, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos, os quais são, no dizer de Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107, “aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa” ou, dito de outro modo, aqueles que se fossem considerados provados ou não provados levariam a que toda a ação ficasse resolvida, em termos de procedência ou improcedência, com base nessa única resposta. Conforme é salientado em RG 11.11.2021, 671/20.1T8BGC.G1, “não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art. 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir “factos provados” para esse efeito as afirmações que “numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido”… De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a “assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”…” No mesmo sentido, o Acórdão desta Relação de 31.03.2022 (294/19.8T8MAC.G1) sintetiza a questão nos seguintes termos: “[a)figura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor.” E, sufragando RP 07.12.2018 (338/17.8YRPRT), acrescenta que: “Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais.”
28 Em terceiro lugar, como vamos ver, a constituição da obrigação de alimentos pressupõe, a um tempo, a situação de necessidade do beneficiário e, a outro, a possibilidade do obrigado. A sentença recorrida considerou que nenhum destes pressupostos está verificado e, com base nisso, recusou a constituição da obrigação, assim julgando improcedente a pretensão da Recorrente.
Ora, na impugnação da matéria de facto, a Recorrente apenas questionou a decisão da 1.ª instância quanto aos factos que substanciam a referida situação da necessidade, aceitando, assim, tal decisão quanto aos factos que substanciam a possibilidade de o Recorrido prestar alimentos. Subsistindo a decisão quanto a estes segundos e resultando deles que o Recorrido não tem possibilidades de prestar alimentos, sempre se teria de concluir que a modificação dos primeiros, no sentido propugnado pela Recorrente, não teria qualquer efeito útil. A decisão de improcedência da ação sempre subsistiria.
Deste modo, sendo irrelevante a factualidade referenciada para a apreciação do mérito da causa, sempre seria de não conhecer da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pois tal redundaria na prática de um ato inútil, o que é proibido pelo art. 130/1 do CPC. No sentido de quando está em causa factualidade sem qualquer relevo efetivo do ponto de vista jurídico para a decisão da causa, o tribunal da Relação deve, quanto a ela, abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe de antemão ser inconsequente ou inútil, pode ler-se em RG 15.12.2016 (86/14.0T8AMR.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Matos:
Com efeito, a “impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante” (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10…).
Logo, “por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12…).
Por outras palavra, se, “por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.” (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10... No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10).”
No mesmo sentido, STJ 23.01.2020 (4172/16.4TFNC.L1.S1, publicado na CJ-ASTJ, XXVII, tomo 1, p. 13), RP 5.11.2018 (3737/13.0TBSTS.P1) e RG 3.12.2020 (1851/20.5T8VNF.G1).
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29 4).1. Passamos, assim, a dar resposta à segunda questão enunciada.
Como sabemos, um dos deveres que resultam do casamento é o de assistência que assume duas vertentes: a “contribuição para os encargos da vida familiar” e a obrigação de alimentos. A contribuição para os encargos da vida familiar pressupõe a existência de uma comunhão de vida. Não havendo essa comunhão de vida, o dever de assistência traduzir-se-á na obrigação de prestar alimentos. Com efeito, embora o dever se mantenha no decorrer da separação de facto dos cônjuges, como expressamente se consagra no art. 1675/2 e 3 do Código Civil, a prestação a título de “contribuição para os encargos da vida familiar” deixa de ter justificação, nesses casos, subsistindo apenas a prestação a título de alimentos. É que, com a separação de facto, saindo um dos cônjuges do lar, a vida familiar desmorona-se, deixa de haver a comunhão de vida que implicava a existência de despesas feitas em função dela. Se um dos cônjuges deixa de viver na casa que até então era a sua casa de família, para ir viver com outra pessoa, ou sozinho, mas sem fito de voltar a integrar a união desfeita, passando a ter outro lar próprio, não tem justificação válida continuar a impor-se, ao cônjuge que sai, a obrigação de contribuir para uma vida familiar da qual se apartou. Resta então apenas a sua obrigação de prestar alimentos ao cônjuge, ainda no âmbito do dever de assistência - art. 1675 – e não ao abrigo do dever geral de alimentos previsto no art. 2009, a), e aos demais que a ele tenham direito, por regra, filhos comuns menores. Este é o entendimento perfilhado por Pereira Coelho / Guilherme Oliveira (Curso de Direito da Família, I, Coimbra: IUC, 2016, p. 416) que, a propósito do dever de alimentos e de contribuição para os encargos da vida familiar, notam que a primeira destas obrigações só tem autonomia em face da segunda quando os cônjuges vivem separados, de direito ou mesmo de facto. Se vivem juntos, o dever de “prestação de alimentos” toma a forma de “dever de contribuição para os encargos da vida familiar.” No caso de separação de pessoas e bens, judicial ou administrativa, e de simples separação de facto, não existe “vida familiar” e não tem sentido falar na obrigação de contribuir para os respetivos encargos. No mesmo sentido, Remédio Marques (Algumas Notas sobre Alimentos, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 72, nota 99), a propósito do dever de assistência entre cônjuges – art. 1675 – e entre pais e filhos, este consagrado no art. 1874, e da satisfação das necessidades de sobrevivência da família, a ser coercivamente exigida, nos termos do art. 992 do Código de Processo Civil vigente (= art. 1416 do Código de Processo Civil de 1961), escreve, sobre a duração da medida decretada nessa forma de processo, que “[o] legislador português mostra-se, igualmente, omisso, no tocante à duração desta medida de asseguramento ou consignação judicial (hoc sensu) de parte dos rendimentos (…) do outro cônjuge para satisfação dos encargos familiares, na hipótese em que não tenha havido rutura da vida comum.
De todo o modo, constituindo este expediente um simples paliativo de uma situação de crise familiar gerada pelo incumprimento, por parte de um dos cônjuges, de um dos deveres conjugais, assume-se como uma medida essencialmente interina ou temporária, justificável enquanto se mantiver a vida em comum e o incumprimento do visado.” A propósito, vide também Maria Nazareth Lobato Guimarães, (Reforma do Código Civil, Lisboa: Ordem dos Advogados, 1981, p. 191).
Assim, numa situação de normalidade familiar existirá uma contribuição para os encargos da vida conjugal (a obrigação de alimentos estará integrada na contribuição para os encargos da vida familiar, será absorvida por esta). Só numa situação de separação ou rutura (mas em que subsiste o vínculo matrimonial) é que este dever de assistência se consubstanciará numa obrigação de prestar alimentos.
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30 4).2. Dissolvido o casamento, permanece um elo de ligação entre os ex-cônjuges, uma solidariedade pós-conjugal que justifica a consagração de um direito a alimentos, mesmo quando a causa de cessação é o divórcio (art. 2009/1, a)).
Dispõe o n.º 2 do art. 2016 que qualquer dos cônjuges tem direito a alimentos, independentemente do tipo de divórcio. Este artigo sofreu duas significativas alterações desde a sua entrada em vigor, com o Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de novembro. Na versão inicial só tinha direito a alimentos o cônjuge não culpado ou, caso houvesse culpa de ambos, o cônjuge que não fosse o principal culpado (alíneas a) e b do então art. 2016). Só se ambos os cônjuges fossem igualmente culpados ou houvesse separação por mútuo consentimento é que qualquer um deles poderia ter direito a alimentos (alínea c)). Com a Reforma de 1977, sofreu uma importante derrogação nesta conceção de que o cônjuge culpado não poderia, em princípio, ser merecedor de alimentos por parte do seu ex-consorte. Apesar de permanecer a referência à culpa na atribuição de alimentos nas alíneas do n.º 1, o n.º 2 veio consagrar que, excecionalmente, podia o tribunal, por motivos de equidade, conceder alimentos ao cônjuge que a eles não teria direito, nos termos do n.º 1, tendo em conta, para o efeito, a duração do casamento e a colaboração prestada por esse cônjuge à economia do casal (n.º 2 do art. 2016 na versão do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro). Aproveitou o legislador o ensejo para introduzir, no n.º 3 deste mesmo preceito, fatores de ponderação na fixação do montante de alimentos, nomeadamente, a idade e estado de saúde das partes, as suas qualificações profissionais e possibilidades de emprego, o tempo que eventualmente terão de dedicar à criação de filhos comuns, os seus rendimentos, e todas as circunstâncias que afetam as necessidades e possibilidades de cada um.
31 Na mais recente alteração (Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro) o legislador estabeleceu, um princípio de autossubsistência (n.º 1), arrimado na ideia de que o direito a alimentos não deve perdurar ad aeternum, competindo ao ex-cônjuge providenciar e esforçar-se pela angariação de meios de subsistência e não ficar dependente do outro ex-cônjuge e este, por sua vez, eternamente vinculado a essa obrigação. Não sendo possível a um dos cônjuges prover autonomamente à sua subsistência, poderá ter direito a alimentos, independentemente do tipo de divórcio (n.º 2 do mesmo artigo). Ao mesmo tempo, desapareceu a conceção de culpa no divórcio e, consequentemente, deixou de existir uma referência direta à mesma neste art. 2016. Tal não significa que uma situação que levaria, anteriormente, a uma consideração de culpa, não possa agora ser ajuizada como elemento ponderador na questão da equidade. Pode o direito a alimentos ser negado por razões de justiça material (n.º 3 do art. 2016).
32 O referido princípio da autossuficiência exprime a ideia de que, na sequência do divórcio, se espera que cada um dos cônjuges assuma o encargo de prover à sua subsistência. Militam a favor desta solução argumentos tão díspares como o propósito de eliminar o contacto e o conflito entre ex-cônjuges, o efeito de incentivo para o cônjuge economicamente mais débil procurar uma atividade remunerada ou a intenção de expurgar a ideia de que o casamento garante indiscutivelmente um “seguro de vida” para o futuro.
33 O art. 2016, inspirado em instrumentos internacionais e na opção de outros ordenamentos jurídicos (v.g., o §1577 (1) do BGB alemão), mas, principalmente no Principio 2:2 dos Principles of European Family Law Regarding Divorce and Maintenance Between Former Spouses, assume uma ideia de promoção da independência dos cônjuges que já tinha sido expressamente adotada pelo Conselho da Europa na sua Recomendação R(89)1 do Comité de Ministros do Estados Membros relativa a Contribuições na Sequência de Divórcio. O facto de a autossuficiência ser proclamada, naquela disposição de conteúdo programático, como a regra torna excecional o reconhecimento de um direito a alimentos na sequência de divórcio, o que é afirmado por autores como Guilherme de Oliveira (“A Nova Lei do Divórcio”, Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família, n.º 13, Ano 7, 2010, pp. 5-32), Jorge Duarte Pinheiro (“Ideologias e Ilusões no Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais”, Estudos em Homenagem a Carlos Ferreira de Almeida, III, Coimbra: Almedina, 2011, pp. 475-488), e Paula Távora Vítor (Crédito Compensatório e Alimentos Pós-divórcio: Contributo para a Compreensão de um Sistema Bimodal, Coimbra: Universidade de Coimbra, 2015, pp. 192-193). Vale isto por dizer que os alimentos só operarão quando o instrumento primário da autossuficiência se demonstrar impraticável. Para além disso, ainda que num primeiro momento seja reconhecida uma obrigação alimentar, a autossuficiência é eleita como o fim a atingir. Daí que, no quadro deste entendimento, a conceção de alimentos reabilitadores assuma particular relevância – os alimentos concedem-se para e até que se atinja a almejada autossuficiência. Já face ao regime anterior, Remédio Marques (Algumas Notas sobre Alimentos cit., p. 168, nota 214), mencionava este objetivo ao escrever: “um dos ex-cônjuges ajude financeiramente o outro – e pelo tempo estritamente necessário para que o carecido passe a dispor de meios económicos que o tornem verdadeiramente autossuficiente.”
Não estamos, porém, perante uma novidade no regime geral dos alimentos nem perante uma situação privativa da relação entre ex-cônjuges. Como salienta Paula de Távora Vítor (Crédito Compensatório e Alimentos Pós-divórcio cit., p. 194) “[n]a verdade, resultava já dos requisitos gerais que, desde a versão original do atual Código Civil, determinam que na fixação dos alimentos se atenda à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência (artigo 2004.º, n.º 2). Assim, se o requerente conseguir responder às suas necessidades através do trabalho ou através de outros meios, o crédito não deve existir.” Vaz Serra (“Obrigação de alimentos”, Boletim do Ministério da Justiça, 108, 1961, p. 117), classifica os alimentos como “um meio extremo”, que só será justificável “[s]e o alimentando não puder prover as suas necessidades através do trabalho ou outros meios.” Moitinho de Almeida (“Os Alimentos no Código Civil de 1966”, Revista da Ordem dos Advogados, 1968, pp. 92-127) coloca a “possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência”, ao lado das necessidades do alimentando e das possibilidades do obrigado, como terceira condição a considerar na determinação dos alimentos. Este entendimento é ainda reforçado pelo carácter residual dos alimentos face a outras providências. Tal quer dizer, de acordo com Paula Távora Vítor (idem), que “o dever de alimentos pós-divórcio vem complementar outros mecanismos pós-divórcio se, apesar do funcionamento destes, persistir uma situação de necessidade. Na verdade, mesmo uma vez realizada a partilha do património conjugal, atribuída a casa de morada de família ou determinado um crédito compensatório a favor de um dos cônjuges podem preencher-se os pressupostos da obrigação alimentar. Pense-se nos casos em que o património a partilhar é tão escasso que não é capaz, nem complementado pelos outros meios, de assegurar a subsistência do requerente.”
34 O atual regime é assim explicado em RG 19.01.2023 (2649/21.9T8VCT.G1), relatado pelo Juiz Desembargador José Alberto Moreira Dias, aqui 1.º Adjunto, no qual interveio, como Adjunta, a Juíza Desembargadora Rosália Cunha:
“Na verdade, muito embora o art. 2016º, n.º 2 do CC, na redação introduzida pela Lei n.º 61/2008, estatua que “qualquer dos cônjuges tem direito a alimentos, independentemente do tipo de divórcio”, o que é bem ilustrativo que a obrigação de prestar alimentos a ex-cônjuge que deles se encontra necessitado, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, não assenta no dever conjugal de assistência que intercede entre os cônjuges na constância do matrimónio, e é independente de qualquer culpa na rutura do vínculo matrimonial, uma vez que a obrigação de prestar alimentos ao ex-cônjuge que deles se encontre necessitado se impõe mesmo ao cônjuge inocente ou mais inocente pela rutura do casamento (sem prejuízo de, nos termos do n.º 3, do art. 2016º, “por razões manifestas de equidade, o direito a alimentos” que assiste ao ex-cônjuge que deles se encontra necessitado, poder ser-lhe negado), logo no n.º 1, daquele art. 2016º, estabelece-se, como princípio geral, que “cada cônjuge deve prover à sua subsistência, depois do divórcio”, o que demonstra que, em sede de alimentos entre ex-cônjuges, depois do divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, o legislador aderiu ao denominado princípio da autossuficiência, nos termos do qual, uma vez dissolvido o vínculo matrimonial, independentemente das causas dessa dissolução, cumpre a cada ex-cônjuge prover ao seu próprio sustento.
Ou seja, em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, a regra é a de que não são devidos alimentos entre os ex-cônjuges, e que a concessão desse direito alimentar ao ex-cônjuge que deles se encontre necessitado tem cariz excecional, subsidiário e é tendencialmente temporário.
Tem natureza excecional e subsidiária, na medida em que, conforme acabado de demonstrar, a regra vigente nesta matéria é a de que cada ex-cônjuge deve prover à sua própria subsistência, só podendo esse princípio regra ser afastado em condições verdadeiramente excecionais e na estrita medida em que o ex-cônjuge necessitado de alimentos não consiga prover ao seu próprio sustento.
Acresce que, ainda que essas condições excecionais que conferem ao ex-cônjuge necessitado de alimentos a obtê-los do ex-cônjuge que tenha condições económicas para lhos proporcionar se encontrem preenchidas, ainda assim, essa obrigação alimentar poderá ser afastada por razões de manifesta equidade (n.º 3, do art. 2016º do CC) e terá de ceder quando o ex-cônjuge obrigado a prestá-los esteja também obrigado a prestar alimentos a filhos e não disponha de recursos económicos suficientes para satisfazer as duas prestações alimentares, situação em que a prestação alimentar devida aos filhos do obrigado terá de prevalecer sobre a obrigação alimentar devida ao seu ex-cônjuge (art. 2016º-A, n.º 2).
E essa obrigação alimentar tem, conforme antedito, natureza tendencialmente temporária, não devendo, em princípio, perdurar para sempre, na medida em que, “no espírito da nova lei, destina-se apenas a permitir uma reorganização da vida nos primeiros tempos subsequentes ao divórcio, prevalecendo a ideia de que cada cônjuge deve prover à sua subsistência, depois do divórcio.”
35 Segundo o disposto no n.º 1 do art. 2016.-A, na fixação do montante dos alimentos deve o tribunal tomar em conta a duração do casamento, a colaboração prestada à economia do casal, a idade e estado de saúde dos cônjuges, as suas qualificações profissionais e possibilidades de emprego, o tempo que terão que dedicar, eventualmente, à criação dos filhos comuns, os seus rendimentos e proventos, um novo casamento ou união de facto e, de modo geral, todas as circunstâncias que influam sobre as necessidades do cônjuge que recebe os alimentos e as possibilidades do que os presta. Esta será uma concretização do critério geral enunciado no art. 2004. Por sua vez, está agora explícito que o cônjuge credor não tem direito de exigir a manutenção do padrão de vida de que beneficiou na constância do casamento (n.º 3 do art. 2016-A).
Tenha-se presente que, até à entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, existiam três entendimentos quanto ao montante de alimentos a prestar ao ex-cônjuge. A primeira corrente, mais limitativa, entendia que o montante de alimentos devia cingir-se ao indispensável ao sustento, habitação e vestuário. Já um segundo entendimento defendia uma manutenção do nível de vida a que o ex-cônjuge estava habituado. Esta tese está hoje afastada atendendo ao disposto no atual n.º 3 do art. 2016-A. Por fim, ainda uma tese intermédia que defendia que se deveria proporcionar um nível de vida razoável ao ex-cônjuge, acima do que é meramente indispensável à sobrevivência, mas sem a exigência de se manter o padrão de vida do casamento.
Embora em 2008, com a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, o legislador tenha afastado a corrente que pugnava pela manutenção do nível de vida, continua por esclarecer qual dos outros entendimentos deve ser seguido.
36 Consideramos que, havendo possibilidades nesse sentido, deve ser proporcionado um nível de vida razoável ao ex-cônjuge (reconduzindo-se à tese intermédia). Pretende-se atingir algo que se situe entre esta medida inferior e o padrão de vida do casamento.  Pode falar-se de uma medida "decente”, que não signifique uma descida radical do estatuto económico, mas que também não transforme o casamento num seguro de bem-estar à custa do outro ex-cônjuge. Neste sentido, STJ 18.06.2012 (1733/05.0TBCTB.C1.S1), relatado pelo Juiz Conselheiro Távora Vítor, onde se lê que: “Assim a extinção do vínculo não deve abrir a porta a que o cônjuge impetrante seja relegado para um patamar de subsistência mínima, não sendo aceitável sem mais a passagem abrupta de uma situação de desafogo para outra de simples cobertura de necessidades basilares e que só depois de exauridos todo o capital de raiz dos seus bens próprios, ainda que com algum valor, lhe seja concedida uma pensão de alimentos. Nestas circunstâncias, e mau grado não seja exigível que ao cônjuge impetrante de alimentos seja garantida a situação económico-social que mantivera na constância do matrimónio, compreende-se que princípio da solidariedade se projete com mais intensidade protegendo o membro mais débil do extinto casal em grande parte também à luz do que foram o ideário, expectativas e práticas do matrimónio extinto.”
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37 4).3. O direito a alimentos entre os ex-cônjuges não é atribuído de forma automática, mesmo havendo necessidade do credor e possibilidades do devedor, uma vez que pode ser negado por razões manifestas de equidade. Não havendo acordo, caberá ao tribunal aferir as necessidades de uma parte e as possibilidades da outra. Como salienta Rossana Martingo Cruz (União de Facto Versus Casamento – Questões Pessoais e Patrimoniais, Lisboa: Gestlegal, 2019, p. 629), nem sempre esta tarefa se afigurará simples, havendo sempre uma margem de discricionariedade em virtude da sensibilidade do julgador.
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38 3).4. O direito a alimentos é indisponível (art. 2008). Essa indisponibilidade é, todavia, relativa: são admissíveis a transação (arts. 2006 e 2012 do Código Civil e arts. 936/1 e 994/1, c) e d), do Código de Processo Civil) e, por maioria de razão, a confissão do pedido; mas a desistência só pode ter como objeto as prestações vencidas (art. 2008/1 do Código Civil), não as prestações vincendas, estas de montante sempre revisível em face de novas circunstâncias. A propósito, vide Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 146, e Lebre de Freitas et al., Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 530).
39 Deste modo, o facto de um cônjuge prescindir do direito a alimentos aquando o divórcio, não o inibe de reclamar esse direito no futuro, desde que se reúnam os pressupostos legais. Neste sentido, RL 17.11.2011 (27739/09.2T2SNT.L1-2). De igual modo, também os alimentos fixados pelo tribunal ou por acordo podem ser alterados, por modificação das circunstâncias, nos termos do art. 2012.
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40 3).5. A lei não estabelece prazo para a duração da obrigação de prestar alimentos ao ex-cônjuge, subjugando o direito a alimentos apenas ao binómio necessidade de quem requer e possibilidade de quem os presta. O Projeto de Lei 509/X previa o aditamento de um artigo (2016-B) que determinava a limitação temporal da obrigação de alimentos, ainda que renovável. Este preceito não chegou à versão final da Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro. Tendo em conta a finalidade da obrigação nem sempre será possível reconhecer-lhe uma natureza temporária, mas apenas tendencialmente temporária. Basta que se pense nos casos em que o requerente está numa situação de impossibilidade definitiva e absoluta de exercer uma atividade remunerada que lhe permita prover ao seu sustento.
41 Por outro lado, o modo de prestar os alimentos está previsto no art. 2005. Em regra, os alimentos são fixados em prestações pecuniárias mensais, a não ser que haja acordo ou disposição legal em contrário (bem como situações que motivem uma medida de exceção). É possível o pagamento em capital una tantun, modalidade que tem a vantagem de evitar a continuidade de relacionamento das partes, propiciando o pretendido clean break. O pagamento de um determinado montante de uma só vez, calculado, normalmente, com base na multiplicação de um valor mensal por um determinado período de anos, não extingue, porém, completamente e sem mais, a obrigação. Esta é irrenunciável e estará sempre sujeita a alterações das circunstâncias (imagine-se que aquele montante vem evidenciar-se insuficiente face a situações supervenientes de doença).
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42 4).6. Se o ex-cônjuge, credor de alimentos, contrair novo casamento, iniciar união de facto ou se tornar indigno do benefício pelo seu comportamento moral, a obrigação de alimentos cessa (art. 2019). Assim, estas situações acrescentam-se às causas gerais de cessação do direito a alimentos previstas no disposto no n.º 1 do art. 2013, a saber: morte do obrigado ou do alimentando; falta de necessidade por parte do alimentando ou de possibilidade por parte do obrigado; ou quando o credor viole gravemente os seus deveres para com o obrigado.
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43 4.7. De acordo com o n.º 1 do art. 2003 do Código Civil, por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.
O art. 2004 define a medida dos alimentos, determinando que os mesmos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los, e que na sua fixação concreta se atenderá à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência.
Para esse efeito, pode exigir-se que o requerente recorra aos seus bens para faze face à necessidade que alega. A lei (art. 2016-A/1) menciona os “rendimentos e proventos” do necessitado como circunstâncias que influem na sua necessidade. Deste modo, a resposta à situação de carência pode ser encontrada não só nos rendimentos (de bens, capitais, trabalho), como também no património na sua globalidade. Desde logo, há que pensar no próprio capital.
Na determinação dos recursos do alimentando, há que considerar não só aquilo de que é proprietário, mas também outros direitos de que seja titular, aptos a satisfazer as suas necessidades (por exemplo, direito de habitação de imóvel ou de uso de recheio). E, pela mesma razão, devem ser consideradas remunerações em espécie que respondam a necessidades do requerente. Admite-se ainda a possibilidade de ser este a obter a crédito o valor necessário para se sustentar, desde que seja possível pagá-lo num “período razoável.” Há adicionalmente que sublinhar a importância dos direitos que decorrem do direito público, nomeadamente dos decorrentes do sistema de segurança social, como sublinha Maria João Romão Carreiro Vaz Tome (O Direito À Pensão de Reforma Enquanto Bem Comum do Casal, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 309).
Quanto à relevância das contribuições de terceiros para averiguar das possibilidades do necessitado, há que considerar que o ex-cônjuge figura na primeira classe de obrigados a alimentos (art. 2009/1, a)), o que significa que responde prioritariamente relativamente aos outros familiares. Assim, ainda que estes efetuem tais prestações regularmente, não estão obrigados a fazê-lo, pelo que podem fazê-las cessar em qualquer momento. Sem prejuízo, o facto de o credor de alimentos viver em economia comum e, portanto, beneficiar das economias de escala proporcionadas pelo facto de não suportar isoladamente determinadas despesas, pode influenciar o nível de necessidades a que tem de dar resposta, diminuindo-o. Tal não deve, todavia, ser entendido como prova de que tem mais meios ao seu dispor, apenas que as suas despesas não serão tão elevadas. Não devem relevar, todavia, as prestações ocasionais, na medida em que não permitem sustentar o teor de vida daquele que as recebe, nem as prestações que se destinam a suprir o incumprimento de outrem.
Nesta determinação dos recursos disponíveis, devemos considerar apenas os recursos atuais e não ficcionar recursos, o que não significa que a possibilidade de angariar estes meios possa ser ignorada. Assim, além do património em sentido lato, assume uma relevância central a possibilidade de o necessitado ganhar a sua vida, ou seja, de conseguir os meios de subsistência através do seu próprio trabalho. Só este entendimento é compatível com a ideia, sublinhada por Maria de Nazareth Lobato de Guimarães (loc. cit., pp. 174 e 209), de que numa sociedade baseada no trabalho como é a atual, cada um terá o encargo de prover ao seu sustento.
Para este efeito, é necessário conjugar uma série de fatores, que vão desde a formação e habilitações profissionais, às específicas aptidões do necessitado, passando pelo seu estado de saúde e idade, bem como pela disponibilidade de tempo concreta que tenha para se dedicar ao exercício de uma atividade profissional em virtude daquele tempo que tenha de dedicar ao cuidado de dependentes, relativamente aos quais assuma obrigação imposta por lei.
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44 4).8. Respondendo diretamente às questões enunciadas com base nas considerações que antecedem, começamos por dizer que não ocorreram diferenças de tomo relativamente à situação que foi objeto do julgamento feito na ação que correu termos sob o n.º 291/19....: por um lado, a Recorrente continua sem trabalhar; por outro, o Recorrido continua a desenvolver, por conta própria, a atividade de barbeiro / cabeleireiro, auferindo, sensivelmente os mesmos rendimentos, e a ter a seu cargo a filha comum. De novo, existem apenas três factos: a Autora passou a auferir uma pensão mensal de € 484,61; no dia 16 de maio de 2022, a Recorrente recebeu do Recorrido € 50 000,00, montante correspondente às tornas que lhe couberam na partilha do património comum do casal que foi constituído por ambos; a Autora, está dependente de terceiros para satisfazer as suas necessidades de alimentação, higiene e vestuário, e, bem assim, para a toma da medicação diária. Por essa razão, passou a residir num local onde é supervisionada, despendendo mensalmente a quantia de € 339,00 a título de despesas de habitação e alimentação.
45 Resulta daqui, por um lado, que parte das necessidades essenciais da Recorrente (habitação, alimentação e acompanhamento de terceiros) estão presentemente asseguradas. Restam outras, como as de medicação e vestuário, para as quais se afiguram insuficientes, à luz das regras do id quod plerumque accidit, os € 145,61 que lhe sobram. Simplesmente, não podemos esquecer que, em consequência da partilha do património comum, a Recorrente recebeu do Recorrido, a título de tornas, € 50 000,00. O recebimento deste montante líquido significa que a Recorrente dispõe agora de um fundo financeiro que pode utilizar para as suas despesas. Não resulta, perante os factos provados, que esse montante, convenientemente gerido, não é suficiente para assegurar uma vivência digna à Recorrente.
46 Analisando agora o outro vetor da questão – o da possibilidade do Recorrido prestar alimentos – temos que os factos provados não permitem dar-lhe uma resposta afirmativa. Com efeito, o que está demonstrado é apenas que o Recorrido teve, no ano de 2022, um rendimento global de € 7 363,95 (facto provado 27). Ademais das suas despesas pessoais e da obrigação de restituir o capital que lhe foi mutuado por uma instituição de crédito para pagar as tornas que eram devidas à Recorrida, o que faz em prestações mensais de € 403,16 (facto provado 26), tem ainda a seu cargo exclusivo a filha do casal (facto provado 23). Deste modo, perante o referido quadro factual, tem de sufragar-se a conclusão do Tribunal a quo no sentido de que não ficou provado que o Réu tem possibilidades de pagar alimentos à Recorrente.
47 Ao escrever isto não ignoramos que a Recorrente afirma, nas conclusões, que “o Réu tem rendimentos muito superiores (…), o que também foi absolutamente desconsiderado pelo Tribunal a quo” e acrescenta que “o Réu tem rendimentos que lhe permite[m] auxiliar a Autora, o que se demonstrou, quer através dos seus rendimentos, quer através da ausência de despesas demonstradas nos autos, quer por via dos saldos existentes nas contas bancárias.” Acontece que, como vimos, a Recorrente não impugnou a decisão quanto aos factos que substanciam a possibilidade do Recorrido prestar alimentos, pelo que aquelas afirmações, carecendo de suporte factual, não passam de manifestações de inconformismo processualmente inócuas.
48 Improcede, portanto, in totum, a pretensão recursiva.
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49 5) Vencida, a Recorrente deve suportar as custas do recurso: art. 527/1 e 2 do CPC.
***
V.
50 Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
· Julgar improcedente o presente recurso de apelação;
· Confirmar a sentença recorrida;
· Condenar a Recorrente, AA, no pagamento das custas do recurso.
Notifique.
*
Guimarães, 18 de janeiro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
José Alberto Moreira Dias (1.º Adjunto)
Rosália Cunha (2.ª Adjunta)


[1] Disponível, como os demais indicados no texto sem menção expressa ao local da sua publicação, em www.dgsi.pt.
[2] Da norma do art. 179/2 (“se o réu tiver sido condenado a prestar alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração”) parecem resultar dois pressupostos relativos à sentença modificanda: tratar-se esta de uma sentença condenatória e ter a fixação da respetiva prestação estado dependente de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração. A doutrina, em especial Isabel Alexandre (Modificação do Caso Julgado Material por Alteração das Circunstâncias, reimpressão, Coimbra: Almedina, 2021, pp. 346 e ss.), levanta a questão de saber se a possibilidade de modificação nos termos previstos na norma se restringe às sentenças condenatórias ou se também as sentenças absolutórias podem ser modificadas. A autora, em coerência com o seu entendimento sobre a extensão do regime às sentenças se simples apreciação e constitutivas, defende que a projeção para o futuro não depende de ter sido prescrito um determinado comportamento ao réu. O legislador terá partido do princípio de que, nessas situações, não é sequer concebível a alteração das circunstâncias, porque o fundamento da absolvição não é, por natureza, alterável. Mas, se se reconhecer que a absolvição não se funda necessariamente em circunstâncias por natureza inalteráveis, deve concluir-se que a ausência de referência às sentenças absolutórias na citada norma corresponde a uma lacuna. Ora, a projeção para o futuro é dada, antes de mais, pelos juízos de prognose que se realizam na sentença, e estes também podem ser realizados quando a mesma seja absolutória.
[3] Sobre a questão, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 305; Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa: Ática, 1968, p. 162; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 1997, p. 576, e O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, p. 167, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 703, nota 1; Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Ação Declarativa, Coimbra: Almedina, 2004, p. 394; Lebre de Freitas / Montalvão Machado / Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 325 – 326; Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar Online, disponível em https://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/ [13.09.2023]; Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, ROA, ano 79, n.os 3-4 (jul.-dez. 2019), pp. 691-722.
[4] Inter alia, os seguintes arestos do STJ: 30.04.2019 (4435/18.4T8MAI.S1), 14.09.2022 (24558/19.1T8LSB.L1.S1), 2.03.2023 (6055/18.4T8ALM.L1.S1), 12.04.2023 (979/21.9T8VFR.P1.S1), 30.05.2023 (3358/20.1T8BRG.G1.S1) e 4.07.2023 (142/15.8T8CBC-C.G1.S1).