AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE
PENHORA DE QUINHÃO HEREDITÁRIO
Sumário


I- Sempre que o juiz pretenda, após a fase dos articulados, conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa, deve convocar a audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito, assegurando dessa forma o respeito pelo próprio princípio do contraditório.
II- A omissão da audiência prévia em tal situação gera uma nulidade que não é apenas do processo, mas do saneador-sentença que assim se pronunciou sobre uma questão de que, sem a audição prévia das partes, não podia conhecer (cf. art. 615/1, d), do CPC).
III- Essa nulidade não é, porém, do conhecimento oficioso, pelo que, se não tiver sido arguida qua tale, não pode ser conhecida, ficando sanada.
IV- A penhora de quinhão em património autónomo é efetuada mediante a notificação do facto ao administrador do bem, se o houver (por exemplo, cabeça-de-casal), e aos demais contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efetuada (art. 781/1).
V- Uma vez notificados da penhora, tanto o administrador do bem, como os demais contitulares, podem fazer as declarações que entenderem por convenientes quanto ao direito do executado e ao modo de o tornar efetivo. Podem ainda os contitulares dizer se pretendem que a venda tenha por objeto todo o património ou a totalidade do bem, caso em que o património ou o bem são vendidos na sua totalidade (art. 781/2 e 4).
VI- A falta de resposta não tem qualquer efeito cominatório.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.
§ 1.º AA (Embargante / Recorrente) apresentou, no dia 18 de fevereiro de 2022, por apenso à ação executiva, para pagamento de quantia certa, intentada pela Banco 1..., CRL, contra BB e CC, oposição, através de embargos de terceiro, à penhora que ali foi feita do quinhão hereditário titulado pelo primeiro executado na herança aberta por óbito dos respetivos progenitores.
§ 2.º Alegou, em síntese, que: o património hereditário dos pais do embargado BB foi partilhado, entre este e a embargante, únicos herdeiros, por forma verbal; por força dessa partilha, ficaram a pertencer à embargante cinco prédios rústicos e dois prédios urbanos; em contrapartida, a embargante pagou ao referido embargado € 20 343,48, a título de tornas; a embargante está na posse de tais bens desde o dia .../.../2020, data em que foi lavrada a escritura de habilitação de herdeiros; sem prejuízo, a partilha foi renovada, através de escritura pública lavrada no dia 18 de novembro de 2021; deste modo, a penhora do quinhão do embargado ofende o quinhão hereditário de que a embargante é titular, “por direito próprio, bem como os restantes bens do acervo hereditário que advieram ao património hereditário do seu irmão (…) os quais foram imediatamente partilhados (…) e pelos quais deu tornas.” (sic)
Concluiu pedindo que, na procedência da oposição, seja: (1.º) “a penhora efetuada ou a efetuar julgada nula e ineficaz por contra legem civil e adjetiva civil, uma vez que a mesma ofende a partilha já efetuada entre a embargante e os executados além de, a consubstanciar-se, viola e ofende o quinhão hereditário da embargante chegada à sua posse (bens imóveis naquela enumerados), pela morte do seu último progenitor(a), sendo certo que a embargante, nada tem a ver com a dívida de seu irmão e cunhada (ora executados), à exequente no caso de existência da mesmas e deste modo,” seja (2.º) “a mesma penhora nula e ou ineficaz em relação à embargante (irmã do executada e cunhada), pelos motivos supra alegados (…), não se permitindo qualquer ato que ofenda ou venha a ofender a posse da mesma embargada, sobre os bens rústicos e urbanos, e, pelos quais, a mesma já pagou tornas aos executados, devendo no entanto os autos prosseguirem os seus termos normais, sem tal penhora agora anunciada, em relação aos bens indicados nos autos.” (sic.)
§ 3.º Depois de a embargante ter esclarecido que a oposição é dirigida contra a exequente e os executados, a petição foi admitida e procedeu-se à notificação dos requeridos para contestarem.
§ 4.º Apenas a embargada Banco 1..., CRL, (Embargada / Recorrida) apresentou contestação na qual alegou, em síntese, que: no âmbito da ação executiva, a embargante foi notificada, enquanto contitular do direito à herança, nos termos do disposto no art. 781/2 do CPC; essa notificação foi realizada no dia 21 de janeiro de 2022 e, na sequência dela, a embargante não emitiu qualquer declaração; a falta de declaração importa o reconhecimento da existência do direito do executado, atento o disposto no art. 773/4 do CPC; deste modo, caducou o direito de defesa da embargante à penhora realizada; de qualquer modo, a partilha foi feita com o único propósito de diminuir a garantia patrimonial do crédito exequendo, pelo que não deixará de a impugnar através dos meios comuns.
§ 5.º Por despacho de 3 de julho de 2022, a embargante foi convidada a pronunciar-se sobre a alegada caducidade, o que fez afirmando que: a notificação que lhe foi dirigida nos termos e para os efeitos do disposto no art. 781/2 do CPC foi recebida por terceiro, pelo que apenas se pode considerar como realizada depois de decorrido o prazo de dilação de cinco dias, ou seja, no dia 7 de fevereiro de 2022; de qualquer modo, uma vez que a herança já tinha sido partilhada, a referida norma não tem aplicação à situação dos autos.
§ 6.º Na sequência, foi proferido, no dia 11 de março de 2023, despacho em que o Tribunal convidou as partes a pronunciarem-se “sobre a eventual prolação de saneador-sentença, uma vez que (…) se encontra munido dos elementos necessários à decisão.”
§ 7.º A Embargante e a Embargada Banco 1..., CRL, declararam nada ter a opor à “prolação de saneador-sentença”, especificando ainda a embargante que “o Tribunal já se encontrará munido dos elementos necessários à prolação de decisão.”
§ 8.º No dia 28 de agosto de 2023, foi proferido “saneador-sentença”, notificado às partes por termo eletrónico do dia seguinte (29 de agosto de 2023), em que, depois de afirmada, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais, se consignou: “DO CONHECIMENTO ANTECIPADO DO MÉRITO DA CAUSA - Por despacho proferido a 11/03/2023, foram as partes notificadas para se pronunciar da possibilidade de o Tribunal conhecer imediata e antecipadamente do mérito da causa, sem necessidade de mais provas, considerando os elementos documentais constantes dos autos, bem como o teor das afirmações de facto exaradas nos articulados, não tendo as mesmas apresentado qualquer requerimento – vd. despacho com a referência Citius n.º ...53. O estado do processo permite proferir decisão de fundo, sem necessidade de produção de mais provas, o que passa a fazer-se – cf. CPC, art.º 595.º-1-b).”
§ 9.º De seguida, foi decidido “julgar procedente a exceção perentória de caducidade invocada pela embargada Banco 1..., CRL, e, em consequência, absolvê-la e aos executados BB e CC dos pedidos que contra si vinham formulados pela embargante AA nos presentes autos, julgando-se os embargos de terceiro improcedentes.”
§ 10.º Inconformada, a embargante interpôs recurso, através de requerimento apresentado a 18 de setembro de 2023, em que formulou as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do Saneador-Sentença que: Julgou procedente a exceção perentória de caducidade invocada pela embargada Banco 1..., CRL, e, em consequência, a absolveu e aos executados BB e CC dos pedidos, contra os mesmos formulados pela embargante AA, julgando os embargos de terceiro improcedentes, condenando ainda a embargante no pagamento das custas.
2. A Apelante não se conforma com a douta Decisão proferida, porquanto entende, que a mesma enferma de erro na interpretação e aplicação do direito, à factualidade provada.
3. Nos termos do previsto no artigo 593.º do C.P.C., nas ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591; ou seja, apenas, quando se destine, a proferir despacho saneador, a determinar adequação formal, simplificação ou agilização processual, a identificar o objeto do litígio, a enunciar os temas da prova, e, a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas; podendo as partes requerer a realização da audiência prévia se pretenderem reclamar do despacho na parte em que determinou adequação formal, simplificação ou agilização processual, ou identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
4. Pese embora, ter a Mª Juiz a quo proferido despacho em 11.03.2023, a notificar as partes para se pronunciarem sobre a eventual prolação de saneador-sentença, uma vez que o Tribunal se encontraria munido dos elementos necessários à decisão.
5. O artigo 592.º do C.P.C. determina em que casos não há lugar a audiência prévia: a) Nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º; b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
6. Ora, nos presentes autos de Embargo de Terceiro, a Mª. Juiz a quo, coloca termo ao processo por via de Saneador-Sentença que, conhecendo da exceção perentória de caducidade do direito de ação por parte da Embargante, invocada, na contestação, pelo embargado Banco 1... Crl.
7. Não se configurando, assim, nenhuma das hipóteses previstas no artigo 592.º do C.P.C., que contempla a alínea b) do seu n.º 1 as exceções dilatórias, deixando de fora do seu âmbito de aplicação as exceções perentórias, nem a situação prevista no artigo 593.º do C.P.C., que concede ao juiz a faculdade de dispensar a audiência prévia, que destinando-se a algum dos fins nela especificados, expressamente prevê esta hipótese para as ações que hajam de prosseguir.
8. Assim, deveria ser designada audiência prévia para concretização da finalidade prevista no artigo 591.º, n.º 1, b) do C.P.C.; não obstante as partes haverem discutido nos articulados a exceção perentória de caducidade, e da Mª. Juiz a quo, haver notificado as partes para se pronunciarem sobre a eventual prolação de saneador-sentença, uma vez que o Tribunal se encontrava munido dos elementos necessários à decisão.
9. O facto de não sido realizada a audiência prévia, antes do conhecimento da exceção perentória de caducidade do direito de ação por parte da Embargante, invocada, pelo embargado Banco 1... Crl, quando a lei impunha a sua realização, constitui nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do C.P.C.
10. Nulidade que aqui se invoca e se pretende ver atendida, revogando-se a decisão proferida quanto à não realização da audiência prévia, com todas as devidas consequências legais.
Sem prescindir,
11. A recorrente, não se conforma com o saneador-sentença, entendendo que o mesmo padece de vícios e erros na apreciação e na análise da prova e, consequentemente, nas conclusões de facto e de direito daí derivadas, pretendendo ver reapreciada a douta decisão recorrida, seja no que se refere à matéria de facto, seja no que concerne à solução de direito.
12. Pretende assim, a Recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, ao abrigo do disposto no artigo 640º do C.P.C.
13. Isto porque, existe contradição entre a factualidade dada como provada.
14. Atendendo aos elementos constantes dos autos, é indubitável que o Tribunal a quo, decidiu mal e por isso, sempre a decisão recorrida terá, de ser revogada.
15. A recorrente considera incorreta e erradamente julgados os pontos 6 e 7 dos factos provados.
16. A Mma. Juiz a quo fez uma incorreta e omissiva análise e apreciação da prova.
17. Esta deficiente fixação da factualidade relevante teve evidentes consequências na solução de direito encontrada, com a qual a recorrente também aqui manifesta a sua dissidência.
18. A Mma. Juiz incorreu em erro evidente na apreciação da prova, sendo omissiva na sua apreciação, fixando de modo deficiente a matéria fáctica em causa e proferindo, subsequentemente, uma decisão de direito também ela deficiente, porquanto assente em factualidade erradamente tida por provada.
19. Desde logo, tendo presente, o ponto 4. dos factos provados, ou seja:“ 4. Foi formalizada partilha do património que integra o acervo hereditário a 18 de novembro de 2021, no Cartório Notarial de .... “
20. Não poderia, como sucedeu, ser dado como provada a factualidade do ponto 6. dos factos provados; de que: “6. O Executado é beneficiário do direito a quinhões hereditários das heranças indivisas de DD e EE, compostas de 8 (oito) bens imóveis.”
21. E, de igual modo, não poderia, como sucedeu, ser dado como provada a factualidade do ponto 7. dos factos provados; de que: Em 25 de Fevereiro de 2022, na ausência de pronúncia da aqui Embargante, foi efetuada a penhora do direito e ação à herança que o executado BB detém nas heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de EE e DD.
22. Tendo sido dado como provado que: “Foi formalizada partilha do património que integra o acervo hereditário a 18 de novembro de 2021, no Cartório Notarial de .... “, (ponto 4. dos factos provados), como efetivamente sucedeu;
23. Cessou por via da operada partilha, o direito do executado aos quinhões hereditários das heranças abertas por óbito de DD e EE, compostas de 8 (oito) bens imóveis.
24. Desde 18.11.2021, cessou a comunhão hereditária até aí existente entre a Embargante e o Executado, relativa aos 8 imóveis que compunham o acervo hereditário das heranças abertas por óbito de seus pais: DD e EE.
25. Nos termos do previsto no artigo 2.119º do C.C.: Feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem prejuízo do disposto quanto a frutos.
26. Daí que, no requerimento de resposta à exceção perentória aduzida pelo embargado na contestação, apresentado em 07.09.2022, tenha a Embargante arguido a sua posição de terceiro, relativamente à execução em curso;
27. E, em consequência e por via disso, ter reagido à notificação realizada pela Sra. Agente de Execução, por via de Embargos de Terceiro, porquanto não existia à data da notificação, qualquer contitularidade de direitos, da Embargante com o Executado.
28. Nesse sentido, e no requerimento de 07.09.2022, a Embargante, justifica e faz prova da sua posição de terceiro, relativamente à notificação realizada pela Sra. Agente de Execução, de que o direito e ação do executado BB às heranças ilíquidas e indivisas por óbito de EE e DD, detinha por óbito dos referidos EE e DD (pais do executado e da embargante) ficavam penhorados à ordem do processo 224/21..... ....
29. Justificou para o efeito que, desconhecendo a Embargante a data de citação dos Executados, e não tendo de a conhecer;
30. Em resultado da escritura de partilha, outorgada em 18 de novembro de 2021, no Cartório Notarial de ..., todos os imóveis que lhe foram adjudicados, e pelos quais pagou as respetivas tornas, foram por via do mesmo titulo devidamente registados em nome da Embargante, em 23.11.2021, pelo que juntou para o efeito os comprovativos dos registos realizados.
31. Mais justificou que, sendo o registo obrigatório e constituindo presunção de propriedade, o que arguiu em seu benefício, e, sendo certo, que terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por um qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.
32. Resulta, assim, evidente que, à data da notificação realizada pela Exma. Sra. Agente de Execução, 21.01.2022, e, em pessoa diversa do destinatário, não havia qualquer direito indiviso (do Executado) sobre os referidos imóveis.
33. Não sendo por tal facto de aplicar aos presentes embargos, o previsto nos artigos 781º e 773º do C.P.C., conforme decorre da decisão ora em crise, mas antes o previsto no n.º 1 o artigo 342º do CPC.
34. Sendo por tal facto, o prazo que a Embargante dispunha para o fazer, de 30 dias, cf. previsto no n.º 2 do artigo 344º do C.P.C.;
35. Tendo por base o AR assinado por terceiro em 21.01.2022, junto com contestação sob. Doc ...; a dilação de 5 dias, por ter sido realizada em pessoa diversa da destinatária; e, a data de entrada em juízo da petição inicial dos presentes embargos 18.02.2022, resulta, que não se verifica, de todo, a caducidade do direito da Embargante.
36. Por outro lado, e conforme consta do artigo 781º do C.P.C normativo jurídico constante da decisão ora em crise, prevê no seu n.º 1 que: Se a penhora tiver por objeto quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efetuada. (sublinhado nosso).
37. Estando em causa a titularidade de imóveis, e sendo o registo obrigatório, bastaria à Sra., Agente de Execução junto da Conservatória do Registo Predial, confirmar, que decorrente da escritura de partilha junta aos autos, desde 23.11.2021, que a propriedade dos imóveis se encontra registada em nome da Embargante, sendo esta a única titular inscrita, conforme consta, aliás, da informação junta aos autos com o requerimento de apresentado em 07.09.2022.
38. A Embargante pagou tornas ao Executado (seu irmão), no valor de €: 20.343,48, no dia anterior ao da escritura de partilha (17.11.2021), por transferência bancária da conta com o IBAN  ...00, da Banco 2..., para a conta que o Executado tem, titulada, em seu nome, na Embargada, Banco 1..., com IBAN  ...35, conforme consta da escritura e comprovativo de transferência juntos aos autos com a petição inicial de Embargos de Terceiro.
39. Atentando na decisão ora em crise, nomeadamente na factualidade dada como provada; e face à inexistência de qualquer referência a factos não provados, é manifesto que o Tribunal a quo incumpriu o dever de fundamentação imposto por lei a qualquer decisão - cf. artigo 607º, n.º 4 do C.P.C. e artigo 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, o que, desde logo, implica a nulidade da mesma.
40. Relegando-se para a decisão final a fixação da matéria de facto, devia o Tribunal consignar todos os factos provados e não provados relevantes segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito que tenha que considerar-se controvertida, não lhe sendo lícito consignar apenas os factos que relevem para a solução jurídica que preconiza para o caso concreto, sob pena de a decisão ser incompreensível para as partes e impossível de sindicar pelos tribunais superiores -cf. artigo 607º, nº 3, 4 e 5 do C.P.C..
41. E, a verdade é que, não é percetível à Embargante, a apreciação feita pelo Tribunal, nomeadamente quando diz que: “Não se olvida a contradição existente observando a petição inicial e o requerimento de 07/09/2022. No ponto 6 da petição inicial a embargante confessa que rececionou a 21/01/2022 a notificação remetida pela agente de execução (sendo essa a data que consta nos factos provados), já no requerimento de 07/09/2022 contraria o por si dito referindo que a notificação foi recebida a 07/02/2022.”
42. Ora, em 4. do requerimento de 07/09/2022, a Embargante reitera que foi notificada em 21.01.2022, em pessoa diversa da destinatária, a referência à data de 07.02.2022, refere-se à notificação realizada, à Embargante, pela Sra. Agente de Execução, nos termos do previsto no artigo 233º do C.P.C., e constante do Doc.... junto com a Contestação da Embargada, para a qual remete, não existindo, assim, qualquer contradição.
43. Incorrendo o Tribunal a quo em erro de julgamento na apreciação da prova e fixação da matéria de facto;
44. O que, torna a decisão recorrida ininteligível, desde logo quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, motivo pelo qual não se poderá manter – cf. Artigo 662º, nº 1 do C.P.C.”
§ 11.º A embargada Banco 1..., CRL, respondeu, pugnando pela improcedência do recurso nos termos das seguintes conclusões:
1. Considera a ora Recorrida Banco 1..., Crl. que a decisão recorrida proferida pelo tribunal a quo não merece sindicância pelo tribunal ad quem, por aplicar corretamente o direito aos factos em apreço, como veremos infra.
2. No que respeita à dispensa da realização da audiência prévia, não pode a Recorrida anuir com o entendimento formulado pela Recorrente, de acordo com o qual a não realização da audiência prévia, antes do conhecimento da exceção perentória de caducidade do direito de ação por parte da Embargante, constitui uma nulidade processual.
3. Ao abrigo do princípio da gestão processual, pode o julgador dispensar a realização de audiência prévia, caso tenha sido cabalmente observado o princípio do contraditório e caso tenha sido concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem quanto ao conhecimento do mérito da causa, no imediato, sem necessidade de realização de quaisquer diligências extraordinárias – conforme aliás resulta da matéria jurisprudencial recolhida sobre este particular.
4. Em estreita observância com o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, à Embargante foi concedida a possibilidade de se pronunciar, primeiramente sobre a exceção perentória de caducidade deduzida e, de seguida, sobre a possibilidade de ser proferido despacho saneador-sentença, sem a necessidade da realização de quaisquer diligências adicionais.
5. Notificadas para o efeito, tanto a Embargada como a Embargante vieram a declarar nada terem a opor à prolação de saneador-sentença, uma vez que atenta a prova documental já junta aos autos, e ao facto de o douto Tribunal se encontrar já munido dos elementos necessários à prolação de decisão.
6. A prolação de um saneador-sentença após a concordância de todas as partes, seguida do pleno exercício do contraditório quanto à exceção perentória de caducidade invocada na contestação apresentada pela ora recorrida, não consubstancia uma nulidade, como aliás a Recorrente pretende fazer crer, mas antes uma mera consequência do exercício do dever de gestão processual que impende sobre o poder julgador.
7. Ao abrigo do dever de gestão processual, consagrado nos artigos 546.º e 6.º do Código de Processo Civil, o douto tribunal a quo avançou com a prolação de um despacho saneador-sentença, depois da concordância de todos os sujeitos processuais, pressupondo a não realização de demais atos processuais, pelo que não pode a Recorrida compadecer-se com o entendimento formulado nas alegações apresentadas.
8. Ademais, a tentativa da Recorrente em ver declarada nula a decisão proferida, por omissão da realização da diligência da audiência prévia consubstancia uma notória falha na observância do princípio da cooperação processual entre todos os intervenientes,
9. Nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 543.º do Código de Processo Civil e ao abrigo do princípio da cooperação, perante a omissão de uma diligência, que, no entender da Recorrente, se configura como obrigatória, no caso concreto, sempre deveria ter sido alertado o tribunal recorrido, no prazo estipulado para o efeito, requerendo a realização da referida audiência.
10. Uma vez que o prazo para requerer a realização da audiência encontra-se há muito ultrapassado, somos do entendimento que a Recorrente apenas procura protelar o desfecho final da presente demanda judicial, obstaculizando o exercício célere e eficiente da justiça.
11. Inexiste qualquer erro de julgamento e/ou de aplicação da matéria de direito na sentença recorrida, uma vez que os normativos referidos foram corretamente aplicados ao caso concreto, razão pela qual entende a Recorrida que andou bem o tribunal a quo quando reconheceu a existência da exceção perentória de caducidade do direito de ação da Embargante, em sede de saneador-sentença, dispensando a realização de audiência prévia.
12. A sentença recorrida funda-se na premissa de que a possibilidade de prolação de despacho saneador-sentença, sem necessidade de realização de quaisquer outras diligências extraordinárias, verificou-se por existirem já nos autos elementos suficientes para que o julgador pudesse conhecer, no imediato, do mérito da exceção perentória de caducidade.
13. A Recorrente sustenta a sua tese de recurso, negligenciando por completo que aquilo que motivou o conteúdo da decisão proferida em sede de despacho saneador-sentença foi a condição de preclusão do direito que era por esta detido, atenta a indivisão do património, ou seja, a caducidade do direito de ação previsto no artigo 781.º, n.º 2 do CPC, por decurso do prazo para o efeito.de do direito de ação da ora recorrente.
14. Neste sentido, e querendo, cabia à Recorrente, em sede de alegações de recurso, apresentar o seu entendimento discordante quanto a este particular, uma vez que a decisão proferida apenas se dedica à fundamentação da exceção perentória em causa, julgada procedente, o que não veio a suceder-se.
15. Não pode a Recorrida anuir com o entendimento formulado, por entender que o mesmo carece de sentido e de fundamento legal, uma vez que, contrariamente áquilo que vai alegado pela Recorrente, afigura-se-nos possível que tenha sido promovida a penhora do direito do Executado BB às heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de DD e EE e que tal factualidade seja compatível com a constante no ponto 4, uma vez que os factos aí constantes resultam clarividentemente provados dos elementos probatórios já juntos aos presentes autos.
16. A inobservância do prazo legalmente fixado para que os contitulares de um direito indiviso possam promover esclarecimentos quanto à situação de indivisão, encontrava-se há muito ultrapassado, à data em que foi pela Recorrente informada a celebração de escritura pública de partilhas, tornando-se ineficazes quanto à ora Recorrida todos e quaisquer negócios que por si e pelo Executado possam ter sido celebrados.
17. Atentos os contornos concretos da situação particular em discussão, sempre seria necessário dar cumprimento ao disposto no artigo 781.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, normativo de acordo com o qual os contitulares podem contestar a existência e expor os contornos da situação de indivisão.
18. Perante a evidente existência de património em nome do Executado (de acordo com a documentação emitida pelo serviço de finanças competente) e a necessidade de ser assegurado o ressarcimento da quantia exequenda, foi notificada a cabeça de casal, na qualidade de contitular do direito à herança, ora Recorrente, da promoção de penhora pela Sra. Agente de Execução nomeada, nos termos do disposto no artigo 781.º, n.º 2 do CPC.
19. O que é certo é que, perante tal notificação, a ora Recorrente negligenciou da observação do prazo estipulado para carrear aos autos o seu entendimento sobre o assunto, expondo a sua versão dos factos e clareando o entendimento do tribunal quanto à intenção de penhora do direito do Executado.
20. O não exercício, dentro do prazo estipulado para o efeito, do direito que assistia à Recorrente, previsto no artigo 781.º, n.º 2 do Código de Processo Civil de doutamente esclarecer os autos sobre os negócios que alegadamente foram celebrados acarreta um conjunto de consequências, designadamente a ineficácia quanto à ora Recorrida de todos e quaisquer negócios que possam ter sido celebrados entre a Embargante e o Executado.
21. Em suma, o decurso do prazo e o incumprimento do dever de ação da Embargante em tempo próprio implica que se considere definitivamente aceite a existência do crédito sobre o direito em causa.
22. Perante a notificação recebida pela Recorrente, no sentido de que seria penhorado o direito do Executado aos quinhões hereditários sobre os bens imoveis que compõem a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD e EE, sempre decorreria para a Recorrente um verdadeiro dever de esclarecer os autos no sentido em que sobre aqueles bens já havia sido homologada a partilha através de escritura notarial, por forma a que à ordem dos presentes autos, pudessem ter sido realizadas diligências nesse sentido.
23. O que é certo e bem resulta dos autos é que a Sra. Agente de Execução, diligenciou de forma oportuna e legalmente enquadrada pela recolha de informação junto da Autoridade Tributária, relativamente à possibilidade de ser o Executado titular de quaisquer direitos a heranças cuja penhora pudesse satisfazer o crédito da exequente, como aliás é o propósito da sua atuação.
24. Recolhida a informação sobre a titularidade do direito aos quinhões hereditários dos bens que compõem a herança, a Sra. Agente de Execução, não só deu cumprimento à notificação do Executado, como também promoveu diligências no sentido de notificar os contitulares, designadamente a ora Recorrente, na qualidade de terceira para efeitos da presente demanda judicial, por forma a que na referida qualidade, pudesse vir a prestar os esclarecimentos que tivesse por convenientes, relativamente à situação em causa.
25. Sucede que, tais esclarecimentos não foram prestados em tempo útil, precludindo a possibilidade de serem reclamados os atos de penhora já efetuados à ordem dos presentes autos, e obstando a Recorrente de fazer valer, junto da Recorrida, quaisquer negócios celebrados entre aquela e o Executado.
26. Neste sentido, entende a Recorrente que inexiste qualquer erro de julgamento e/ou de aplicação da matéria de direito na sentença recorrida, pelo que não assiste razão à Recorrente, não merecendo qualquer reparo a douta decisão recorrida.”

***
II.
§ 12.º As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
§ 13.º Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
§ 14.º Tendo isto presente, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas, de acordo com a sequência lógica do seu conhecimento, nos seguintes termos:
1.ª Saber se a não realização da audiência prévia configura uma nulidade processual e quais as respetivas consequências;
2.ª Saber se a decisão recorrida é nula, por falta de fundamentação, por não conter a enumeração dos factos não provados;
3.ª Saber se as afirmações de facto dos pontos 6 e 7 do rol dos factos provados foram julgadas de forma incorreta, por existirem meios de prova que impõem decisão diversa;
4.ª Saber se a decisão de julgar a caducidade do direito da embargante padece de erro na qualificação jurídica dos factos.
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III.
§ 15.º 1).1. Vejamos a resposta à 1.ª questão, a qual pressupõe que se considerem os factos relativos ao iter processual que foram descritos no relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão.
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§ 16.º 1).2. Passando à resposta, notamos que o presente incidente de oposição à penhora mediante embargos de terceiro observa, nas fases subsequentes à da contestação, os termos do processo comum, por força da remissão feita no art. 348/1, parte final, do CPC.
§ 17.º Como se sabe, a realização da audiência prévia constitui, no processo comum, o regime regra, conforme decorre do disposto nos arts. 592 e 593. O primeiro destes preceitos (“Não realização da audiência prévia”) diz em que casos não há lugar à audiência prévia, a saber: nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do art. 568; quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados. O segundo, sob a epígrafe “Dispensa da audiência prévia”, permite que o juiz dispense a audiência prévia “[n]as ações que hajam de prosseguir”, “quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo.” Em qualquer uma das hipóteses, não havendo lugar à realização da audiência prévia, o juiz profere despacho saneador (art. 595/1), despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (art. 596/1) e despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas (arts. 592/2 e 593/2.)
§ 18.º De acordo com o n.º 1 do art. 595, o despacho saneador destina-se a conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, o tribunal deva apreciar oficiosamente (alínea a)); e a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória (alínea b)). Quando a audiência prévia se destine a facultar às partes a discussão de facto e de direito nos casos em que o juiz tenciona proferir saneador-sentença, nos termos conjugados dos arts. 591/1, b), e 595/1, b), é possível que este seja proferido por escrito, após a audiência prévia (art. 595/2). Assim sucederá quando a complexidade das questões a decidir o exija.
§ 19.º A importância que o legislador atribui à audiência prévia, como um dos instrumentos de promoção de uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo, resulta bem patente da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII (PL 521/2012, de 2012-11-22) que esteve na génese da Lei n.º 41/2013, de 26.06, que aprovou o CPC em vigor, designadamente das seguintes passagens:
“O novo figurino da audiência prévia, designação ora dada à audiência a realizar após a fase dos articulados, assente decisivamente num princípio de oralidade e concentração dos debates, pressupondo a intervenção ativa de todos os intervenientes na lide, com vista a obter uma delimitação daquilo que é verdadeiramente essencial para a sua plena compreensão e justa resolução, conjugado com a regra da inadiabilidade e com a programação da audiência final, é suscetível de potenciar esse resultado desejável.
(…) No que respeita à tramitação da ação declarativa, as alterações introduzidas visam assegurar a concentração processual, em termos de a lide, cumprida a fase dos articulados, se desenvolver em torno de duas audiências: a audiência prévia e a audiência final.
Há um manifesto investimento na audiência prévia, entendida como meio essencial para operar o princípio da cooperação, do contraditório e da oralidade. Tem-se presente que a audiência preliminar, instituída em 1995/1996, ficou aquém do que era esperado, mas há também a convicção de que, além da inusitada resistência de muitos profissionais forenses, certos aspetos da regulamentação processual acabaram, eles próprios, por dificultar a efetiva implantação desta audiência no quotidiano forense.
(…) A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.”
§ 20.º Na doutrina existe consenso sobre este ponto, de modo que limitamo-nos a referir a lição de Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 650), que escrevem: “[o]s casos em que a dispensa da audiência prévia é permitida só parcialmente coincidem com aqueles em que se admitia a dispensa da audiência preliminar: a dispensa pressupõe agora que a audiência prévia se destinasse apenas ao proferimento de despacho saneador (dantes, a audiência preliminar não podia sequer ser convocada com este fim exclusivo), à adequação formal ou gestão processual (dantes, esta finalidade era quanto muito, complementar das da audiência preliminar), ou ao proferimento do despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (único aspeto em que existe alguma coincidência com o código anterior, já que neste se admitia a dispensa da audiência preliminar quando esta se destinasse à fixação da base instrutória).
Fora destes casos, o juiz não pode dispensar a audiência prévia, nomeadamente quando se verifiquem os requisitos da alínea b) ou da 2.ª parte da alínea c) do art. 591-1. Quanto à realização da tentativa de conciliação (alínea a) do mesmo art. 591), há que ter em conta que ela não é obrigatória (art. 594), o mesmo se podendo dizer da discussão das posições das partes (1.ª parte do art. 591-1-c). Finalmente, resulta do n.º 2-d do artigo em anotação que a programação da audiência final (al. g) do mesmo art. 591-1) tem lugar fora da audiência prévia quando esta seja dispensada, pelo que tão-pouco constitui finalidade obrigatória dela.
Mesmo quando a questão tenha sido debatida nos articulados, a decisão de dispensa deve ser precedida da consulta das partes, ao abrigo do art. 3-3, “assim se garantindo, não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa” (ac. do TRP de 12.11.15 Filipe Caroço, www.dgsi.pt, proc. 4507/13). No mesmo sentido: acs. do TRL de 13.11.14 (Ana Azeredo Coelho), www.dgsi.pt, proc. 673/03, de 5.5.15 (Cristina Coelho), www.dgsi.pt, proc. 1386/13, e do TRP de 24.9.15 (Judite Pires), www.dgsi.pt, proc. 128/14, decretando nulidade, respetivamente por não convocação da audiência prévia para discussão do mérito da causa, apreciado no despacho saneador, e por não convocação da audiência prévia para discussão de exceção perentória, julgada procedente no despacho saneador. Também no mesmo sentido, mas admitindo (“quando muito”) que, por adequação formal, após audição das partes, o juiz possa dispensar a audiência prévia, com fundamento em que a matéria em causa já fora suficientemente debatida nos articulados (restrição esta muito duvidosa), veja-se o ac. do TRL de 9.10.14 (Jorge Manuel Leitão Leal) www.dgsi.pt, proc. 2164/12, e, no mesmo sentido, o ac. do TRE de 30.6.16 (Mário Serrano), www.dgsi.pt, proc. 309/15. No mesmo sentido da nossa anotação: Rui Pinto, Notas cit., n.ºs 3 e 4 da anotação ao artigo 595 (também crítico em face da possibilidade da adequação formal admitida pelo citado ac. do TRL de 9.10.14).
Maior margem de discricionariedade resulta do art. 597 para as ações de valor não superior a metade da alçada de Relação.”
§ 21.º Desta citação podemos retirar que, não obstante, é comum encontrarem-se decisões, sobretudo da 1.ª instância, no sentido da possibilidade de dispensa da audiência prévia quando destinada à prolação de despacho saneador que conheça do mérito da causa. Argumenta-se que o art. 593/1 do CPC, ao referir-se ao fim indicado na alínea d) do n.º 1 do 591, abrange a previsão da alínea b) do art. 595/1, atinente ao despacho saneador. Como se frisa em RL 26.05.2022 (15919/16.9T8LSB-B.L1-2), trata-se “de uma inaceitável interpretação ab-rogante do art. 593.º, n.º 1, do CPC.” Num outro entendimento, também criticável, tem sido defendida a desnecessidade da audiência prévia cuja finalidade seja a discussão prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 591 e a prolação de despacho saneador que conheça do mérito da causa, apreciando uma exceção perentória, nos termos conjugados dos arts. 591/1, d), e 595/1, b), ambos do CPC, desde que o contraditório a respeito da matéria da exceção já tenha sido cumprido.
§ 22.º A jurisprudência maioritária vem, no entanto, convergindo no sentido, que também perfilhamos, de reconhecer que, no atual Código de Processo Civil, se consagrou, como regra, a obrigatoriedade da realização da audiência prévia, com as ressalvas expressamente previstas nos citados artigos (592, 593 e 597), admitindo tão só os “desvios” que, casuisticamente, possam ser determinados pelo juiz, com a prévia audição e o (indispensável) acordo das partes à dispensa da audiência prévia, ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação formal (arts. 6.º e 547 do CPC). Citam-se, inter alia, RL 09.10.2014, (2164/12.1TVLSB.L1-2), RL 05.05.2015 (1386/13.2TBALQ.L1-7), RL 08.02.2018 (3054-17.7T8LSB-A.L1-6), RG 01.03.2018 (9217/15.2T8VNF.G1), RG 30.01.2020 (3834/18.6T8GMR.G1). No sumário do citado RG 1.03.2018 lê-se: “3- Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem; 4- Em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, caso o juiz entenda, finda a fase dos articulados, que o processo deverá findar imediatamente com decisão de mérito, deve convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito, sem o que a prolação de decisão final de mérito em saneador-sentença viola o princípio do contraditório (constituindo uma decisão-surpresa, caso a questão não tenha sido debatida nos articulados); 5- Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.”
§ 23.º É este também o nosso entendimento. Com efeito, valendo a regra da obrigatoriedade da realização da audiência prévia, apenas pode aceitar-se o seu afastamento, fora dos casos expressamente previstos na lei (arts. 592, 593 e 597), quando as especificidades da causa assim o justifiquem, ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação formal (arts. 6.º e 547). Isto pressupõe a observância do contraditório sobre as questões de direito ou de facto a apreciar no saneador-sentença e sobre a conveniência duma diferente tramitação processual, manifestando a sua concordância de forma expressa ou tácita (pela não oposição) à dispensa da audiência prévia.
§ 24.º Na realidade, a importância dos deveres de gestão processual e adequação formal está bem patente em vários outros preceitos do atual Código de Processo Civil, consequência do destaque que lhe foi dado na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII (PL 521/2012, de 2012.11.22):
“Mantém-se e amplia-se o princípio da adequação formal, por forma a permitir a prática dos atos que melhor se ajustem aos fins do processo, bem como as necessárias adaptações, quando a tramitação processual prevista na lei não se adeque às especificidades da causa ou não seja a mais eficiente.
Importa-se para o processo comum o princípio da gestão processual, consagrado e testado no âmbito do regime processual experimental, conferindo ao juiz um poder autónomo de direção ativa do processo, podendo determinar a adoção dos mecanismos de simplificação e de agilização processual que, respeitando os princípios fundamentais da igualdade das partes e do contraditório, garantam a composição do litígio em prazo razoável. No entanto, não descurando uma visão participada do processo, impõe-se que tais decisões sejam antecedidas da audição das partes.”
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§ 25.º 1).3. Sendo este o quadro legal em que nos movemos, não podemos deixar de se entender que a não realização da audiência prévia fora das situações enumeradas no art. 592 configura, prima facie, a omissão de um ato que a lei impõe, sendo causa de uma nulidade processual nos termos previstos no art. 195 do CPC.
§ 26.º Foi o que, inquestionavelmente, sucedeu no caso vertente, em que o mérito da oposição foi decidido no despacho saneador sem que tivesse sido convocada e realizada a audiência prévia ou sequer proferido despacho a dispensar a sua realização no quadro dos referidos poderes de gestão processual.
Ao escrever isto não ignoramos que a 1.ª instância, previamente à prolação do despacho saneador, convidou as partes a pronunciarem-se sobre possibilidade de a oposição ser decidida antecipadamente. Esse convite era, no entanto, totalmente omisso quanto à dispensa de audiência prévia. E se, por um lado, se afigura plausível que fosse essa a intenção que presidiu à iniciativa da 1.ª instância, por outro, existe um elemento que retira arrimo a semelhante juízo: no convite apenas se antecipou a possibilidade de decisão do mérito, sem se fazer qualquer referência especificada aos elementos que já estavam ao dispor do julgador para esse efeito e às questões que os mesmos permitiam solucionar. Também não se possibilitou às partes a discussão escrita sobre eles, subtraindo-se assim uma alternativa ao espaço de discussão que seria a audiência prévia.
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§ 27. º1).4. Aqui chegados, impõe-se acrescentar que tem sido objeto de controvérsia saber se a omissão da audiência prévia deve ser arguida nos termos gerais – isto é, por via incidental, ut art. 196, 2.ª parte, perante o Tribunal de 1.ª instância, onde ela foi cometida, sem prejuízo da subsequente interposição de recurso do despacho que dela conheça, recurso que terá sempre de passar pelo crivo do art. 630/2 do CPC[1] – ou se gera a nulidade do próprio saneador-sentença, tendo, assim, de ser arguida no recurso interposto deste em conformidade com o disposto no art. 615/4 do CPC.
§ 28.º Conforme é assinalado em STJ 23.06.2016 (1937/15.8T8BCL.S1), relatado pelo Juiz Conselheiro António Abrantes Geraldes, a solução acabada de expor, ajustada à generalidade das nulidades processuais, “revela-se, contudo, inadequada quando nos confrontamos com situações em que é o próprio juiz que, ao proferir a decisão (in casu, o despacho saneador), omitiu uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a falta de convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório. Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um ato que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reação da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC.” No mesmo sentido, STJ 13.10.2020 (392/14.4.T8CHV-A.G1.S1), relatado pelo Juiz Conselheiro António Magalhães, STJ 16.12.2021 (4260/15.4T8FNC-E.L1.S1), relatado pelo Juiz Conselheiro Luís Espírito Santo, RE 14.07.2021 (58/20.6T8LGA-C.E1), relatado pelo Juiz Desembargador Mário Coelho, RG 13.02.2020 (3496/18.0T8VCT.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Raquel Batista Tavares, e RL 9.22.2023 (7556/22.5T8LRS.L1-6), relatado pela Juíza Desembargadora Maria de Deus Correia.
§ 29.º Neste último sintetiza-se o entendimento nos seguintes termos: “Não há dúvida de que estamos perante o caso descrito nos excertos doutrinários supra- mencionados, em que a nulidade decorrente de uma omissão de ato que a lei prescreve é totalmente coberto por decisão judicial que se pronunciou sobre questão sobre a qual naquele momento não podia pronunciar-se.
Assim, nestas especiais circunstâncias, a nulidade cometida comunica-se ao despacho saneador-sentença, inquinando-o, ficando a decisão judicial (que não deveria ter sido proferida), contaminada por um vício que atinge o próprio ato jurisdicional de julgamento. A decisão enferma, pois, de um excesso de pronúncia enquadrável no disposto no art.º 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil, não se limitando a uma simples omissão de uma diligência que deveria ter tido lugar e que, por falta imputável ao juiz da causa, não sucedeu.
Com efeito, o que verdadeiramente releva no caso é a pronúncia sobre uma questão que pôs fim ao processo, sem respeito pelo princípio do contraditório (artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil) tendo o Tribunal a quo decidido em momento no qual a lei não lhe permitia proferir sentença, culminando numa verdadeira e proibida decisão surpresa, que consumiu a omissão da audiência prévia, por si só, também passível da invocação de nulidade nos termos gerais.
Na doutrina, Miguel Teixeira de Sousa (Audiência prévia; dispensa; nulidade processual; consequências – Jurisprudência 163”, disponível no Blog do IPPC), diz que “são possíveis três situações bastante distintas:
- Aquela em que a prática do ato proibido ou a omissão do ato obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
- Aquela em que o ato proibido é praticado ou o ato obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um ato obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso, (…) o meio de reação adequado é a impugnação da decisão através de recurso. (…).
No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões. (…) Se, apesar da omissão indevida de um ato, o juiz conhecer na decisão de algo de que não podia conhecer sem a realização do ato omitido (ou, pela positiva, conhecer de algo de que só podia conhecer na sequência da realização do ato), essa decisão é nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), CPC) (…).
O objeto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida – hipótese em que o recurso é procedente – ou não há vícios da decisão impugnada – situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam atos obrigatórios ou que impõem a realização de atos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do ato.
É, aliás, porque o objeto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objeto que se deve entender que uma decisão-surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula – isto é, padece de um vício que se integra no objeto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer – ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual – situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objeto do recurso.”
§ 30.º Num outro escrito (“Audiência prévia; dispensa; conhecimento do mérito no despacho saneador; nulidade processual – Jurisprudência 250”, disponível no Blog do IPPC) Miguel Teixeira de Sousa considera, mais especificamente, que “o que é nulo não é apenas o processo, mas o saneador-sentença que se pronunciou sobre uma questão de que, sem a audição prévia das partes, não podia conhecer (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC); a nulidade do processo só se verifica atendendo ao conteúdo do despacho saneador (ou seja, é o conteúdo deste despacho que revela a nulidade processual) e o despacho não seria nulo se tivesse outro conteúdo, isto é, se não tivesse conhecido do mérito da causa (o que mostra que a nulidade não tem apenas a ver com a omissão de um ato, mas também com o conteúdo do despacho).”
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§ 31.º 1).4.1. Acaso seguíssemos a 1.ª hipótese, diríamos que a Recorrente devia ter arguido a nulidade decorrente da não realização da audiência prévia junto do Tribunal a quo, o que objetivamente não fez.
Estaríamos então perante uma situação de erro no meio processual, enquadrável no art. 193/3 do CPC.
Em geral, erros deste tipo podem e devem ser sanados pelo Tribunal da Relação, determinando-se a convolação do recurso de apelação em incidente de arguição de nulidades e determinando-se a baixa do processo à 1.ª instância para que tal incidente ali seja apreciado e decidido, orientação que se sustenta na regra de que, seguida via processual errada, o tribunal procede oficiosamente à convolação para a via adequada, posto que seja possível a utilização do requerimento apresentado. Este poder do tribunal refere-se ainda ao plano processual e insere-se, portanto, no âmbito dos poderes de condução do processo, sem afetar a relação substantiva subjacente, como frisa Maria dos Prazeres Beleza, “A harmonização dos poderes do juiz e das partes nos recursos cíveis”, Jurismat, 2022, n.º 15, pp. 219-232. Trata-se de um poder oficioso que também pertence ao tribunal de recurso (Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online cit., p. 76). Não se diga em contrário que o poder jurisdicional da 1.ª instância ficou esgotado com a prolação da sentença (art. 613/1 do CPC). É que aquilo que está em causa é uma nulidade pretérita, não apreciada, que inquina necessariamente o ato decisório subsequente, permitindo ao tribunal suprir esse vício, mesmo que depois de proferida a sentença (cf. art. 613/2 do CPC)
Simplesmente, a possibilidade de convolação não é ilimitada. O seu exercício pressupõe, a um tempo, que o ato processual praticado pela parte tenha respeitado os requisitos de ordem formal previstos para o meio processual adequado à finalidade pretendida (STJ 14.05.2019, 12/12.1TBGMR-F.G1.S2) e, a outro, que tenha sido praticado dentro do prazo perentório fixado para este. Não é admissível que, através desta convolação oficiosa, a parte consiga praticar um ato processual cujo prazo para o seu exercício (atuando sem erros) já se encontraria expirado e, nessa medida, precludido. Neste sentido, expressamente, STJ 8.02.2018 (4140/16.6T8GMR.G1.S2), RP 5.03.2015 (3788/13.5YYPRT-A.P1) e RG 7.03.2019 (2305/17.2T8VNF-A.G1). Na doutrina, Maria dos Prazeres Beleza, “A harmonização dos poderes do juiz e das partes nos recursos cíveis”, Jurismat, 2022, n.º 15, p. 224, nota 16, Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online, Artigos 130.º a 361.º, versão de 2023/10, p. 76, nota 8, e Luís Filipe Espírito Santo, Recursos Civis, Lisboa: Cedis, 2020, p. 239.
Não sendo a nulidade em causa do conhecimento oficioso, o prazo para a arguir é de dez dias (art. 149/1 do CPC). Se a parte não estiver presente no momento em que a nulidade é cometida, o prazo para a sua arguição conta-se a partir do momento em que a parte tem a obrigação de conhecer a nulidade (art. 194/1, 2.ª parte, do CPC). Se a parte interveio no processo, é a partir do momento dessa intervenção que se conta o prazo para a arguição da nulidade. “A lei parte do princípio de que uma intervenção cuidadosa implicará sempre o exame do processo e a verificação da (in)existência de uma qualquer nulidade” (STJ 4.02.2020, 805/16.0T8MTJ.L1.S1). Se a parte foi notificada para ou de (e não apenas “para”) qualquer ato no processo, o prazo para a arguição da nulidade conta-se a partir dessa notificação, embora apenas quando se possa presumir que, nesse momento, a parte tomou conhecimento da nulidade ou dela devesse ter tomado conhecimento. Como explica Miguel Teixeira de Sousa (Código de Processo Civil Online cit., p. 82, nota 4), “a sequência de atos que caracteriza a tramitação do processo leva a que se possa concluir que a notificação da parte é suficiente para a alertar de que foi ou vai ser praticado um ato fora do momento legal ou de que foi omitido um ato que devia ter antecedido o ato notificado.”
No caso que nos ocupa, como é bom de ver, o prazo estaria esgotado quando foi apresentado o requerimento de interposição de recurso, o que significa que teria ficado precludido o direito processual à arguição da nulidade que, assim, estaria sanada.
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§ 32.º 1).4.2. Aderindo, no entanto, aos ensinamentos expressos a propósito da segunda hipótese, temos que a não realização da audiência prévia nos casos em que o juiz vem a conhecer do mérito da causa no despacho saneador conforma uma patologia que se projeta na própria decisão proferida. Está-se assim a conhecer de uma questão que não podia ser conhecida, o que redunda num vício estrutural do despacho saneador. Quer se considere que a nulidade processual é consumida pela nulidade da decisão por excesso de pronúncia, quer se considere que há apenas um vício – o da decisão –, será sempre este último que deverá ser atacado com arrimo no disposto no art. 615/1, d), do CPC.
§ 33.º A nulidade aqui prevista – em rigor, uma anulabilidade – não é, porém, do conhecimento oficioso, entendimento que se estriba na circunstância de várias disposições legais (arts. 614/1, 615/2 e 4 e 617/1 e 6, todos do CPC) aludirem, em determinadas circunstâncias, à possibilidade do suprimento oficioso de nulidades da sentença de modo que indicia que o conhecimento desse vício constituirá a exceção e não a regra que, em contrapartida, é a necessidade de alegação. Neste sentido, STJ 30.11.2021, (1854/13.6TVLSB.L1.S1), RG 1.02.2018  (1806/17.7T8GMR-C.G1), RG 17.05.2018 (2056/14.0TBGMR-A.G1), RG 4.10.2018 (4981/15.1T8VNF-A.G1), RG 7.02.2019 (5569/17.8T8BRG.G1), RG 19.01.2023 (487/22.0T8VCT-A.G1); na doutrina, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, pp. 735-736, e Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil  (artigos 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 10. Assim, para que o tribunal ad quem possa conhecer dela impõe-se a sua arguição, o que, no caso, não sucedeu. Com efeito, o que a Recorrente arguiu, nas conclusões do recurso, foi a nulidade decorrente da audiência prévia enquanto omissão de um ato do processo, enquadrando-a no art. 195 do CPC, e não a nulidade do despacho saneador por excesso de pronúncia.
§ 34.º Não está em causa um simples erro na escolha do meio processual, como tal enquadrável na previsão do já citado art. 193 do CPC, mas um erro quanto ao próprio objeto da pretensão: a nulidade que verdadeiramente se verifica recai sobre a decisão e não sobre a omissão da audiência prévia enquanto ato obrigatório do processo, sendo que foi esta última a (única) arguida pela Recorrente. Por esta razão não é viável a convolação, conforme se entendeu em situação semelhante no citado STJ 13.10.2020 (392/14.4.T8CHV-A.G1.S1).
Temos, assim, de concluir que a nulidade de que enferma o despacho saneador, não sendo do conhecimento oficioso, tinha de ser arguida pela Recorrente; não tendo isso sucedido, ficou sanada.
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§ 35.º 2).1. Ficou assim aberto o caminho para conhecermos das demais questões enunciadas, começando, para esse efeito, por transcrever a fundamentação de facto da sentença recorrida:

“A) FACTOS PROVADOS
Com relevo para a decisão da invocada exceção perentória, importa atentar nos seguintes factos constantes dos autos e apurados (desconsiderando-se, por ora, os demais, por se afigurarem irrelevantes para a decisão da matéria da invocada exceção perentória):

1. A notificada AA é cunhada da executada CC e irmã, do marido da executada, BB.
2. A embargante foi notificada pela Exma. Srª Agente de execução, de que o seu irmão e cunhada, respetivamente BB e CC, em 27 de Janeiro de 2022 (22/01/2022), haviam sido citados na pessoa de um terceiro, FF, de que o direito e ação do executado BB às heranças ilíquidas e indivisas por óbito de EE e DD, direito que o executado detém por óbito dos referidos EE e DD (pais do executado e da embargante) ficam penhorados à ordem do processo 224/21..... ....
3. Foi rececionada pela embargante notificação com o mesmo conteúdo da notificação referida em 2), em 21 de janeiro de 2022, através de terceiro FF.
4. Foi formalizada partilha do património que integra o acervo hereditário a 18 de novembro de 2021, no Cartório Notarial de ....
5. Em 03 de Dezembro de 2021 (posterior à data descrita em 4)), foi pela Sra. Agente de Execução nomeada pesquisados os NIF’s das heranças em de que o Executado surge como beneficiário, tendo sido divulgado pela Autoridade Tributária, o comprovativo de requerimento de participações de transmissões gratuitas.
6. O Executado é beneficiário do direito a quinhões hereditários das heranças indivisas de DD e EE, compostas de 8 (oito) bens imóveis.
7. Em 25 de Fevereiro de 2022, na ausência de pronúncia da aqui Embargante, foi efetuada a penhora do direito e ação à herança que o executado BB detém nas heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de EE e DD.
8. A 18 de fevereiro de 2022 deram entrada pela embargante os presentes embargos de terceiro.
9. A embargada Banco 1..., CRL foi citada para os presentes autos a 14 de março de 2022.
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B) FACTOS NÃO PROVADOS
Inexistem factos por provar com relevo para a causa.”
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Motivação
Os factos 1) e 4) emergem provados com base no teor da escritura pública, junto com a petição inicial de embargos de terceiro, como doc. ....
Os factos 2) e 3) resultam provados com base no teor da notificação expedida pela agente de execução, junta com a contestação, como doc. ... e por confissão atento o ponto 6.º da petição inicial.
Os factos 5) e 6) resultam provados com base no teor do doc. ... junto com a contestação, nomeadamente, o preenchimento do comprovativo de participações de transmissões gratuitas no qual o executado o executado ser titular das massas hereditárias, na proporção de ½ e 1/6, ou seja, beneficiário do direito a quinhões hereditários das heranças indivisas de DD e EE, compostas de 8 (oito) bens imóveis.
O facto 7) emerge provado com base no teor do auto de penhora, junto com a contestação como doc. ....
O facto 8) emerge provado com base no teor da petição inicial a qual deu entrada no sistema citius a 18/02/2022, sob a referência ...90, e aperfeiçoada a 08/03/2022, sob a referência ...75.
O facto 9) resulta provado com base no teor das citações dos embargados, sob as referências citius ...78, ...79, ...80, ...70.”
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§ 36.º 2).2. A sentença – e, por extensão legal, os despachos judiciais (art. 613/3 do CPC) – pode estar viciada por duas causas distintas: por padecer de um erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in judicando –, sendo a consequência a sua revogação pelo tribunal superior; por padecer de um erro na sua elaboração e estruturação ou por o julgador ter ficado aquém ou ter ido além daquilo que constituía o thema decidendum, sendo a consequência a nulidade, conforme previsto no art. 615 do CPC. Nas situações do primeiro tipo, estão em causa vícios intrínsecos do ato de julgamento; nas do segundo, vícios formais, extrínsecos ao ato de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites. Neste sentido, inter alia, RG 4.10.2018 (1716/17.8T8VNF.G1), RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), RG 15.06.2022 (111742/20.8YIPRT.G1), RG 12.10.2023 (1890/22.1T8VCT.G1).
§ 37.º Diz o n.º 1 do art. 615 do CPC, na parte que releva, que:
“É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão (…);
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (…)”
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§ 38.º 2).3. Centrando a atenção no primeiro dos vícios previstos na norma (em termos taxativos, acrescentamos) – a falta de fundamentação de facto e de direito –, começamos por dizer que as regras a observar pelo juiz na elaboração da sentença estão enunciadas nos números 2 e 3 do art. 607 do CPC, nos termos dos quais a “sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, e enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer”, seguindo-se “os fundamentos de facto”, onde o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final”.
§ 39.º O n.º 4 do mesmo preceito acrescenta que, na “fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”; e “tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”.
§ 40.º Finalmente, o n.º 5 diz que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, não abrangendo, porém, aquela livre apreciação “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
§ 41.º Reafirma-se, assim, em sede de sentença cível, a obrigação imposta pelo art. 154 do CPC, que é concretização do mandamento consagrado no 205/1 da Constituição da República, do juiz fundamentar as suas decisões, apenas o podendo fazer por simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
§ 42.º Conforme se pondera em RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Matos, aqui 1.ª Adjunta, “visando-se com a decisão judicial resolver um conflito de interesses (art. 3.º, n.º 1, do CPC), a paz social só será efetivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação.”
§ 43.º No mesmo aresto escreve-se que, “[e]m termos de matéria de facto, impõe-se ao juiz que, na sentença, em parte própria, discrimine os factos tidos por si como provados e como não provados (por reporte aos factos oportunamente alegados pelas partes, ou por reporte a factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respetiva natureza).
Impõe-se-lhe ainda que deixe bem claras, quer a indicação do elenco dos meios de prova que utilizou para formar a sua convicção (sobre a prova, ou não prova, dos factos objeto do processo), quer a relevância atribuída a cada um desses meios de prova (para o mesmo efeito), desse modo explicitando não só a respetiva decisão (“o que” decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram (“o porquê” de ter decidido assim).”
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§ 44.º 2).4. No caso vertente, verificamos que da sentença recorrida consta a enumeração dos factos provados e, bem assim, a indicação dos meios probatórios que para esse efeito foram considerados pelo Tribunal a quo, todos eles de natureza documental. Ao contrário do que sustenta a Recorrente, não foi omitida qualquer referência aos factos não provados. O que sucede é que o Tribunal a quo considerou – e assim consignou – que não existem factos não provados com interesse para a decisão da exceção perentória a que restringiu o âmbito da sua cognição. Esta fórmula permite que o destinatário compreenda, a um tempo, que os factos essenciais para o conhecimento da exceção perentória estão todos enunciados no rol dos factos não provados e, a outro, que os demais factos alegados não são relevantes para o conhecimento da exceção. Isto basta para afirmar que a sentença não padece do vício que lhe foi imputado pela Recorrente, pelo que, sem necessidade de outras considerações, a resposta a esta questão é negativa.
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§ 45.º 3).1. Passamos para a 3.ª questão, em que está em causa o erro de julgamento quanto às afirmações de facto dos pontos 6) e 7), do seguinte teor:
“6. O Executado é beneficiário do direito a quinhões hereditários das heranças indivisas de DD e EE, compostas de 8 (oito) bens imóveis.
7. Em 25 de Fevereiro de 2022, na ausência de pronúncia da aqui Embargante, foi efetuada a penhora do direito e ação à herança que o executado BB detém nas heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de EE e DD.”
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§ 46.º 3).2. De acordo com a Recorrente, a afirmação de facto do ponto 6) está em contradição com a do ponto 4), onde se diz que “[f]oi formalizada partilha do património que integra o acervo hereditário a 18 de novembro de 2021, no Cartório Notarial de ....” Numa primeira abordagem, diremos que tem razão: se a herança foi objeto de partilha, então isso significa que deixou de estar em situação de indivisão e que, por efeito dela, cada um dos herdeiros adquiriu os bens que integraram a sua quota, tudo se passando como se tais bens fossem seus desde a morte do de cujus (art. 2119 do Código Civil).[2]
§ 47.º Afigura-se-nos, porém, que o problema da afirmação do ponto 6) está a montante: dizer-se que o Executado é beneficiário do direito a quinhões hereditários das heranças indivisas de DD e EE num contexto processual em que se discute se essas heranças foram ou não partilhadas assume uma natureza evidentemente conclusiva. No fundo, a questão que se situa no âmago da petição de embargos – a partilha das referidas heranças – recebe assim, de uma assentada, uma resposta negativa que é dada com dispensa do enquadramento jurídico.
§ 48.º Ora, do n.º 2 do 607/4 do CPC, decorre que o tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, o que exclui a pronúncia, nessa sede, sobre questões de direito, sendo que, tradicionalmente, se englobam neste conceito, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos, os quais são, no dizer de Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107, “aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa” ou, dito de outro modo, aqueles que se fossem considerados provados ou não provados levariam a que toda a ação ficasse resolvida, em termos de procedência ou improcedência, com base nessa única resposta. Conforme é salientado em RG 11.11.2021, 671/20.1T8BGC.G1, “não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art. 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir “factos provados” para esse efeito as afirmações que “numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido”… De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a “assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”…” No mesmo sentido, o Acórdão desta Relação de 31.03.2022 (294/19.8T8MAC.G1) sintetiza a questão nos seguintes termos: “[a]figura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor.” E, sufragando RP 07.12.2018 (338/17.8YRPRT), acrescenta que: “Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais.” Deste modo, a afirmação do ponto 6), por não ter como objeto um facto, deve ser excluída da fundamentação de facto.
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§ 49.º 3).3. Já quanto à afirmação do ponto 7), a tese da contradição não é sustentável: em termos estritamente factuais é possível a penhora de quinhão hereditário em herança já partilhada. A compatibilização entre esses atos e os respetivos efeitos coloca-se apenas no plano jurídico.
§ 50.º A nosso ver o problema da afirmação do ponto 7) reside no uso que nela é feito de conceitos jurídicos – notificação e penhora – que desvirtuam o que é evidenciado pelos documentos em que se baseou o Tribunal a quo, a saber a carta datada de .../.../2022 que a agente de execução dirigiu à embargante e o respetivo aviso de receção, dos quais resulta o seguinte:
No dia .../.../2022, a agente de execução enviou uma carta registada com aviso de receção à embargante, para a morada Rua ..., ..., do seguinte teor: “Fica V. Exa. notificada que o direito e ação do Executado BB às heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de EE… e DD… (…) ficam penhorados à ordem do processo supra mencionado. / A penhora produz efeitos a partir da data em que seja efetuada esta notificação e de que poderá, num prazo de dez dias, exercer os direitos que lhe reconhece a previsão do art. 781/2 do CPC. / Fica V. Exa. ainda notificado que o direito e ação do Executado supra referido às heranças (…) ficam à ordem da aqui signatária e agente de execução (…) e que, por essa razão, os bens com que venham a formar-se a quota do Executado (…) não poderão ser entregues a este, devendo ficar retidos, sendo que, se a quota do Executado consistir em dinheiro, a cabeça-de-casal da herança (…) deverá depositar à ordem da aqui signatária as importâncias respetivas (…)
Fica também notificado de que penhorado o direito e ação do Executado (…) a partilha da aludida herança na pendência do presente processo de execução será ineficaz (…)”; e
A referida carta foi recebida por FF, que assinou o aviso de receção, no dia 21 de janeiro de 2022, tudo cf. documento ... apresentado com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
§ 51.º Deste modo, a redação do ponto 7) será alterada, passando a ser a que consignamos no § anterior, o que se imporia, independentemente da impugnação deduzida pela Recorrente, em cumprimento do disposto no art. 662/1 do CPC.
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§ 52.º 4).1. Respondida a 3.ª questão, passamos para a 4.ª, que será respondida tendo em conta as alterações introduzida na fundamentação de facto.
A decisão recorrida baseia-se no seguinte raciocínio: depois de notificada pela agente de execução, a Recorrente dispunha do prazo de dez dias para impugnar a existência do direito do executado objeto da penhora (quinhão titulado pelo executado nas heranças abertas por óbito dos progenitores comuns); não o tendo feito, reconheceu a existência desse direito e, com isso, levou à extinção do direito de reagir contra a penhora através de embargos de terceiro.
A resposta à questão implica, portanto, que se esclareça qual a finalidade da notificação que foi dirigida à Recorrente e quais os efeitos do silêncio desta perante tal notificação.
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§ 53.º 4).2. Está em causa, como vimos, a penhora de quinhão hereditário, o que nos remete para o disposto no art. 871 do CPC, preceito que rege sobre a penhora de direito a bens indivisos ou de quinhão em património autónomo. Enquadra-se na previsão, com interesse para a decisão, o quinhão hereditário, situação em que o executado, enquanto não for feita a partilha, não é proprietário de nenhum bem ou direito que integre a herança, mas apenas titular de um direito sobre uma quota-parte, abstrata e idealmente considerada, desse património autónomo. A propósito, vide RL 13.10.2016 (6467/06.6TBOER-H.L1-2) e RE de 28.02.2019 (4691/04.2TBSTB-A.E1). A menos que a ação executiva tenha sido movida contra todos os contitulares do património autónomo, não podem ser penhorados bens concretos ou individualizados que façam parte dele, nem tão-pouco uma fração especificada. Por conseguinte, a penhora de quinhão em património autónomo é efetuada mediante a notificação do facto ao administrador do bem, se o houver (por exemplo, cabeça-de-casal), e aos demais contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efetuada (art. 781/1).[3]
§ 54.º Esta notificação visa, precisamente, evitar que os demais contitulares, em conluio com o executado, pratiquem atos em prejuízo do credor. Assim, Rui Pinto (“Penhora e alienação de outros direitos”, Themis, ano IV, n.º 7, 2003, pp. 131-164), João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 774), e Marco Carvalho Gonçalves (Lições de Processo Civil Executivo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 424). É isto que justifica que a penhora tenha como consequência a ineficácia, em relação à execução, de qualquer ato, posterior à notificação, de disposição, oneração, divisão ou partilha. Neste sentido, STJ 30.03.2006 (05B3646,), RP 03.05.2016 (2839/11.2TBMAI-B. P1). Em sentido contrário, RP de 27.04.2004 (0421355), que considerou válida e eficaz a partilha efetuada após a penhora do direito e ação em relação a uma herança, no âmbito da qual os bens foram adjudicados a um dos interessados, tendo sido depositadas a favor da execução as tornas devidas ao executado.
§ 55.º Uma vez notificados da penhora, tanto o administrador do bem, como os demais contitulares, podem fazer as declarações que entenderem por convenientes quanto ao direito do executado e ao modo de o tornar efetivo. Podem ainda os contitulares dizer se pretendem que a venda tenha por objeto todo o património ou a totalidade do bem, caso em que o património ou o bem são vendidos na sua totalidade (art. 781/2 e 4). Sendo contestada a existência do direito, aplica-se, com as devidas adaptações, o regime previsto no art. 775, concernente à penhora de créditos, sendo o exequente e o executado notificados para se pronunciarem no prazo de dez dias, devendo o exequente declarar se mantém a penhora ou se desiste dela (art. 781/3).
§ 56.º Como se constata, o preceito prevê a aplicação do regime do art. 775 nas situações em que um dos contitulares, na sequência da notificação, negue a existência do direito penhorado. Mas nada diz para as situações, como a dos autos, em que os contitulares se remetem ao silêncio.
§ 57.º Na decisão recorrida entendeu-se ser de aplicar o previsto no n.º 4 do art. 773, relativo à penhora de créditos. Esta era a solução que Alberto dos Reis (Processo de Execução, II, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1982, p. 221) propunha face à norma do art. 863 do CPC de 1939, equivalente à do art. 862 do CPC de 1961 e à do art. 781 do atual CPC. No mesmo sentido era a lição de Eurico Lopes-Cardoso (Manual da Ação Executiva, 3.ª ed., 2.ª reimpressão, Coimbra: Almedina, 1996, p. 453) que, em nota de rodapé, a justificava com recurso à aplicação analógica.
Quid inde?
§ 58.º De acordo com a referida norma do n.º 4 do art. 773, se o devedor nada disser na sequência da penhora do crédito, entende-se que reconhece a existência da obrigação. Compreende-se que assim seja: o devedor tem, nos termos do n.º 2 do mesmo art. 773, o dever de informar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam importar à execução. Isto demonstra bem que não existe qualquer identidade entre a situação da penhora de créditos e a da penhora de quinhão em património autónomo, pressuposto da aplicação analógica da norma do art. 773/4 (cf. art. 10.º/1 do Código Civil). Na primeira justifica-se a exigência de colaboração do notificado que, enquanto devedor, fica obrigado a cumprir perante a execução. Na segunda, essa colaboração é desnecessária, razão que leva o legislador, no n.º 2 do art. 871, a falar na mera faculdade de o notificado declarar o que entender quanto ao direito do executado e ao modo de o tornar efetivo. Justifica-se, assim, a cominação prevista para a omissão do dever de colaboração previsto na primeira – o reconhecimento da obrigação de prestar. E percebe-se por que razão não se prevê, sequer por remissão, qualquer cominação para o não exercício da faculdade prevista na segunda. Não há nesta qualquer obrigação do notificado para com o devedor que deva ser cumprida perante a execução, o que vale por dizer que não, assim, nada que possa ser objeto de um reconhecimento. Afigura-se-nos, deste modo, que são de afastar as soluções de Alberto dos Reis e de Eurico Lopes-Cardoso.
§ 59.º Neste sentido, Lebre de Freitas (A Ação Executiva, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 204), escrevia, em face do art. 862 do CPC de 1961, na redação anterior ao DL n.º 38/2003, de 8.03, expressamente, que “[o]s notificados poderão também contestar a existência do direito penhorado ou fazer acerca dele outras declarações pertinentes (art. 862/2 e 3); mas, não tendo o seu silêncio qualquer efeito cominatório, ele não impede, designadamente, a dedução de embargos de terceiro.” O entendimento foi renovado pelo autor nas edições da obra ulteriores à reforma da ação executiva levada a cabo pelo referido DL n.º 38/2003 (a título de exemplo, A Ação Executiva - depois da Reforma, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 253; A Ação Executiva – depois da Reforma da Reforma, 5.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 251). Com mais desenvolvimento, Lebre de Freitas / Armindo Ribeiro Mendes (Código de Processo Civil Anotado, III, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p, 476), escreviam, à luz do art. 862 do CPC de 1961, na redação do DL n.º 38/2003, que “a questão tem hoje solução simplificada, em face do disposto no art. 860/4 [do CPC de 1961, na redação do DL n.º 38/2003, correspondente ao art. 856/4 do CPC de 2013]: a penhora é mantida nos termos em que foi feita; mas os terceiros contitulares podem ainda opor-se à penhora, deduzindo embargos de terceiro no prazo do art. 353/2 [do CPC de 1961, correspondente ao art. 344/2 do CPC de 2013] (…) ou propondo ação de reivindicação, não suspensiva da execução, mas determinante da ineficácia da venda executiva, se for procedente (…); serão, porém, responsáveis, nos termos gerais, pelos danos que, com a omissão, tiverem causado (…).” Depois da entrada em vigor do CPC de 2013, perante a identidade dos preceitos legais, Lebre de Freitas (A Ação Executiva – À luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Coimbra: Gestlegal, 2017, p. 289) continua a expressar o mesmo entendimento que, como expusemos, entendemos ser o mais correto.[4]
§ 60.º Perante o que antecede, a resposta à 4.ª questão é positiva. Em consequência, temos de concluir que o despacho saneador recorrido incorreu em erro ao subsumir a situação dos autos na norma do art. 773/4 do CPC. Verificando-se, por outro lado, que a petição de embargos foi apresentada dentro do prazo previsto no art. 344/2 do CPC, não ocorreu a caducidade do direito que a Recorrente veio exercer de deduzir oposição à penhora através de embargos de terceiro. Impõe-se, portanto, a revogação e o prosseguimento da instância, para o conhecimento das demais questões suscitadas pelas partes e das que forem do conhecimento oficioso.
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§ 61.º 5) Vencida, a Recorrida Banco 1..., CRL, deve suportar as custas do recurso: art. 527/1 e 2 do CPC.
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IV.
§ 62.º Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em Julgar o presente recurso de apelação procedente e, em consequência;
· Revogar o despacho recorrido na parte em que julgou verificada a exceção perentória da caducidade do direito da Recorrente deduzir oposição à penhora através de embargos de terceiro;
· Substituir essa decisão por outra a julgar a improcedência de tal exceção perentória, devendo os autos prosseguir a sua normal tramitação;
· Condenar a Recorrida no pagamento das custas do presente recurso.
Notifique.
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Guimarães, 18 de janeiro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
Maria João Marques Pinto de Matos (1.ª Adjunta)
Maria Gorete Morais (2.ª Adjunta)



[1] A propósito, António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022 pp. 24-25) escreve que “[a] ocorrência de nulidades processuais pode derivar da omissão de ato que a lei prescreva ou da prática de ato que a lei não admita, ou admita sob uma forma diversa daquela que foi executada. Sem embargo dos casos em que são do conhecimento oficioso, tais nulidades devem ser arguidas perante o juiz (arts. 196 e 197) e é a decisão que for proferida que poderá ser impugnada pela via recursória, agora com a séria limitação constante do n.º 2 do art. 630 (…).”
[2] Como é sabido, para parte dos autores, com destaque para Pereira Coelho (Direito das Sucessões, Coimbra, reimpressão, 1982, p. 284), Capelo de Sousa (Lições de Direito das Sucessões, II, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2002, pp. 239-240) e Jorge Duarte Pinheiro (O Direito das Sucessões Contemporâneo, 2.ª ed., Lisboa: AAFDL, 2017, p. 376), a partilha tem natureza declarativa, uma vez que através dela apenas são declarados direitos dos herdeiros sobre os bens, direitos que já lhes cabiam desde a morte do de cujus. Para outros, como Luís Carvalho Fernandes (Lições de Direito das Sucessões, 4.ª ed., Lisboa: Quid Juiris, 2012, p. 360), Pires de Lima / Antunes Varela (Código Civil Anotado, VI, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, pp.195-196), Oliveira Ascensão (Direito Civil: Sucessões, 5.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 546-547) e Cristina Araújo Dias (Lições de Direito das Sucessões, 6.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, pp. 187-188), não pode dizer-se que a partilha seja meramente declarativa, dado que o direito do herdeiro antes da partilha (sendo contitular da herança) não é o mesmo que tem depois da partilha (direito aos bens concretos), ainda que se filie naquele. Por isso, a natureza da partilha tem natureza modificativa.
[3] No sentido de a penhora do direito do executado a uma herança indivisa não se encontrar sujeito a registo, mesmo que da herança façam parte bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo, atento o facto de a penhora não recair sobre bens certos e determinados, STJ de 20.11.2019 (171/17.7T8MFR.L1.S1), RL 11.04.2019 (171/17.7T8MFR.L1-6) e RE 11.07.2019 (318/08.4TBPSR-A.E1).
[4] Não estamos aqui a tratar da questão de saber se os contitulares notificados assumem a qualidade de terceiros para efeitos de oposição à penhora através de embargos, nem tão-pouco da questão de saber se a penhora realizada sobre o quinhão hereditário do executado é suscetível de ofender o direito de propriedade que, entretanto, tenha sido adquirido por ouro herdeiro, através da partilha, sobre bens certos e determinados que compunham a herança. Sobre estas, RG 30.09.2021, 247/15.5T8MAC-C.G1