PROVA DOCUMENTAL
PROVA TESTEMUNHAL
DECLARAÇÃO DE TESTEMUNHA NOUTRO PROCESSO
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário

À luz do regime dos artigos 355.º a 357.º do Código de Processo Penal, do princípio da imediação e do princípio do contraditório, não é admissível a junção aos autos para apreciação como prova da gravação de declarações de testemunha prestadas noutro processo

Texto Integral

Proc. 456/10.3IDPRT.P1



Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto



I 1. –
O Ministério Público veio interpor recurso dos doutos despachos do Mmº Juiz do Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, proferidos na sessão da audiência de julgamento de 17 de novembro de 2022, um que indeferiu o seu requerimento de junção aos autos, tenho em vista a sua apreciação como prova, de depoimento gravado da testemunha AA (inspetor tributário já falecido) prestado no processo n.º 971/11.1BEPRT, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, e outro que indeferiu a arguição de nulidade (nulidade nos termos do artigo 120.º, n.º 1 e n.º 2, d), in fine, do Código de Processo Penal) decorrente desse indeferimento.

São as seguintes as conclusões da motivação deste recurso:
«AA.) - Enquadramento do objecto do recurso
1. O presente recurso versa sobre os dois despachos proferidos na sessão de julgamento do dia 17 de Novembro de 2022, acima destacados sob os pontos V) e VII) do segmento A.1) da motivação de recurso que antecede: ou seja tanto incide sobre o despacho que rejeitou a solicitação para junção aos autos, tendo em vista a sua livre apreciação, da gravação dum depoimento prestado em julgamento doutro processo por uma testemunha, como sobre o subsequente despacho nos termos do qual foi rejeitada a existência da invalidade processual invocada pelo Ministério Público nos termos supra expostos.
2. No âmbito dos presentes autos, a sociedade arguida e o seu representante legal, o arguido, chegaram a julgamento pronunciados pela prática de UM CRIME DE FRAUDE FISCAL QUALIFICADA. Esta pronúncia assenta na circunstância do arguido, em representação e interesse da antedita sociedade, através da falsificação da contabilidade da mesma, e com recurso à utilização dum programa informático que adulterou a emissão de facturas, ter omitido a declaração de rendimentos tributáveis como lucro fiscal, obtendo desta forma, para ambos, uma vantagem patrimonial ilegítima através do não pagamento parcial do valor de I.R.C..
3. No julgamento dos presentes autos, o Ministério Público requereu uma diligência de prova ulterior, a qual consistia no pedido de solicitação ao processo nº 971/11.1BEPRT do T.A.F. do Porto, para junção aos presentes autos e livre apreciação, duma cópia da gravação do depoimento da testemunha AA, inspector tributário, prestado em sede do julgamento aí realizado.
4. Em tal requerimento explicou-se que a referida diligência se mostrava necessária à descoberta da verdade, designadamente para lograr demonstrar a matéria da acusação, porquanto a referida testemunha foi quem elaborou o relatório de inspecção tributária/auto de notícia que deu origem aos presentes autos, sendo a única com conhecimento directo do seu conteúdo sendo certo que, por um lado, as demais testemunhas ouvidas em julgamento revelaram dispor dum conhecimento vago, limitado e indirecto da factualidade em causa e, por outro lado, não se mostrou possível ouvir no âmbito do presente julgamento a testemunha AA, pois morreu antes do julgamento se iniciar.
5. Chamado a decidir, o Mmo. Juiz indeferiu a referida diligência probatória, através de despacho proferido na respectiva sessão de julgamento, defendendo que a prova requerida é inadmissível porque viola a disciplina legal dos arts. 355º a 357º do Código de Processo Penal, que o arguido destes autos não figurava na mesma condição no processo do qual se pretende extrair a gravação de depoimento e porque esse processo era menos garantistico dos seus direitos de defesa que os presentes autos.
6. Reagindo, o Ministério Público arguiu de imediato a nulidade processual que o mesmo consubstanciou, invocando que a referida decisão constituía uma omissão legalmente inadmissível, na fase de julgamento, de diligência reputada como essencial à descoberta da verdade.
7. No entanto, o Tribunal, através de novo despacho, indeferiu também a arguição da mencionada nulidade.
BB.) – Das razões da nossa discordância face ao decidido
8. A prova peticionada ora em crise deve ser considerada de natureza documental pois reconduz-se a um elemento documental digital onde está contida a gravação do seu teor, a qual foi realizada noutro processo judicial que não os presentes autos, tal como o respectivo depoimento. A sua essencialidade para a descoberta da verdade está já justificada e descrita no ponto 4.) destas conclusões que aqui damos por reproduzido.
9. O regime legal dos arts. 355º a 357º do Código Penal não proíbe a livre apreciação num dado processo criminal de um depoimento produzido perante um magistrado judicial noutro processo.
10. Não se pode impedir, ao abrigo de tal regime, que se traga ao processo prova pré-constituída ou produzida durante a investigação criminal ou mesmo prova que seja produzida em momento contemporâneo ao do julgamento.
11. O que tem de acontecer, imperativamente, em obediência ao disposto no art. 355º do Código de Processo Penal, é que essa prova seja examinada em julgamento por forma a poder ser avaliada por todos os intervenientes e por eles contraditada. Isto é diferente de dizer que a prova tenha de ser originariamente produzida no julgamento.
12. A lei admite a valoração de um depoimento indirecto quando a testemunha fonte tenha falecido, ou desaparecido ou padeça de anomalia psíquica grave.
13. Logo, julgamos que, por maioria de razão, quando não seja possível ouvir uma testemunha que lavrou o auto de notícia que deu origem ao processo e suporta a acusação deduzida, e exista um depoimento dessa mesma testemunha prestado anteriormente sobre a mesma matéria, na fase de julgamento e perante juiz, noutro processo judicial, a lei admitirá forçosamente a possibilidade de acesso ao conhecimento dessa testemunha fonte através da importação da gravação do depoimento por ela prestado nesse outro processo sobre esses mesmos factos. É que se a lei admite o menos também admitirá necessariamente o mais.
14. O conteúdo ou idoneidade deste elemento de prova em nada depende da presença do arguido pessoa singular nessa qualidade naquele processo. Quando a testemunha em causa ali foi ouvida foi ajuramentada e ficou vinculada ao dever de verdade. Estamos a falar dum depoimento de uma testemunha que, ao contrário do arguido quando presta declarações num processo criminal, está sempre obrigada ao dever de verdade quando deponha formalmente num processo judicial perante um magistrado judicial, como aconteceu no presente caso.
15. O referido processo nº 971/11.1BEPRT foi desencadeado pela própria sociedade arguida nestes autos, a qual ali figurava como impugnante, sendo certo que o aqui arguido pessoa singular sempre foi o seu representante legal pelo que nessa qualidade figurou, necessariamente, como elemento activo naqueles autos, conhecedor do seu conteúdo.
16. A prossecução do presente processo judicial criminal esteve dependente da conclusão prévia daquele processo administrativo e fiscal, com o nº 971/11.1BEPRT, sendo certo que a matéria ali discutida era a mesma que está a ser discutida nestes autos.
17. Não faz sentido o argumento de que o processo de onde pretende extrair-se a gravação é um processo não criminal e, por isso, menos garantístico.
18. Se no processo administrativo e fiscal a sociedade arguida, representada pelo arguido, procurava defender-se judicialmente dos factos que, no seu ponto de vista, a Autoridade Tributária erroneamente lhe imputava, e se esses factos são os mesmos sob discussão no presente procedimento criminal, em que medida se pode dizer que as suas garantias de defesa criminais estariam afectadas no processo crime por ser carreado para o mesmo a gravação dum depoimento realizado no julgamento do processo administrativo e fiscal, perante um magistrado judicial onde interveio directamente a sociedade arguida quando já era representada pelo aqui arguido pessoa singular ?
19. O Tribunal recorrido não concretizou em que medida tal poderia ter acontecido, limitando-se à referência vaga e abstracta da falta de garantias de defesa por ser um processo distinto. Se as limitações e enfraquecimentos das garantias de defesa invocadas pelo Tribunal A Quo existissem efectivamente não poderiam ser admitidos ou valorados nenhuns dos documentos que já constam dos autos e que foram extraídos do processo nº 971/11.1BEPRT.
20. Não se pretende com este documento uma valoração imediata ou pré-tarifada do referido depoimento, decalcando sem mais o seu contributo dum processo para o outro, mas pretende-se, sim, a sua análise em correlação com a demais prova por forma a podermos aferir não só o seu valor probatório mas também do alcance do valor probatório dos demais dados já coligidos nestes autos, inclusivamente os da autoria desta testemunha. Ora, desta tarefa pode eventualmente resultar a sua valoração ou não valoração, não sabemos de antemão.
21. No limite, aquilo que o Tribunal recorrido deveria ter feito, em homenagem aos princípios da descoberta da verdade material e livre apreciação da prova, mesmo perante o entendimento que manifestou nos autos, era ter admitido a junção do documento em crise e, a final, em sede sentença, caso entendesse não poder valorá-lo, exarar no exame crítico da prova essa posição por forma a permitir uma reacção processual ulterior.
22. Face a todo o exposto, não assiste razão ao Tribunal A Quo ao ter indeferido a junção aos autos para livre apreciação da gravação do depoimento da testemunha AA no âmbito do processo judicial com o nº 971/11.1BEPRT pelo que o julgador estava obrigado a admitir o referido elemento probatório, apesar de ter sido originariamente produzido noutro processo.
CC.) - Consequências a extrair da argumentação expendida nos pontos anteriores
23. Pelo exposto, o Tribunal recorrido violou o regime legal previsto nos arts. 164º, 165º, e 340º, nrs. 1 e 4, todos do Código de Processo Penal, cuja correcta interpretação e aplicação impunha necessariamente o deferimento da diligência probatória requerida pelo Ministério Público, o que significa que deverá ser revogado o despacho do Tribunal A Quo referido no ponto V) do segmento A.1) da motivação do presente recurso por força do qual foi indeferida a diligência de prova em questão, o que desde já se requer como pedido final deste recurso.
24. Assim sendo, para além da revogação do despacho em crise, e à luz da correcta interpretação e aplicação das normas violadas pelo Tribunal recorrido, deverá este ser substituído por uma decisão superior que ordene a junção aos autos, bem como a admissão e livre apreciação pelo Tribunal recorrido da antedita gravação com o depoimento da referida testemunha, o que igualmente se requer como pedido final deste recurso.
DD.) - Da verificação da nulidade processual invocada pelo Ministério Público
25. Tendo presente o contexto em que nos encontramos, resulta igualmente vincado nestes autos que o indeferimento em julgamento da prova documental por nós peticionada, e a sua confirmação com a prolacção do segundo despacho ora sob discussão, gerou uma nulidade processual na medida em que constituiu uma omissão duma diligência probatória reputada como essencial à descoberta da verdade.
26. Temos, portanto, que, por errada interpretação, e face à posição confirmada com o segundo despacho recorrido, o Tribunal A Quo violou outrossim, para além das normas referidas no segmento CC.) destas conclusões, o disposto no art. 120º, nrs. 1 e 2, alínea d), do Código de Processo Penal.
27. Como tal, e ao abrigo do disposto no art. 122º, nrs. 1 e 2, do Código de Processo Penal, alcança-se que todos os actos processuais subsequentes aos despachos ora recorridos se encontrarão, para além dos próprios despachos recorridos, também feridos de nulidade.
28. Logo, deverá ser reconhecida e declarada nula a omissão de prova em questão, tal como o despacho que a gerou e aquele que não reparou a mencionada nulidade e, bem assim, todos os actos processuais que se lhes seguiram, como será o caso, nomeadamente, da sentença absolutória que vier a ser proferida nos presentes autos, cuja nulidade ora se pretende ver igualmente declarada, procedendo-se, portanto, à anulação de todo o correspondente processado, o que outrossim se requer a título de pedido final do presente recurso.»

O Ministério Público junto desta instância apôs o seu visto, nos termos do artigo 416,º, n.º 1, do Código de Processo Penal, declarando que não discorda do teor dos despachos recorridos.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.


I 2. – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação deste recurso, a de saber se o indeferimento da diligência requerida pelo Ministério Público (a junção aos autos, tenho em vista a sua apreciação como prova, de depoimento gravado da testemunha AA, inspetor tributário já falecido, prestado no processo n.º 971/11.1BEPRT, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto) configura, ou não, uma nulidade nos termos do artigo 120.º, n.º 1 e n.º 2, d), in fine, do Código de Processo Penal (omissão de diligência probatória essencial à descoberta da verdade), com as inerentes consequências quanto à tramitação processual ulterior.

I 3. 1. – Da fundamentação do primeiro dos despachos recorridos (que indeferiu a junção aos autos, tenho em vista a sua apreciação como prova, de depoimento gravado da testemunha AA, inspetor tributário já falecido, prestado no processo n.º 971/11.1BEPRT, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto) consta o seguinte (transcrição de declarações proferidas oralmente em audiência, cuja gravação consta dos autos):

«(…) Entendemos, porém, que tal possibilidade não se afigura legalmente admissível pelos motivos que a seguir exporemos.
Com efeito, sob pena de subversão da disciplina dos artigos 355.º, 356.º e 357.º do Código de Processo Penal, entendemos que é insuscetível de valoração a prova traduzida em declarações e depoimentos, designadamente declarações proferidas em sede de audiência de julgamento noutro processo, em que o arguido não figura nesse processo nessa mesma condição, sendo certo também que essa transcrição não integra ab initio os presentes autos.
Entendemos que entender de modo diverso implicaria, desde logo, a violação do princípio da imediação, no sentido em que toda a prova deve ser produzida, em princípio, em sede de audiência de julgamento, na presença do arguido, ou, pelo menos, do seu defensor, em audiência pública, com vista a uma argumentação contraditória.
Por outro lado, estava também em causa, no deferimento de tal pretensão, em nosso entender, o próprio princípio do contraditório. Com efeito, a testemunha em apreço prestou declarações no âmbito de outro processo que tem natureza distinta do dos presentes autos, que é de natureza criminal e, como tal, mais garantística. Essas declarações não foram efetuadas com base num contraditório baseado na existência de um processo criminal, isto é, a testemunha em apreço não foi, necessariamente, contraditada tenho por base as implicações criminais que o seu depoimento importaria, sendo certo também que o próprio magistrado judicial que presidiu à audiência de julgamento, não pôde, nem tinha essa perspetiva de questionamento relativamente à própria testemunha.
Por conseguinte, entendemos que a testemunha não foi contraditada nesse sentido. O arguido não era arguido nesse processo, que tem natureza administrativa, e não natureza criminal.
Por conseguinte, entendemos que a valoração desse depoimento não é admissível neste processo. Por todos, citamos o acórdão da Relação de Coimbra de 3 de julho de 2013, processo n.º 1568/08TAVIS.C2, que, com as devidas adaptações, também se aplica a este caso concreto. (…)»

I 3. 2. - Da fundamentação do segundo dos despachos recorridos (que indeferiu a arguição de nulidade do despacho anterior, por este alegadamente configurar a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 1 e n.º 2, d), in fine, do Código de Processo Penal: omissão de diligência probatória essencial à descoberta da verdade), consta o seguinte (transcrição de declarações proferidas oralmente em audiência, cuja gravação consta dos autos):

«(…) Entendemos que a diligência requerida não era essencial, mas, sobretudo, que não é admissível. (…)
O legislador, no âmbito do Código de Processo Penal, quando quis que fossem valorados em julgamento declarações prestadas fora da sala de audiências, fora do âmbito estrito do julgamento, fê-lo expressamente e com determinadas condições. Aliás, as próprias declarações do arguido valem recentemente em julgamento quando prestadas perante magistrado judicial depois de advertido dessas mesmas consequências. Aliás, os depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de inquérito estão sujeitas a um escrutínio em sede de julgamento que na maior parte das vezes passa por um acordo necessário de todos os intervenientes processuais. Estaríamos, ao admitir esta diligência, a deixar entra pela janela aquilo a que o legislador frontalmente, no processo criminal, não quis que entrasse pela porta.
Com efeito, estes depoimentos prestados noutro processo de natureza distinta não tiveram o crivo do processo criminal e, designadamente, não foram efetuados, nem conduzidos, nem contraditados pelo arguido com esse mesmo crivo.
Por conseguinte, por pôr em causa de forma frontal as garantias de defesa que o Tribunal também deve salvaguardar, sem prejuízo de se manter equidistante relativamente as todas as partes, feriria efetivamente a consciência do Tribunal a realização desta diligência, porque, em consciência, não poderia, pelos motivos expostos e de acordo com a jurisprudência citada, valorar essas mesmas declarações. Não pode o Tribunal ser mais flexível com declarações prestadas no âmbito de processo de natureza administrativa, do que com as declarações prestadas no próprio processo em fases anteriores.
Face ao exposto, mantém-se o decido. (…)»


I 4. – Cumpre decidir.
Vem o recorrente Ministério Público alegar que o indeferimento da diligência por ele requerida (a junção aos autos, tenho em vista a sua apreciação como prova, de depoimento gravado da testemunha AA, inspetor tributário já falecido, prestado no processo n.º 971/11.1BEPRT, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto) configura uma nulidade nos termos do artigo 120.º, n.º 1 e n.º 2, d), in fine, do Código de Processo Penal (omissão de diligência probatória essencial à descoberta da verdade), com as inerentes consequências quanto à tramitação processual ulterior.
Alega o recorrente que se trata de uma prova documental, não de prova testemunhal. Alega que o regime dos artigos 355.º a 357.º do Código de Processo Penal não proíbe a livre apreciação de depoimentos prestados noutros processo, o que se exige é que essa prova seja examinada e contraditada em julgamento por todos os intervenientes processuais. Alega também que. se é admissível (nos termos do artigo 129.º, n.º 1, in fine, do mesmo Código) um depoimento indireto quando a testemunha-fonte tenha falecido ou desaparecido, ou padeça de anomalia psíquica grave, por maioria de razão (porque «quem pode o mais, pode o menos») será admissível a valoração de um depoimento direto prestado por essa testemunha noutro processo. Alega que o depoimento em causa foi prestado, por testemunha ajuramentada, no âmbito de um processo não menos garantístico do que o dos presentes autos, um processo em que também vigora o princípio do contraditório e em que é parte, como impugnante, a sociedade arguida nestes autos, de que é legal representante o arguido, e em que se discutem os mesmos factos objeto deste processo. Invoca o disposto nos artigos 164.º, 165.º e 340.º do Código de Processo Penal. Invoca os princípios da busca da verdade material e da livre apreciação da prova.
Vejamos.
Antes de mais, convém esclarecer que a diligência requerida pelo Ministério Público não configura prova documental, antes prova testemunhal. Não é pelo facto de um depoimento de uma testemunha estar escrito ou gravado que ele deixa de configurar uma prova testemunhal e passa a configurar uma prova documental. Não está, pois, em causa o regime dos artigos 164.º e 165.º do Código de Processo Penal e a simples exigência de que os documentos juntos ao processo sejam examinados e eventualmente contraditados na audiência de julgamento.
Como bem se afirma nos despachos recorridos, não está em causa, como primeira questão, o eventual interesse da diligência requerida para a descoberta da verdade (o princípio da busca da verdade material e o disposto no artigo 340. º do Código de Processo Penal), está em causa a admissibilidade legal da valoração como prova de um depoimento prestado por uma testemunha noutro processo.
E como também bem se afirma nesses despachos, essa valoração não é possível (não sendo, por isso, admissível a junção aos autos de qualquer forma de documentação, escrita ou gravada, desse depoimento) à luz dos princípios da imediação e do contraditório que se refletem no artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal: «Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito da formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência». Tal significa, quanto à prova testemunhal, que, em regra, as declarações de testemunhas a valorar deverão ser prestadas em audiência. É assim porque só desse modo se garante, ao mesmo tempo, por um lado, aquela relação, imediata e direta entre a testemunha e o julgador (com a possibilidade de apreciação de facetas do depoimento que só essa relação permite) exigida pelo princípio da imediação e, por outro lado, a possibilidade de contra-interrogatório exigida pelo princípio do contraditório que tem a sua maior expressão, precisamente, na audiência de julgamento, com a intervenção de todos os sujeitos processuais..
É certo que essa regra comporta exceções. Essas exceções estão previstas, em determinadas e estritas condições, nos artigos 356-º e 357.º do Código de Processo Penal, exceções que dizem respeito, todas elas, a declarações prestadas no próprio processo, e não noutros processos.
Estamos perante normas excecionais. Nos termos do artigo 11.º do Código Civil, as normas excecionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva. A pretensão do recorrente não pode basear-se (ao contrário do que parece sustentar) nem numa interpretação extensiva dessas normas excecionais, nem numa eventual aplicação analógica das mesmas. O legislador expressa e inequivocamente excluiu do campo dessas exceções as declarações prestadas noutros processos (não pode, pois, pensar-se que ele disse menos do que queria ao elencar essas exceções); não pode, pois, ser interpretado extensivamente o campo de aplicação dessas exceções. E, pelos mesmos motivos, também não estamos perante uma lacuna, uma situação não prevista pelo legislador, a integrar por recurso â analogia ou de outro modo, nos termos do artigo 10.º do Código Civil.
Há, pois, tão só, que respeitar a opção do legislador, para além das conveniências que outras opções poderiam acarretar para a busca da verdade material num determinado caso.
Mas também há que salientar as razões que justificam essa opção do legislador.
Compreende-se a exclusão da possibilidade de valoração de declarações prestadas por testemunha em processos que não ofereçam as garantias de defesa dos direitos do arguido em processo penal. E é assim mesmo quando, como se verifica (de algum modo) neste caso, se trate de um processo onde também vigora o princípio do contraditório e o arguido é parte nesse processo, com os direitos inerentes. Ainda assim, e como bem se refere nos despachos recorridos, não são inteiramente equiparáveis os direitos de defesa do arguido em processo penal e os direitos de uma parte noutro processo não penal (também porque não é equiparável o que possa estar em jogo). De qualquer modo, mesmo que o fossem, sempre seria sacrificado o princípio da imediação ao admitir a valoração de depoimentos de testemunhas prestados noutros processos. E a opção do legislador foi a de excluir em absoluto a possibilidade dessa valoração, sem deixar essa possibilidade à apreciação casuística em função das várias possíveis situações.
É de salientar também que são excluídas da admissibilidade de valoração as declarações prestadas por testemunhas noutro processo penal, mesmo que quem é arguido no processo intervenha como tal nesse outro processo penal (que tem necessariamente outro objeto). Compreende-se que assim seja, desde logo porque são diferentes os termos da defesa do arguido quando estão em causa diferentes objetos do processo. E também nessa situação seria sacrificado o princípio da imediação ao admitir a valoração de depoimentos de testemunhas prestados noutros processos penais.
Assim, numa situação como a que está em apreço, do depoimento, prestado antes da audiência de julgamento, de uma testemunha entretanto falecida, há apenas que recorrer, nos termos do Código de Processo Penal, a duas possibilidades: a leitura dessas declarações se prestadas, no mesmo processo, perante autoridade judiciária (artigo 356.º, n.º 4, desse Código) e a leitura dessas declarações, se prestadas, também no mesmo processo, perante o Ministério Público ou perante órgão de polícia criminal e se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com essa leitura (n,º 2, b), e n.º 5 desse mesmo artigo 356.º)
Nessa situação, de falecimento de uma testemunha, será também admissível, como refere o recorrente, o depoimento indireto sobre o que outra testemunha tenha ouvido dizer a essa testemunha-fonte já falecida, nos termos do artigo 129.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal. No entanto, não colhe o argumento do recorrente quando alega que, se tal é admissível, seria admissível, por maioria de razão (porque «quem pode o mais, pode o menos»), o depoimento direto dessa testemunha-fonte prestado noutro processo. Não foi essa a opção do legislador, pelas razões atrás indicadas, A opção do legislador foi a de admitir a reprodução ou leitura do depoimento direto dessa testemunha entretanto falecida quando prestado no mesmo processo e nos termos indicados nas referidas disposições do artigo 356.º do Código de Processo Penal, não o de admitir a valoração de depoimentos anteriormente prestados por essas testemunha noutros processos. Também será discutível, por outro lado, que admitir um depoimento indireto nos termos indicados é “mais” do que admitir um qualquer depoimento direto: é que um depoimento indireto não é necessariamente valorado nos mesmos temos e com a mesma relevância do que u, qualquer depoimento direto.
Assim, impõe-se concluir que não se verifica a nulidade a que se reporta o artigo 120.º, n.º 1 e n.º 2, d), in fine, do Código de Processo Penal, pois a diligência requerida pelo Ministério Público, independentemente da sua relevância para a descoberta da verdade, não é legalmente admissível.
Deverá, pois, ser negado provimento a este recurso.

Não há lugar a custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal)


I 5.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento a este recurso, mantendo os doutos despachos recorridos.

*

II 1. -
O Ministério Público veio interpor recurso da douta sentença do Mmº Juiz do Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que absolveu “A..., Ldª” e BB” do crime de fraude fiscal qualificada, p. e p, pelos artigos 6.º, 103.º, n.º 1, a) e b) e 104.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, por que vinham pronunciados.

São as seguintes as conclusões deste recurso;
«A.) – Objecto do recurso
1. O presente recurso incide sobre a sentença absolutória proferida a fls. 726 e seguintes dos presentes autos porquanto a mesma está duplamente ferida de nulidade, assim como pelos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova.
B.) – Das nulidades da sentença
2. A sentença proferida labora em erro por estar ferida de nulidade em duas dimensões: é nula em consequência da nulidade de acto processual anterior que a contaminou; e é nula por omissão de pronúncia.
C.) – A primeira nulidade
3. A primeira nulidade em causa tem que ver com o facto de se demonstrar, à luz da argumentação expendida no nosso requerimento de fls. 697 e seguintes destes autos e no nosso recurso de fls. 707 e seguintes, também destes autos (que aqui damos por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais) a necessidade para a descoberta da verdade da produção da prova pedida pelo Ministério Público e então
indeferida pelo Tribunal (reprodução nos presentes autos do suporte digital com o depoimento da testemunha AA prestado no processo nº 971/11.1BEPRT por forma poder ser no presente processo livremente apreciado) e o facto deste meio de prova não constituir qualquer tipo de prova proibida. Este circunstancialismo significa que, ao ter sido invalidamente rejeitada tal diligência, todos os actos processuais posteriores ao despacho judicial que indeferiu a referida produção de prova são nulos, incluindo a sentença de fls. 726 e seguintes.
4. Com efeito, a nulidade em causa – omissão de diligência necessária à descoberta da verdade nos termos do disposto no art. 120º, nrs. 1 e 2, alínea d), do Código de Processo Penal - contaminou toda a ulterior tramitação processual, alcançando, inclusivamente, a sentença proferida – cfr. art. 122º do Código de Processo Penal.
5. Tal era a necessidade da prova rejeitada que os arguidos foram ambos absolvidos, na perspectiva do Tribunal recorrido, devido à ausência de prova incriminatória suficiente.
6. Ora, face a tais circunstâncias, o Ministério Público renova e reitera nesta sede, e para os devidos efeitos legais, a integralidade dos fundamentos e conclusões aduzidos no referido recurso de fls. 707 e seguintes, onde se pugna, por força da violação do disposto nos arts. 164º, nrs. 1 e 2, 165º, nº 1, e 340º, nrs. 1 e 4,
alíneas a) a d), todos do Código de Processo Penal, pela declaração de nulidade do despacho de indeferimento de produção ulterior de prova acima referido, bem como do despacho que indeferiu a arguição de nulidade desse despacho anterior e, ainda (necessariamente e como peça integrante de toda a tramitação processual ulterior), da sentença absolutória que se lhes seguiu (sobre a qual versa igualmente o presente recurso).
7. Deverá ser, portanto, declarada a nulidade do despacho de fls. 697 que indeferiu a diligência de prova por nós então solicitada, bem como de todos os actos processuais subsequentes, onde se inclui necessariamente a sentença proferida, ordenando-se depois a realização da diligência de prova aí em apreço, bem como a repetição de todos os actos processuais seguintes, incluindo nova sentença que contemple o resultado da diligência em falta.
D.) – A segunda nulidade
8. A segunda nulidade em causa tem que ver com o facto do Tribunal recorrido ter desconsiderado, injustificada e erradamente, a prova documental carreada para os autos, mais precisamente o auto de notícia de fls. 04 a 24 e os ficheiros digitais que o complementam integrados em suportes digitais juntos aos autos [cfr. fls. 52 a 65 e 693], bem como a sentença do T.A.F. do Porto de fls. 395 e seguintes e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo que a confirmou constante de fls. 463 e seguintes.
9. A sentença recorrida espelha uma clara omissão sobre a análise e explicação referente à rejeição da pluralidade de indícios incriminatórios de natureza documental sinalizados e explicados nos anteditos documentos e mencionados, outrossim, nas alegações finais do Ministério Público. Pluralidade de indícios esta que, por sua vez, esteve na base da dedução da acusação e do despacho de pronúncia e que, por isso, merecia uma explicação na sentença que permitisse a qualquer observador independente que com a decisão final do Tribunal fosse confrontado compreender a razão de ser da rejeição de tais elementos incriminatórios plurais, convergentes e documentais.
10. Estamos a falar de documentação nuclear da prova - elaborada por um inspector tributário que analisou durante vários meses mais de um milhão de registos de ficheiros informáticos da contabilidade da sociedade arguida e que possuía conhecimento técnico especializado sobre a matéria em apreço - que nos dá conta da existência na contabilidade da sociedade arguida de talões - como elementos informadores e “construtores” dessa mesma contabilidade - em número muito elevado que, todavia, possuem linhas inconsistentes (ou seja talões cujo nº de linhas anuladas é superior ao nº de linhas do talão final), bem como números muito elevados de consumos manifestamente improváveis (ou seja talões só de comida ou só de bebida que à luz das regras da experiência comum, e pelo grande número em que foram encontrados, se tornam incompatíveis com a facturação normal dum qualquer restaurante) e do facto de que os resultados contabilísticos da sociedade arguida violarem os rácios de exploração da região onde laborava e de, após a realização da correcção oficiosa da Autoridade Tributária através da expurgação das irregularidades detectadas, o resultado final obtido nessa mesma contabilidade já se encontrar em linha de paridade muito próxima do antedito rácio de exploração.
11. Neste domínio, e salvo o devido respeito, que aliás é muito, torna-se clara a violação do disposto no art. 379º, nº 1, alínea b), com referência ao disposto no art. 374º do mesmo diploma legal, porquanto o Tribunal omitiu pronúncia sobre uma questão – a existência da antedita pluralidade de indícios documentais e o seu significado probatório – que pela sua importância e centralidade no processo não podia ter sido de modo nenhum, como foi, posta de parte.
12. A correcta interpretação e aplicação de tais normativos obrigava a uma pronúncia clara e concreta na sentença sobre a matéria supra descrita.
13. Nesta medida, desde já invocamos a nulidade da sentença a este respeito, embora o façamos subsidiariamente em relação à anteriormente invocada porquanto, do ponto de vista do iter processual previsível e da finalidade global do presente recurso, apenas interessará declarar tal nulidade caso improceda a nulidade anterior atrás sinalizada pois entendemos que a globalidade da prova a produzir nos presentes autos exige a realização da sobredita diligência.
E.) - Do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão – cfr. art. 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal
14. O reflexo na sentença da sobredita actuação omissiva do Tribunal face à completa análise do objecto do processo (ou seja sobre a exclusão duma diligência probatória que foi peticionada e rejeitada e não podia ter sido preterida) constitui, por seu turno, para além da nulidade supra indicada, o vício previsto no art. 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal [vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão].
15. Isto porque o Tribunal, ao invés daquilo a que estava obrigado, demitiu-se de realizar a sobredita diligência de prova mais bem descrita no nosso recurso de fls. 707 e seguintes destes autos.
16. Esta diligência de prova, por sua vez, mostrava-se essencial para a prova dos factos/parágrafos 11º a 21º da acusação pública/pronúncia (e que foram reconduzidos na sentença aos pontos i) a xi) da matéria dada como não provada), nomeadamente para demonstrar que o arguido, por si ou através de alguém a seu mando, adulterou a contabilidade da sociedade arguida, designadamente com recurso a um programa informático que alterou a composição dos talões das vendas realizadas nos seus restaurantes diminuindo, assim, artificial e fraudulentamente, quer o volume de facturação, quer o lucro declarado para efeitos de tributação em I.R.C. quer, consequentemente, o valor do imposto a pagar em cada um dos exercícios fiscais aqui em apreço.
17. Ora, não tendo o Tribunal recorrido aceitado esta diligência probatória rejeitou deliberadamente a possibilidade de esgotar a investigação do objecto do processo e, por isso, de se pronunciar sobre a globalidade dos factos que o compõem, produzindo, portanto, uma decisão de direito assente numa amputação ilegítima e indevida da integralidade da matéria de facto que reclamava uma apreciação judicial [note-se que a audição póstuma do inspector tributário AA através da reprodução do seu depoimento produzido exactamente sobre a mesma matéria no processo nº 971/11.1BEPRT permitirá não só esclarecer os aspectos mais técnicos do auto de notícia relacionados com a anulação das linhas dos talões e das evidências observadas de modo a facilitar a sua compreensão, como também o elevadíssimo nº de casos de talões adulterados por ele analisado – cfr. fls. 24 e 25 da sentença do T.A.F. do Porto correspondente a fls. 407 e 408 dos presentes autos – deitando por terra a conclusão equívoca do Tribunal recorrido na qual se apoiou a sua dúvida segundo a qual apenas terão existido quatro talões “alterados”].
18. Face a esta omissão de diligência probatória essencial à descoberta da verdade é quanto a nós manifesta a existência do vício da insuficiência da matéria de facto (provada) para a decisão, pelo que a consequência a extrair no caso vertente será, para além da revogação integral da sentença proferida, a de ordenar-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo, nos termos do disposto no art. 426º, nº 1, do Código de Processo Penal, o que se requer. [A propósito desta matéria, e do sentido da argumentação ora expendida confrontar, nomeadamente, entre muitos outros, o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 19 de Julho de 2006, proferido no processo 06P1932, em que foi Relator o Exmo. Juiz Conselheiro Oliveira Mendes disponível para consulta no sítio da internet www.dgsi.pt.].
F.) – Do erro notório na apreciação da prova - art. 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal
19. Neste domínio recuperamos em grande parte o que acima foi dito acerca da nulidade sinalizada no segmento B.) destas conclusões.
20. A desconsideração do conteúdo probatório e factual vertido no auto de notícia transparece um claro e incontornável desvio injustificado ao princípio da normalidade das coisas e das regras da experiência comum. Isto porque o teor desse auto não foi contrariado por nenhum meio de prova em concreto, nomeadamente documental, sendo certo que esse auto de notícia foi fruto duma análise exaustiva levada a cabo pelo Inspector Tributário AA, durante meses, e que recaiu sobre mais de um milhão de registos informáticos dos estabelecimentos comerciais do arguido, ao que acresce a circunstância do mesmo ser alguém com conhecimento técnico especializado nesta matéria.
21. Nesta senda, mais incompreensível se torna a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, quando na antedita análise exaustiva, e conforme ficou vertido no auto de notícia, o sobredito inspector tributário logrou apurar a existência paralela e cumulativa, na contabilidade da sociedade arguida de inúmeros talões de venda inconsistentes por possuírem um número de linhas anuladas superior ao número de linhas finais, de talões de venda com consumos manifestamente improváveis e da violação dos rácios de exploração aplicáveis na região onde os estabelecimentos laboravam sem que o arguido, ou qualquer outra pessoa, tivesse conseguido encontrar qualquer resposta contabilística, nomeadamente documental, susceptível de rebater a realidade e o significado objectivo de tais dados.
22. Se os dados apurados pelo inspector tributário não possuíssem o significado que o auto de notícia estabelece (bem como o despacho de pronúncia) fácil seria ao arguido, como detentor de todos os dados da contabilidade, explicar em que erro de análise teria o referido inspector ocorrido: i) - mostrando qual a razão de ser irregularidades detectadas nos talões e os respectivos ficheiros ou documentos que suportassem as suas afirmações, o que nunca aconteceu; ii) - ou, melhor ainda, esclarecendo porque razão tais deficiências poderiam não ser irregularidades e não
possuiriam, portanto, qualquer valor contabilístico, o que também nunca aconteceu.
23. Até admitimos que o programa ou ferramenta informáticos utilizados para adulterar a contabilidade da sociedade arguida possa não ter sido aquele que o inspector refere, mas o que não é possível contrariar face aos dados encontrados é que efectivamente houve adulteração, com aquele programa ou com outra ferramenta qualquer, pois os resultados dessa adulteração - esses sim - foram inequivocamente encontrados, ou seja: a adulteração dos talões nos termos supra expostos (incongruência da existência de números de linhas eliminadas em número superior ao número final de linhas e aos repetidos consumos improváveis que, pela frequência com que foram verificados, traduzem irrealidade contabilística).
24. Porém, o Tribunal recorrido passou ao lado de tudo isto, ou seja ignorou os efeitos notórios da adulteração da contabilidade da sociedade arguida através da desconsideração de um auto de notícia extremamente desenvolvido e detalhado. E fê-lo sem fornecer qualquer explicação lógica, compreensível e clara para o efeito, centrando-se, ao invés, na superficialidade da prova testemunhal produzida em julgamento e recusando o aproveitamento do depoimento da única testemunha com razão de ciência
suficiente para reforçar e esclarecer o conteúdo do auto de notícia, ou seja o inspector tributário autor do auto de notícia.
25. Ou seja o despacho de pronúncia estabeleceu nos autos a existência de uma pluralidade de indícios convergentes entre si, quando interpretados sob o crivo das regras da experiência comum e sem que houvesse qualquer prova directa que contrariasse o que por esta pluralidade de indícios nos foi demonstrado: ou seja irregularidades manifestas na documentação informática que serviu de base à contabilidade realizada pela sociedade arguida para os exercícios fiscais em apreço.
26. Mas o Tribunal A Quo, estranhamente, achou normal um tal estado de coisas. Aliás, a sentença nem sequer enumera e sinaliza os indícios existentes por forma a contrariá-los e definir o parâmetro da pretensa dúvida que a inflamou. E mais flagrante se torna a falácia do raciocínio decisório final quando constatamos que o arguido nem sequer ofereceu uma versão alternativa dos factos.
27. Nestes termos, o exame crítico da prova, bem como o raciocínio fundamentador do Tribunal A Quo e por inerência a selecção da matéria de facto dada como não provada consubstanciam uma errada interpretação e aplicação, em conflito notório, insanável e insuperável com as regras da experiência comum, do disposto no art. 127º do Código de Processo Penal (violação das regras da livre apreciação da prova) em conjugação com o disposto nos arts. 103º e 104º, nrs. 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias
28. Na verdade, a correcta interpretação e aplicação de tais normativos no caso vertente impunha que os factos elencados sob os pontos i) a xi) da matéria de facto dada como não provada tivessem sido dados como provados ainda que com a especificidade de que não se apurou qual o programa ou ferramenta informática utilizada pelo arguido, ou por alguém a seu mando, para realizar a adulteração na contabilidade que diminuiu artificial e fraudulentamente o valor do lucro tributável e, por conseguinte, o valor do imposto a pagar.
29. Logo, sendo também manifesta a existência do vício presentemente sob análise a consequência que dele deverá decorrer no caso vertente será, para além da revogação integral da sentença proferida, a de ordenar-se o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo, nos termos do disposto no art. 426º, nº 1, do Código de Processo Penal, o que se requer subsidiariamente relativamente ao pedido de realização da diligência probatória em falta.
G.) – Da síntese dos pedidos formulados com o presente recurso a conhecer pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto
30. Em face de todo o exposto nos segmentos A) a F) das presentes conclusões de recurso [e sem prejuízo da demais argumentação expendida na motivação que antecede e que aqui damos por integralmente reproduzidoa], o nosso pedido prevalecente e prioritário reconduz-se à declaração da nulidade da sentença de fls. 726 e seguintes bem como de todos os actos processuais ulteriores ao despacho de indeferimento de prova proferido a fls. 697, com a consequente ordem superior de realização da diligência de prova por nós requerida a fls. 697 e seguintes.
31. Subsidiariamente, caso improceda o pedido anterior, e, bem assim, por força da verificação no presente caso dos dois vícios acima destacados previstos no art. 410º do Código de Processo Penal [insuficiência da matéria de facto para a decisão e erro notório na apreciação da prova] e da sua influência no modo como a prova produzida em julgamento foi apreciada e fixada a matéria de facto, requeremos que seja ordenada a repetição do julgamento na sua totalidade, ou eventualmente parcialmente em conformidade com o que for superiormente entendido.
32. Em última instância, e caso improcedam todos os pedidos anteriores, requeremos que seja declarada a segunda nulidade da sentença por nós invocada e destacada no segmento B.) destas conclusões de recurso e ordenada a sua reparação.»

O Ministério Público junto desta instância apôs o seu visto, nos termos do artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, declarando que não discorda do teor da sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II 2. –
A respeito das questões que importa decidir, de acordo com as conclusões da motivação deste recurso, há que considerar o seguinte.
Vem o requerente alegar que se verifica a nulidade da sentença recorrida como consequência (nos termos do artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) da nulidade (nos termos do artigo 120.º, n.º 1 e n.º 2, d), in fine, do mesmo Código) que alega ter-se verificado com o indeferimento da de junção aos autos, tenho em vista a sua apreciação como prova, de depoimento gravado da testemunha AA (inspetor tributário já falecido) prestado no processo n.º 971/11.1BEPRT, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto. Ora, tal questão está prejudicada por não se verificar essa nulidade nos termos do artigo 120.º, n.º 1 e n.º 2, d), in fine, do mesmo Código, razão pela qual foi negado provimento ao recurso intercalar acima apreciado.
Fica também prejudicado o conhecimento do alegado vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal, pois o requerente faz derivar esse vício da omissão dessa mesma diligência que requereu. Há que salientar, de qualquer modo, que não pode confundir-se esse vício (o qual, nos termos desse mesmo n.º 2 desse artigo 410.º há de resultar do próprio texto da sentença recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum) com a omissão de diligências de prova que possam ser essenciais à descoberta da verdade. Não se trata de alguma insuficiência de provas que poderiam ter sido produzidas, trata-se a insuficiência da factualidade provada (independentemente do juízo sobre essa decisão) para a decisão de condenação ou absolvição (neste caso, de absolvição).
Também o alegado vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal, há de resultar, nos termos desse mesmo n.º 2 desse artigo 410.º do próprio texto da sentença recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. O recorrente alega, a este respeito, um erro que não decorre do texto da sentença recorrida, mas do confronto entre esse texto e meios de prova que não foram considerados, designadamente, também neste aspeto, porque foi indeferida a diligência que requereu. Por isso, também o conhecimento desta questão está prejudicado.
Resta, como questão a apreciar de seguida, a de saber se a sentença recorrida padece de omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1 c), do Código de Processo Penal.

II 3. –
Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte;

«(…)
II. Fundamentação
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão a proferir:
1º - A arguida “A..., Lda.” é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto social a gestão e exploração de unidades hoteleiras, nomeadamente restaurantes, snack-bar, pizzarias, pastelarias, cervejarias e outras e que se encontra matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Póvoa de Varzim, com o NIPC ...16.
2º - A identificada sociedade tem a sua sede social na Rua ..., na ..., desenvolvendo a sua actividade através da exploração de dois estabelecimentos comerciais: o restaurante B... e o restaurante C..., ambos localizados na cidade de Viana do Castelo.
3º - Desde a sua criação em 2004 e até aos dias de hoje, a gerência da sociedade arguida foi sempre exercida, de direito e facto, exclusivamente pelo arguido BB, o qual detinha todo o poder decisório e de gestão da respectiva actividade.
4º - Pelo que, no período compreendido entre 01 de Janeiro de 2006 e 31 de Dezembro de 2007, o arguido assumiu todos os actos de gestão da sociedade arguida, nomeadamente, emissão de cheques, encomendas, controlo de recursos humanos, definições de preços, aquisição de equipamentos, mais dando as instruções necessárias à execução da documentação comercial daquela.
5º - No referido período, a sociedade arguida encontrava-se, para além do mais, colectada e sujeita a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) pelo regime geral, com todas as obrigações legais daí decorrentes. Para tal, a arguida possuía a sua contabilidade organizada, executada com recurso a meios informáticos.
6º - Assim, nos supra referidos estabelecimentos comerciais, pelo menos de 01.01.2006 a 26.03.2008, encontravam-se em funcionamento equipamentos de registo de operações de venda de tipo Point of Sale, sendo a aplicação em uso nesses equipamentos o programa WinRest.
7º - Tal programa era composto por um sistema de facturação multiposto, sendo produzidos pelo software ficheiros de dados, por sua vez armazenados nos respectivos servidores.
8º - O Winrest é um programa que ajuda o profissional da restauração na gestão operacional do seu negócio.
9º - Orientado para a actividade da restauração e similares, produzia e geria a facturação de um estabelecimento comercial e também auxiliava na gestão do próprio negócio, através da introdução de compras, emissão e gestão de encomendas e outras áreas conexas com o negócio.
10º - Das suas características constavam a possibilidade de gestão dos pedidos por mesa, emissão de diversos tipos de documentos, gestão de auto-consumos, devoluções ou anulações de pedidos, recebimentos (dinheiro, cartão multibanco, etc.), ou seja, de gestão de toda a documentação necessária à prossecução dos imperativos legais e tributários.
11º - Nos referidos estabelecimentos comerciais, os ficheiros de dados produzidos pelo Winrest encontravam-se armazenados na subdirectoria “export” da directoria “files”, sendo certo que, para cada dia de registo de dados, a aplicação criava cinco ficheiros em formato de texto: de cabeçalho, detalhe, rodapé, sessão e, por último, de caixa.
12º - Todavia, nem todos os processos davam origem a talões de venda, ou seja, nem sempre foi impresso tal documento em virtude de eventual anulação do processo ou de transferência de mesas, por exemplo, não significando isto, todavia, que o processo seja “eliminado” da base de dados.
13º - Foi com base nos valores constantes dos respectivos ficheiros de suporte que os arguidos procederam à inscrição dos valores nas declarações periódicas oportunamente entregues nos respectivos Serviços de Finanças, no que ao IRC e ao lucro tributável diz respeito.
14º - O arguido BB, no período compreendido entre 01.01.2006 e 31.12.2007, exerceu com regularidade a actividade social da sociedade arguida, tendo procedido a diversas prestações de serviços de restauração, a título oneroso e, como tal, sujeitas a IRC sobre o lucro tributário apurado.
Mais se apurou que:
15º - O arguido BB já não exerce atividade profissional junto dos restaurantes supra referidos.
16º - Os arguidos não têm antecedentes criminais.

Factos não provados:
i) Os valores referidos em 13º não correspondem aos efectivamente recebidos pelos arguidos uma vez que, pelos mesmos foi utilizado o aplicativo “Simulador” (SIMSIMW.EXE), manipulando os ficheiros de dados produzidos pelo Winrest, com vista à ocultação de facturação efectivamente realizada.
ii) No período referido em 14º, o arguido, enquanto representante legal da sociedade arguida e em nome da mesma, decidiu levar a cabo parte da actividade da mesma à margem da que se encontrava reflectida na contabilidade e que era objecto de declaração à Administração Tributária, omitindo-a das mesmas, o que efectivamente fez, com recurso à referida aplicação informática “Simulador”.
iii) Assim, após o arguido BB, em data que não foi possível apurar com precisão, mas que se situa entre 01.01.2006 e 31.12.2007, nos referidos estabelecimentos comerciais, ter indicado qual a percentagem de subtracção de facturação que pretendia, nos pagamentos efectuados em numerário, em cada período de tempo, o referido aplicativo subtraiu linhas, de forma aleatória, renumerando o campo identificativo do número de linhas dos processos, com vista a manter uma aparente congruência nos registos manipulados.
iv) Contudo, nos processos em que foram anuladas linhas, por devolução de produtos, ou por enganos registados aquando dos pedidos, ou por qualquer outra situação corrente de utilização do Winrest (maxime do Simulador) ficava registado no campo identificativo de linha anulada, o número de linha que esta anulava, não procedendo o simulador à respectiva actualização.
v) Na sequência de tal manipulação, os valores declarados pelo sujeito passivo situaram-se muito aquém dos respectivos indicadores do rácio MBII da unidade orgânica de ..., omitindo um grande conjunto de transacções económicas da contabilidade da sociedade arguida e, consequentemente, não a declarando em termos fiscais.
vi) A contabilidade da sociedade arguida não reflectia a sua exacta situação patrimonial por ocultação dos proveitos efectivamente obtidos e consequente falseamento dos resultados líquidos dos exercícios de 2006 e 2007.
vii) Durante os anos de 2006 e 2007, além do volume de lucros declarados à Administração Tributária, os arguidos obtiveram ainda lucros tributáveis suplementares, respectivamente, no montante de €180.440,18 (cento e oitenta mil, quatrocentos e quarenta euros e dezoito cêntimos) e €147.988,51 (cento e quarenta e sete mil, novecentos e oitenta e oito euros e cinquenta e um cêntimos).
viii) Através de tal modo fraudulento, verificou-se a omissão de rendimentos, com o objectivo de reduzir o lucro tributável, sujeito a IRC, nos valores acabados de referir, não tendo os arguidos pago ao Estado o IRC correspondente a esse rendimento, nos montantes de €34.049,97 (trinta e quatro mil e quarenta e nove euros e noventa e sete cêntimos), em 2006 e €21.032,04 (vinte e um mil e trinta e dois euros e quatro cêntimos), em 2007, originando o defraudamento dos Cofres do Estado em igual montante, conforme liquidações efectuadas pela Administração Tributária após as devidas correcções ao lucro tributário dos referidos exercícios.
ix) Com as omissões supra elencadas, obtiveram os arguidos uma vantagem patrimonial indevida, correspondente aos montantes de IRC a cuja declaração e pagamento se eximiram, no valor de €34.049,97, em 2006 e €21.032,04, em 2007.
x) O arguido BB actuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, por si e como representante legal da sociedade arguida, com o propósito conseguido de omitir da contabilidade desta e das declarações por esta apresentadas à Administração Tributária as prestações de serviços e respectivos proveitos, nos montantes supra descritos, referentes aos anos de 2006 e 2007, com vista a eximir-se à liquidação e entrega das correspondentes prestações tributárias de IRC, o que efectivamente fez, bem sabendo que ocultava factos e valores a cujo registo na contabilidade da arguida A... e declaração à Administração Tributária estava obrigado por lei, em sede de IRC e que assim lograria obter para si e para a sociedade arguida, um benefício patrimonial indevido, correspondente aos montantes de imposto devido e não pago pelos serviços prestados em representação da sociedade arguida, à custa da diminuição das receitas tributárias e prejuízo do Estado Português.
xi) Mais sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei.
*
Consigna-se que não se levou procedeu à seleção de outra matéria, por conclusiva, de direito ou por respeitar a matéria probatória, designadamente:
- Assim, aquando da inspecção tributária levada a cabo, verificou-se que tal manipulação foi efectivamente levada a cabo, nos rendimentos dos anos de 2006 e 2007, verificando-se a existência de talões com números de linhas inconsistentes, e de outros com consumos considerados pouco prováveis.
- Foi impossibilitada a comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à determinação da matéria colectável, motivo pelo qual foi determinada a mesma com recurso a métodos indirectos, verificando-se a existência de um volume de serviços prestados superior aos valores declarados pelo sujeito passivo, para efeitos de IRC, nos anos de 2006 e de 2007.
(…)
*
III. Motivação
Na formação da sua convicção o Tribunal analisou de forma livre crítica e conjugada a prova produzida em audiência de discussão e julgamento de acordo com o preceituado no artº 127º CPP.
No caso concreto, temos que o arguido foi julgado na ausência.
Assim, compulsada a prova produzida, importa desde já esclarecer os motivos pelos quais o tribunal deu como provados e não provados os factos supra.
Com efeito, no tocante à factualidade dada como provada, temos que a mesma resultou pacificamente provada por via da diversa prova documental junta aos autos, designadamente por via da conjugação do auto de notícia de fls. 31 e seguintes, dos documentos de fls. 53 e seguintes, do CD de fls. 65, das certidões de matrícula de fls. 73 e seguintes e 200 e seguintes.
Do mesmo modo, não restaram dúvidas ao tribunal quanto ao objeto social da sociedade arguida e localização da respetiva sede, bem como à forma como o arguido (pessoa singular) exerceu a gerência daquela no período em discussão nos autos.
De igual modo, não restaram dúvidas ao tribunal quanto ao modo como a sociedade se encontrava coletada, bem como à instalação e utilização nos respetivos estabelecimentos comerciais do programa “WinRest”, bem como quanto ao seu modo de funcionamento.
Finalmente, o tribunal teve ainda em consideração os CRC juntos aos autos.
Já no que concerne à factualidade dada como não provada e que constituía o cerne da questão criminal em discussão vejamos.
Assim, e antes de mais, sublinhe-se, desde já, que o essencial da prova produzida consiste em prova indireta, isto é, baseada em indícios, cuja convergência/divergência e suficiência/insuficiência consistem numa ponderação a efetuar em ordem a aferir da possibilidade da realização de um salto valorativo que permita considerar a prova de determinados factos.
Com efeito, temos que o recurso à prova indireta não só não consiste numa operação ilícita (desde que se atenha em determinados parâmetros), como é necessária e fundamental sob pena de absoluta iniquidade perante casos de flagrante violação da lei.
Com efeito, e para nós indubitável que “o conhecimento do facto principal pode ser alcançado por perceção ou dedução com base noutros factos (prova direta e prova indireta respetivamente)”.
A prova direta traz ao conhecimento da entidade incumbida de decidir a perceção de um facto principal. Já na prova indireta, o conhecimento do facto «probando» resulta de uma proposição que, por silogismo, cria uma outra levando a uma conclusão lógica, esta sim, atinente ao tema da prova, (…)”. (…)
A prova indireta é, à partida admissível, por força do princípio de que toda a prova relevante deve ser admissível salvo proibição legal (…)”, isto é, “esta admissibilidade de prova consagra a regra da atipicidade, um dos pontos nos quais se alicerça a admissibilidade da prova indiciária”.
Desde modo, poderá dizer-se que “a prova indireta tem como base factos irrelevantes dos quais, por raciocínio lógico, se pode inferir a existência de factos relevantes. (…) No fundo, o indício opera como uma premissa, uma inferência, que tem como conclusão um enunciado que acrescenta algo sobre o facto primário” sendo “essencial um passo lógico (fundado numa regra de experiência) entre o objeto da prova e o facto juridicamente relevante para se concluir algo relevante no processo”.
Ora, em especial no âmbito do processo penal, importa ter noção que “se não se considerasse a prova resultante das presunções, poderia, no fundo, mais não se fazer do que denegar justiça, contudo tal importa uma conjugação sensível, cuidadosa e complexa com o estabelecimento de uma prova “para além de toda a dúvida razoável” e que é imposto pelo princípio da presunção de inocência.
Dito isto, importa ainda sublinhar que “nada na Constituição expressamente afasta a possibilidade de recorrer à prova indiciária no processo penal”, desde que “o indício, ou facto base, [seja] validamente produzido ou admitido”. No entanto, “a prova indiciária não é admitida sem que a jurisprudência lhe imponha alguns condicionantes” (cf. PATRICIA SILVA PEREIRA, “Prova Indiciária no âmbito do Processo Penal”, Almedina, 2016, págs. 38, 39, 41, 44, 48 e 49).
Assim, na esteira do Acórdão do STJ de 12.09.2007, proc. 07P4588, in www.dgsi.pt, “a prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência” (em similar sentido, vd. Acórdão do STJ de 9.02.2012, proc. 233/08.1PBGDM.P3.S1, in www.dgsi.pt).
Ora, revisitados estes ensinamentos da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, é nosso entender que os indícios recolhidos no caso dos autos não são manifestamente suficientes concludentes e inequívocos.
Senão vejamos.
Ouvida que foi a testemunha CC, gestora na Direção Finanças ..., temos que a mesma não teve qualquer intervenção na ação inspetiva que teve lugar, sendo certo que o seu conhecimento dos factos se circunscreve ao conhecimento do relatório inspetivo, isto é, a um elemento já constante dos autos e cuja análise incumbe ao tribunal, sendo a testemunha pessoa estranha à sua elaboração.
Do mesmo modo, pese embora invoque uma situação de manipulação, a testemunha não foi capaz de a explicar sem recurso ao parecer junto ao processo, podendo assim, sem excesso, afirmar-se que a testemunha se limitou a relatar ao tribunal a sua própria conclusão da leitura que fez de um documento, sem que tenha conhecimentos diretos dos factos que ao mesmo deram origem.
A acrescer sempre se diga que, pese embora o aludido documento remeta para situações alegadamente idênticas levadas a cabo por outros contribuintes inspecionados, a verdade é que não os identifica nem nada adianta quanto ao desfecho das respetivas ações, designadamente ao nível criminal, pelo que se queda sem possibilidade de contraditório e de cabal escrutínio qualquer conclusão que remeta para outros casos cujos contornos se desconhecem e não são sindicáveis.
Assim, questionada a testemunha em apreço, numa tentativa de se ultrapassar a questão, a verdade é que a mesma também não foi capaz de densificar os ditos outros casos de fraude e respetivos rácios de faturação e modo como estes foram, eventualmente calculados.
Deste modo, e devidamente recentrado o depoimento da testemunha, temos que a mesma apenas tinha conhecimento de que o arguido era, à data dos factos, legal representante da sociedade arguida, desconhecendo, inclusivamente, os motivos que levaram à realização da ação inspetiva ou qual o programa informático que estava em utilização.
Por sua vez, a testemunha DD, inspetora tributária e aduaneira da Divisão de Finanças ... e que fora coordenadora do inspetor AA, já falecido, pese embora tenha esclarecido que a inspeção se tratou de uma inspeção aleatória, sabendo, igualmente, explicar o funcionamento do programa Winrest, a verdade é que não conseguiu esclarecer de que modo é que o programa em apreço, no caso concreto, se encontrava preparado para realizar operações de viciação, não se tendo logrado detetar qualquer operativo que possibilitasse tal operação, sendo também certo que não coube a si a análise quaisquer dos dados recolhidos, mas antes ao inspetor já falecido com especialização na área informativa.
Nessa conformidade, foi a testemunha eloquente ao explicar que a equipa inspetiva presumiu, com base na experiência que tinha, que o Winrest era manipulado pelo aplicativo SIMSIM.EXE, assim concluindo por uma situação de manipulação no caso concreto.
Contudo e, salvo o devido respeito, estamos perante um salto lógico que a valoração da prova não permite, isto é, a de que, face ao desconhecimento do modo como os factos ocorreram é, ainda assim, possível concluir que ocorreram em violação de uma lei penal. Tal incongruência violaria, desde logo o princípio da presunção de inocência e o princípio do acusatório como, na verdade, viola até o princípio do contraditório, ao não se deixar claro, e de um modo escrutinável, qual a base de experiência que legitimou tal presunção, designadamente, mediante identificação dos invocados casos similares e esclarecimentos dos seus contornos, bem como dos respetivos rácios e fórmulas de cálculo.
Ouvido igualmente, EE, contabilista da sociedade arguida desde a criação até 2013, temos que o mesmo, tendo tido conhecimento da realização da ação inspetiva, desconhecia os respetivos fundamentos e resultados, bem como desconhecia qual o programa informático que estava em uso.
Por conseguinte, temos que a testemunha não revelou qualquer conhecimento de qualquer comportamento criminal por parte do arguido, sendo inócua a ausência de pedido do arguido de quaisquer esclarecimentos por parte da testemunha às Finanças, visto daí não é possível retirar qualquer conclusão válida e certa.
Isto posto, foi também ouvido FF, especialista de informática que exerce funções na AT, no Departamento de Serviços Anti-Fraude e no núcleo de informática forense, desde 2005.
E, na verdade, pese embora a testemunha em causa tenha laborado diretamente com o inspetor AA, a verdade é que o mesmo nem tão pouco conseguiu esclarecer com certeza quais os restaurantes em cujas ações inspetivas interveio.
Do mesmo modo, no caso dos autos, não soube esclarecer que foi detetada a dita aplicação SIMSIMW.EXE, correspondente a um utilitário agregado ao programa informático em utilização para faturação e que permitia fazer reduções nas faturas geradas.
Ou seja, temos que, também por via deste depoimento não foi possível concluir pela existência de qualquer aplicativo que explique o modo como o alegado crime, narrado na acusação pública, o que impede de modo irremediável que se conclua pela responsabilidade dos aqui concretos arguidos, sendo certo que nenhuma das testemunhas de defesa, GG e HH narraram ao tribunal qualquer facto do qual se possa demonstrar qualquer facto criminal imputável aos arguidos.
Por conseguinte, e em face do exposto, considera o tribunal que a prova, necessariamente indireta, que foi produzida não permite chegar a conclusões perentórias.
Na verdade, do relatório elaborado pelo Sr. Inspetor já falecido constam apenas 4 exemplos de incongruências cuja extrapolação não é possível para uma realidade de milhares de transações efetuadas em estabelecimentos de enorme dimensão como é o dos autos, não cabendo, de resto, ao arguido qualquer dever de colaborar com a justiça criminal ou de apresentar prova da sua inocência.
Nestes termos, e em suma, entende o tribunal que não foi feita prova suficiente da culpabilidade dos arguidos.
(…)»


II 4. 1. -
Vem o recorrente Ministério Público alegar que a sentença recorrida padece de omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1 c), do Código de Processo Penal. Alega que tal sentença desconsiderou injustificadamente a existência da pluralidade de indícios documentais e seu significado probatório que estão juntos aos autos (designadamente o auto de notícia e os ficheiros digitais que o complementam, a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal e o acórdão do Tribunal Administrativo Central do Porto que o confirma).
Vejamos.
Afigura-se-nos que não estamos perante alguma omissão de pronúncia. O que se verifica é que o recorrente discorda da decisão tomada na sentença recorrida, alega que deveriam ter sido considerados elementos de prova documental juntos aos autos quando nessa sentença se considerou que tais elementos não eram relevantes em face da prova testemunhal produzida, a qual não permitiu esclarecer de que modo tais documentos (designadamente o relatório da inspeção tributária) poderiam levar à condenação dos arguidos pela prática do crime de fraude fiscal agravada por que vinham pronunciados. O próprio recorrente afirma que para cabal esclarecimento dessa questão era essencial a audição do depoimento gravado e prestado noutro processo da testemunha AA, inspetor tributário entretanto falecido, sendo que, como vimos, tal audição não era legalmente possível.
Assim, deverá ser negado provimento a este recurso.

Não há lugar a custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal)


II 5. – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento a este recurso, mantendo a douta sentença recorrida.

Notifique


Porto, 10 de janeiro de 2024
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Nuno Pires Salpico
Raúl Esteves