CONTRAORDENAÇÕES
CONCURSO DE CONTRAORDENAÇÕES
PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
Sumário

I - A circunstância de estarmos perante os mesmos factos não impede que se considere que eles consubstanciam a prática de mais do que uma contraordenação, caso em que ocorrerá um concurso ideal (e não real) de infrações.
II - Não ocorre violação do princípio ne bis in idem se estivermos perante um concurso efetivo de normas (designadamente porque elas protegem bens jurídicos distintos) e não um concurso aparente de normas (porque elas protegem o mesmo bem jurídico e têm entre si uma relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção).

Texto Integral

Proc. 160/23.2T9FLG.P1



Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto



I – “A..., Ldª” veio interpor recurso da douta sentença do Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este que a condenou, pela prática de uma contraordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 20.º, n.º 1, b), e 37.º, n.º 3, a), do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto (Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional) e dos artigos 21.º e 22.º, n.º 4, b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais) na coima de doze mil euros.


São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:

«Da Prescrição
a. Verifica-se nos presentes autos que os factos relativos à alegada infração ocorreram em 23 de janeiro de 2017.
b. Desde essa data já decorreram MAIS DE SEIS ANOS, pelo que, se encontra o procedimento contraordenacional prescrito, nos termos do disposto em qualquer uma das alíneas do artigo 27.º do RGCO, o que se invoca com as legais consequências.
Da Nulidade da Sentença por Erro na Aplicação do Direito
c. Desde logo, porque pelos mesmos factos correu igualmente processo de contraordenação junto: 1. da Agência Portuguesa do Ambiente, o processo de contraordenação nº DAF/....5/2017; 2. da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, o processo de contraordenação RAN ...8/2017; 3. da Câmara Municipal de Paços de Ferreira, o processo de contraordenação nº ...9/2016.
d. Assim, a verdade é que a recorrente já foi julgada pela prática dos factos em causa naqueles autos de contraordenação e a conduta apreciada é exatamente a mesma em todos os procedimentos contraordenacionais.
e. O presente procedimento viola, sem margem para dúvidas, o princípio “non bis in idem”, constitucionalmente consagrado no artigo 29.º, nº 5 da CRP, que se interliga com a exceção do caso julgado, formal e material.
f. O princípio “non bis in idem”, como exigência da liberdade do indivíduo, impede que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais (neste caso contraordenacional), formal e tecnicamente distintos.
g. Deveria, pois, a sentença proferida pelo Tribunal a quo ter determinado o arquivamento do procedimento contraordenacional em crise, por violação do princípio “non bis in idem”.
h. Entende a recorrente que não resulta provado que a recorrente tenha violado o normativo invocado (cf. alínea b) do nº 1 do artigo 20.º do DL. 166/2008, de 22-08, alterado pelo DL. 239/2012, de 02-11, e pelo DL. 96/2013, de 19-07).
i. Aliás, diga-se a este respeito, que no dia em que os agentes do Destacamento Territorial de Felgueiras se deslocaram ao local dos factos sequer lograram identificar a arguida e os responsáveis pelos trabalhos realizados no local.
j. De facto, nos presentes autos, não foi produzida prova que permita determinar que a recorrente realizou uma qualquer obra de urbanização, construção e ampliação em solo qualificado como REN.
k. Na verdade, apenas se logrou demonstrar que a recorrente procedeu à limpeza do leito do rio e tentou estabilizar as margens com pedras sem fecho de juntas, de forma a que as águas pudessem circular.
l. O que fez visou apenas garantir a passagem das águas, travar a erosão e inundação dos terrenos pela estabilização das margens, bem como a segurança de todos que por lá passam.
m. Não foi concretizada qualquer construção ou edificação.
n. E não se tratando efetivamente de obras de urbanização, construção e ampliação, não podia a recorrente ser condenada pela prática de uma inexistente infração, sendo inaplicável o citado preceito legal.
o. Sendo certo que da prova realizada em sede de audiência de discussão e julgamento não resultou, nem poderia resultar, que a recorrente tenha de realizado obra de urbanização, construção ou ampliação.
p. Pelo que, salvo melhor e diverso entendimento, mal andou o Tribunal a quo ao não determinar o arquivamento dos presentes autos.
q. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal.
r. A nulidade da sentença por aplicação do direito pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la.
s. O que, salvo melhor e diverso entendimento, sucede na sentença proferida pelo Tribunal a quo e que aqui expressamente se argui para os devidos efeitos legais.
t. Importa referir, desde já, que desde data dos factos até à notificação da decisão, já decorreram mais de seis anos, sendo certo que ao longo deste hiato temporal a situação económica da recorrente tem vindo a piorar e a mesma não praticou qualquer outra contraordenação.
u. Assim, atendendo ao princípio da proporcionalidade que, salvo melhor entendimento, comete à administração a obrigação de adequar os seus atos aos fins concretos que se visam atingir, adequando as limitações impostas aos direitos e interesses de outras entidades ao necessário e razoável.
v. Princípio este que tem subjacente a ideia de limitação do excesso, de modo a que o exercício dos poderes, designadamente discricionários, não ultrapassem o indispensável à realização dos objetivos públicos.
w. Considerando que, a aplicação da suspensão da coima especialmente atenuada, nos termos do disposto nos artigos 20.º-A e seguintes da LQCOA, se mostra suficiente para acautelar as finalidades de punição no caso concreto, pois que estão verificadas as circunstâncias anteriores e posteriores que diminuem por forma acentuada a ilicitude dos factos, a culpa da Recorrente e a necessidade da coima.
x. Reitere-se a Recorrente é primária, não tendo praticado qualquer contraordenação ambiental, ou outra, até à presente data.
y. Nestes termos, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a revogação da decisão de aplicação da coima, nos termos do nº 3 do artigo 52.º da LQCOA, conjugado com o nº 2 do artigo 62.º e 64.º do RGCO e, concomitantemente,
z. Assim, nos termos do disposto no artigo 51.º do RGCO, “(…) quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação, uma vez que se trata de uma contraordenação ligeira, de reduzido grau de ilicitude (…)”.
aa. Pelo que, atendendo à factualidade invocada, caso por mera hipótese, não se entenda pelo arquivamento dos presentes autos, será bastante a aplicação de uma mera admoestação à alegada infração.
bb. Ademais, decorre da Constituição da República Portuguesa, do RGCO e do Código Penal, que a medida da pena tem de ser aferida na medida da culpa.
cc. Os factos praticados não são de gravidade que justifique a aplicação à primeira sanção, de uma coima no valor de €12.000,00.
dd. Ademais, a aplicação da lei, na interpretação contrária ao vindo de alegar, além de ilegal é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, motivo pelo qual deverão ser arquivados os presentes autos ou quando muito, como supra referido, ser aplicada uma admoestação ou a multa aplicada ser suspensa na sua execução mediante o cumprimento de injunções pela recorrente.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.


II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se se verifica a prescrição do procedimento contra-ordenacional;
- saber se a condenação da recorrente implica a violação do princípio ne bis in idem;
- saber se a factualidade considerada provada na sentença recorrida não configura a prática da contra-ordenação por que a recorrente foi condenada;
- saber se a coima em que a recorrente foi condenada deverá ser suspensa nos termos dos artigos 20.º e seguintes da Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais (Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto);
- saber se o recorrente deverá, face aos critérios legais, ser condenado não em coima, mas em admoestação.
Uma vez que, nos termos do artigo 75.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações, o presente recurso é restrito às questões de direito, não poderão ser apreciadas outras questões suscitadas na motivação do recurso, relativas à prova dos factos. Poderá ser apenas analisada a questão de saber se a factualidade considerada provada na sentença recorrida (factualidade que deve ser tida por assente) configura, ou não, a prática da contra-ordenação por que a recorrente foi condenada.

III – É o seguinte o teor da fundamentação da douta sentença recorrida:

«Com relevância para a discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A 23 de janeiro de 2017, pelas 10:30horas, os agentes do Destacamento Territorial de Felgueiras deslocaram-se à Rua ..., em ....
2. No local verificaram a construção de muros para suporte de terras junto a uma linha de água.
3. As obras foram realizadas em ambas as margens do Rio ..., sendo os dois muros em pedra e paralelos a uma distância de 6 metros correndo o rio entre ambos, havendo ainda deposição de terra para nivelar o terreno.
4. Deslocaram-se à Câmara Municipal de Paços de Ferreira para consultar o PDM, tendo confirmado que o terreno estava classificado como Reserva Ecológica em sobreposição com Reserva Agrícola, carecendo a realização de obras naquele local de parecer e licenciamento das entidades competentes.
5. Contactado o proprietário do terreno, a aqui arguida, a 30 de janeiro de 2017, pelas 15 horas, o sócio gerente Sr. AA, e questionado acerca do terreno informou que este é propriedade da arguida.
6. Questionado sobre a licença para deposição de terra e construção dos muros para suporte de terra, o sócio gerente informou que estas ações foram efetuadas sem o consentimento da entidade administrativa competente.
7. Nos termos da informação da Direção de Serviços do Ordenamento do Território, "considerando a ação em causa, que envolveu movimentações de terras significativas, o Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional (publicado pelo Decreto Lei no 166/2008, de 22 de agosto, na redação conferida pelo Decreto Lei n. 0 124/2019, de 28 de agosto), no seu Artigo 20. na alínea d) no n. 1 , interdita nas áreas incluídas na REN, os usos e ações de iniciativa pública ou privada que se traduzam em escavações e aterros. Sendo uma ação interdita, conforme identificado no ponto anterior, não é enquadrável no regime de exceções da REN.
8. Ao agir da forma supra descrita a arguida não agiu com a diligência necessária para cumprir com as suas obrigações legais ambientais.
9. Dos registos existentes na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte não constam antecedentes contraordenacionais da mesma natureza.
10. Pelas obras levadas a cabo pela arguida correu também processo de contraordenação junto da Agência Portuguesa do Ambiente, o processo de contraordenação DAF....5/2017, da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, o processo contraordenação RAN ....8/2017 e Câmara Municipal de Paços de Ferreira, o processo contraordenação nº ...9/2016.

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Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.
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Os factos dados como provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto.
Assim, o Tribunal valorou, em conjugação com o auto de fls. 3 a 12 e com os documentos de fls. 227 (foto do google earth de 2016 e de 2017), as declarações da legal representante da empresa arguida AA e dos soldados BB e CC que forma quem elaboraram o auto. Destes elementos de prova, nomeadamente das declarações da legal representante da arguida, resultou que esta sabia que a obra de deposição de terra e construção dos muros para suporte de terra, foram efetuadas sem o consentimento da entidade administrativa competente.
Mais formamos convicção que a obra levada a cabo no prédio da arguida não foi de mera limpeza mas sim de alargamento do leito do rio que terá passado de cerca de 2 metros para cerca de 5 a 6 metros como reconheceu o gerente da arguida e que houve assim grande movimentação de terras.
Mais formamos convicção que a conduta da arguida apesar de ferida de ilegalidade contribuiu para evitar riscos de cheias pois o alargamento do leito e a limpezas das condutas evitou que novas cheias que eram ali frequentes se repetissem, como referiram as testemunhas DD e EE.
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Do Direito
Da prescrição.
A arguida vem acusada da prática da contra-ordenação prevista e punida pelos alínea b) do n. 1 do artigo 20º do Decreto-lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, alterado pelo Decreto-lei n.º 239/2012 de 02 de novembro e pelo Decreto-lei n.º 96/2013 de 19 de julho, alínea a) do n. 3 do artigo 37. do Decreto-lei n. 166/2008, de 22 de agosto, alterado pelo Decreto-lei n. 239/2012 de 02 de novembro e pelo Decreto-lei n. 96/2013 de 19 de julho, em conjugação com o disposto na alínea b) do n. 4 do artigo 22.º da Lei n. 50/2006 de 29 de agosto, republicada pela Lei n. 89/2009 de 31 de agosto, punível com coima de 24.000 euros a 144.000,00 euros.
Relativamente à prescrição das coimas aplicadas no âmbito da LQCOA, estabelece o artigo 40.º do citado diploma legal, o qual constituiu regime especial, aplicável ao caso em análise, afastando, nesta parte, o RGCO:
“1 - O procedimento pelas contraordenações graves e muito graves prescreve logo que sobre a prática da contraordenação haja decorrido o prazo de cinco anos, sem prejuízo das causas de interrupção e suspensão previstas no regime geral. 2 - O procedimento pelas contraordenações leves prescreve logo que sobre a prática da contraordenação haja decorrido o prazo de três anos, sem prejuízo das causas de interrupção e suspensão previstas no regime geral.
3 - O prazo de prescrição da coima e sanções acessórias é de: a) Três anos, no caso das contraordenações graves ou muito graves; b) Dois anos, no caso de contraordenações leves.
4 - O prazo referido no número anterior conta-se a partir do dia em que se torna definitiva ou transita em julgado a decisão que determinou a sua aplicação, sem prejuízo das causas de interrupção e suspensão previstas no regime geral.”
As causas de suspensão e interrupção da prescrição encontram-se previstas nos artigos 27.º A e 28.º do RGCO.
No caso em apreço, os factos imputados à recorrente foram praticados a 13.01.2017.
Nos termos do artº 28 nº 1 al. a) do RGCO a prescrição interrompeu-se a 08.05.2017 com a notificação à arguida para exercer direito de defesa.
Conforme estabelecido no artigo 28.º, n.º 3 do RGCO que: “a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição acrescido de metade”, o que ainda não sucedeu.
Assim, improcede a invocada excepção de prescrição do procedimento contraordenacional.
***

Da violação do princípio ne bis in idem
A arguida invoca que os factos em causa nestes autos deram já origem a, pelo menos, três processos contraordenação. A Conduta apreciada é exatamente a mesma em todos os processos contraordenacionais pelo que o presente procedimento viola, sem margem para dúvidas, o princípio “non bis in idem”.
Vejamos.
Com efeito, nos termos do art. 30º, do nosso C.Penal, « o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».
Todavia, só depois de apurada a subsunção da conduta a diversos tipos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, o juízo de censura dirá a sua última palavra sobre se, em concreto, se verificam um ou mais crimes e se sob a forma culposa ou dolosa. Retira-se do advérbio utilizado pelo legislador, efectivamente e dos princípios basilares sobre a culpa (vide, por todos, Maia Gonçalves, in “Código Penal Português Anotado”, 9ª ed., pág. 268 ).
Daí que se fale do « concurso aparente ou impuro » de crimes para significar aquelas situações em que, embora totalmente violados vários preceitos legais, vistas melhor as coisas, verifica-se que um só deles é, ao fim e ao cabo, eficaz, donde entre as plúrimas disposições aparentemente aplicáveis existem relações de hierarquia tais que a eficiência de uma exclui a simultânea aplicação de outra ou outras.
Daí que se diga, neste particular, estarmos perante relações de especialidade e consunção.
Ou seja, e nas palavras de Eduardo Correia (in “Unidade e Pluralidade de Infracções”, Coimbra, Almedina, 1983, pág. 131), «a reacção contra a violação concreta do bem jurídico realizada pelo tipo enformado pelo valor menos vasto efectiva-se já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa do bem jurídico mais extenso».
No caso em apreço, visto o teor da decisão do Proc. contraordenação nº ...9/201 da CM P. Ferreira, consta-se que o bem juridico protegido é a necessidade de as edificações e obras serem controladas pelas autarquias locais, com observância dos regulamentos e normas de edificação que são conferias pelo RJUE e no processo de contraordenação RAN ....8/2017 visa a protecção dos recurso hídricos.
No caso dos autos a tutela do bem jurídico é a protecção do meio ambiente com o facto de se assegurar que não ocorrem edificações fora dos locais permitidos para os efeitos e protege-se assim a rede ecológica e hidrográfica nacional.
No caso em apreço, a inclusão e a menção de factos referentes a outros processos de contra-ordenação, não violam o princípio ne bis in idem pois estes serão tão só valorados para efeitos de determinação da culpa do arguido, que releva a nível da determinação da medida da coima e nunca a nível de apreciação desses factos como contraordenação que foram já alvo de apreciação naqueles autos.
Pelo exposto, não temos por violado o princípio ne bis in idem.
***

Da medida da coima
Estatui o artigo 20 nº 1 do DL 166/2008 que “ ”1 - Nas áreas incluídas na REN são interditos os usos e as ações de iniciativa pública ou privada que se traduzam em:
a) Operações de loteamento;
b) Obras de urbanização, construção e ampliação;
c) Vias de comunicação;
d) Escavações e aterros;
e) Destruição do revestimento vegetal, não incluindo as ações necessárias ao normal e regular desenvolvimento das operações culturais de aproveitamento agrícola do solo, das operações correntes de condução e exploração dos espaços florestais e de ações extraordinárias de proteção fitossanitária previstas em legislação específica..
O artigo 37º nº 3 al.a) do mesmo diploma, por seu lado, preceitua que constitui contra-ordenação ambiental muito grave a realização de usos ou ações interditos nos termos do artigo 20.º;
Nos termos do artigo 22º da Lei nº 50/2006, de 29.08 a contraordenação aqui em causa é punida com coima de €24.000 a €144.000 (cfr. o nº 4, alínea b) do artigo 22º).
Ora, no caso concreto, e face à matéria dada como provada, não restam dúvidas de que a arguida praticou a contra-ordenação que lhe vinha imputada, a título negligente. Efectivamente, provou-se que a arguida procedeu em zona de REN à construção de muros para suporte de terras junto a uma linha de água e que as obras foram realizadas em ambas as margens do Rio ..., sendo os dois muros em pedra e paralelos a uma distância de 6 metros correndo o rio entre ambos, havendo ainda deposição de terra para nivelar o terreno. Mais resultou que a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada para cumprir com as obrigações inerentes ao exercício da actividade por si prosseguida.
Mas a arguida defende que lhe deve ser aplicada mera admoestação.
Vejamos, pois.
O artigo 51º, nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, dispõe que “quando a reduzida gravidade da infracção e a culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”.
Trata-se de uma alternativa para os casos de pouca relevância do ilícito criminal e da culpa do agente, isto é, desde logo para contraordenações leves ou simples, e ainda assim quando quer a gravidade do ilícito quer a culpa sejam reduzidos (cfr. PAULO PINTO de ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, p. 222 e ss. e SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 2011, p. 394; vide também os Acórdãos da Relação do Porto de 17.09.2014 e da Relação de Lisboa de 08.11.2012, disponíveis em www.dgsi.pt).
Por conseguinte, sendo certo que as contra-ordenações só podem ser consideradas de reduzida gravidade nos casos em que a lei as tenha como leves ou simples, e apesar das circunstâncias invocadas pela arguida, não pode ter lugar, in casu, por a contra-ordenação praticada pela arguida ser legalmente classificada como muito grave, a aplicação de mera admoestação.
A arguida pede, finalmente, que a coima seja especialmente atenuada.
Vejamos, pois, em que termos é permitida a atenuação especial.
Dispõe o artigo 23º-A da Lei nº 50/2006 (na redacção introduzida pela Lei nº 114/2015de 28.08), que “para além dos casos expressamente previstos na lei, a autoridade administrativa atenua especialmente a coima, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores à prática da contraordenação, ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima”, sendo consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes: “a) ter havido actos demonstrativos de arrependimento do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados e o cumprimento da norma, ordem ou mandado infringido; b) terem decorrido dois anos sobre a prática da contraordenação, mantendo o agente boa conduta”.
No caso vertente, considerando as circunstâncias do caso, o tempo já decorrido desde a prática da contra-ordenação (5 anos), e que a situação apesar de ilicita contribuiu para evitar o risco de cheias que eram frequentes naquela zona e que a arguida não tem antecedentes pela prática de contra-ordenações ambientais, entendemos que se justifica a pretendida atenuação especial.
A ser assim, e nos termos do artigo 23º-B da citada Lei nº 50/2006, os limites mínimo e máximo da coima são reduzidos a metade, pelo que passam a ser, respectivamente, de €12.000,00 e €72.000,00. Sendo que se entende manter a aplicação da coima pelo seu mínimo.
(…)»


IV 1. – Cumpre decidir.
Vem a recorrente alegar que se verifica a prescrição do procedimento contra-ordenacional. Invoca as várias alíneas do artigo 27.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e a circunstância de terem decorrido mais de seis anos desde a data da prática dos factos em apreço
Vejamos.
A contra-ordenação em apreço terá sido praticada em 23 de janeiro de 2017.
Ao procedimento relativo à contra-ordenação por que a recorrente foi condenada, classificada como muito grave, corresponde, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 21.º, 22.º, n.º 4, b), e 40.º, n.º 1, da Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, o prazo de prescrição de cinco anos.
São, porém, aplicáveis a esse prazo, nos termos desse mesmo artigo 40., n.º 1, as causas de suspensão e interrupção previstas nos artigos 27.º-A e 28.º do Regime Geral das Contra-Ordenaçóes.
Assim, à luz das a), b), e d), do n.º 1 desse artigo 28.º, o prazo de prescrição interrompeu-se com a notificação da recorrente para exercer o seu direito de defesa, a 8 de maio de 2017; com a inquirição de testemunhas, a 4 de março de 2020; e com a decisão da autoridade administrativa de aplicação de coima, a 19 de janeiro de 2023.
Nos termos dos números 1, c) e 2 desse artigo 27.º-A, o prazo de prescrição suspendeu-se com a notificação à recorrente do despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa de aplicação e até à decisão final dessa impugnação, sendo que essa suspensão não pode exceder seis meses.
Nos termos do n.º 3 desse artigo 28.º, a prescrição do procedimento contra-ordenacional ocorre sempre que decorra o seu prazo normal acrescido de metade, ressalvado o tempo da suspensão. Tal não de verifica neste caso.
Assim, não se verifica a prescrição do procedimento contra-ordenacional.
Deverá ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto.

IV 2. –
Vem a recorrente alegar que a sua condenação implica a violação do princípio ne bis in idem (consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição). Invoca a circunstância de pelos mesmos factos por que foi nestes autos condenada terem corrido, junto da Agência Portuguesa do Ambiente, o processo de contraordenação nº DAF/...5/2017; junto da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, o processo de contraordenação RAN ....8/2017; e, junto da Câmara Municipal de Paços de Ferreira, o processo de contra-ordenação nº ...9/2016.
Vejamos.
A circunstância de estarmos perante os mesmos factos não impede que se considere que eles consubstanciam a prática de mais do que uma contra-ordenação. Se assim for, poderemos estar perante um concurso ideal (e não real) de infrações. Não se verificará violação do princípio ne bis in idem se estivermos perante um concurso efetivo de normas (designadamente porque elas protegem bens jurídicos distintos) e não um concurso aparente de normas (porque elas protegem o mesmo bem jurídico e têm entre si uma relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção).
Considera a sentença recorrida que as normas a que são relativos os processos contra-ordenacionais invocados pela recorrente protegem bens jurídicos distintos daqueles a que relativa a contra-ordenação em causa neste processo.
Está em causa neste processo a prática de uma contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 20.º, n.º 1, b), e 37.º, n.º 3, a), do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto (Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional) e dos artigos 21.º e 22.º, n.º 4, b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais)
Considera a sentença recorrida que no caso em apreço está em causa a proteção do meio ambiente e a necessidade de controlo de edificações situadas nas áreas da Reserva Ecológica Nacional.
Assim, o processo de contra-ordenação nº ...9/2016 que correu termos junto da Câmara Municipal de Paços de Ferreira, é relativo à infração de normas relativas a ao Regime Jurídico da Edificação e Urbanização e à ao necessário controlo de edificação e obras por parte das autarquias locais.
Quanto ao processo de contraordenação nº DAF/...5/2017, que correu termos junto da Agência Portuguesa do Ambiente, está em causa a contra-ordenação prevista no artigo 81.º, n.º 3, a), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de janeiro, relativa à utilização dos recursos hídricos sem o respetivo título.
Quanto ao processo de contraordenação nº DAF/...5/2017, que correu termos junto da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, não consta da sentença a que infração será relativo (nem descortinamos que do processo constem elementos que nos permitam apurar esse facto).
Deparamo-nos, deste modo, com uma insuficiência da matéria de facto provada (nos termos do artigo 410.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal) para apreciação desta questão suscitada pela recorrente.

Há que considerar também o seguinte.
Está em causa neste recurso a contra-ordenação relativa à interdição prevista no artigo 20.º, n.º 1, b), do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto: a prática de uma construção na área da Reserva Ecológica Nacional.
Embora na decisão da autoridade administrativa de aplicação de coima se refira também a contra-ordenação relativa à interdição prevista na alínea d) desse mesmo artigo (a prática de escavações e aterros na área da Reserva Ecológica Nacional), não foi a recorrente condenada por esta outra contra-ordenação, mas pela prevista na referida alínea b). Logo, não faz parte do processo, da impugnação judicial apreciada na primeira instância e neste recurso, a prática dessa outra contra-ordenação.
Nessa decisão da autoridade administrativa, é analisada a questão da eventual verificação de exceções à interdição de alguma das condutas descritas nas várias alíneas do referido n.º 1 desse artigo 20.º (exceções a que se reportam os números 2 e 3 desse artigo), com alusão às que não admitem quaisquer exceções, às que admitem exceções sem necessidade de comunicação prévia e às que admitem exceções subordinadas a comunicação prévia. Mas ao proceder a essa análise, tal decisão fá-lo com base na interdição a que é relativa a referida alínea d) (a prática de escavações e aterros da área da Reserva Ecológica Nacional), concluindo que se trata de uma interdição que não admite exceções. E, como vimos, a recorrente não foi condenada pela contra-ordenação relativa a essa a interdição, mas pela que é relativa à interdição prevista na alínea b) do mesmo n.º 1 (a prática de uma construção na área da Reserva Ecológica Nacional).
Haveria, então, que analisar, à luz do que dispõem os números 2 e 3 desse artigo 20.º a eventual verificação de exceções à interdição prevista na alínea b) do n.º 1 desse mesmo artigo.
Essa análise é omitida na decisão da autoridade administrativa e também na sentença recorrida.
Também neste aspeto poderemos estar perante uma insuficiência da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal, se se entender que a referida análise exige a consideração de factos para além dos que foram tidos por provados na sentença recorrida. Se se entender que essa análise poderá ser feita sem a consideração de outros factos, estaremos, de qualquer modo, perante uma insuficiência de fundamentação (nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374,º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, c), do mesmo Código)), insuficiência que deverá ser suprida.

Impõe-se, assim, o reenvio do processo para novo julgamento, relativo a estas questões, nos termos do artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em determinar o reenvio do processo para novo julgamento, relativo às questões acima indicadas, nos termos do artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Notifique


Porto, 10 de janeiro de 2024
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Luís Coimbra
Paula Natércia Rocha