PERDÃO
SUCESSÃO DE CRIMES
CONCURSO DE CRIMES
PENA ÚNICA
APLICABILIDADE
CRITÉRIOS
LIMITES
Sumário

I - No caso de subsistência de condenações por crimes que excluem a aplicação de perdão e por crimes que a admitem importa distinguir se existe sucessão de crimes ou concurso de crimes.
II – Na primeira situação o perdão incide unicamente sobre as penas impostas pelos crimes não excecionados, quer se trate de condenação por um crime único ou de concurso de crimes, recaindo nesta hipótese sobre a pena única correspondente.
III – Quando exista concurso de crimes excludentes da aplicação de perdão e crimes não excecionados na lei, o condenado continua a beneficiar do perdão relativamente a estes últimos crimes, porém, uma vez que o perdão recai forçosamente sobre a pena única, também neste caso o perdão incide sobre a pena do concurso de crimes.
IV – Contudo, nesta situação de cúmulo jurídico a medida do perdão não pode ser superior à pena parcelar que determina a aplicação do perdão, na hipótese de somente um dos crimes não excluir o perdão, assim como, na hipótese inversa de só um dos crimes estar excluído de perdão, a pena única remanescente após a aplicação do perdão não pode ser inferior à pena parcelar relativa àquele crime excluído de perdão.
V – Contrariamente ao que chegou a ser propugnado pela jurisprudência no âmbito de anteriores leis de amnistia, mas que veio a ser superado por virtude de conduzir à realização de cúmulo jurídico que abrangia uma pena resultante de anterior cúmulo, foi estabelecida nova corrente jurisprudencial que se tornou maioritária no sentido do perdão incidir sobre a pena única resultante do cúmulo jurídico da totalidade das penas parcelares, incluindo as penas não abrangidas pelo perdão, sendo efetuado um cúmulo parcial prévio somente para o efeito de cálculo da medida concreta do perdão a aplicar, por ser variável em função da pena.
VI – Ora, uma vez que o perdão incide sobre a pena única, em caso de concurso de crimes, se a duração da pena única imposta for superior a 8 anos de prisão, não pode a mesma pena ser objeto de perdão.

Texto Integral

Processo: 441/07.2JAPRT-E.P1
Relatora: Maria dos Prazeres Silva
1.º Adjunto: João Pedro Pereira Cardoso
2.º Adjunto: Jorge Langweg

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I. RELATÓRIO:
No âmbito do processo comum coletivo n.º 441/07.2JAPRT, em que é arguido AA, por despacho de 13-09-2023 (Referência: 451631101), foi decidido não aplicar o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2-8, relativamente à pena única de 10 anos e 5 meses de prisão que foi imposta no mesmo processo.

1. Inconformado com tal despacho, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando a motivação que remata com as seguintes

CONCLUSÕES:
1– O presente recurso adstringe-se ao despacho proferido em 13/09/2023, que se pronunciou pela inaplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 2/8, e que, no consectário, não perdoou 1 ano de prisão às penas parcelares perdoáveis conglobadas na pena única de 10 anos e 5 meses de prisão em que o arguido foi condenado por acórdão cumulatório, já transitado em julgado.
2–De seguida, foi exposta a facticidade relevante para o caso sub judice, com a indicação e descrição da promoção do Ministério Público e do sobredito despacho, em que o M.mo Juiz se pronunciou no sentido referido em 1.
ANTECEDENTES
3– Após, para contextualizar os factos na sua amplitude multifária, foram repristinados os antecedentes criminais do arguido, que foram objecto do acórdão cumulatório, que culminou na pena única referida em 1.
SUBSTANCIAÇÃO/DENSIFICAÇÃO DA IMPUGNAÇÃO
4– O despacho proferido pelo M.mo Juiz mostra-se desacertado e injudicioso – daí a censura que se lhe faz pelo presente itinerário.
5– No seguimento do recurso, foi feito um excurso teórico-jurídico, em que se destacou a exposição de motivos da Lei n.º 38-A/2023, de 2/8, no seguinte excerto: “Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação.”
6– Importa salientar, tendo em consideração a atinente natureza, que o diploma em causa deve ser interpretado de forma linear e objectiva, norteado pelo princípio de que o legislador disse e previu expressamente, de forma clara, as situações que quis abranger, ou excluir, relativamente ao perdão de pena de prisão, sob pena de violação do princípio da igualdade, com a consequente colisão com o art.º 13.º da CRP.
7– O diploma em análise deve ser interpretado de uma forma sistemática, lógico-sistemática ou sistémica, indo ao encontro da correspondente teleologia.
8– Ora, em momento algum se divisa o legislador tenha exprimido, ou sequer pretendido, que as penas por crimes que não estejam expressamente excluídas nos termos do citado art.º 7, ainda que já objecto de um cúmulo jurídico, não possam beneficiar do perdão, tendo, inclusive, presente que estamos diante de criminalidade bagatelar ou de menor importância – à vista do aduzido, sufragar entendimento diverso seria esvaziar de conteúdo o pretendido pela Lei.
9– Ressalte-se, por inquestionável, que o M.mo Juiz a quo nem sequer realizou uma ponderação acerca da inclusão/exclusão dos crimes abrangidos pelo perdão e cuja penas parcelares foram objecto de cúmulo jurídico nos termos e para os efeitos do art.º 7.º, n.º 1, em violação do n.º 3 do mesmo preceito.
10– Atendendo à data da prática dos factos, à idade do arguido nessas ocasiões e ao sobredito quadro legal, conclui-se que somente as penas aplicadas no contexto dos crimes por que o arguido foi condenado no recorte do processo n.º 418/08.0PAMAI, da então 4.ª Vara Criminal do Porto – crime de sequestro e crime de roubo agravado – se mostram excluídas do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 [cf. III.1, alínea i), e o citado artigo 7.º, n.º 1, alíneas a), iv), e b) i)].
11– Inexistem, por conseguinte, obstáculos à aplicação, ao caso vertente, do perdão de 1 ano de prisão, no que tange às penas parcelares, acima indicadas, em que o arguido foi condenado nos processos mencionados em III.1, alíneas a) a h) e alínea j)
12– Nessa medida, o Tribunal recorrido, depois de desfazer o cúmulo jurídico outrora efectuado, deverá proceder da subsecutiva forma:
1.º - primeiramente, deve efectuar o cúmulo jurídico das penas parcelares perdoáveis e fixar a apropositada pena única; após, lograda a pena única, que é necessariamente inferior a 8 anos da prisão (atendendo ao limite máximo da moldura abstrata do sobredito cúmulo jurídico), deve declarar o perdão de 1 ano de prisão, nos termos do art.º 3.º, n.ºs 1 e 4, sob a condição resolutiva prevista no art.º 8.º, n.º 1 (cf., ainda, os artigos 77.º e 78.º do Código Penal);
2.º Posteriormente, impõe-se, então, a realização de um novo cúmulo jurídico entre as penas parcelares aludidas em III.1, al. i), e a pena, referida no antecedente n.º 1 desta conclusão, resultante do cúmulo jurídico das penas perdoáveis, para a fixação da nova pena única.
13– O Tribunal a quo, ao decidir nos termos em que o fez, violou o estabelecido no art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 3.º, n.ºs 1 e 4, e 7.º, n.ºs 1, a contrario, e 3, da Lei n.º 38-A/2023, de 2/8.

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Nestes termos e nos demais de Direito, deve ser dado provimento ao presente Recurso.
Por via dele, deve ser revogado o despacho proferido, em 13/09/2023, pelo M.mo Juiz e ser determinado ao Tribunal a quo o seguinte:
1.º - que desfaça o cúmulo jurídico outrora efectuado;
2.º - que efectue o cúmulo jurídico das penas parcelares perdoáveis e fixe a pertinente pena única; que, após, lograda a pena única, declare o perdão de 1 ano de prisão, nos termos do art.º 3.º, n.ºs 1 e 4, sob a condição resolutiva prevista no art.º 8.º, n.º 1 (ver ainda os artigos 77.º e 78.º do Código Penal); e
3.º que realize um novo cúmulo jurídico entre as penas parcelares aludidas em III.1, al. i), e a pena referida no antecedente n.º 2, emergente do cúmulo jurídico das penas perdoáveis, para a fixação da nova pena única.

Dessa forma, será feita a costumada JUSTIÇA.
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2. O Ministério Público apresentou resposta, na qual pugnou pela improcedência do recurso, tendo formulado as seguintes

CONCLUSÕES:
1. A Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, entrou em vigor no dia 1 de setembro de 2023.
2. O artigo 3º, nº 1, da mencionada lei refere que “Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”.
3. Dispondo o n.º 4 do referido artigo que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
4. O arguido recorrente AA, nascido em .../.../1988, foi condenado nos presentes autos, por douto Acórdão cumulatório já transitado em julgado no dia 21.5.2014, na pena única de 10 anos e 5 meses de prisão.
5. Por via de tal Acórdão, foram englobadas, para além da condenação sofrida nestes autos, as condenações sofridas nos processos 69/08; 141/08.6PBGDM; 79/08.7PBGDM; 98/08.3PBGDM; 180/08.7PBGDM.
6. Entendemos que a opção político-criminal subjacente ao diploma em causa, quanto ao seu âmbito subjectivo de aplicação, se encontra fundada, não sendo arbitrária, pelo que não viola o princípio constitucional da igualdade ínsito do artigo 13º da CRP.
7. O Tribunal a quo decidiu bem em não aplicar qualquer perdão de pena(s) ao condenado recorrente, por a Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto não lhe ser aplicável, pois, estando em causa uma situação de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única que, sendo superior a 8 anos de prisão, não é passível de qualquer perdão.
Por tudo o exposto, deverá negar-se provimento ao recurso interposto e confirmar-se o despacho recorrido nos seus precisos termos.

Decidindo nesta conformidade, farão V. Excelências,
JUSTIÇA!
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3. Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no qual pugnou pela improcedência do recurso, aderindo ao teor da resposta e aditando que: A operação de realização de novo cúmulo jurídico que o recorrente propõe e de aplicação de perdão às penas parcelares “perdoáveis” não encontra sustentação nas normas que compõem a Lei nº 38-A/2023.
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4. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO:
1. DESPACHO RECORRIDO
O arguido AA, nascido em .../.../1988, foi condenado nos presentes autos, por douto Acórdão cumulatório já transitado em 21.5.2014, na pena única de 10 anos e 5 meses de prisão. Por via de tal Acórdão, foram englobadas, para além da condenação sofrida nestes autos, as condenações sofridas nos processos 69/08; 141/08.6PBGDM; 79/08.7PBGDM; 98/08.3PBGDM; 180/08.7PBGDM.
O arguido está preso à ordem dos nossos autos em cumprimento da supramencionada pena única. Esteve desligado destes autos e, entretanto, voltou a ser religado, tendo sido efectuada liquidação de pena em 13.2.2023, judicialmente homologada a 14.2.2023, a qual foi confirmada pelo Tribunal na Relação do Porto na senda de recurso interposto pelo arguido, estando o termo da pena previsto para 11.10.2027.
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A Digna Magistrada do Ministério Público opôs-se a que lhe fosse aplicado o perdão previsto na Lei 38-A/2023.
Cumpre decidir
Em 1 de setembro de 2023, entra em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
A Lei é aplicável aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (ou seja, um minuto depois das 23:59 do dia 18 de Junho de 2023).
Ao abrigo do artigo 3.º, n.º 1 da supramencionada Lei, é perdoado um ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos sendo que, como promana do n.º 4 do citado artigo, em caso de condenação em cúmulo jurídico, como é o caso dos autos, o perdão incide sobre a pena única.
Ora, no presente caso, foi aplicada ao arguido uma pena de prisão única superior a 8 anos, circunstância que o impede de beneficiar do referido perdão, pois que o mesmo incide sobre a pena única.
Nesta conformidade, indefere-se o requerido e determino que os autos continuem a aguardar pelo cumprimento da pena de prisão.
Notifique.
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2. APRECIAÇÃO DO RECURSO:
Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as matérias que sejam de conhecimento oficioso.
A questão suscitada neste recurso consiste em determinar, na situação de cúmulo jurídico que abranja penas parcelares aplicadas pela prática de crimes integrados nas exceções previstas no artigo 7.º, n.º 1, alíneas a) a h) da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, e também por crimes não incluídos nessa norma, se o perdão de penas previsto no artigo 3.º, da mesma lei, deve incidir sobre a pena única fixada na condenação pelo concurso de todos os crimes ou antes deve recair sobre uma pena única a estabelecer em cúmulo jurídico das penas que não respeitam aos crimes excecionados.

No caso presente, o tribunal a quo decidiu que a pena a considerar para efeito de determinar se é ou não aplicável o perdão previsto no artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, corresponde à pena única imposta ao arguido AA, em cúmulo jurídico das penas fixadas pela totalidade dos crimes em concurso- não tendo discriminado os crimes abrangidos nas condenações e se integram ou não as exceções previstas no artigo 7.º, n.º 1, da mesma lei- e, uma vez que essa pena única é superior a 8 anos de prisão, concluiu que o condenado não beneficia de perdão de pena.
Insurge-se o recorrente contra o decidido, argumentando que, verificados os requisitos previstos no artigo 2.º, n.º 1, da aludida lei de Perdão de penas e amnistia de infrações, e atento estar excluída do perdão somente uma das condenações englobadas no cúmulo jurídico, por respeitar a crimes de sequestro e de roubo agravado (processo n.º 418/08.OPAMAI), ilícitos abrangidos no artigo 7.º, n.º 1, alíneas a), iv), e b), i) da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, deve ser desfeito o cúmulo jurídico e proceder-se a novo cúmulo de todas as condenações por crimes não excecionados na lei, recaindo sobre a pena única encontrada (necessariamente inferior a 8 anos de prisão atento o limite máximo da respetiva moldura abstrata) o perdão de 1 ano de prisão, após o que deve ser realizado novo cúmulo jurídico agora com a pena resultante do primeiro cúmulo que ficou depois de operado o perdão e as penas parcelares impostas pela prática dos crimes incluídos nas exceções previstas no citado artigo 7.º.
Vejamos.
Importa, desde logo, ter presente o âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, definido no seu artigo 2.º, e que, no concernente aos ilícitos penais, está limitado aos crimes praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade na data da prática dos factos.
Ademais, a decisão sobre a matéria controvertida decorre da interpretação das normas dos artigos 3.º, n.ºs 1 e 4, 7.º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08.
Estabelece o citado artigo 3.º, n.º 1, que é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, mais determina o n.º 4 do preceito legal que no caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
Por seu turno, o supramencionado artigo 7.º, n.º 1, prevê que não beneficiam de perdão os condenados pelos crimes discriminados nas alíneas a) a h), mais estatui o n.º 3 do preceito legal que a exclusão do perdão previsto nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º relativamente a outros crimes.
Perante as normas legais convocadas, extrai-se, a nosso ver, seguramente e com relevo para o caso concreto, quanto à aplicação do perdão de penas, verificados os pressupostos legais relativos à data da prática dos factos e à idade do agente (artigo 2.º), as ilações seguintes:
- são objeto de perdão as penas de prisão com duração igual ou inferior a 8 anos, ou seja, as penas de prisão impostas em medida superior a 8 anos não beneficiam de perdão;
- o perdão é de 1 ano, sendo da totalidade da pena quando a mesma for inferior a 1 ano;
- no caso de condenação pelo concurso de crimes o perdão incide sobre a pena única, ou seja, está excluída a aplicação de perdão sobre as penas parcelares que integram o cúmulo jurídico;
- na situação de coexistência de crimes abrangidos na previsão do artigo 7.º, n.º 1, e de outros ilícitos ali não incluídos, o condenado não deixa de beneficiar do perdão relativamente a estes últimos crimes.
Ora, no caso de subsistência de condenações por crimes que excluem a aplicação de perdão e por crimes que a admitem importa distinguir se existe sucessão de crimes ou concurso de crimes. Na primeira situação não ocorre dificuldade alguma na aplicação do perdão que incide unicamente sobre as penas impostas pelos crimes não excecionados, quer se trate de condenação por um crime único ou de concurso de crimes, recaindo nesta hipótese sobre a pena única correspondente. Quando exista concurso de crimes excludentes da aplicação de perdão e crimes não excecionados na lei, o condenado continua a beneficiar do perdão relativamente a estes últimos crimes, porém, uma vez que o perdão recai forçosamente sobre a pena única, também neste caso o perdão incide sobre a pena do concurso de crimes, apesar de englobar crimes incluídos na previsão do artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08. Contudo, nesta situação de cúmulo jurídico a medida do perdão não pode ser superior à pena parcelar que determina a aplicação do perdão, na hipótese de somente um dos crimes não excluir o perdão, assim como, na hipótese inversa de só um dos crimes estar excluído de perdão, a pena única remanescente após a aplicação do perdão não pode ser inferior à pena parcelar relativa àquele crime excluído de perdão[1].
A interpretação exposta é aquela que se afigura coerente com o sentido objetivo do texto legal e a conjugação das normas aplicáveis, revelando-se ainda compatível com as normas que regem o cúmulo jurídico das penas (artigos 77.º e 78.º do Código Penal).
Diversamente a interpretação proposta no recurso ignora os limites expressos na lei para a aplicação do perdão, mormente quanto à duração máxima da pena que é suscetível de perdão (cf. artigo 3.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08), e colide com as normas legais que regem a punição do concurso de crimes, quanto à imposição de cúmulo jurídico das penas parcelares correspondentes ao cometimento de cada um dos crimes em concurso (artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal). Aliás, o procedimento de realização sucessiva de um cúmulo jurídico de penas parcelares abrangidas pelo perdão e novo cúmulo posterior com a pena residual obtida do primeiro cúmulo e após a aplicação do perdão com as demais penas parcelares (excluídas de perdão), chegou a ser propugnado pela jurisprudência no âmbito de anteriores Leis de Amnistia, mas veio a ser superado por virtude de conduzir à realização de cúmulo jurídico que abrangia uma pena resultante de anterior cúmulo, isto é, uma pena única com pena(s) parcelar(es), contrariamente às regras legais impostas para a fixação da pena única, nos termos do artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, tendo-se estabelecido nova corrente jurisprudencial que se tornou maioritária no sentido de o perdão incidir sobre a pena única resultante do cúmulo jurídico da totalidade das penas parcelares, incluindo as penas não abrangidas pelo perdão, sendo efetuado um cúmulo parcial prévio somente para o efeito de cálculo da medida concreta do perdão a aplicar, por ser variável em função da pena em causa[2].
Assim sendo, não se reconhece a existência de fundamento legal para a realização das operações de cúmulo jurídico propugnadas no recurso.
Ademais, de acordo com a interpretação supra exposta, não merece reparo o despacho recorrido.
Na verdade, ocorre no caso concreto que o arguido AA se encontra em cumprimento da pena única de 10 (dez) anos e 5 (cinco) meses de prisão, imposta por Acórdão prolatado no processo n.º 441/07.2JAPRT, transitado em julgado em 21-05-2014, no qual se operou o cúmulo jurídico das penas fixadas nos mesmos autos e nos processos n.ºs 69/08.0PBGDM, 141/08.6PBGDM, 79/08.7PBGDM, 98/08.3PBGDM, 180/08.7PBGDM, 334/07.3PBGDM, 130/08.0PBGDM, 306/05.2PAGDM, 418/08.0PAMAI.
Uma vez que o perdão incide sobre a pena única, em caso de concurso de crimes, e atento que a duração da pena única imposta ao arguido AA é superior a 8 anos de prisão, não pode a mesma pena ser objeto de perdão, nos termos previstos no artigo 3.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08.
Assim, ainda que reunidos os pressupostos legais atinentes à data da prática dos crimes (todos anteriores a 19-06-2023) e à idade do arguido (nascido em .../.../1988), no momento do seu cometimento (os últimos crimes foram cometidos em 25-06-2008), ocorrendo também que o concurso de crimes inclui ilícitos não excecionados no artigo 7.º, n.º 1, da mesma lei, como efetivamente sucede (as condenações respeitam a crimes de condução sem habilitação legal, detenção ilegal de arma e ofensa à integridade física simples, salvo no processo n.º 418/08.OPAMAI, em que o arguido foi condenado pela prática de um crime de sequestro e um crime de roubo qualificado), não beneficia AA de perdão de 1 ano de prisão, ao abrigo do disposto no citado artigo 3.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, por não ser suscetível de perdão a pena única que lhe foi imposta.
Importa notar que a punição do concurso de crimes, efetivada de acordo com as regras estabelecidas no artigo 77.º do Código Penal, exprime a gravidade do comportamento global do arguido que, no caso, justificou a imposição de pena de prisão superior a 8 anos, constituindo essa gravidade fundamento para a não aplicação de perdão da pena única
Por conseguinte, impõe-se manter o despacho recorrido, o qual não viola o estabelecido no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 3.º, n.ºs 1 e 4, e 7.º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 38-A/2023, de 2/8, como invocado no recurso.
Nestes termos, improcede o recurso.
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III. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça
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Porto, 10 de janeiro de 2024
Maria dos Prazeres Silva
João Pedro Pereira Cardoso
Jorge Langweg
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[1] Vd. Pedro José Esteves de Brito, Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, Julgar Online, n.º 23, págs. 36 e 37. Vd. também Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de Porto, de 11-10-2023, proc. 31/21.7SPPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Vd. Artur Rodrigues da Costa, O CÚMULO JURÍDICO NA DOUTRINA E NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ, Julgar, n.º 21 – 2013, págs. 197 a 201, e jurisprudência aí citada. No âmbito da jurisprudência maioritária, vd. Acórdão do STJ de 25-01-1996, proc. 048794, em www.dgsi.pt, no domínio da Lei n.º 15/94, de 11 de maio. Nesta lei previa o artigo 8.º, n.º 1, alínea d), o perdão de Um ano em todas as penas de prisão, ou um sexto das penas de prisão até oito anos, ou um oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resulte mais favorável ao condenado.