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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DECLARAÇÕES DE PARTE
Sumário
I No caso de matérias relativas a direitos conexos com prédios, nomeadamente rústicos, em que são as mais das vezes exibidos registos (plantas e fotografias) aos depoentes, os princípios da imediação e da oralidade assumem particular relevância no momento da formação da convicção do julgador. II O Tribunal de 1ª instância tem igualmente uma posição privilegiado na apreciação da credibilidade dos depoentes, sem contudo tal significar que o Tribunal da Relação não possa formar a sua própria convicção. III A inspeção judicial, designadamente quando realizada no início da produção de prova, permite a constatação no local do objeto do litígio, o que propicia ao julgador de 1ª instância uma primeira perceção que o ajudará a interpretar a restante prova, começando ali o processo de formação da sua convicção. IV É a fundamentação da convicção do julgador que permite o pleno exercício do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto. V Cabe aos recorrentes apresentar a sua própria motivação, em confronto com aquela e fundamentando erro de apreciação ou de julgamento, de modo a exercer verdadeiramente o seu direito de impugnação da matéria de facto. VI Não alcançam a sua pretensão se não invalidam o juízo do julgador, coerente, lógico e fundamentado na concatenação de todas as provas (sujeitas a livre apreciação) apresentadas.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
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I RELATÓRIO (seguindo o elaborado em 1ª instância).
AA, BB, CC e DD, na qualidade de herdeiros da “Herança Ilíquida e Indivisa, Aberta Por Óbito de EE”, propuseram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra os Réus FF e GG, formulando os seguintes pedidos (que se transcrevem):
I - declarar-se que com o decesso de EE, sucederam-lhe como únicos e universais herdeiros AA, sua esposa e aqui legal representante da A., e seus filhos BB, CC, e, DD;
II – declarar-se que a A. é dona e legítima proprietária do prédio rústico melhor identificado nos artºs 16 e 17 desta peça processual e nos doc.s 2 e 3 que a acompanham;
III – condenar-se os RR. a reconhecerem esse direito de propriedade da A. e a absterem-se de o perturbar ou de o pôr em causa por qualquer forma;
IV – condenar-se os RR. a reporem o caminho do prédio da A. no estado em que o mesmo se encontrava antes da destruição levada a cabo por eles (RR.) e a restituir- lhe toda a área por si ocupada e que faz(em) parte integrante do prédio da A.;
V – condenar-se os RR. a realizar, no prazo de cinco dias úteis e a expensas suas, todas as obras que se mostrem necessárias à reposição do caminho e do terreno tal qual se encontrava antes do saibramento que os RR. levaram a cabo na sua propriedade, restituindo-se, mediante integração, quer a área do caminho quer área do prédio, ambas, da A., ao seu rústico, tal qual ocorria antes do acto ilícito dos RR.;
VI – condenar-se os RR. a pagar ainda a título de sanção compulsória a quantia de setenta e cinco euros por cada dia de atraso no cumprimento de todas as obras que se mostrem necessárias à reposição do caminho e do terreno da A. tal qual se encontrava antes do saibramento que os RR. levaram a cabo, sendo metade para a A. e metade para o Estado, tudo nos termos do artº 829-A do C.Civil;
VII – condenar-se os RR. a pagar à A., na pessoa da sua legal representante, a quantia de dez mil (10.000€), a título de danos não patrimoniais sofridos pelo falecido e seus herdeiros, acrescida de juros legais (mora) contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento,
VIII – condenar-se os RR. a pagar à A., na pessoa da sua legal representante, pela privação do acesso ao seu prédio pelo caminho que destruíram e cujo terreno integraram no seu prédio, desde 2018 e até esta data, a destruição de um pessegueiro, a quantia de dez mil e quinhentos euros (10.500€), a título de danos patrimoniais sofridos pelo falecido e seus herdeiros, acrescida de juros legais (mora) contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento,
IX – condenar-se os RR a pagar a pagar à A., na pessoa da sua legal Representante, a quantia que vier ser apurada / liquidada em sede de execução de sentença pelos prejuízos / danos patrimoniais ainda não contabilizados e sofridos pela A., e/ou os herdeiros do falecido, com a privação do acesso ao seu prédio pelo caminho que os RR. destruíram, desde a data da entrada desta acção em Juízo e até que seja proferida d. Sentença condenatória transitada em julgado.
Invocaram, para tal, que o falecido EE era proprietário do prédio rústico sito no lugar ..., composto de vinha, com a área de 4000m², que confronta do Norte com Caminho, Sul com HH, Nascente com II e Poente com JJ, inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... ...05 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...21, tendo tal prédio sido integrado no acervo hereditário dos bens deixados por aquele por morte, e dos quais os Autores são herdeiros. Mais alegaram que tal terreno foi por aquele EE adquirido em 1989, data em que celebrou a escritura de compra e venda, tendo, a partir dessa data, passado a granjear e cultivar o mesmo à vista de todos e sem qualquer oposição; e que tal prédio confinava, nas suas confrontações poente e sul, com prédios rústicos dos Réus.
Alegaram, ainda, que, em meados de 2018, os Réus rotearam os seus prédios acima assinalados, e que, ao fazê-lo, incidiram tais operações sobre uma faixa de terreno do prédio da herança Autora, derrubando e destruindo os marcos delimitativos das propriedades e entrando pelo terreno da Autora adentro, numa área total de 453m2. Ao fazê-lo, destruíram um pessegueiro existente no terreno da Autora e um caminho existente em tal área que percorria toda a extensão do terreno dos Autores a Poente, integrando-o nos prédios dos Réus, que passaram desde o roteamento a cultivar tal parcela de terreno como se ela lhes pertencesse.
Invocaram que tal circunstância gerou a privação do uso sobre tal caminho, inviabilizando que os trabalhos de cultivo do prédio dos Autores se possam realizar pelo caminho destruído; e que gerou a perda dos frutos produzidos pelo pessegueiro acima indicado, num montante estimado de € 500,00 contabilizados desde 2018, acrescida dos danos não patrimoniais derivados da perturbação do estado emocional do falecido EE e dos Autores, que devem ser igualmente ressarcidos.
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Em sede de contestação, os Réus esclareceram que são donos de dois prédios rústicos, os quais têm inscrição de aquisição a seu favor, sendo um na proporção de metade e outro na totalidade, pelas Ap. ...4 de 27/08/2001 e Ap. ...82 de 11/02/2010, respetivamente, sendo que ambos os prédios, conjuntamente, confrontam com o terreno dos Autores. Mais esclareceram que realizaram os sobreditos trabalhos de saibramento e roteamento em 2012, e que os mesmos sempre se contiveram dentro dos limites dos seus prédios, nunca tendo, com esses trabalhos, invadido o terreno dos Autores, continuando a existir no terreno os marcos que delimitam as propriedades em crise.
Concluíram peticionando a condenação dos Autores como litigantes de má-fé.
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Os Autores contraditaram o pedido de condenação em litigância de má-fé pelo requerimento de 13-10-2022, concluindo pela sua inexistência.
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A falta de legitimidade ativa da lide foi sanada pelo despacho de 25-01-2023.
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Após convite, os Autores aperfeiçoaram a petição inicial pelo requerimento de 13-...23, descrevendo as características da faixa de terreno em discussão nos autos.
Os Réus exerceram o competente contraditório em 16-02-2023.
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Foi dispensada a realização de audiência prévia. Foi fixado à causa o valor de € 30.000,01. Foi elaborada o despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
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Foi realizada audiência de julgamento (que incluiu realização de inspeção ao local), tendo sido proferida sentença que decidiu:
“Pelo exposto, declaro os Autores como únicos e universais herdeiros de EE.
No mais, julgo a ação totalmente improcedente e absolvo os Réus dos pedidos.
Absolvo ainda os Autores do pedido de condenação em litigância de má-fé.”
Mais atribuiu o pagamento de custas aos Autores.
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Inconformados, os Autores (A.A.) apresentaram recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)
“1ª O presente recurso tem como objecto a d. Sentença proferida nos autos supra id., através da qual o Tribunal a quo decidiu julgar a acção improcedente, absolvendo os RR. dos vários pedidos ( II a IX ) contra eles formulados.
2ª Com o respeito devido, a d. Decisão recorrida não é tida pela recorrente como uma “decisão justa“, daí o seu inconformismo com a Mesma, inconformismo que contende directamente com a decisão da matéria de facto, a qual por esta via se impugna, a que acresce um errada interpretação e aplicação do direito ao caso concreto.
3ª Por questão de economia processual, dão-se aqui por reproduzidos os factos dados como provados e não provados nos presentes autos.
4ª Na sua p.i. a A., pedindo a condenação dos RR., formulou os seguintes pedidos:
“ I - declarar-se que com o decesso de EE, sucederam-lhe como únicos e universais herdeiros AA, sua esposa e aqui legal representante da A., e seus filhos BB, CC, e, DD;
II – declarar-se que a A. é dona e legítima proprietária do prédio rústico melhor identificado nos artºs 16 e 17 desta peça processual e nos doc.s 2 e 3 que a acompanham;
III – condenar-se os RR. a reconhecerem esse direito de propriedade da A. e a absterem-se de o perturbar ou de o pôr em causa por qualquer forma;
IV – condenar-se os RR. a reporem o caminho do prédio da A. no estado em que o mesmo se encontrava antes da destruição levada a cabo por eles (RR.) e a restituir- lhe toda a área por si ocupada e que faz(em) parte integrante do prédio da A.;
V – condenar-se os RR. a realizar, no prazo de cinco dias úteis e a expensas suas, todas as obras que se mostrem necessárias à reposição do caminho e do terreno tal qual se encontrava antes do saibramento que os RR. levaram a cabo na sua propriedade, restituindo-se, mediante integração, quer a área do caminho quer área do prédio, ambas, da A., ao seu rústico, tal qual ocorria antes do acto ilícito dos RR.;
VI – condenar-se os RR. a pagar ainda a título de sanção compulsória a quantia de setenta e cinco euros por cada dia de atraso no cumprimento de todas as obras que se mostrem necessárias à reposição do caminho e do terreno da A. tal qual se encontrava antes do saibramento que os RR. levaram a cabo, sendo metade para a A. e metade para o Estado, tudo nos termos do artº 829-A do C.Civil;
VII – condenar-se os RR. a pagar à A., na pessoa da sua legal representante, a quantia de dez mil (10.000€), a título de danos não patrimoniais sofridos pelo falecido e seus herdeiros, acrescida de juros legais (mora) contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento,
VIII – condenar-se os RR. a pagar à A., na pessoa da sua legal representante, pela privação do acesso ao seu prédio pelo caminho que destruíram e cujo terreno integraram no seu prédio, desde 2018 e até esta data, a destruição de um pessegueiro, a quantia de dez mil e quinhentos euros (10.500€), a título de danos patrimoniais sofridos pelo falecido e seus herdeiros, acrescida de juros legais (mora) contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento,
IX – condenar-se os RR a pagar a pagar à A., na pessoa da sua legal Representante, a quantia que vier ser apurada / liquidada em sede de execução de sentença pelos prejuízos / danos patrimoniais ainda não contabilizados e sofridos pela A., e/ou os herdeiros do falecido, com a privação do acesso ao seu prédio pelo caminho que os RR. destruíram, desde a data da entrada desta acção em Juízo e até que seja proferida d. Sentença condenatória transitada em julgado “ – sic.
5ª Entende a A. que a decisão do Tribunal a quo relativamente ao primeiro pedido era óbvia, mas não se conforma com a improcedência dos demais pedidos formulados de II a IX na sua p.i., o que é o motivo do presente recurso.
6ª E isto porque, conjugando o teor dos factos provados com o teor dos factos não provados que de seguida se assinalam e com cuja decisão do Tribunal a quo, quanto a estes últimos, a recorrente não concorda, impunha-se, a seu ver, a procedência desses mesmos pedidos.
7ª A recorrente entende que os factos tidos por não provados pelo Tribunal a quo sob as letras A), B), C), D), E), F), G) e H), deveriam ter sido dados como provados, os quais, a tê-lo sido, conjugados com os factos dados como provados, levariam à procedência da acção, pelo que ora se pugna.
8ª Importa pois referir aqui que, a recorrente entende que esses factos foram incorrectamente julgados.
9ª O entendimento do A. leva-nos pois à impugnação da matéria de facto nos termos do artº 640 do CPC.
10ª Na verdade, o teor dos depoimentos gravados e supra transcritos que aqui, por questão de economia processual, se dão totalmente por reproduzidos, para todos os efeitos legais, impunham e impõem decisão diversa.
11ª Estando já provado o direito de propriedade da A. sobre o seu prédio – factos provados nºs 2, 3, 4 e 5 – é também incontestável que, após 2009, o falecido EE, acometido de doença oncológica, viu-se obrigado a ir viver para ....
12ª Como supra se deixou dito, há uma expressão popular, na zona de ..., do seguinte teor: “ Os prédios querem ver os olhos do dono “. E não deixa de ser verdade. É que, quando o dono não está por perto, não raras vezes ocorrem atropelos ao seu direito de propriedade. E, in casu, foi isso que ocorreu.
13ª Efectivamente, tendo o Sr EE deixado a freguesia ..., sendo obrigado a ir morar para ..., estando toda a família lá a residir e focados na doença dele, o prédio, pese embora não ter sido votado ao abandono, passou a ser objecto de olhares de terceiros, in casu dos RR., que, a quando do roteamento do seu prédio transpuseram os seus limites e invadiram o prédio alheio, o prédio aqui em causa, propriedade da A..
14ª Resulta da prova produzida e acima transcrita, cujo teor, por questão de economia processual, se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, que efectivamente foi isso que aconteceu, escudando-se o R. marido no facto de no dia do roteamento não ter lá estado, reconhecendo ainda que “ tinha sido um erro, mas que se considerava uma pessoa honesta e que ia reparar “.
15ª Ora, apesar dos proprietários confinantes poderem realizar no seu prédio as obras / benfeitorias que entenderem e desde que observem os limites do seu prédio, a verdade é, os mesmos são obrigados a indemnizar todos aqueles que com essas obras / benfeitorias venham a ser prejudicados, nos termos da responsabilidade civil extracontratual – artº 483 do CCivil, que aqui se invoca para legais efeitos.
16ª É inquestionável que, o proprietário goza, de modo pleno e exclusivo, do uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas – artº 1305 do CCivil, que aqui se invoca para legais efeitos, e, que “ a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico “ – artº 1344, nº 1, do CCivil, que aqui se invoca para legais efeitos.
17ª Porém, quando o dono de um prédio procede a qualquer tipo de intervenção no mesmo e com esta sua acção viola o direito de propriedade do vizinho, aquele está obrigado a repor a situação que previamente à sua acção existia bem como a indemnizar o vizinho de todos os prejuízos decorrentes da sua acção.
18ª Ora, ainda que inexistisse mais prova, o que in casu não ocorre, a verdade é que ninguém enviaria uma carta, com o teor da que consta dos autos – facto provado nº 15 – e que RR. receberam – facto provado nº 16 – se, efectivamente, o seu direito de propriedade não tivesse sido violado.
19ª Daí que, perante a resposta do Réu, dada a instância do Mandatário da A., de que não respondeu à carta porque achou “ que aquilo que (…) era ridículo “, faz todo o sentido a observação da Mª Juiz ( “ Mas repare, eu se recebo em casa uma carta a dizerem que eu tenho algum problema com o meu vizinho, a primeira coisa que eu vou fazer é falar com o meu vizinho para perceber o que se passa e tentar resolver a bem“ ), e, é surpreendente a resposta, aliás contraditória tomando por referência o predito pelo Réu, quando responde: “ Oh Srª Drª, mas isso, pronto eu não falei. Isso aí vou dizer que não falei, porque pronto, pela vida que tinha vi a carta e essa coisa toda eu vi a carta mas nunca mais me lembrei da carta ”.
20ª O que essa situação exigia era a actuação de um bonus pater familiae, o que levaria o Réu a dar uma resposta a essa carta, nem que fosse para dizer que o teor da mesma não era verdadeiro ou outra coisa qualquer, o que não ocorreu.
21ª Atento o supra exposto / transcrito, que aqui para os devidos efeitos se reitera dando-se na íntegra por reproduzido, constata-se que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, ao julgar como não provados os factos constantes das letras ...), B), C), D), E), F), G) e H), os quais, com o respeito devido, devem ser dados como factos provados pelo Tribunal ad quem, com a redacção que esses factos têm na d. Sentença recorrida, atento o teor dos depoimentos das testemunhas supra referidas e da demais prova existente nos autos e nesse sentido, sendo que no facto sob a letra ...) deve constar o ano de “2012”, atento o facto provado sob o nº 9.
22ª E, a ser assim, impõe-se condenar os RR. nos pedidos formulados sob os números romanos II a IX.
23ª In casu, ao contrário do d. decidido pelo Tribunal a quo, estão preenchidos os requisitos para que tal ocorra, mormente através do instituto da responsabilidade civil extracontratual cujos preceitos do CCivil foram assim violados.
24ª O direito de propriedade da A. foi violado pelos RR., os danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos merecem a tutela do direito, existem, e alguns são ainda indeterminados, daí o ter-se relegado o valor destes últimos para liquidação.
25ª Afigura-se-nos pois relevante verificar ou reapreciar as bases e os fundamentos da convicção do Tribunal a quo, devendo para o efeito serem reapreciadas as provas produzidas pelo Tribunal ad quem, única forma possível de evitar a injustiça que da d. Decisão recorrida resulta.
26ª Este pedido, de análise da prova, justifica-o a aqui Recorrente com a procura da verdade que deve nortear o Tribunal de recurso, e que consta, do Ac. RP de 29/05/2012, Proc. 1292/08.2TBLSD.P1, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/9061f5b2bf70f92880257a2400 4ec080?OpenDocument que, como mera indicação, aqui se transcreve:
“ (…) as Relações têm “a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos ou fazer incidir as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição”; e quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, “conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição” [assim, Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2008, pgs. 279 a 286 e in “Reforma dos Recursos em Processo Civil”, Revista Julgar, nº 4, Janeiro-Abril/2008, pgs. 69 a 76; idem, Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 2008, pg. 228, e, i. a., Acórdãos do STJ de 01/07/2008, proc. 08A191, de 25/11/2008, proc. 08A3334, de 12/03/2009, proc. 08B3684, de 28/05/2009, proc. 4303/05.0TBTVD.S1 e de 01/06/2010, proc. 3003/04.2TVLSB.L1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj . “ – sic.
27ª Espera assim a Recorrente que o Tribunal ad quem com a reapreciação da prova verifique, efectivamente, o erro de julgamento ocorrido, retirando, dos autos, a correcta decisão a proferir.
28ª Face ao exposto, impunha-se / impõe-se uma Decisão diferente nos presentes autos, o que ora se requer.
29ª Na verdade, a d. Sentença de que ora se recorre ao não tomar em consideração determinados aspectos essenciais, não só pela falta de rigor analítico ( como deve ser apanágio de toda a boa Decisão ), como pela clara violação de Lei, ao absolver os RR., quanto aos pedidos II a IX, não concluiu de forma coerente com vista à concretização da Justiça.
30ª Assim sendo, face à violação clara do instituto e dos preceitos supra referidos/invocados, deve ser revogada a d. Decisão recorrida e substituída por outra que julgue procedente a acção, condenando os RR. nos pedidos II a IX formulados da p.i., tudo com inerentes consequências legais, assim fazendo V.Exas JUSTIÇA!”
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Os Réus (R.R.) apresentaram contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.
Decorre da conjugação do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, 609º, n.º 1, 635º, n.º 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusõesdecidir:
-se deve ser reapreciada e alterada a matéria de facto;
-na procedência dessa pretensão, se deve ser proferida decisão integralmente condenatória.
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III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria:
“1. EE faleceu no dia .../.../2021 no estado de casado com a Autora AA.
2. Por escritura de habilitação de herdeiros datada de 13-05-2021, lavrada no Cartório Notarial de KK, em ..., foram indicados como únicos e universais herdeiros do referido EE os Autores AA, BB, CC e DD.
3. EE encontra-se registado como proprietário, por aquisição, do prédio rústico, sito no lugar ..., composto de vinha, com a área de 4000m², que confronta do Norte com Caminho, Sul com HH, Nascente com II e Poente com JJ, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...21, como resulta da apresentação n.º ..., de 15-05-2989, e inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... ...05.
4. O referido prédio adveio à titularidade e posse de EE e dos Autores por escritura de compra e venda efetuada no Cartório Notarial ..., no dia 14 de Fevereiro de 1989;
5. Tendo o referido EE e dos Autores, a partir dessa data, passado a usar o prédio mencionado no ponto 3 à vista de todos, sem interrupção e sem oposição de ninguém, granjeando-o e cultivando-o (i. é, fazendo a poda, a escava, a erguida, sulfatando, tudo em relação às videiras, cortando as uvas, apanhando a fruta que o prédio produz, podando as oliveiras, limpando o olival, apanhando a azeitona, etc).
6. Os Réus encontram-se registados como proprietários, por partilha, de 1/2 do prédio rústico sito em ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz no artigo ...08, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...13 ..., com registo de aquisição a seu favor pela apresentação n.º ...4 de 27/08/2001.
7. Por escritura publicada datada de 09-02-2010, LL declarou vender e o Réu marido declarou comprar o prédio rústico sito no ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz no artigo ...07 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...55... ....
8. O prédio referido no ponto 3 confronta a Sul e a Poente com os dois prédios descritos nos pontos anteriores, considerados no seu conjunto.
9. Em data não concretamente apurada, mas durante o ano de 2012, os Réus rotearam o seu prédio rústico, fazendo-o a poente;
10. O que fizeram destruindo um caminho que ali existia;
11. E do qual o falecido EE e sua esposa se serviam de e para o seu prédio;
12. Os Réus plantaram, na área trabalhada, carreiras de videiras, das quais passaram a cuidar.
13. À data da realização dos trabalhos dos Réus, o falecido EE e os Autores não residiam em ....
14. Após a operação de saibramento mencionada no ponto 9, os Autores contactaram os Réus a respeito da mesma.
15. A Autora AA elaborou e enviou ao Réu marido uma carta registada com aviso de receção, datada de 19 de novembro de 2019, com os seguintes dizeres:
Exmos. Srs.
Vimos por este meio e depois de vários contactos nesse sentido, solicitar que se reverta com urgência, o “erro” (cometido por vocês) na alteração dos limites da sua propriedade durante o roteamento da mesma. Erro esse, ocorrido na nossa ausência (se não o mesmo não teria acontecido) com o qual fomos confrontados aquando da nossa ida a ....
Assim, agradecemos a retirada imediata das videiras colocadas na nossa propriedade, bem como a colocação dos marcos no devido local!
Tencionamos que esta situação, que já se vem a arrastar a alguns anos e sem qualquer tipo de intervenção da sua parte, se resolva o mais rápido possível.
Assim agradecemos a resolução da mesma, nos próximos dois meses a contar da data da receção desta carta. Atentamente
AA
16. Os Réus receberam a referida carta.
17. Em face das operações mencionadas no ponto 9, os Autores estão impossibilitados de aceder ao seu prédio através do caminho anteriormente existente.
18. Em face das referidas operações, quer o falecido EE, quer os Autores, ficaram e estão muito aborrecidos, desgostosos e chateados, o que lhes causou e causa desgaste emocional e nervosismo.”
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Resultaram ainda como não provados os seguintes factos:
A. A operação de roteamento mencionada no ponto 9 foi realizada no ano de 2018 e feita para além dos limites dos prédios mencionados nos pontos 6 e 7;
B. Com a operação de roteamento os Réus invadiram o terreno mencionado no ponto 3, em toda a sua extensão a Poente, do qual fazia parte o caminho mencionado no ponto 10.
C. A faixa de terreno em crise tinha uma área de 453m2.
D. Com o roteamento/saibramento, os Réus derrubaram e destruíram os marcos ali existentes, os quais delimitavam a propriedade da Autores e Réus.
E. Com os referidos trabalhos, os Réus integraram nos seus prédios quer a área do caminho dos Autores, quer área do próprio prédio dos Autores.
F. Na área mencionada no ponto 10 existia um pessegueiro com produção anual estimado de cinco dezenas de pêssegos;
G. O qual foi derrubado pelos Réus com o saibramento / roteamento;
H. E que causou um prejuízo estimado de € 500,00 desde o ano de 2018 até hoje, por impossibilidade de colher os seus frutos.
I. Atualmente ainda existem marcos a delimitar os prédios de Autores e Réus.”
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IV MÉRITO DO RECURSO.
-IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.
Os recorrentes manifestam a sua discordância contra os factos não provados constantes das alíneas A), B), C), D), E), F), G) e H). Pretendem que passem a constar como matéria provada, corrigindo ainda a menção ao ano feita na A) para 2012.
Pretendem impugnar essa matéria de facto.
Cumpre começar por enunciar os requisitos de ordem formal que permitem a este Tribunal apreciar a impugnação da matéria de facto, para então se verificar se os recorrentes os cumpriram, nomeadamente se indicam os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; se especificam na motivação os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; fundando-se a impugnação em parte na prova gravada, se indicam na motivação as passagens da gravação relevantes; apreciando criticamente os meios de prova, se expressam na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; tudo conforme resulta do disposto no art.º 640º, nºs. 1 e 2, do Código Processo Civil (C.P.C.) e vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, págs. 155 e 156.
Conforme Acs. do STJ, designadamente de 29/10/2015, 03/05/2016 e de 21/03/2019 (publicados em www.dgsi.pt, como todos a que nos vamos referir sem indicação de outra fonte), podemos distinguir nestas exigências um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação, e um ónus secundário tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. No primeiro caso cabem as exigências de concretização dos pontos de factos que se consideram incorretamente julgados, especificação dos concretos meios de prova que sustentam a decisão errada e/ou diversa (sendo que o Tribunal pode considerar esses e, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, apreciando livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão, conforme art.º 607º, n.º 5 do C.P.C.), e a indicação do sentido em que se deveria ter julgado a matéria de facto, na posição do recorrente, ou da decisão a proferir (art.º 640º, n.º 1, a), b) e c)). No segundo caso cabe a exigência de indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver reapreciados (a), n.º 2, do art.º 640º). Em ambos os casos a cominação para a falta de cumprimento das exigências é a rejeição imediata do recurso (cfr. a dita disposição), sem possibilidade de prévia oportunidade de aperfeiçoamento da peça. Em ambos os casos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem orientar a decisão de rejeição (já que a parte ficará prejudicada ao não ver apreciado o seu recurso por motivos de ordem formal). A “nuance” entre os dois casos decorrerá do bom senso com que se analisam as exigências, as quais antes de mais têm que ver com o facto de possibilitar à parte contrária um efetivo exercício do contraditório para além de serem decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso. Se as primeiras exigências são imprescindíveis a esse exercício e orientam também o Tribunal de recurso relativamente ao que se lhe pretende sujeitar, a segunda exigência, tendo em vista a melhor orientação para esse efeito, ainda que seja cumprida de forma imprecisa, caso a parte contrária tendo apreendido convenientemente o alcance do visado, e o Tribunal esteja habilitado ao pretendido reexame, não imporá a rejeição do recurso, mas antes o seu aproveitamento. Desde modo se dará prevalência ao mérito sobre a forma, princípio enformador do atual C.P.C..
Além disso, a sanção de rejeição do recurso apenas poderá abarcar o segmento relativo à impugnação da matéria de facto e, dentro deste segmento, apenas poderá abranger os pontos relativamente aos quais tenham sido desrespeitadas as referidas regras.
Por último, e continuando a seguir a orientação do nosso STJ, face ao que se pretende assegurar com cada um dos ónus, a especificação dos pontos concretos de facto deve constar das conclusões (arts.º 635º, n.º 4, 640º, n.º 1, a), e 639º, n.º 1, do C.P.C.). No mais (meios de prova concretos e indicação das passagens das gravações) basta que constem do corpo das alegações.
Em 17/10/2023 foi proferido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência pelo STJ (n.º 12/2023, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, págs. 44 a 65) no sentido de se interpretar a exigência da indicação do sentido pretendido prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 640º, na ótica de que o recorrente não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.
Trata-se da consagração de uma corrente do STJ apologista de um menor rigor formal exigido no cumprimento dos ónus formais impostos no art.º 640º do C.P.C., promotora da verdade material em detrimento da observação de formalidades, de menor relevância, desde que não seja postergado o exercício cabal do contraditório, bem como seja apreendida em termos claros pelo julgador a pretensão recursiva, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, instrumentais em relação a cada situação concreta.
Nesta senda, já vimos que resulta clara a indicação da discordância, nomeadamente a versão pretendida.
Os recorrentes apelam às declarações de parte da cabeça de casal AA, às declarações de parte de CC e de DD, e às declarações de parte do R. FF (no sentido do seu depoimento ser valorado negativamente), bem como à carta que lhe foi enviada e mencionada no ponto 15. Aludem ainda ao depoimento da testemunha MM.
Também situam e transcrevem as partes dos depoimentos que entendem serem relevantes, tendo em vista a sua pretensão.
Porém não indicam concretamente os meios de prova a reanalisar relativamente a cada um dos factos impugnados, indicando nessa mesma ordem de relação as passagens das gravações determinantes.
Os recorrentes impugnaram em bloco a matéria não provada, excetuada a última alínea -I).
Como concluiu a relatora do presente, no acórdão proferido no processo 5201/17...., “I Pode ser aceite uma impugnação da matéria de facto “em bloco” quando está em causa uma determinada ocorrência, facilmente se compreendendo o objetivo da recorrente, desde que a parte contrária também tenha atingido esse alcance e por isso se possa considerar salvaguardado o princípio do contraditório.”
É o caso: está em causa a sua versão quanto à parte do terreno de que alegadamente os R.R. os privaram, e respetivo prejuízo. Os R.R./recorridos defenderam-se e não suscitaram esta questão, por isso aceitamos a reapreciação da impugnação feita nestes termos.
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A propósito da reapreciação da matéria de facto, dispõe o art.º 662º, n.º 1, do C.P.C. que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” A Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos que resultam do n.º 5 do art.º 607º do C.P.C.. Assim, após análise conjugada de todos os meios de prova produzidos, a Relação deve proceder à reapreciação da prova, de acordo com a própria convicção que sobre eles forma, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito material. A propósito refere também Abrantes Geraldes na mesma obra, pág. 273, "(…) a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”. E na pág. 274 (…) “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daquelas que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
Porém, não está em causa proceder-se a novo e global julgamento, não sendo exigido nem permitido à Relação que de motu proprio se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles se extrair uma decisão inteiramente nova (pág. 279). Assim a Relação irá examinar a decisão da primeira instância e seus fundamentos, analisar as provas gravadas e proceder ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, pronunciando-se apenas quanto aos concretos pontos impugnados.
O Tribunal da Relação, nesta sua função de reapreciação da decisão de facto, não opera apenas em casos de erros manifestos de apreciação, mas também pode formar uma convicção diversa da 1ª instância sobre os pontos de facto impugnados, o que deve levar a nova decisão que contenha esse resultado, fundamentadamente, ou seja, com base bastante para alterar aquela que foi a convicção (errada) do juiz de 1ª instância (erro de julgamento - error in iudicando, concretamente error facti).
Partindo do princípio do dispositivo, deve o recorrente indicar os meios de prova que no seu entender deviam ter feito o Tribunal a quo trilhar caminho diverso no seu juízo probatório; contudo, o Tribunal ad quem não está limitado a essa indicação – que será seu ponto de partida e pode até ser o bastante- podendo e devendo se tal se impuser (além dos demais poderes conferidos em termos de retorno à primeira instância ou de oficiosidade) socorrer-se de todos os meios de prova produzidos nos autos para confirmar ou rebater a argumentação do recorrente.
O Ac. desta Relação de 29-10-2020 (relator Alcides Rodrigues) sintetiza os princípios a ter em consideração na atuação do Tribunal de recurso, recorrendo à doutrina -Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017 – 4ª ed., Almedina, pp. 271/300, Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova testemunhal”, 2017 – reimpressão, Almedina, pp. 384 a 396; Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Ac. do STJ de 24/09/2013, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, Outubro/dezembro 2013, p. 33 e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2015, Almedina, pp. 462 a 469- e jurisprudência -Acs. do STJ de 7/09/2017 (relator Tomé Gomes), de 24/09/2013 (relator Azevedo Ramos), de 03/11/2009 (relator Moreira Alves) e de 01/07/2010 (relator Bettencourt de Faria); Acs. da RG de 11/07/2017 (relatora Maria João Matos. Aqui 2ª adjunta), de 14/06/2017 (relator Pedro Damião e Cunha) e de 02/11/2017 (relator António Barroca Penha), todos consultáveis em www.dgsi.pt.- desta forma:
- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente;
- sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento;
- nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes);
- a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância;
- a intervenção da Relação não se pode limitar à correção de erros manifestos de apreciação da matéria de facto, sendo também insuficiente a menção a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas;
- ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que está também sujeita, se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão;
- se a decisão factual do tribunal da 1ª instância se basear numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção -obtida com benefício da imediação e oralidade- apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Voltando ao art.º 607º, n.º 5, do C.P.C., este dispõe que, em princípio, o Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os Juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, com ressalva das situações em que a lei dispuser, diferentemente: quando não dispense a exigência de uma determinada formalidade especial, quando os factos só possam ser provados por documento ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
A prova visa o convencimento do juiz sobre a realidade dos factos –art.º 341º do C.C.. Essa prova não é, não tem de ser, a prova absoluta.
Diz Vaz Serra (“Provas – Direito Probatório Material”, BMJ 110/82 e 171) que “As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”. É a afirmação da corrente probabilística, seguida pela maior parte da doutrina que, opondo-se à corrente dogmática, considera não exigível mais do que um elevado grau de probabilidade para que se considere provado o facto. Mas terá que haver sempre um grau de convicção indispensável e suficiente que justifique a decisão, que não pode ser, de modo algum, arbitrária, funcionando aquela justificação (fundamentação) como base de compreensão do processo lógico e convincente da sua formação (cfr. entre outros o Ac. da Rel. do Porto de 23/9/2021, relator Filipe Caroço).
O tribunal aprecia livremente os meios de prova e é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada meio de prova produzido. Em cada caso o tribunal é livre para considerar suficiente a prova testemunhal produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório (ou seja, com maior capacidade para convencer o juiz da probabilidade do facto em discussão). Coisa diferente é a questão do standard ou padrão de prova, a qual já tem que ver com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus – no sentido de que a lei manda que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova (cfr. arts.º 346.º do Código Civil -C.C.- e 414º do C.P.C.).
Diz-nos Luís Filipe Pires de Sousa (“Prova testemunhal”, 2014, pág. 384) que “O standard de prova deve operar como uma pauta móvel que tem de ser permanentemente concretizada ao ser aplicada ao caso concreto. Cremos que no nosso ordenamento jurídico será, pois, de aplicar, o standard da probabilidade prevalecente…Assim, no vulgar caso de cobrança de um crédito decorrente de compra e venda, na ação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação ou na ação em que se discuta o cumprimento de um contrato de empreitada operará o standard da probabilidade lógica prevalecente desde que seja ultrapassado o limite mínimo de probabilidade(> ou = 0,51)…”.
Quanto a esta matéria, no Ac. desta Relação de 7/12/2023 (relator Gonçalo Oliveira, e 1ª adjunta a aqui 2ª adjunta), foi elucidativamente feita a apreciação dessa posição face ao nosso ordenamento jurídico.
Temos para nós que, como já decidimos no processo n.º 2568/18.6T8VRL.G1 (ac. de 3/12/2020) e no processo n.º 967/19.5T8VRL.G1 (ac. de 8/10/2020), ambos da relatora do presente e não publicados, “O grau de probabilidade exigido para que se dê como verificada determinada realidade de facto é de elevada probabilidade.”
A produção da prova visa demonstrar a realidade dos factos relevantes para o processo. Existem regras para a balizar, de direito probatório material, de natureza substantiva, desde logo a regular a admissibilidade e força probatória de cada meio de prova (as regras sobre as provas e os meios de prova estão previstos no C.C. nos arts.º 341º a 396º). Existem igualmente regras de direito probatório formal a regular os procedimentos probatórios (no processo civil o regime aplicável à instrução do processo consta dos arts.º 410º a 526º).Veja-se a propósito desta temática o Ac. da Rel. do Porto de 26/10/2020, nomeadamente sobre a prova de factos essenciais e instrumentais (relatora Eugénia Cunha).
O direito à prova encontra-se consagrado constitucionalmente no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa a que nos referimos, emanando do direito geral à proteção jurídica e de acesso aos tribunais.
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Isto posto, impõe-se a apreciação do caso concreto.
Ora, o que se disse supra a propósito da reapreciação da prova produzida, é importante nesta nossa análise, porque o que dali decorre é que compete aos recorrentes apresentar um juízo crítico e sustentado relativamente à motivação apresentada pelo Tribunal recorrido (e em confronto com a análise do julgador).
A nosso ver os recorrentes “falharam” nesta indicação, o que fragiliza a sua impugnação da matéria de facto.
Lidas as alegações, e com exceção da leitura que fazem do recebimento da carta que vem indicadas nos pontos 15 e 16 dos factos provados, os recorrentes limitam-se a destacar segmentos das declarações de parte, mas nada dizem quanto à implicação que isso tem na formulação de uma premissa que implique que a sentença padeça de erro de apreciação ou de julgamento no que respeita àquela factualidade. Ou seja, os recorrentes não motivam fundamentadamente a sua pretensão. E a análise da prova não se compadece com uma mera descrição da mesma. Não está em causa apenas o que as testemunhas ou as partes disseram, mas a credibilidade e a consistência com que o fizeram, tendente a demonstrar tais factos.
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Castro Mendes diz que “O princípio da prova livre, ou de livre apreciação ou avaliação da prova, é aquele segundo o qual a lei não deve fixar as conclusões que o juiz tirará dos diversos meios de prova; a relevância e força probatória destes será aquela que tiverem naturalmente no espírito do julgador” (“Direito Processual Civil III”, 1980, pág. 205/206).
No mesmo sentido podemos ler Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto: “…ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.” (“Código de Processo Civil” anotado, vol 2º, 2ª ed., pág. 668).
Conforme Ac. desta Rel. de Guimarães de 17/12/2020 (relatora Maria João Matos, aqui 2ª adjunta): “Para demonstrar a existência de erro na apreciação da matéria de facto, o recorrente tem de contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo (v.g. a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário), apresentando as razões objectivas pelas quais se pode verificar que a mesma foi incorrectamente realizada, não bastando para o sucesso da sua pretensão a mera indicação, ou reprodução, dos meios de prova antes produzidos e ponderados na decisão recorrida”.
Mas mais: como se escreveu no acórdão desta Relação de Guimarães de 30/6/2022 (relator José Flores) “É incumbência do apelante actuar numa dupla vertente: (i) rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo, (ii) tentando demonstrar que a prova produzida inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Assim, não chega sinalizar a existência de meios de prova em sentido divergente, cabendo ao apelante aduzir argumentos no sentido de infirmar directamente os termos do raciocínio probatório adoptado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorrecto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente. Em suma, não observa o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida o apelante que se abstém de desconstruir a apreciação crítica da prova, realizada pelo tribunal a quo na decisão impugnada, limitando-se a assinalar que existe um meio de prova em sentido diverso do aceite como prevalecente pelo mesmo tribunal.”
Em suma, a crítica de quem impugna a convicção do Tribunal, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção sobre a prova produzida.
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O Tribunal recorrido apresentou um juízo valorativo, deste modo: “A factualidade em crise teve em consideração todos os documentos juntos por Autores e Réus e, ainda, as declarações e depoimentos de parte, declarações das testemunhas e inspeção ao local realizada em audiência de julgamento. Teve ainda em consideração as fotografias retiradas durante tal inspeção, e imagens aeroespaciais dos prédios em crise com o google earth ao longo dos anos, juntos oficiosamente em audiência de julgamento. Primeiramente, os factos relativos ao óbito, às escrituras de habilitação e de compra e venda, certidões permanentes e matrizes prediais resultam dos documentos autênticos juntos aos autos. Os factos relativos à utilização do prédio pelos Autores e seus antecessores que se deu como provado teve em causa as declarações que prestaram a esse respeito quanto ao modo de aquisição e utilização do mesmo, que não foi infirmado por qualquer outra prova. Também a prova da carta enviada ao Réu se considera assente, por não impugnada. Quanto à prova das interpelações anteriores encetadas pelos Autores a respeito do presente litígio que se deram por provadas, compete desde já salientar que não é minimamente credível que o Réu nunca tenha sido contactado pelos Autores, pois nenhum homem médio ignoraria a carta que recebeu, em especial quando existiam boas relações de vizinhança entre ambas as partes naquela altura. É credível, pois, os contactos que os Autores descreveram ter tido com o Réu marido. Também não há dúvidas quanto ao estado emocional que os factos causaram aos Autores e ao Sr. EE, que seu deu como provado, e que foram asseveradas pelos Autores de forma genuína e sincera. No mais, quanto à composição da parcela de terreno em discussão nos autos, e como vem ilustrado no documento junto com o requerimento de 13-02-2023, constata-se existirem duas áreas diferentes:
1) uma correspondente a um caminho que se situava no limite das duas propriedades, acompanhando toda a confrontação poente do prédio dos Autores; e 2) uma correspondente a uma zona de plantio que se encontra ao final desse caminho, situada em parte da confrontação sul do prédio dos Autores com o prédio dos Réus. Posto isto, sobre a prova destas questões, importa referir que tanto as declarações dos Autores e das suas testemunhas, como as declarações do Réu e das suas testemunhas, revelaram contradições e imprecisões nas suas próprias teses, existindo diversos pontos em que as mesmas não são credíveis ou são contraditórias entre si, o que compete já assinalar. Não obstante, as declarações prestadas pelos Autores afiguraram-se a este tribunal, no seu global, mais transparentes e credíveis do que as que foram prestadas pelo Réu e pelas demais testemunhas da defesa, ainda que tenham sido menos circunstanciadas (pelo parco conhecimento que tinham sobre as características dos locais em discussão e as alterações aos terrenos que foram feitas). Posto isto, e focando primeiramente na zona de plantio em discussão nos autos, não merece credibilidade o depoimento de Autor DD quando referiu que se recordava do saibramento que o pai efetuou em meados de 1989 nessa zona. É que ainda que se admita que o depoente, com 3 ou 4 anos de idade, se recordasse de algum saibramento que o pai tenha efetuado no terreno, não é plausível que consiga localizá-lo naquela área em específico, tanto mais que não assinalou nenhum motivo para se lembrar da obra naquela concreta zona, ainda para mais considerada a área do terreno que foi toda intervencionada. Ainda quanto a esta zona de plantio, a Autora AA atestou que antes de 2009 (altura em que os Autores e toda a família se mudaram de ...) chegou a lavrar essa zona que se encontra ao final do caminho em crise. No entanto, além de as suas declarações não serem acompanhadas por outra prova, acresce que a referida Autora, desde 2009 em diante, de cada vez que se deslocou ao terreno ao longo dos anos, nunca notou diferenças no terreno: apenas deu conta delas quando alegadamente foi chamada à atenção pela vizinhança (em data que não conseguiu situar, e que DD apenas conseguiu ancorar ao ano de 2015, ou seja, 4 anos antes da carta enviada ao Réu). Ora, pelas imagens do google earth extraídas desde os anos de 2010 até 2021, não se assinalam diferenças de relevo ao traçado dos bardos de vinha em questão, sendo aparente, pelo menos desde 2010 (ou seja, antes do saibramento dos Réus), que os referidos bardos se mantiveram com as mesmíssimas características. Por isso, o depoimento da Autora AA não é suficientemente credível neste aspeto, antes sendo de acompanhar o depoimento das testemunhas do Réu nesta matéria (por serem mais compatíveis com as referidas imagens, no sentido de que os bardos nessa zona eram antigos e não foram objeto do referido saibramento [que relataram, com ciência, ter sido efetuado entre 2012 e 2013]). Assim, não existe prova de que a área que corresponde aos bardos no final do caminho em discussão tenham alguma vez sido explorada pelos Autores ou pelos seus antecessores e, por isso, que pertenciam ao prédio dos Autores. No que tange ao caminho que percorria o lado poente do prédio dos Autores, desde já é de assinalar que se provou que esse caminho existia, que tinha pelo menos, 1,00 m de largura (não se provando, no entanto, a sua extensão e, por isso, a sua concreta área), que atualmente nele existem bardos de vinha explorados pelo Réu e que os Autores já não podem aceder ao seu prédio por aquele antigo caminho. Note-se que o Réu admitiu que naquela zona efetivamente existiu um “carreiro”. No entanto, não é credível que o mesmo tivesse apenas 0,5m de largura, como indicou, pois admitiu que passavam cavalos por ele (e só por isso necessitavam de muito mais largura para conseguir passar). As testemunhas do Réu não mereceram, neste ponto, a mais pequena credibilidade, pois atestaram que nenhum caminho existia e que ninguém ali passava porque não era possível, contrariando frontalmente as declarações do Réu nesta matéria. Mereceram ainda credibilidade as declarações dos Autores neste ponto, em particular da Autora AA, que anunciou ter percorrido o dito caminho enquanto trabalhava no campo. Também as demais testemunhas confirmaram recordar-se ver cavalos e pessoas a passar naquele caminho, e a testemunha MM confirmou ali ter passado para agricultar o campo dos Autores. Note-se, ainda, que o final do caminho conflui com outro uma rampa que dá acesso a um outro caminho perpendicular ao mesmo e que atravessa/divide o prédio dos Autores a meio, o que torna credível que este último caminho correspondia a uma continuação/ligação do caminho agora inexistente. Posto isto, é certo que o caminho em litígio existiu antes do saibramento dos Réus, razão pela qual tal se deu como provado. E também é certo que os Autores usavam aquele caminho antes do saibramento, como resultou de toda a prova. Não se provou, no entanto, que tal caminho pertencesse ao terreno dos Autores. Em primeiro lugar, o documento do IFAP junto pelos Autores tem parco valor probatório, pois que tal documento se destina à apresentação de candidaturas a Ajudas Comunitárias, não sendo certo de que as delimitações do terreno nele apostas assentou em elementos objetivos das entidades oficiais ou nas meras declarações prestadas pelos Autores perante a referida entidade. Acresce que as partes não fizeram prova sobre a existência de marcos que separassem ambos os prédios antes do saibramento pelos Réus. Com efeito, o Réu marido limitou-se a identificar um único “marco” no início do local onde iniciava o caminho e onde estão, agora, bardos de vinha; mas o elemento que identificou (uma singela e pequena pedra bicuda, ao alto) não tem as mínimas características para servir como tal, pois nem sequer as suas testemunhas, confrontadas com uma fotografia do alegado marco, o conseguiram identificar. Nenhum outro depoente asseverou a existência de quaisquer outros marcos ao longo do caminho destruído. Acresce que nenhuma prova se fez de algum acordo entre o Sr. EE e o antecessor dos terrenos propriedade dos Réus a respeito da utilização de tal caminho por ambas as sortes. O que se sabe, e que se deu como provado, é que os Autores usaram o caminho, quando o mesmo existia, e que o fizeram em benefício do seu prédio. A posse do terreno permite presumir a propriedade – art. 1268.º, n.º 1, do Código Civil. Porém, tal presunção é ilidível, invertendo o ónus da prova – art. 344.º, n.º 1, do CPC. E os demais elementos dos autos permitem infirmar a presunção anunciada. Com efeito, não se provou que o caminho era utilizado de forma exclusiva; bem pelo contrário, os Autores reconheceram a sua utilização comunitária, e que servia ao prédio de ambas as partes. Além disso, a propriedade dos Autores tem um muro que se encontra situado a nascente do antigo caminho, muro esse que sempre existiu desde o arroteamento inicial do prédio dos Autores. O muro está parcialmente em ruína, situação compatível com o decurso do tempo, sendo que o traçado do muro acompanha um combro com uma inclinação de mais de 1,5m de altura. Pela localização do muro e inclinação do combro, não é credível que o último bardo de vinha mais a poente do terreno dos Autores fosse explorado também do seu lado poente, pois que a inclinação existente do combro não permite a passagem de pessoas por aquele lado. Acresce que o terreno dos Autores é inclinado mas não é caracterizado pela existência de valados, surgindo o muro em causa “ex novum” junto à margem nascente do caminho que foi destruído. Esse muro constituiu, pois, uma barreira física entre o restante terreno dos Autores e o caminho destruído, não existindo quaisquer outros muros ou barreiras com estas características no restante prédio dos Autores. Posto isto, a versão dos factos que está mais de acordo com as regras de experiência comum é de que a divisão dos terrenos de Autores e Réus se fazia pelo muro ali existente, não sendo consentâneo com essas regras que o pai dos Autores, ao saibrar originalmente o terreno, deixasse de fora do muro o caminho que era parte do seu próprio terreno. Dir-se-á, até, que se o falecido EE quisesse permitir ao Réu a utilização de um qualquer caminho naquela zona que considerasse seu, iria construir o muro do lado poente do caminho, e nunca do lado nascente, pois a construção do muro, nos termos em que está, implicou para os Autores piores condições de acesso ao seu próprio terreno em benefício do Réu. Por isso se deu como não provado que o caminho integrasse o prédio dos Autores. No que tange ao pessegueiro que alegadamente foi destruído pelos Réus, o mesmo não se situou no caminho que foi destruído, tanto que o toco da árvore continua a existir do lado do terreno dos Autores (não está situado nos novos bardos de vinha que os Réus construíram no caminho, mas sim já encostado às vinhas dos Autores e ao espaço que circunda o furo de escoamento de águas do prédio dos Autores). Acresce que ninguém viu o Réu a destruir o dito pessegueiro, pelo que a sua permanência do lado do prédio dos Autores não é compatível com a sua descrição primitiva de que o pessegueiro foi destruído por causa do roteamento do prédio. E por isso se deu como não provado que os Réus o tenham cortado. Também nenhuma prova foi feita quanto aos frutos de tal pessegueiro, nem quanto ao valor económico dos mesmos.”
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Baseando os recorrentes a sua pretensão nas declarações de parte, justifica-se ainda tecer algumas considerações sobre esse meio de prova.
Dispõe quanto ao seu regime o art.º 466º, do C.P.C..
Refere-se no Ac. da Rel. de Lisboa de 26/4/2017 (relator Luís Filipe Pires de Sousa) que a doutrina e a jurisprudência vêm assumindo várias posições no que respeita à função e valoração das declarações de partes que se reconduzem a três teses essenciais:
a) tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos;
b) tese do princípio de prova;
c) tese da autossuficiência das declarações de parte.
Para a primeira tese, que é defendida por Lebre de Freitas (in A Ação Declarativa Comum, À Luz do Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 2013, pág. 278) “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, “máxime” se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.” Ou seja, as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa, supletiva e subsidiária, permitindo suprir falhas ao nível da produção da prova designadamente testemunhal, tendo particular relevo em situações em que apenas as partes protagonizaram e tiveram conhecimento dos factos em discussão.
Segundo a tese do princípio de prova as declarações de parte não são suficientes por si só para estabelecer qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.
Finalmente, a tese da autossuficiência das declarações de parte considera que as mesmas podem permitir a prova de um facto de forma autónoma, ou seja, desacompanhadas de qualquer outro meio probatório.
O Acórdão citado desenvolve e cita doutrina em abono de cada uma destas teses, que nos dispensamos aqui de reproduzir.
A atribuição às declarações de parte da função de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outras não haja, a sua utilização como prova subsidiária, são as teses maioritárias na jurisprudência.
A tese do princípio de prova exige sempre a sua correlação com outros meios de prova, o que será o mais curial na maior parte das situações que se colocam aos tribunais, como a dos autos, em que as partes teriam outras formas de se precaver relativamente à demonstração do facto (seja por via testemunhal, seja por via documental).
O Prof. Miguel Teixeira de Sousa, num texto publicado no blog do IPPC em 25/5/2018, em anotação ao Acórdão da Relação do Porto de 23/4/2018 (também disponível em www.dgsi.pt), pronunciou-se contra a tendência para a desvalorização deste meio de prova.
Argumenta o autor do texto que este meio de prova deve ser valorado como qualquer outra prova livre –arts.º 466º, n.º 3, e 607º, n.º 5, C.P.C.. “…também não se pode acompanhar a orientação segundo a qual a prova por declarações de parte deve ser entendida como um meio de prova complementar ou com uma função de clarificação de outras provas. Não se ignora, como é evidente, que a prova por declarações de parte merece uma especial ponderação pelo tribunal, dado que é a própria parte que depõe em juízo sobre factos que, em princípio, lhe são favoráveis. Isto é, no entanto, coisa completamente diferente de se entender que, à partida e independentemente de qualquer valoração específica em função das circunstâncias do caso concreto, a prova por declarações de parte não pode ter um valor probatório próprio.”
Depois de fazer uma incursão sobre o direito comparado, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa conclui “5. Se é certo que se impõe apreciar a prova por declarações de parte sem ilusões ingénuas, também é verdade que não há que, à partida, desqualificar o valor probatório dessa prova. Em suma: a prova por declarações de parte tem, sem quaisquer apriorismos, o valor probatório que lhe deva ser reconhecido pela prudente convicção do juiz; nem mais, nem menos, pode ainda precisar-se.”
Em suma, as declarações de parte são sempre um meio de prova livre.
Pronunciaram-se também sobre esta posição os Acs. da Rel. do Porto de 7/12/2008, 21/11/2019 e 20/2/2020.
Veja-se o Ac. desta Relação de 12/10/2023 (relatora Raquel Rego) que sem qualquer preconceito e de forma absolutamente frontal conclui: – “I A norma do nº3 do artº 466º é claramente esclarecedora ao sujeitar as declarações de parte ao regime da livre apreciação da prova, excepto quando as mesmas constituírem confissão. II - Norteando-se o nosso sistema processual civil pela procura da verdade material e estando as declarações de parte sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, não se lhes deve retirar a paridade valorativa com os demais meios de prova que o legislador consagrou de forma inovadora. III - Adoptamos, por tudo, a posição que admite que as declarações de parte constituam causa única de justificação para dar certo facto como provado, revestidas que sejam das exigências bastantes para formar no julgador a convicção segura de que o facto ocorreu.”
Veja-se ainda, também desta Relação, o Ac. de 23/11/2023 (relatora Conceição Sampaio): “Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré-assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso e segundo critérios de racionalidade (ob. cit., pág. 19). Posto isto, na valoração das declarações de parte, deve relevar-se os seguintes parâmetros: contextualização espontânea do relato, em termos temporais, espaciais e até emocionais; existência de corroborações periféricas (confirmação por outros dados que, indiretamente, demonstram a veracidade da declaração); produção inestruturada; descrição de cadeias de interações; reprodução de conversações; existência de correções espontâneas; segurança/assertividade e fundamentação; vividez e espontaneidade das declarações; reação da parte perante perguntas inesperadas; autenticidade.”
A obra citada é da autoria de Luís Filipe Pires de Sousa - “As Malquistas Declarações de Parte” - onde diz, na pág. 17 que “…deve ser repudiado um pré-juízo de desconfiança e de desvalorização das declarações de parte, sendo infundada e incorreta a postura que degrada prematuramente o valor probatório das declarações de parte.”
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E assim podem e devem, e foram no caso concreto, valoradas, e também concatenadas com as outras provas produzidas.
Aliás, no caso, o Tribunal recorrido confrontou as declarações de parte dos A.A. com as do R..
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Sucede que neste caso, como em muitos com problemática idêntica, não podemos postergar importantes fatores que interferem na avaliação da prova.
No caso de matérias relativas a direitos reais, em que são as mais das vezes exibidos registos (plantas e fotografias) aos depoentes, é verdade que aqueles princípios da imediação e da oralidade reforçam a possibilidade do Tribunal a quo fundar a sua convicção de forma mais segura.
Parece-nos pertinente neste caso concreto a citação do Acórdão desta Relação de Guimarães de 2/11/2017 (relatora Eugénia Cunha) no que respeita às referências a esses princípios e onde se refere que “O Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade. Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade. A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem. (...) O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis. E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. (...). Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados. Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância. Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação. Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos não apreensíveis na gravação dos depoimentos. Em suma, na reapreciação das provas em segunda instância não se procura uma nova convicção diferente da formulada em primeira instância, mas verificar se a convicção expressa no tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos, que a decisão não corresponde a um erro de julgamento”.
Veja-se ainda com a mesma data e desta mesma Relação o Acórdão em que é relatora a Exm.ª Sr.ª Desembargadora Drª Maria João Matos, aqui 2ª adjunta.
Parece-nos efetivamente que nesta ação as considerações citadas têm cabimento. Se não é suficiente para invalidar a formação da convicção autónoma da Relação o apelo à falta do princípio da imediação (e oralidade), casos há como o dos autos em que essa lacuna traduz mais um fator a concorrer para a consideração prevalente daquela que foi a convicção (fundamentada) da 1ª instância, certo que seja que não se deteta erro de apreciação.
Acresce a inspeção ao local que permite a perceção direta da realidade, nunca totalmente transponível para o respetivo auto, por melhor elaborado que esteja –neste caso temos a junção de elementos fotográficos, interpretados com o auxílio das imagens obtidas no google maps. A este respeito remete-se para o estudo feito pela Exm.ª Sr.ª Dr.ª Purificação Carvalho e publicado https://www.trg.pt (“A inspeção judicial: contributos para uma melhor verificação ou interpretação dos factos”).
A inspeção, designadamente quando realizada no início da produção de prova, como foi no caso, permite a constatação no local do objeto do litígio, muitas vezes com o auxílio explicativo das partes ou dos seus mandatários. Esse fator propicia ao julgador de 1ª instância uma primeira perceção que ajudará a interpretar a restante prova, começando ali o processo de formação da sua convicção.
Não está desse modo, nem se pretende, a colocar em causa a autonomia decisória da 2ª instância (em conformidade com o que decorre do art.º 662º do C.P.C.).
Da circunstância de os princípios da imediação e da oralidade terem plena aplicação no âmbito do julgamento da matéria de facto realizado na 1.ª instância não se poderá concluir, sem mais, que o juízo probatório empreendido pelo primeiro grau deva prevalecer sobre o realizado pelo segundo grau (neste sentido, Ac. do S.T.J de 05-12-2019, relatora Rosa Tching).
O fator da imediação apenas poderá servir para qualificar o juízo probatório da 1.ª instância em face da apreciação levada a cabo pelo Tribunal da Relação quando aquele se traduza em razões objetivas (em sentido similar, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4/10/2018, relatora Rosa Tching, e Ac. do STJ de 29/3/2022, relator Pedro de Lima Gonçalves).
Conforme jurisprudência citada do STJ, “…a apreciação da decisão de facto impugnada pelo Tribunal da Relação não visa propriamente um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão. E, por outro lado, que, no âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir [cfr. nº 2, als. a) e b) do citado art.662º], à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC.” –cfr. Rosa Tching.
Concluindo-se conforme Ac. desta Relação de 26/4/2018 (relatora Maria Purificação Carvalho): “Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação. Tudo isto, sem prejuízo, como acima já referido, de o Tribunal de recurso, adquirir diferente (e própria) convicção (sendo este o papel do Tribunal da Relação, ao reapreciar a matéria de facto e não apenas o de um mero controle formal da motivação efectuada em 1.ª instância – cf. Acórdão do STJ, de 22 de Fevereiro de 2011, in CJ, STJ, ano XIX, tomo I/2011, a pág. 76 e sgs. e de 30/05/2013, Processo 253/05.7.TBBRG.G1. S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.”
E ainda conforme Ac. da Rel. do Porto de 30/6/2022 (relator Paulo Duarte Teixeira) “O recurso sobre a decisão de facto visa obter um controlo objectivo e posterior sobre a decisão do tribunal a quo a fim de evitar arbitrariedades e erros judiciários. Mas, convém salientar que, por um lado a imediação na produção de prova implica, desde logo, que seja concedida uma margem de manobra ao tribunal a quo, pois, foi ele que vivenciou o cotejo de elementos da linguagem silenciosa e que por isso possui mais e melhores elementos para efectuar essa decisão. E, que por outro lado, vigora entre nós o sistema da livre convicção motivada, segundo o qual a conclusão probatória cabe ao julgador de forma livre, mas esse procedimento terá se ser partilhado e motivado através da exposição dos motivos que levaram a decidir desta ou daquela forma (persuasão racional ou o livre convencimento motivado). Ou seja, o juízo probatório é livre mas já não arbitrário, pois fica sempre condicionado a regras jurídicas, regras de experiência e regras de lógica, cuja violação pode ser sindicada em recurso. Neste prisma o recurso da matéria de facto é, nesta instância limitado (…) Em primeiro lugar, o juízo sobre a valoração de prova tem duas dimensões: na primeira afere-se a credibilidade dos meios de prova, só depois, se efectua a valoração da prova, com base em regras de lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos.”
Veja-se igualmente o Ac. desta Rel. de 29/9/2016 (relatora Ana Cristina Duarte).
De facto, o tribunal de 2ª instância depara-se com limitações nesta sua função que não é possível escamotear, tal como vem devidamente ilustrado em “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, de António Santos Abrantes Geraldes, pags. 285 a 287, tal como a sua compatibilização com os princípios vigente: “A gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (vídeo) nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no Tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância.
Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador.
O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1.ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo aos tribunais retirara argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo.
Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção formada acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos.”
A psicologia designa ou refere-se a esses fatores como “comunicação não-verbal”, muitas vezes importante e decisiva precisamente quando sobre a mesma realidade há diferentes versões.
E por último cabe realçar que o princípio da livre convicção significa também que o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas (Professor Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pag. 384). Ou seja, a prova é apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência, que possibilitam a formulação de juízos e raciocínios que conduzem a determinadas convicções refletidas na decisão da matéria de facto.
O tribunal está sujeito a regras e princípios nesta sua função: tem de declarar quais os factos que considera provados e os que entende não se terem provado, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do julgador -art.º 607º n.º 4, C.P.C..
É precisamente a fundamentação da matéria de facto que permite que as partes que não concordem e a pretendam impugnar o possam fazer, uma vez que o percurso lógico seguido fica expresso, podendo ser sindicado.
Para sintetizar, seguimos aqui de perto o acórdão em que foi relatora a mesma deste, em que se concluiu:
“I No caso de matérias relativas a direitos conexos com prédios, nomeadamente rústicos, em que são as mais das vezes exibidos registos (plantas e fotografias) aos depoentes, os princípios da imediação e da oralidade assumem particular relevância no momento da formação da convicção do julgador.
II O Tribunal de 1ª instância tem igualmente uma posição privilegiado na apreciação da credibilidade dos depoentes, sem contudo tal significar que o Tribunal da Relação não possa formar a sua própria convicção.
III A inspeção judicial permite ao juiz de 1ª instância a perceção de realidades nem sempre integralmente transponíveis para o respetivo auto.
IV É a fundamentação da convicção do julgador que permite o pleno exercício do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto. (…) –processo n.º 66/21.0T8TMC.G1”.
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Voltando ao nosso caso, os recorrentes não apresentam razões (muito menos suficientes) que invalidem o juízo probatório do Tribunal recorrido, o qual se mostra fundamentado, lógico, coerente, objetivo e assertivo. A diferente perceção que a recorrente tem e faz da prova, nomeadamente prestada por declarações de parte e supostamente apoiada pelo depoimento da testemunha que apresentaram, não tem fundamento.
Vejamos porém mais algumas considerações, ouvida a prova gravada e analisados os elementos documentais do processo.
A A, AA mostrou-se conhecedora das características do terreno, descrevendo o caminho, a existência do pessegueiro… Porém, quanto à utilização do caminho, afirmou não saber se era comum, propôs ao R. (já ocorridos os factos) que assim ficasse; anteriormente era utilizado pelos donos do “seu” prédio, mas os R.R. também o utilizavam, embora pouco (embora mais à frente tenha dito que nunca os viu usar). Da queima das vides no caminho não se retira qualquer ilação, no contexto em que tal foi mencionado.
A A. CC, demonstrou ter ideias um pouco mais vagas sobre o prédio (nomeadamente sobre a utilização do caminho, ou a existência do pessegueiro de que não deu falta), uma vez que teve menor ligação ao lugar. Não obstante referiu uma conversa com o R. em que esteve presente a propósito de se retomar o estado em que tudo se encontrava antes da atuação do R., convicta que estaria da “justeza” dessa pretensão –que este teria admitido ter-se tratado de um erro, ocorrido na sua ausência, que assumiria.
Face à sua passividade, surge o posterior envio da carta em causa nos autos, que mais não demonstra essa mesma convicção.
Note-se porém que CC referiu expressamente que “não disse que o caminho era nosso”; é de quem usufruía; não sabe se era de um, de outro, dos dois. Eles usavam, pouco; os trabalhadores, não sabe. O caminho servia de limite. Falou de acordo e de serventia do caminho, mas são situações que na realidade desconhecia.
Não restaram dúvidas quanto à genuinidade das suas declarações, envoltas ainda em muita emotividade, relacionada com vicissitudes da situação do marido e pai.
Simplesmente não sustentaram de forma alguma o (também aqui, em recurso), pretendido. Sintomático de alguma “confusão” entre propriedade e utilização é o facto de, segundo CC, o que lhes dói é a atitude, em que estão de facto mais focadas, não tanto a questão do espaço em causa.
O A. DD referiu-se à utilização do caminho por ambas as partes (e por outras pessoas). Intitula-se dono. Confirmou a versão da irmã quanto à primeira reação do R.. Apontou o muro como divisória dos prédios; referiu a existência, ainda, de um marco.
Não houve dúvidas quanto à alteração do espaço no que concerne ao caminho. Mas não é isso que está em causa.
Tudo visto constata-se que, quanto à questão do caminho, os próprios A.A. não foram esclarecedores, pelo contrário, eles próprios referem a dúvida quanto ao uso (exclusivo) e pertença do mesmo.
Quanto à questão da abrangência da sua propriedade, e mais concretamente quanto à parcela junto ao pessegueiro, a perceção da Srª Juiz evidenciada na motivação que apresentou mostra-se clara; de facto, da sua deslocação ao local, visualizando o espaço, ficando ciente da posição de cada parte, resultou a sua convicção tal como expressa. E, afastada a credibilidade das declarações de DD pelos motivos que indica e que resultaram claros das suas declarações (sendo inclusive confrontado nessa sede com as reservas que se suscitam relativamente ao que disse), afastadas as declarações de CC por falta de conhecimento bastante, restaram as declarações de AA. Aqui levantam-se pertinentemente as dúvidas que a Srª Juiz expressou. E, assim fica sem sustento a sua versão dos factos. Aliás, houve a preocupação de tentar introduzir elementos ou factos colaterais na produção de prova, de modo a daí se tentar retirar ilações úteis para os factos essenciais e para a decisão do litígio. Sem êxito.
Relativamente à prova documental junta pelos A.A. através do requerimento de 13/2/2023, os documentos não têm a virtualidade de comprovar as áreas em questão (cfr. a decida nota que disso se dá na motivação da sentença), sendo meros auxiliares de orientação.
É verdade que o R., ao prestar declarações, foi evasivo, interpretava mal as perguntas, respondia com outro tema; desvalorizou a postura dos A.A. de modo incredível; negou conversa prévia com os A.A., que depois retificou para falta de memória. Não utilizou a palavra caminho, que retificou inclusive para carreiro, a nosso ver numa tentativa de desvalorização do assunto. Disse que só era utilizado por si (pelos trabalhadores, e antes pelo seu pai).
Não foi credível em determinados pontos, como se dá nota na sentença recorrida.
A Srª Juiz estava em posição privilegiada para perceber o seu depoimento (como os demais) dado o seu prévio conhecimento, obtido pela inspeção ao local.
A testemunha MM nada adiantou quanto à questão dos limites da propriedade e do caminho, já que as suas afirmações são conclusivas e baseadas em ilações que tirou. Confirmou, nesse aspeto com conhecimento de facto, o prévio contato com o R..
E aqui chegados, retomamos o que já dissemos antes da análise concreta dos depoimentos. Foram devidamente avaliados, no contexto de todas as provas produzidas, nomeadamente as testemunhas apresentadas pelos R.R. que os recorrentes não mencionam neste recurso. Por mais documentadas que estejam as parcelas em questão, quer através de imagens obtidas na internet, quer através de elementos fotográficos obtidos na inspeção judicial, ainda que a falta da perceção resultante da visualização in loco se consiga aqui ultrapassar, resulta para nós clara a falta de prova suficiente da versão dos A.A..
Assim sendo, nada mais resta que não seja a improcedência da impugnação da matéria de facto, nomeadamente nada havendo a retificar na alínea A) dos factos não provados quanto à data, onde consta o que foi alegado pelos A.A..
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Não tendo sido procedente a pretendida alteração, remete-se quanto ao seu elenco para a decisão recorrida –cfr. n.º 6 do art.º 663º do C.P.C..
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-DECISÃO DE DIREITO.
A alteração do decidido dependia inteiramente da procedência da impugnação da matéria de facto, embora no recurso não se distinga a impugnação da matéria de facto e a aplicação do direito aos mesmos factos. Por isso a apreciação da integração jurídica dos factos sempre estaria prejudicada (art.º 608º, nº. 2, ex vi art.º 663º, n.º 2, C.P.C.).
Apenas uma mera nota se impõe.
Diz-se na sentença recorrida que a presente ação está configurada como uma ação de reivindicação da propriedade, apelando o tribunal recorrido ao disposto no art.º 1311º do C.C. –cfr. ainda o art.º 1305º do mesmo diploma.
A causa de pedir na ação de reivindicação é “o facto jurídico de que deriva o direito real” –art.º 581º n.º 4 do C.P.C.-, que consagra a teoria da substanciação.
A propósito da “classificação” da ação veja-se o que diz o Ac. desta Relação de 28/1/2021 (relatora Margarida Fernandes), matéria sobre a qual não nos iremos debruçar por não ter influência na decisão dos autos. De facto, conforme aí se diz “Ora, entendemos que a presente acção não pode ser qualificada como acção de reivindicação, por um lado, porque não está em causa a aquisição do direito de propriedade do autor sobre determinado prédio correspondente ao quinhão B por qualquer dos modos previsto no art. 1316º do C.C., que é pacífica, e por outro, a restituição pedida não tem por objecto um prédio nos termos e para os efeitos do disposto no art. 202º e 204º do C.C.. E também não pode ser qualificada como acção de demarcação dado que, segundo os autores, inexiste qualquer incerteza acerca da linha divisória e consequentemente nenhum pedido de fixação desta foi formulado. Subscrevemos o referido no Ac. desta Relação de 01/03/2018 (José Amaral), citado pela 1ª instância, que refere: “A disputa entre as partes de uma parcela de terreno, de reduzida área, situada na confluência de dois prédios, que cada uma daquelas reclama integrar o seu e, por isso, pertencer-lhe em função da localização controversa da estrema respectiva, nem sempre configura acção de reivindicação ou de demarcação ou exige a alegação e prova dos pressupostos fácticos inerentes em conformidade com o quadro legal respectivo (artºs 1311º e 1353º, do Código Civil). Conquanto, para demonstrar que a parcela faz parte ou se integra nos limites de um ou outro prédio, possam ser alegados factos relativos ao exercício da posse sobre a mesma ou de outro modo por via do qual tenha sido adquirido o domínio sobre a mesma, tal litígio pode ser resolvido como em qualquer acção declarativa comum e, assim, com base em qualquer meio de prova admissível.” (…) “Afinal de contas, a acção de reivindicação e a acção de demarcação apenas no direito substantivo assim são apelidadas (artºs 1311º e 1353º, CC), tendo esta desaparecido do direito processual (…)”.
A ação (de reivindicação) depende para a sua procedência da prova da aquisição do direito de propriedade seja pela via da aquisição originária, seja pela via da aquisição derivada, ou através da alegação de uma situação de registo da qual decorra a existência de presunções atuantes no caso e não ilididas.
Quem tem a seu favor a presunção registal escusa de provar o facto respetivo, de harmonia com a regra do efeito presuntivo do registo predial que resulta do art.º 7º do C.R.P. (cfr. art.º 350º, n.º 1, do C.C.), sendo tal presunção iuris tantum, ou seja ilidível mediante prova em contrário.
Nenhuma questão se colocando no recurso relativamente à propriedade relativamente ao prédio, centrando-se a sentença recorrida na parcela em discussão.
E assim sendo, a nosso ver, impõe-se a procedência do pedido que a tal respeita.
De facto, como se diz na sentença “No caso, importa referir que se provou que os Autores são os donos e legítimos proprietários do prédio mencionado no ponto 3, uma vez que todos eles subingressaram, por sucessão mortis causa, na posição jurídica do primitivo proprietário EE – artigo 2024.º do Código Civil. Tal qualidade já lhe está reconhecida por documento autêntico. Além do mais, os Autores beneficiam da presunção da propriedade derivada do registo predial inscrito em seu nome – artigo 7.º do Código do Registo Predial –, não havendo dúvidas quanto a este ponto.”.
Nesta medida, merece provimento esta pretensão dos A.A., na qualidade de únicos e universais herdeiros de EE, assim declarada na sentença. Não tendo sido violado esse direito pelos R.R., já não se justifica que sejam condenados a reconhecer o mesmo.
Relativamente à parcela cabe em primeiro lugar esclarecer que a presunção derivada do registo não abarca a área, limites ou confrontações, como vem dito na sentença em conformidade com a jurisprudência produzida nesta matéria (por todos, cfr. o Ac. do STJ de 11/2/2016).
Daí que coubesse aos A.A. a prova de que aquela parcela “invadida” pelos R.R. integra o seu prédio, como pretendem se dê como verificado e se imponha aos mesmos.
A questão coloca-se pois na concretização dos limites do prédio. Quanto a essa matéria a versão dos A.A. relativamente à área/dimensão/delimitação do seu prédio e que este inclui a parcela em causa, por um lado, e aos atos de posse que exercem sobre a parcela em questão, por outro lado, não se provou (resulta dos factos provados apenas o uso do caminho), pelo que não há factos que suportem os pedidos julgados improcedentes quanto a esta questão - prova de que do prédio faz parte a parcela (o que já bastaria) ou posse relativa à parcela donde derivaria a aquisição originária –cfr. art.ºs 1268º, nº. 1, 1287º e 1316º, todos do C.C.. Por elucidativo, veja-se o Ac. desta Relação de 26/2/2015 (www.dgsi.pt). Não satisfizeram por isso os A.A. o ónus probatório que sobre os mesmos impendia de acordo com o art.º 342º, n.º 1, do C.C..
E assim sendo, não há que imputar qualquer conduta ilícita aos R.R., que sustente as demais pretensões dos A.A. julgadas improcedentes.
As custas do recurso devem ser imputadas aos A.A., já que a alteração introduzida não tem como causa a conduta dos R.R. (cfr. art.º 527º, n.º 1, última parte, do C.P.C.).
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V DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso dos A.A. parcialmente procedente, e em consequência, conceder provimento parcial à apelação, reconhecendo que os A.A. são donos do prédio identificado no ponto 3 dos factos provados na qualidade de únicos e universais herdeiros de EE, mantendo-se no mais a sentença recorrida.
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Custas do recurso a cargo dos recorrentes (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 18 de janeiro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relatora: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1ª Adjunta: Alexandra Viana Lopes
2ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)