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ERRO-OBSTÁCULO
ANULABILIDADE
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
Sumário
I – À semelhança do que sucede com o tribunal de 1.ª instancia, também a Relação tem poderes tanto para, independentemente da iniciativa da parte, determinar a assunção de factos segundo regras imperativas de direito probatório, como para a desconsideração de factos cuja prova tenha desrespeitado essas mesmas regras. Neste sentido, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, deve integrar na decisão o facto que a 1.ª instância considerou como não provado ou retirar dela o facto que foi considerado como provado com desrespeito por tais regras. II – Ocorre um erro-obstáculo quando alguém emite uma declaração de vontade que não coincide com a sua vontade real. Trata-se de uma situação diferente daquela que caracteriza o denominado erro sobre os motivos, a qual pressupõe um vício na formação da vontade, decorrente da ignorância ou da falsa representação de uma circunstância de facto ou de direito, passada ou presente, relativamente ao momento da emissão da declaração negocial, e que determinou a celebração do negócio ou, pelo menos, a celebração naqueles termos. III – Como resulta do art. 247 do Código Civil, a relevância do erro na declaração depende da verificação de dois requisitos: a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre o erro; o conhecimento dessa essencialidade pelo declaratário ou o dever de a conhecer. IV – Com a anulação de um negócio, estabelece-se entre as partes uma relação de liquidação: deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. V – Nos contratos em que uma das partes beneficie do gozo de uma coisa ou de um serviço essas obrigações apresentam-se com algumas especificidades que não podem deixar de ponderar-se à luz do regime do art. 289/1.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I.
1) EMP01..., Lda., intentou a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra EMP02..., Lda., e EMP03..., SA, pedindo que, na procedência, (i) seja anulado, por erro na declaração, nos termos dos arts. 247 e 250 do Código Civil, o contrato celebrado entre a Autora e a 2.ª Ré; (ii) Por via dessa anulação, seja declarado que nada é devido pela Autora à 2.ª Ré; (iii) Sejam as Rés condenadas no pagamento de quantia nunca inferior a € 5 000,00 a título de danos não patrimoniais.
Alegou que (transcrição): “1. A autora é uma sociedade por quotas que desenvolve a sua atividade no âmbito de confeções de vestuário. 2. Por sua vez a primeira ré é uma sociedade por quotas que se dedica a atividades de impressão, nomeadamente impressão digital, comércio, importação e exportação de materiais, equipamentos, sistemas e consumíveis relacionados com a área de atividade desenvolvida. 3. Por fim, a segunda ré é uma sociedade por quotas que se dedica a atividades relacionadas e revenda de equipamentos usados. Aquisição de bens móveis, de equipamentos de escritório, de máquinas e de equipamentos informáticos, incluindo softwares e hardwares, e de equipamentos industriais, para aluguer e aluguer dos mesmos. 4. Ora, no âmbito da sua atividade a autora celebrou com a primeira ré um contrato de compra e venda verbal. 5. Desse contrato de compra e venda resultaram as seguintes cláusulas: i. a autora aceitava comprar à primeira ré os seguintes bens: ... Impressão a Corte EJ-640 1.52m, Eixo recolhedor de 64 polegadas, motor para enroladores, secador de papel EJ-640, cartucho Recarregável 220 ml .../.... ii. Pela compra desses bens, a autora teria de efetuar o pagamento desses bens no dia da entrega dos mesmos. 6. Sucede que, a autora não tinha possibilidade de efetuar o pagamento a pronto do preço daqueles bens. 7. Face a isto motivo, a primeira apresentou uma alternativa à autora. 8. Ora, a primeira ré presenteou à autora os serviços da segunda ré. 9. A primeira ré referiu à autora que a segunda ré pagaria a totalidade do valor daqueles bens, sendo que, posteriormente, a autora passaria a pagar o preço pago à segunda ré. 10. Este pagamento teria a duração de 36 meses, 11. Sendo que no final desses 36 meses, as máquinas tornar-se-iam propriedade da autora e dar-se-ia por finalizado qualquer vínculo contratual entre as partes. 12. Posto isto, em 23 de outubro de 2019, entre a autora e a ré foi celebrado um contrato de locação que deu origem ao contrato nº ...10. Cf. Documento nº ... que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 13. O contrato mencionado detinha, entre outras, as seguintes cláusulas: i. O contrato teria início na data da receção dos bens, iniciando-se a contagem do prazo no dia 1 do mês ou trimestre seguinte à receção, consoante seja ajustado pagamento mensal ou trimestral, vigorando pelo prazo acordado, renovável automaticamente por sucessivos períodos de 12 meses, exceto se alguma das partes denunciar o mesmo por carta registada com antecedência mínima de 30 dias sobre a data da renovação; ii. A duração do contrato era de 36 meses; iii. A frequência de pagamento era trimestral; iv. O aluguer mensal decifrava-se no montante de 512.54€ (quinhentos e doze euros e cinquenta e quatro euros); v. Que os bens, após resolução do contrato seriam devolvidos à locadora. 14. Ora, contrato fora celebrado no dia 23 de outubro de 2019. 15. Nesse mesmo dia, à autora foram entregues os bens alvo do contrato. Cf. Doc. Nº... que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 16. Deste modo, começaria a contar o prazo de duração do contrato no dia 1 de janeiro de 2020. 17. Assim, decorridos os 36 meses de duração de contrato acordados, o mesmo terminaria em 31 de janeiro de 2022. 18. Conforme documento nº... que ora se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a autora efetuou o pagamento das seguintes faturas: i. FATURA nº ...05, no valor de 1.533€ (mil quinhentos e trinta e três euros); ii. FATURA nº ...12, no valor de 2028,97€ (dois mil e vinte oito euros e noventa e sete cêntimos); iii. FATURA nº ...98, no valor de 1891,27€ (mil oitocentos e noventa e um euros e vinte e sete cêntimos); iv. FATURA nº ...43, no valor de 1891,27€ (mil oitocentos e noventa e um euros e vinte e sete cêntimos); v. FATURA nº ...94, no valor de 1891,27€ (mil oitocentos e noventa e um euros e vinte e sete cêntimos); vi. FATURA nº ...05, no valor de 1891,27€ (mil oitocentos e noventa e um euros e vinte e sete cêntimos); vii. FATURA nº ...71, no valor de 1891,27€ (mil oitocentos e noventa e um euros e vinte e sete cêntimos); viii. FATURA nº ...05, no valor de 1891,27€ (mil oitocentos e noventa e um euros e vinte e sete cêntimos); ix. FATURA nº ...56, no valor de 1891,27€ (mil oitocentos e noventa e um euros e vinte e sete cêntimos); x. FATURA nº ...42, no valor de 1891,27€ (mil oitocentos e noventa e um euros e vinte e sete cêntimos); xi. FATURA nº ...62, no valor de 1891,27€ (mil oitocentos e noventa e um euros e vinte e sete cêntimos); xii. FATURA nº ...60, no valor de 1891,27€ (mil oitocentos e noventa e um euros e vinte e sete cêntimos). 19. Ora, tendo em consideração que cada fatura diz respeito a 3 (três) meses de contrato, então, se se encontram pagas 12 faturas, consequentemente, estão pagos os 36 meses da duração do contrato. 20. Posto isto, no entendimento da autora, o contrato estaria totalmente cumprido e, consequentemente, os bens seriam já seus. 21. Isto porque, crendo nas palavras da primeira ré, segundo o qual, após o cumprimento do pagamento do valor dos bens os bens seriam totalmente seus. 22. Quer isto dizer que, a autora somente celebrou o contrato de locação financeira com a segunda ré com premissa de que, após o pagamento da totalidade do preço dos bens, aqueles seriam seus. 23. Ora, perante isto, não deixa dúvidas que autora celebrou aquele contrato, mas fê-lo não tendo consciência do que estava efetivamente a celebrar e em que termos. 24. Conforme documento nº ... que ora se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, é possível comprovar através de correspondência trocada entre o representante legal da autora e da segunda ré que no entendimento da primeira após o pagamento do preço e cumprido o contrato, os bens seriam sempre seus. 25. Só deste modo é que a autora assinou o que assinou. 26. Ao qual acresce o facto de que os réus bem sabiam quais as premissas em que a autora aceitaria o contrato, mas não obstante, ludibriaram a mesma e, aproveitando-se do seu desconhecimento, fizeram que o mesmo assinasse em contrato que não queria. 27. Ora, a primeira ré sempre soube que a pretensão da autora era, no final do contrato, garantir a propriedade dos bens sem mais. 28. Ciente disso, contactou a segunda ré e esta sabendo que o que a autora pretendia era garantir os bens para si, esta ludibriou autora e fê-la assinar um contrato de locação do qual nunca constava que, no final, os bens ficariam na propriedade da autora. 29. A autora, tendo transmitido quais eram as suas pretensões, sempre pensou que o estava a assinar era exatamente aquilo que tinha transmitida às rés. 30. Contudo, foi enganada. (…) 38. O único propósito da autora era constar como proprietária dos bens, após a conclusão do pagamento que lhe era adstrito. 39. Foi sempre com esse intuito que celebrou os contratos que celebrou. 40. Contudo, nunca lhe fora transmitido outra versão. 41. Inconscientemente e confiando na parte contrária, celebrou um contrato de locação sem o ler. 42. Contrato esse que não lhe permitia obter aquilo que sempre pretendeu e que lhe fora transmitido pela fornecedora dos bens, a aqui primeira ré, e que era a propriedade plena dos bens. 43. A primeira ré sempre referiu à autora que os bens, após pagamento do preço, seriam da autora. 44. A segunda ré também sabia dessa mesma pretensão. 45. Contudo, nenhum das duas rés se dignou a explicitar as cláusulas presentes no contrato assinado. 46. E aproveitando-se do desconhecimento da autora, fizeram-na assinar algo que não correspondia com a sua vontade. 47. Assim sendo, bem sabiam as rés que para a autora era essencial que os bens se tornassem sua propriedade após o contrato. (…) 50. A autora sempre quis adquirir os bens. 51. Ao assinar o contrato de locação financeira com a segunda sempre acreditou que, após o cumprimento do contrato, os bens seriam seus. 52. Foi com essa premissa que o assinou. 53. Se assim não fosse, nunca o teria celebrado. 54. A segunda ré tinha consciência que aquisição da propriedade era essencial para o autor consumar a assinatura do contrato. 55. A segunda ré nunca lhe transmitiu que os bens, posteriormente, teriam de ser devolvidos. 56. Com tal conduta, a ré provocou sérios danos na esfera jurídica da autora. 57. A autora vê-se agora em incumprimento, devido algo que nunca quis assinar. 58. A autora é uma empresa cumpridora das suas obrigações. 59. Nunca foi alvo de qualquer reclamação. 60. A imagem e o bom nome da autora ficaram manchados na praça pública. 61. Tendo provocado grande apreensão, receio e medo nos quadros diretivos da empresa (…)”
2 Citadas por carta registada com aviso de receção, expedida para as respetivas sedes, as Rés não contestaram. Apenas a 1.ª Ré constituiu mandatário judicial.
3 Por requerimento apresentado no dia 14.04.2023, a Autora veio desistir do pedido quanto à 1.ª Ré, a qual foi homologada por sentença de 24 de maio de 2023.
4 Na mesma data, foi proferido despacho em que, constatando-se a ausência de contestação da 2.ª Ré, foram considerados “confessados” os factos alegados pela Autora.
5 A Autora apresentou alegações sobre o aspeto jurídico da causa, em que concluiu pela procedência da ação.
6 No dia 27 de junho de 2023, foi proferida sentença em que se considerou ter ocorrido uma situação de erro sobre a base negocial e, em conformidade, se decidiu: “tudo visto e ponderado, julgo parcialmente procedente a presente ação, declarando a anulação do contrato celebrado entre a autora e a ré EMP03..., S.A a 23.10.2019, por erro na base negocial, nos termos do artº 252º do CC, declarando-se em consequência, que nada mais é devido pela autora à R EMP03..., S.A.; - absolvo a R do mais peticionado.”
7 A sentença foi notificada à 2.ª Ré através de carta registada no dia 28 de junho de 2023, expedida para a respetiva sede.
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8 2) Inconformada, a 2.ª Ré (Recorrente) interpôs recurso, através de requerimento apresentado no dia 21 de setembro de 2023, para o Tribunal da Relação de Lisboa e dirigindo as respetivas alegações ao Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto.
Com esse requerimento, apresentou a guia do pagamento da multa devida pela interposição do recurso no 3.º dia útil subsequente ao termo do respetivo prazo.
Concluiu as respetivas alegações nos seguintes termos (transcrição): “1 – Foi instaurada uma ação judicial pela Autora contra a aqui Ré com vista à anulação do contrato de locação n.º ...10 celebrado entre as partes, por entender a Autora, aqui Recorrida, que ocorreu erro na declaração; e que, em consequência dessa anulação fosse declarado que nada mais era devido à Ré pela Autora. 2 - A Ré, regularmente citada, por circunstâncias pesarosas, não apresentou contestação. 3 – Foi a Ré, aqui Recorrente, notificada da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, com a qual não se pode conformar. 4 - Na fundamentação de facto constante da sentença, constam diversos factos como provados, não podendo ser aceite apenas a revelia da Ré para o Tribunal a quo dar todos os factos alegados pela Autora como provados, com total ausência crítica face à prova documental. 5 – No âmbito negocial, a Recorrida apenas terá aceitado celebrar o contrato com a perspetiva de depois de pago “o seu preço”, o equipamento seria seu. No entanto, bem sabia que não estava a pagar o preço em prestações, mas sim a alugar um equipamento. Sendo que, nenhuma cláusula no contrato assinado prevê a possibilidade de aquisição do equipamento, aliás, antes a afasta. 6 - Pelo que, aposta a sua assinatura no contrato, através da assinatura eletrónica avançada, a Locatária – ainda que por negligência da sua parte – sempre garantiu à Locadora que leu todo o clausulado do contrato, não tendo o mesmo suscitado quaisquer dúvidas. Tal confirmação para a Locadora, gerou que a mesma procedesse ao pagamento do preço do equipamento à Fornecedora, que por sua vez o instalou na sede da Locatária! 7 - Ora, com o devido respeito por opinião contrária, não poderá o Tribunal ad quem considerar que a Autora não teve a oportunidade de ler e analisar todas as cláusulas do contrato e de pedir à Autora os esclarecimentos que entendesse necessários, pois se assim foi – atenta a prova produzida – apenas pela sua falta de diligência poderá ter sucedido. 8 - A Autora continua na posse do bem anteriormente locado, sem qualquer fundamentação jurídica para tal, e independentemente se o continua ou não a utilizar, apesar de legalmente não se encontrar habilitada para tal, vendo-se a Autora, aqui Recorrente, privada dos seus bens e sem que receba qualquer contrapartida, o que ainda reforça mais a conduta abusiva por parte da Ré. 9 - O contrato em causa trata-se de um contrato de locação, neste caso de coisa móvel, considerando a extensão lógica do conceito manifestado através do artigo 1023.º do Código Civil. 10 - Sucede que, a EMP03..., S.A. – e apesar das diversas qualificações para descrever a sua atividade pela Autora na sua peça processual inicial, bem como na sentença – não celebra contratos de financiamento, não está habilitada pelo Banco de Portugal a fazê-lo, o contrato de locação não prevê a final a aquisição do equipamento, mas antes a sua renovação. 11 - Na verdade, se a Locatária pensava que o contrato era não renovável ou que os bens lhe pertenciam decorrido o termo inicial, tal teria de ter o mínimo de correspondência com o teor do contrato de locação, no entanto, o mesmo diz o contrário, pelo que não pode existir erro, quando o contrato é expresso relativamente a tais previsões e a Locadora continuou a emitir e enviar as faturas dos alugueres, que são devidas, pois o contrato não cessou. 12 - Mesmo que a Locatária/Autora, aqui Recorrida, estivesse equivocada, a anulação do contrato de locação, com efeitos para o futuro, não confere direito à aquisição dos bens locados, pelo que a sentença além de violar o direito de propriedade e a liberdade contratual, restringe um direito fundamental da Autora, aqui Recorrente, que é o de reivindicar a restituição dos bens locados, e a indemnização pelo seu uso, após o termo inicial do contrato, nos termos do art.º 1045.º, n.º 2 do CC. 13 - A sentença recorrida ao condenar a Ré no pedido, ou seja, ao julgar a ação procedente, violou, através de uma distorção da realidade factual (error facti) e bem assim na aplicação do direito (error juris), violou os artigos 406.º, 762.º, n.º 1 e 2, e 798.º, 799.º e 1022.º, 1031.º, 1038.º, alíneas a) e i), 1043.º, 1047.º e 1048.º todos do Código Civil, devendo ser revogada por acórdão que julgue a ação improcedente, por os factos alegados não poderem produzir as consequências jurídicas pretendidas. 14 – A sentença recorrida violou as normas elencadas supra, pois considerou que existiam factos para determinar que procedia a exceção de anulabilidade do contrato celebrado e, consequentemente, reconheceu à Ré/Recorrida o direito potestativo à respetiva anulação com base em erro, retirando erradas consequências jurídicas daquela anulação. Nestes termos e com o douto suprimento dos Venerandos Desembargadores, deverá ser dado provimento ao recurso, e consequentemente revogada a sentença na sua totalidade, e substituída por acórdão que condene a Ré integralmente nos pedidos, fazendo a esperada JUSTIÇA”
9 A Autora (Recorrida) concluiu a resposta com as seguintes conclusões (transcrição): “I - Os presentes autos correram termos no Juízo Local Cível ... (J...), pelo que o Tribunal competente para conhecer seria o venerando Tribunal da Relação de Guimarães, por força do disposto nos artigos 68º do CPC, 32º e anexo I da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (na sua redação atual) e 4º n.º 2 e mapa I do Decreto-lei n.º 49/2014 de 27/03 (na sua redação atual). II - A recorrente no seu requerimento de interposição de recurso indica o venerando Tribunal da Relação de Lisboa como o que deverá conhecer do recurso, mas dirige as motivações do seu recurso aos (sic) “Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto”. III - Ora, da indicação da recorrente quanto ao Tribunal ad quem competente sempre se dirá que o recurso é dirigido a Tribunais da Relação hierárquica e territorialmente incompetentes, aplicando-se o disposto nos 96º e 98º do CPC devendo, desde logo, o recurso ser liminarmente rejeitado por incompetência absoluta e em razão da hierarquia dos Tribunais a quem se dirige, sob pena de violação das disposições supra indicadas Além disso IV - A sentença recorrida foi proferida em 27/06/2023 (ref.ª...81), registada nos termos da lei do processo no dia 28/06/2023 (ref.ª ...39) e notificada à recorrida por carta registada remetida em 28/06/2023 à recorrente e para a morada constante dos autos (ref.ª ...39). V - A recorrente foi notificada da sentença em 03/07/2023, sendo inaplicáveis in casu, o disposto nos números 2 e 7 do artigo 638º do Código do Processo Civil, pelo que o termo do prazo de interposição do recurso se deu no dia 18/09/2023. VI - O recurso foi interposto por requerimento datado de 21/09/2023 (ref.ª ...17). VII - Pelo que deve o mesmo ser considerado como tendo sido interposto fora de prazo e, consequentemente, não ser admitido nos termos do disposto no artigo 641º n.º 2 alínea a) do Código do Processo Civil, sob pena de violação do disposto nos artigos 249º n.º 1 e 638º n.º 1 do mesmo diploma. VIII - A recorrida não apresentou contestação PORQUE NÃO QUIS, independentemente das inverosímeis desculpas que apresentou, COM AS CONSEQUÊNCIAS JURIDÍCAS QUE DAÍ DECORREM, como aquela sabia e não pode ignorar. Sem prescindir IX - A recorrente não tinha apenas o ónus de contestar, ou seja, de apresentar a sua contestação, sob pena de ser considerado ré revel, como também recai sobre ela um ónus de impugnação, estando obrigado a “tomar posição definida perante os factos articulados na petição inicial”, sob pena de já não o poderem fazer em momento posterior e sem prejuízo das exceções consignadas nos artigos 574º n.º 2 e 568º alínea c) do CPC. X - Nos termos do disposto no artigo 566º do CPC «se o réu, além de não deduzir qualquer oposição, não constituir mandatário nem intervier de qualquer forma no processo, o tribunal verifica se a citação foi feita com as formalidades legais e ordena a sua repetição quando encontre irregularidades.» XI - Nos termos do disposto no artigo 567º n.º 1 do CPC «Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.» XII - O efeito consignado na norma citada no paragrafo anterior só não ocorrerá, nos termos do disposto no artigo 568º do CPC, XIII - Pese embora, inicialmente, tenha a ação deduzida contra duas sociedades, a verdade é que nenhuma delas apresentou contestação e a recorrente não é nem estava em situação de incapacidade, pelo que são inaplicáveis as alíneas a) e b) supra citadas. XIV - Os factos alegados na petição inicial enquadram-se no instituto do erro-motivo previstos nos artigos 251 e 247º do Código Civil pelo que a vontade das partes é eficaz para a produção dos efeitos visados pela ação. XV - Ainda que o contrato, cuja anulação diz respeito, tenha a forma de documento particular assinado pelas partes e portanto tenha a força probatória plena decorrente do disposto no artigo 376º do Código Civil, tal não significa que os factos alegados quanto ao erro-motivo tenham de ser provados por documento e/ou tenham de ter correspondência no próprio contrato. XVI - Esta força probatória plena pode porém ceder perante prova em contrário, que não, assentar em presunções judiciais nem em prova testemunhal – conforme artigos 351º e 393º, nº 2 do Código Civil. XVII - Mas pode a prova do erro-motivo assentar na confissão da contraparte no contrato, nomeadamente a resultante da não contestação da ação. XVIII - Dizendo de outro modo e face ao supra alegado, in casu, são inaplicáveis as alíneas c) e d) do artigo 568º do CPC, pelo que a falta de contestação sempre levaria a considerar confessados os factos alegados na petição inicial. XIX - Pelo que não poderá a matéria de facto (de resto julgada provada por decisão que constitui um caso julgado formal anterior à sentença) ser alterada, sob pena de ser violada a legislação alegada. XX - Ou seja, face à confissão dos factos pela recorrida não poderia ser outra a decisão a proferir que não a declaração de anulabilidade do contrato e a declaração de serem inexigíveis quaisquer valores à recorrente. A isto acresce que XXI - De uma forma clara, sucinta e cristalina, sempre a grande maioria das alegações e motivações do recurso a que se responde constituem questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida. XXII - Isto porque assentam em supostos factos que só poderiam ser apreciados pelo digno Tribunal a quo se tivessem sido alegados em sede de contestação. XXIII - Nomeadamente: a alegada utilização do equipamento após cessação do contrato; o modo de cumprimento da obrigação de restituição à recorrente do locado ou aplicação ao caso do instituto da locação que, em rigor, não afasta a aplicação das normas constates dos artigos 247º e 251º do Código Civil. XXIV - Pelo que o recurso a que se responde viola o artigo 608º n.º 2, parte final, ex vi do art. 663º n.º 2, parte final ambos do Código do Processo Civil, devendo por isso ser indeferido.”
10 Considerando que foi feito o pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação do requerimento recursivo no 3.º dia útil subsequente ao termo do respetivo prazo, o recurso foi admitido como apelação, como subida imediata e nos próprios autos, o que foi mantido no exame liminar feito pelo Relator neste Tribunal ad quem.
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II.
11 As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final,ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Deste modo, as questões que se colocam podem ser sintetizadas nos seguintes termos:
1.ª Impugnação da matéria de facto: saber se na sentença recorrida foram considerados factos que não resultaram provados;
2.ª Erro na subsunção dos factos ao direito aplicável: saber se na sentença recorrida foi feita uma errada qualificação jurídica dos factos, violando-se, assim, as normas dos arts. 406, 762/1 e 2, 798, 799, 1022, 1031, 1038, a) e i), 1043, 1047 e 1048, todos do Código Civil.
Antes há, porém, que considerar a questão prévia colocada pela Recorrida, relacionada com a competência em razão do território para o conhecimento do presente recurso.
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III.
12 1) Seguindo a sequência das questões enunciadas, começamos então pela da competência em razão do território para o conhecimento do presente recurso.
Pouco há a dizer.
É indiscutível que a Recorrente afirmou a sua intenção de interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância (Juízo Local Cível ...) para o Tribunal da Relação de Lisboa e que dirigiu a alegação recursiva aos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto.
É indiscutível, também, que o Tribunal da Relação competente para apreciar os recursos interpostos de decisões proferidas pelos Tribunais ... de ..., ..., ... e ... está atribuída ao Tribunal da Relação de Guimarães (art. 21/1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/13 de 26.08, e respetivo anexo I).
Acontece que, no caso, é manifesto que a Recorrente não teve a intenção de dirigir a pretensão recursiva especificamente a outro Tribunal da Relação que não aquele que é o competente, em razão do território, para o conhecimento dos recursos interpostos de decisões dos Juízos do Tribunal Judicial da Comarca ...; as menções equívocas dirigidas aos ... e do ... resultam de mero lapso no processamento informático do requerimento, tendo como única consequência a respetiva retificação, ut art. 249 do Código Civil.
Assim foi entendido pelo Tribunal a quo, que admitiu o recurso e o fez subir para o Tribunal da Relação territorialmente competente. Assim foi também entendido pela Recorrida que dirigiu a resposta ao recurso aos “Exmos. Srs. Juízes Desembargadores do Reverenciado Tribunal da Relação de Guimarães.”
De qualquer modo, o recurso está pendente no Tribunal da Relação de Guimarães, que é, como vimos, o competente em razão do território, pelo que a questão, ainda que tivesse razão de ser, sempre teria ficado exaurida.
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13 2).1. Fica assim aberto o caminho para conhecermos das questões enunciadas, na 1.ª das quais está em causa, como vimos, a impugnação da decisão da matéria de facto.
Os termos a observar na impugnação da decisão da matéria de facto perante a Relação são expostos, de forma exaustiva, no Acórdão desta Relação de 2.11.2017 (212/16.5T8MNC.G1)[1], relatado pela Desembargadora Maria João Matos, que transcrevemos:
“(…) reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto ”nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência”, mas, tão-somente, “detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento” (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recurso”, conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228, …)
Lê-se, assim, no art. 640º, n 1 do C.P.C. que, quando “seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Precisa-se ainda que, quando “os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados”, acresce àquele ónus do recorrente, “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (art. 640º, nº 2, al. a) citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c) do nº 1 do art. 640º citado), “vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes”, “impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 129…).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efetividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional e processual civil - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respetiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).
(…)
Ainda que com naturais oscilações - nomeadamente, entre a 2ª Instância e o Supremo Tribunal de Justiça - (muito bem sumariadas no Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo nº 6617/07.5TBCSC.L1.S1, e no Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 157/12-8TVGMR.G1.S1) -, vêm sendo firmadas as seguintes orientações:
. os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.04.2014, Abrantes Geraldes, Processo nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1);
. não cumprindo o recorrente os ónus impostos pelo art. 640º, nº 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (nesse sentido, Ac. da RG, de 19.06.2014, Manuel Bargado, Processo nº 1458/10.5TBEPS.G1, e Ac. do STJ, de 27.10.2016, Ribeiro Cardoso, Processo nº 110/08.6TTGDM.P2.S1);
. a cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da “exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso”), não funciona aqui, automaticamente, devendo o Tribunal convidar o recorrente, desde logo, a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (neste sentido, Ac. do STJ, de 26.05.2015, Hélder Roque, Processo nº 1426/08.7CSNT.L1.S1);
. dever-se-á usar de maior rigor no apreciação cumprimento do ónus previsto no nº 1 do art. 640º (primário ou fundamental, de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo, mantido inalterado), face ao ónus previsto no seu nº 2 (secundário, destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1);
. o ónus de indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação com exatidão das passagens da gravação onde se funda o recurso só será idónea a fundamentar a rejeição liminar do mesmo se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (neste sentido, Ac. do STJ, de 26.05.2015, Hélder Roque, Processo nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, Ac. STJ de 22.09.2015, Pinto de Almeida, Processo nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1, e Ac. do STJ, de 19.01.2016, Sebastião Póvoas, Processo nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, onde se lê que o ónus em causa estará cumprido desde que o recorrente se reporte à fixação eletrónica/digital e transcreva os excertos que entenda relevantes, de forma a permitir a reanálise dos factos e o contraditório);
. cumpre o ónus do art. 640º, nº 2 do C.P.C. quando não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento, como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da ata, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1); ou quando o recorrente identificou as testemunhas EE, FF e GG, assim como a matéria sobre a qual foram ouvidas, referenciou as datas em que tais depoimentos foram prestados e o CD onde se encontra a respetiva gravação, indicando o seu tempo de duração, e, para além disso, transcreveu e destacou a negrito as passagens da gravação tidas por relevantes e que, em seu entender, relevavam para a alteração do decidido (neste sentido, Ac. do STJ, de 18.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 476/09.oTTVNG.P2.S1);
. a apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo nº 405/09.1TMCBR.C1.S1); nem o faz o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.05.2015, Granja da Fonseca, Processo nº 460/11.4TVLSB.L1.S1);
. servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, mas bastando quanto aos demais requisitos desde que constem de forma explícita na motivação do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, Ac. do STJ, de 01.10.2015, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 03.12.2015, Melo Lima, Processo nº 3217/12.1TTLSB.L1-S1, Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 861/13.3TTVIS.C1.S1, e Ac. do STJ, de 21.04.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 449/10.0TVVFR.P2.S1);
. não deve ser rejeitado o recurso se o recorrente seguiu uma determinada orientação jurisprudencial acerca do preenchimento do ónus de alegação quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 640º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo nº 6617/07.5TBCSC.L1.S1);
. a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1).
Compreende-se, por isso, que se afirme que a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 128 e 129…).”
Precisando o ónus previsto na alínea c) do n.º 2 do art. 640, o STJ proferiu, recentemente, Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (Acórdão de 17.10.2023, no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1), com a seguinte fórmula uniformizadora: “Nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
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14 2).2. Partindo do que antecede, afigura-se evidente que a Recorrente soçobrou no cumprimento do 1.º dos apontados ónus.
Com efeito, quanto à indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, temos que a Recorrente não discriminou, nas conclusões, os pontos da matéria da fundamentação de facto da sentença recorrida que, na sua ótica, foram incorretamente julgados; limitou-se a afirmar, em termos genéricos, que “[n]a fundamentação de facto constante da sentença, constam diversos factos como provados, não podendo ser aceite apenas a revelia da Ré para o Tribunal a quo dar todos os factos alegados pela Recorrida como provados, com total ausência crítica face à prova documental.”
Sendo isto “demasiado pouco”, na conhecida expressão de Epícuro de Samos, a conclusão que se impõe, sem necessidade de outras considerações, é a rejeição do recurso na parte em que é impugnada a decisão quanto à matéria de facto.
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15 2).3.1. Sem prejuízo do que antecede, aplicam-se ao acórdão da Relação, por força do disposto no art. 663/2 do CPC, as regras relativas à elaboração da sentença, entre as quais se insere a do art. 607/4 do CPC, segundo a qual o juiz deve tomar em consideração, na fundamentação da sentença, os factos admitidos por acordo e os plenamente provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, estando ainda impedido de considerar provados factos relativamente aos quais a prova é vinculada, como sucede com os que apenas podem provar-se documentalmente (art. 364/1 do Código Civil).
16 Assim sucede, também, nas ações não contestadas em que a revelia é operante: depois de dizer que a falta de contestação do réu que tenha sido regularmente citado tem como efeito a confissão dos factos articulados pelo autor (art. 567/1 do CPC), o legislador logo prevê, como exceção a esse efeito, os factos para cuja prova a lei exija documento escrito (art. 568, d)).
17 Deste modo, à semelhança do que sucede com o tribunal de 1.ª instancia, também a Relação tem poderes tanto para, independentemente da iniciativa da parte, determinar a assunção de factos segundo regras imperativas de direito probatório, como para a desconsideração de factos cuja prova tenha desrespeitado essas mesmas regras. Neste sentido, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, deve integrar na decisão o facto que a 1.ª instância considerou como não provado ou retirar dela o facto que foi considerado como provado com desrespeito por tais regras. A propósito, vide António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 336.
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18 2).3.2. Analisando a sentença recorrida sob este prisma, não vislumbramos que nela tenha sido dado como provado qualquer facto com desrespeito por regras de direito probatório material.
Com efeito, temos, desde logo, que o contrato celebrado entre as partes, por ambas qualificado como de aluguer (arts. 1022 e 1023 do Código Civil), não está sujeito a qualquer forma legal, valendo, assim, em relação a ele a regra da liberdade de forma consagrada no art. 220 do Código Civil.
Temos, depois, que tendo as partes adotado, não obstante a natureza consensual do contrato, a forma escrita, cf. art. 222 do Código Civil, o escrito em que ficaram plasmadas as respetivas declarações de vontade foi junto aos autos e foi com base no que dele consta que o facto em questão foi considerado como provado pelo Tribunal a quo na sentença recorrida, assim se corrigindo o teor menos preciso do despacho de 24 de maio de 2023 que considerou “confessados”tout court os factos alegados pela Recorrida.
Temos, finalmente, que os factos que não são provados através desse escrito – em suma, aqueles em relação aos quais se fez operar o efeito a revelia – não dizem respeito a estipulações verbais anteriores ou contemporâneas ao escrito, mas às circunstâncias em que o contrato foi celebrado, à vontade real da Recorrida e aos motivos que a determinaram e, bem assim, ao conhecimento que a Recorrente tinha destes. Sem prejuízo, mesmo as estipulações verbais anteriores ou contemporâneas das partes podem ser consideradas como confessadas em resultado da revelia operante quando também esteja alegado que correspondem à vontade do declarante (art. 222/1 do Código Civil).
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19 3).1. Passamos, assim, para a segunda questão.
Com interesse para o conhecimento desta, vimos já que não suscita dúvida que as partes celebraram um contrato de aluguer. Com efeito, das declarações que ficaram plasmadas no escrito, sintomaticamente batizado de Contrato de aluguer, e que constituem o mútuo consenso, resulta claramente que a 1.ª Ré se obrigou a ceder à Recorrida o gozo de determinadas máquinas, durante 36 meses, tendo como contrapartida o pagamento de uma quantia, denominada de aluguer. Por outro lado, não resulta dessas declarações de vontade que, uma vez atingido o termo de vigência previsto, a propriedade das máquinas se transmitisse para a Recorrida, sem necessidade da interposição de qualquer ato. Não resulta sequer que a 1.ª Ré se tivesse obrigado a transmitir a propriedade das máquinas para a Recorrida, eventualmente contra o pagamento de um valor residual.
Sustentou a Recorrida, no entanto, que ao emitir a sua declaração negocial o fez no errado convencimento de que no termo do contrato adquiriria, ipso facto, a propriedade das máquinas locadas.
É com este fundamento, cujos factos substanciadores se têm como adquiridos por via da referida confissão da Ré, que a Recorrida pretende a anulação do contrato.
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20 3).2. Isto dito, resulta do art. 247 do Código Civil, que “[q]uando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponde à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declaratário, do elemento sobre que incidiu o erro.”
Mais adiante, o art. 251, sob a epígrafe “Erro sobre a pessoa ou sobre o objeto do negócio”, diz que “[o] erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º ”
Por último, e agora sob a epígrafe de “Erro sobre os motivos “, dispõe o n.º 2 do art. 252 que se o erro “recair sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, é aplicável ao erro do declarante o disposto sobre a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi concluído.”
Segundo a lição de Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 235, no primeiro normativo (o do “erro na declaração”) prevê-se o chamado “erro obstáculo”, ou seja, “formou-se, sem erro, uma certa vontade, mas declarou-se outra.” Já no segundo normativo prevê-se o chamado “erro-motivo” ou “erro-vício – ou seja, existindo perfeita conformidade entre a vontade real e a declarada, ocorre, porém, que a primeira foi formada com base em erro, pois que, não existindo ele, a pessoa não teria pretendido realizar o negócio, ou pelo menos nos termos em que o realizou.
Ainda segundo os mesmos autores, Código cit., p. 235, recaindo o “erro-motivo” sobre a pessoa do declaratário ou sobre o objeto do negócio, as consequências são iguais às do erro na declaração.
Resulta assim que o erro (o erro-vício) do art. 251 recai sobre o lado interno, subjetivo. A respetiva “essencialidade tem de ser encarada sob o aspeto subjetivo do errante e não sob qualquer outro” ou, dito de outra forma, não obstante existir uma convergência entre a vontade real e a declaração, acontece que aquela, em consequência do erro, se formou mal, divergindo assim da vontade hipotética que o declarante teria tido sem erro. A vontade ficou viciada.
O erro sobre a identidade do objeto incide sobre a substância ou sobre as qualidades essenciais deste. Em causa está apenas, diretamente, o objeto do negócio.
Já o erro a que alude o n.º 2 do art. 252, ao incidir sobre a base do negócio, é aquele que incide “sobre as circunstâncias (pretéritas, presentes ou futuras) em que as partes fundaram a decisão de contratar” (Pires de Lima / Antunes Varela, Código cit., p. 235). Trata-se de um erro que recai sobre os motivos não referentes à pessoa do declaratário nem ao objeto do negócio, mas sobre uma circunstância decisiva na formação da vontade, em termos tais que, caso o adquirente conhecesse o verdadeiro estado de coisas, não teria efetivado o acordo, ou, pelo menos, não o teria querido nos termos em que o concluiu.
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21 3).3. As singelas considerações que antecedem, permitem-nos enquadrar a situação dos autos na figura do erro na declaração prevista no art. 247 do Código Civil e não na figura do erro sobre os motivos e, muito menos, na figura residual do erro sobre a base do negócio. Na verdade, o que sucedeu foi que a Recorrida celebrou o referido contrato de aluguer, emitindo a sua declaração de vontade nesse sentido, convencida de que estava a celebrar um contrato de outro tipo, mais próximo de um contrato de financiamento. Emitiu assim, por forma não intencional, uma declaração de vontade (aluguer das máquinas) desconforme com a sua vontade real (cedência do gozo das máquinas mediante o pagamento de uma contrapartida monetária que se converteria, no termo do contrato, no preço de compra e concomitante transmissão da propriedade). Trata-se de uma situação diferente daquela que caracteriza o denominado erro sobre os motivos, a qual pressupõe, como escrevemos, um vício na formação da vontade, decorrente da ignorância ou da falsa representação de uma circunstância de facto ou de direito, passada ou presente, relativamente ao momento da emissão da declaração negocial, e que determinou a celebração do negócio ou, pelo menos, a celebração naqueles termos.
22 É claro que a delimitação das duas figuras – erro-obstáculo e erro-vício – não é isenta de dificuldades, sobretudo nos casos de charneira, dos quais Maria João Vaz Tomé (“art. 247.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, p. 703) dá o exemplo de error in iudicando ou erro de juízo, de erro sobre o significado: “num contrato de língua inglesa, uma das partes atribui à expressão chaterparty um sentido diferente daquele que lhe é próprio no contexto da sua origem).”
Como a mesma autora salienta, “[a] própria coerência conceptual da contraposição entre erro-obstáculo e erro-vício é objeto de críticas, dizendo-se que estabelece uma oposição artificial entre formação da vontade interna, de um lado, e, de outro, exteriorização dessa vontade. Alguns autores sustentam até que a contraposição entre erro na declaração e erro-vício não corresponde àquela estabelecida no código Civil entre o erro na declaração e algumas hipóteses previstas no art. 251.”
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23 3).4. Como resulta do citado art. 247 do Código Civil, a relevância do erro na declaração depende da verificação de dois requisitos: a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre o erro; o conhecimento dessa essencialidade pelo declaratário ou o dever de a conhecer.
24 O primeiro traduz-se na necessidade de o elemento sobre que incidiu o erro do declarante ser decisivo para a celebração do negócio em si mesmo ou nos seus elementos essenciais. Pressupõe-se um juízo hipotético sobre a declaração que teria sido emitida. Como escreve Maria João Vaz Tomé (“art. 247.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, p. 706), “a essencialidade tem de ser analisada subjetivamente e em concreto, e não objetivamente e em abstrato (segundo o critério do declaratário razoável ou normal), pois cada um determina livremente os elementos que o possam conduzir a celebrar o contrato.”
25 O segundo requisito consiste no conhecimento (que é subjetivo) ou na suscetibilidade de conhecimento (que é objetiva), pelo declaratário, da essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que versou o erro. Não basta, portanto, que o erro tenha sido essencial para o declarante; é ainda necessário o conhecimento ou a cognoscibilidade dessa essencialidade pelo declaratário.
Quando assim sucede, estando então verificados os dois requisitos, o negócio é anulável, pois não há boa-fé ou confiança digna de tutela.
26 A matéria de facto adquirida permite concluir pela verificação destes dois requisitos: para a Recorrida era condição para a celebração do contrato que este previsse a aquisição, no respetivo termo, do direito de propriedade sobre as máquinas; a Recorrente tinha disso perfeito conhecimento.
Deste modo, apesar do equivoco enquadramento da situação de erro, a decisão (constitutiva) de anular o negócio – ainda que impropriamente expressa sob a (“declarando a anulação do contrato”) – tomada na sentença recorrida apresenta-se como correta.
Não se vislumbra em que medida foram violadas as normas legais indicadas pela Recorrente: a aplicação dessas normas não foi convocada pela sentença recorrida. E de forma correta, posto que todas elas versam sobre o cumprimento do contrato, pressupondo, assim, a sua validade.
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27 3).5. Não podemos, porém, deixar de notar que a Recorrente tem razão quando conclui que a Recorrida não adquiriu a propriedade sobre as máquinas e que está obrigada à sua restituição. Simplesmente essa obrigação não resulta do contrato, mas da sua anulabilidade, sendo imposta pela norma do n.º 1 do art. 289 do Código Civil, da qual resulta que “[t]anto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”
28 Como decorre deste preceito, com a declaração de nulidade ou a anulação de um negócio, estabelece-se entre as partes uma relação de liquidação: deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Esta solução está em consonância com a ideia de que o fator que determina a invalidade é contemporâneo da declaração negocial – isto é, nas palavras de Sconamiglio, citado por Rui de Alarcão, Invalidade dos Negócios Jurídicos – Anteprojeto para o Novo Código Civil, BMJ 89, p. 236, nota 92, “a invalidade constitui, pela sua própria essência, um fenómeno necessariamente contemporâneo do negócio (da sua existência).”
29 Acontece que, nos contratos em que uma das partes beneficie do gozo de uma coisa ou de um serviço, como é o caso dos autos, apresentam-se com algumas especificidades que não podem deixar de ponderar-se à luz do regime do art. 289/1. O mesmo é dizer que o mecanismo do art. 289/1, com eficácia ex tunc, na sua radicalidade, se não se neutralizarem os efeitos da nulidade ou da anulação em relação às prestações já efetuadas, não assegura a restituição de tudo o que foi prestado. Resultado este que não cumpre a teleologia do próprio preceito e que se aliado à inaplicação do instituto de enriquecimento sem causa, é de uma injustiça flagrante e impele o intérprete a procurar outra via para realizar a maior justiça possível.
Neste sentido, entendeu-se em STJ 16.10.2003 (03B484), a propósito da obrigação de restituir, decorrente da declaração de nulidade do negócio jurídico, no domínio das relações obrigacionais duradouras, que “a nulidade, conquanto tipicizada pelos mais drásticos predicados de neutralização do negócio operando efeitos interativos ex tunc, nem assim pode autorizar a ilação de que o negócio jurídico seja equivalente a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido. A celebração do negócio revela-o existente como evento e por isso não está ao alcance da ordem jurídica tratar o ato realizado como se este não houvesse realmente ocorrido, mas apenas recusar-lhe a produção de efeitos jurídicos que lhe vão implicados.
Não é, por conseguinte, exata a ideia de que, mercê da nulidade, tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado ou produzido quaisquer efeitos. Bem ao invés, porque o contrato é algo que na realidade aconteceu, daí precisamente a sua repercussão no subsequente relacionamento jurídico das partes. Pode na verdade suceder que os contraentes tenham efetuado prestações com fundamento no contrato nulo, ou posto em execução uma relação obrigacional duradoura, dando lugar à abertura de uma vocacionada composição inter-relacional dos interesses respetivos - v. g., a sociedade desenvolveu normalmente as suas atividades comerciais, agindo e comportando-se os fundadores como sócios por determinado período de tempo, não obstante a nulidade do contrato social; sendo nulo o contrato de trabalho, todavia o trabalhador prestara efetivamente os seus serviços à entidade patronal.
Neste conspecto – e ademais quando se pretenda estar vedado no domínio específico das invalidades o recurso aos princípios do enriquecimento sem causa pelo carácter subsidiário do instituto – observa-se estar hoje generalizado o entendimento segundo o qual deve o contrato nulo ser valorado, em semelhante circunstancialismo, e no que respeita ao desenvolvimento ulterior da aludida composição entre as partes (…) como “relação contratual de facto” suscetível de fundamentar os efeitos em causa (v. g., a remuneração do trabalho prestado no quadro do contrato laboral nulo por incapacidade negocial do trabalhador), encarados agora, não como efeitos jurídico-negociais de contrato inválido, mas na dimensão de efeitos (ex lege) do ato na realidade praticado.
E, assim, tratando-se de relações obrigacionais duradouras, no domínio das quais, desde que em curso de execução, encontra em princípio aplicação a figura do “contrato de facto” – “contrato imperfeito” noutra terminologia; de “errada perfeição” (…) tudo se passará, nos aspetos considerados, como se a nulidade do negócio jurídico apenas para o futuro (ex nunc)operasse os seus efeitos.”
Este entendimento converge, no essencial, com as posições de Rui Alarcão (“A Confirmação dos Negócios Anuláveis”, I, Coimbra, 1971, p. 76, nota 101), que considera que “a chamada restituição em valor virá, por vezes, a traduzir-se no respeito pela execução, entretanto ocorrida, do negócio” e de António Meneses Cordeiro (“Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo I, p. 874) que, a propósito, escreve que “[n]os contratos de execução continuada em que uma das partes beneficia do gozo de uma coisa – como no arrendamento – ou de serviços – como na empreitada, no mandato ou no depósito – a restituição em espécie não é, evidentemente, possível. Nessa altura, haverá que restituir o valor correspondente o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada. Isto é: sendo um arrendamento declarado nulo, deve o “senhorio” restituir as rendas recebidas e o “inquilino” o valor relativo ao gozo de que desfrutou e que equivale, precisamente, às rendas. Ambas as prestações restitutórias se extinguem, então, por compensação, tudo funcionando, afinal, como se não houvesse eficácia retractiva, nestes casos.”
30 Deste modo, é axiomático que a Recorrente tem direito a obter a restituição das máquinas e poderá ainda ter direito à indemnização decorrente do não cumprimento tempestivo da correspondente obrigação de entrega por parte da Recorrida. A Recorrida não tem direito à restituição das quantias que pagou a título de aluguer, uma vez que há equivalência entre estas e o valor do gozo das máquinas que lhe foi cedido pela Recorrente, pelo que as correspondentes obrigações restitutórias devem considerar-se extintas.
31 Isto evidencia que a Recorrente é titular, pelo menos, de um direito de crédito sobre a Recorrida, pelo que não pode, assim, afirmar-se, sem mais, que esta nada deve àquela.
O segundo pedido formulado na petição inicial, característico de uma ação de simples apreciação negativa, estava condenado ao insucesso, em consequência da própria tese defendida pela Recorrida, pelo que se impõe a revogação da sentença recorrida na parte em que o julgou procedente.
Esta solução tem enquadramento na conclusão 12 das alegações da Recorrente, onde esta considera que uma possível condenação da Recorrida na restituição das máquinas, em cumprimento da obrigação de as restituir, fica precludida com o reconhecimento de que esta nada lhe deve.
32 Apenas se acrescenta que semelhante condenação não pode ocorrer nesta ação. Valem aqui as considerações feita no Acórdão desta Relação de 19.01.2017 (1168/13.1TBFAF.G1), relatado pelo Juiz Desembargador José Amaral, que respigamos:
“Na decisão final de uma ação declarativa constitutiva cuja finalidade primordial é produzir uma mudança na ordem jurídica existente (artº 10º, nºs 1 a 3, alínea c), CPC), destruindo um negócio celebrado e repondo a situação anterior ao mesmo, embora geralmente se admita a cumulação do pedido deduzido pela parte ativa nos efeitos decorrentes da sua procedência pressupondo que a parte passiva tal não reconheceu nem aceitou voluntariamente e, portanto, se opôs ao cumprimento da consequente prestação para si derivada daquela (nº 3, alínea b), do citado artigo e artº 555º, nº 1) tornando necessária a ação (condenatória) para o credor a obter coercivamente (artºs 2º, nº 2), não cabe ao tribunal condenar este na contraprestação.
Não cabe desde logo porque sendo ela o correspetivo da anulabilidade pedida e da prestação consequente para si derivada da sua procedência e declaração, é suposto que o autor a reconhece e, em coerência, se dispõe voluntariamente a cumpri-la, sem necessidade de qualquer pronúncia sobre isso pelo Tribunal a impô-la.
Tendo, aliás, a declaração de nulidade do negócio efeito retroativo e devendo ser restituído “tudo” o que, em cumprimento dele, “tiver sido prestado”, obviamente por qualquer dos sujeitos de tal relação jurídica (nº 1, do artº 289º, CC), a própria lei acautela a efetivação de tais obrigações recíprocas: elas “devem ser cumpridas simultaneamente, sendo extensivas ao caso, na parte aplicável, as normas relativas à exceção de não cumprimento do contrato” (artºs 290º e 428º, nº 1, CC).
Assim sendo, não se decide o que, em princípio, não é objeto de litígio, nem, por isso mesmo, constitui objeto da ação.
Evidentemente, os autores não pediram (nem podiam pedir) a condenação deles próprios na restituição da coisa. Os réus também não deduziram qualquer pedido reconvencional a tal propósito. Embora seja um efeito decorrente da lei e que o tribunal constata e até, como no caso, afirma, não pode ele condenar, como é princípio e regra, em objeto diverso do que tenha sido pedido (artº 609º, nº 1, CPC).
Como é sabido, por força do princípio dispositivo, o objeto do processo é definido pelo pedido – efeito jurídico visado e forma de tutela pretendida para o mesmo – e pela causa de pedir (artºs 5º, e 552º, nº 1, alíneas d) e e), CPC). Daí que ne eat iudex ultra vel extra petita partium.”
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33 4) Resta dizer que, na procedência parcial do presente recurso de apelação, as custas, quer as da ação, quer as do recurso, devem ser suportadas por Recorrida e Recorrente, em partes iguais, por ambas serem simultaneamente parte vencedora e parte vencida nas suas instâncias, aplicando-se assim o critério da causalidade consagrado no art. 527 do CPC.
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IV.
34 Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação e, em consequência:
· Revogar a sentença recorrida na parte em que declarou que “nada mais é devido pela Recorrida à Ré EMP03..., SA”, julgando, em substituição, tal pedido improcedente;
· No mais, confirmar a sentença recorrida.
· Condenar Recorrente e Recorrida no pagamento das custas, tanto da ação como do presente recurso, em partes iguais.
Notifique.
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Guimarães, 18 de janeiro de 2024
Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (1.º Adjunto)
Maria Gorete Morais (1.ª Adjunta)
José Carlos Pereira Duarte (2.º Adjunto)
[1] Disponível, como os demais indicados no texto sem menção expressa ao local da sua publicação, em www.dgsi.pt.