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PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
OBJECTO DA PROVA
CONTRATO DE GARANTIA AUTÓNOMA
GARANTIA ON FIRST DEMAND
APROVEITAMENTO ABUSIVO
Sumário
I – A prova a produzir destina-se a demonstrar a realidade dos factos afirmados relevantes para a decisão (artº 341º do Código Civil), sendo que a demonstração que se pretende obter com a prova se traduz na convicção subjetiva a criar no julgador. II - Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do procedimento (providência solicitada e causa de pedir), sendo objeto da instrução os factos, principais e instrumentais – v. arts 410º e 5º do CPC e 341º e segs, do CC. III – Cabe ao tribunal pronunciar-se sobre as provas propostas e emitir, sobre elas, um juízo, não só de legalidade mas também de pertinência sobre o seu objeto: a prova de factos, controvertidos, relevantes para a decisão. IV – Garantia autónoma é um contrato outorgado entre o mandante da garantia e o garante, a favor de um terceiro, o beneficiário, podendo o garante opor ao beneficiário apenas as exceções que constem do próprio texto da garantia. A garantia on first demand traduz-se numa promessa de pagamento à primeira interpelação ou primeira solicitação, bastando, para ser acionada, a interpelação do beneficiário da garantia, não podendo ser discutido o cumprimento ou incumprimento do contrato principal. V – Contudo, a automaticidade da garantia on first demand, não é absoluta, restrições se impondo, por força das regras da boa fé (artigo 762º, nº 2, do Código Civil) e das do abuso de direito (artigo 334º do mesmo diploma legal), válvulas de segurança do sistema, sendo possível o recurso a medidas cautelares tendentes a impedir o beneficiário da garantia de receber a quantia objeto da mesma. VI - Com efeito, em circunstâncias de abuso do beneficiário da garantia, pode, em procedimento cautelar comum (art. 362º e segs, do CPC), ser pedida a suspensão/inibição do pagamento, impendendo sobre o Requerente o ónus de alegar e provar, não só o risco de prejuízos graves que sofrerá na ausência de tal medida cautelar, como todos os demais requisitos do referido procedimento. VII – Porém, face ao que emerge do próprio texto da garantia e das suas específicas características, a prova da fraude ou aproveitamento abusivo por parte do beneficiário (limite ao direito que da garantia resulta, a afastá-lo) tem de ser líquida, segura, irrefutável e pronta, a gerar, na sua falta, se não ordene a providência solicitada; VIII - Tal prova pode ser a documental (carecida de tradução, se em língua estrangeira), a testemunhal, as declarações de parte e outra, sendo todas elas admissíveis, por lícitas e pertinentes, e de admitir, sob pena de ilícita e desproporcionada restrição dos instrumentos de prova, com compressão do direito à prova e afetação do direito à tutela jurisdicional efetiva, sendo que a convicção do julgador sobre os factos, também os que integram a má fé e o abuso, se forma da análise conjunta e conjugada de todos os meios de prova e não apenas da documental ou outra pré-constituída.
Texto Integral
Processo nº14393/23.8T8PRT.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Central Cível do Porto - Juiz 1
Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Manuel Fernandes
2º Adjunto: Des. Maria de Fátima Andrade
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário(cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO Recorrente: A..., Lda Recorridas: B..., Unipessoal, Lda e C..., SA
Veio A..., Lda instaurar procedimento cautelar comum contra B..., Unipessoal, Lda e C..., SA a solicitar se ordene: i) à 2ª requerida que, até ao transito em julgado da decisão a proferir na ação principal de que este procedimento cautelar é dependente, não pague à 1ª requerida qualquer quantia por conta da garantia bancária nº ..., no valor de € 63.262,87; e ii) à 1ª requerida se abstenha de praticar qualquer ato com vista ao acionamento ou ao pedido de pagamento de quaisquer quantias junto da 2ª requerida relativas à sobredita garantia bancária,
dada a situação, que densifica, de má fé e de abuso da 1ª Requerida, beneficiária da garantia prestada pela segunda requerida, a solicitação da requerente, a fundamentar inibição do acionamento da garantia bancária on first demand junta aos autos, cujo acionamento lhe causará prejuízos graves.
Apenas a 1ª requerida apresentou oposição a impugnar os factos alegados e a sustentar a improcedência do procedimento cautelar dado tratar-se de garantia bancária autónoma que não pode ser afastada pela prova sumária característica daqueles procedimentos.
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Entendendo encontrar-se habilitado a decidir, proferiu o tribunal a quo decisão, com a seguinte
parte dispositiva:
“Pelo exposto, indefere-se a presente providência cautelar não especificada intentada pela Requerente, A..., LDA e dela se absolve as Requeridas, B..., UNIPESSOAL LDA e C..., S.A.. Custas a cargo da Requerente. Valor da causa: € 63.262,87 (sessenta e três mil, duzentos e sessenta e dois euros e oitenta e sete cêntimos)”.
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Apresentou a Requerente recurso de apelação, a pugnar por que seja revogada a decisão e determinado o prosseguimento dos autos para produção da prova requerida pelas partes,formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
1. Não se conforma a Recorrente com a sentença proferida pelo Tribunal a quo que indeferiu a providência cautelar rogada, a concretizar: uma providência cautelar inibitória que impedisse a execução da garantia bancária prestada pela 2.ª Requerida a favor da 1.ª Requerida. 2. O Tribunal a quo indeferiu a providência cautelar requerida sem ter produzido a prova rogada pelas partes, a concretizar: as declarações de parte e a inquirição das testemunhas. 3. Fê-lo por considerar que o decretamento da providência cautelar requerida está dependente da apresentação de prova pronta, líquida, irrefutável de uma violação flagrante e inequívoca das regras da boa-fé, que integre uma atuação manifestamente fraudulenta ou importe a violação de interesses de ordem pública (fumus boni iuris) e que só a prova documental pré-constituída pode, eventualmente, constituir tal prova. 4. Concluindo o Tribunal a quo que, in casu, inexiste a aludida prova. 5. Todavia, consideramos, com o devido respeito, que o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo não é correto, pois a prova pronta, líquida, irrefutável de uma violação flagrante e inequívoca das regras da boa-fé, que integre uma atuação manifestamente fraudulenta ou importe a violação de interesses de ordem pública (fumus boni iuris) pode ser obtida com recurso a qualquer um dos meios de prova admitidos para as providências cautelares não especificadas, mormente, a prova testemunhal. 6. Assim, a sentença proferida deve ser revogada, prosseguindo os autos para produção da prova requerida pelas partes, a concretizar: declarações de parte das Requerente e 1.ª Requerida e inquirição testemunhal.
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Apresentou a requerida B..., UNIPESSOAL, LDA. contra-alegações a pugnar por que seja indeferido o recurso por incumprimento do ónus de alegação constante do artigo 639.º, do CPC, e, sem prescindir, seja negado provimento ao recurso, concluindo: “…a Recorrente incumpriu o seu ónus de identificação das normas jurídicas violadas, e bem assim a indicação do sentido com que o Tribunal a quo devia ter interpretado ou aplicado o direito; C. Certo é que o tribunal recorrido não incumpriu qualquer norma legal, tendo-se limitado a decidir com base nos factos alegados e com base na prova que considerou relevante; D. Bem andou o Tribunal ao ter considerado desnecessária a produção de prova testemunhal, porque da mesma não iria resultar a prova pronta, líquida e irrefutável de um abuso de direito da Recorrida B..., uma vez que, dos factos articulados e dos documentos juntos para os demonstrar, já era evidente que esse abuso inexistia por completo; E. Na verdade, não está alegado, nem, naturalmente, demonstrado pela documentação junta à petição inicial que é ilícita e abusiva a conduta da Recorrida B..., verificando-se ao invés, pela leitura da oposição e documentos nela juntos, que existe um litígio entre as partes acerca da execução do contrato garantido, do seu incumprimento, e a quem se deve imputar o incumprimento do mesmo, pelo que a providência sempre teria de ser indeferida, sob pena de se subverter a finalidade para a qual a garantia foi configurada; F. E com isto não há qualquer compressão do direito de produção de prova por parte da Recorrente: G. Assim, a sentença está em conformidade com aquela que se julga ser a melhor interpretação da lei vigente aplicável e bem fundamentada, pelo que deve ser mantida, julgando-se improcedente o recurso interposto.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS - OBJETO DO RECURSO
Apontemos a questão objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal. Assim, as questões a decidir são as seguintes: 1ª - Do incumprimento do ónus de alegação. 2ª - Da admissibilidade (legalidade e pertinência), em procedimento cautelar comum para inibição/suspensão da execução da garantia bancária, de prova testemunhal e de declarações de parte para prova da alegada atuação abusiva e de má fé de beneficiária da garantia on first demand.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO
Os factos provados com relevância para a decisão constam já do relatório que antecede, resultando a sua prova dos autos, acrescentando-se o seguinte:
- É o seguinte o teor do
despacho recorrido:
“O Tribunal encontra-se em posição de apreciar, desde já, a presente providência cautelar, o que passa a fazer. Resulta claro dos factos alegados e dos documentos juntos aos autos (máxime documento nº 1) que a garantia com o nº..., prestada a pedido da Requerente e a favor da 1.ª Requerida foi, concebida pelas partes como uma garantia bancária à primeira solicitação. A garantia bancária autónoma constitui um instrumento imprescindível ao desenvolvimento económico, colocando os sujeitos a coberto das dificuldades de cobrança de créditos que, pelas mais variadas razões, podem ocorrer, permitindo que confiadamente cada uma das partes aceite a contratação. Tais garantias são, em geral, assumidas por entidades do sector financeiro dotadas de solvabilidade que, em contrapartida de remuneração e depois da avaliação do risco negocial, aceitam responsabilizar-se pelo cumprimento de obrigações do ordenante ou dador da garantia. Cumprimento esse que pode ser imediatamente solicitado (“à primeira solicitação”), sem que o garante (ou o devedor) possa colocar obstáculos decorrentes do relacionamento contratual subjacente. Como refere Duarte Pinheiro, “…através da garantia bancária autónoma, o banco fica adstrito para com o beneficiário à realização duma prestação pecuniária, logo que por este último seja invocado o incumprimento da obrigação garantida ou a impossibilidade da prestação a que respeita a obrigação garantida. Sendo certo que é na área da construção civil, dos fornecimentos, do engeneering, da cooperação industrial, que a garantia bancária autónoma se manifesta com mais frequência.”(ROA, nº 52, pag. 419 e 427). Sob pena de total inversão da configuração normal da garantia on first demand, com prejuízo para a utilidade que pode extrair-se da mesma, deve ser encarada, como instrumento que, uma vez accionado pelo credor, permite obter do garante uma resposta imediata, a qual não poderá ser paralisada por alegações mais ou menos fundadas respeitantes ao contrato subjacente ou ao relacionamento entre o beneficiário e o dador ou entre o beneficiário e a entidade que assumiu o compromisso traduzido na garantia autónoma. A garantia bancária autónoma, automática ou à primeira solicitação é "…a garantia pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base) sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o mesmo contrato." (Galvão Telles, “Garantia Autónoma, in o “Direito”, 120, pag. 283). As garantias autónomas à primeira solicitação obedecem ao seguinte lema: paga-se primeiro e discute-se depois. Esta característica é o traço distintivo da garantia autónoma à primeira solicitação, que não se destina, como a fiança, a satisfazer uma dívida alheia, mas a garantir ao beneficiário a satisfação (automática) de um seu crédito bastando-lhe que alegue que o mesmo não foi satisfeito pelo devedor. O banco garante não se imiscui nos litígios entre o devedor e o beneficiário, não tendo que tomar posição a favor de um ou de outro. "O garante paga ao credor sem discutir; depois o devedor tem de reembolsar o garante também sem discutir. E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a divida não existisse e ele, portanto não fosse, afinal, verdadeiro devedor.” (Galvão Telles, ob cit.). Importa ainda referir que em função da finalidade da garantia encontramos: a) a garantia de oferta. Esta garantia, também definida como “promessa mediante anúncio”, “garantia de honorabilidade da proposta”, “garantia de subsistência da oferta” ou “garantia de licitação”, tem como finalidade garantir que o garantido irá honrar a proposta apresentada. Ou seja, o garante obriga-se a pagar certa quantia ao beneficiário na eventualidade de o garantido não cumprir com as formalidades atinentes à celebração de certo contrato. b) a garantia de boa execução do contrato. Esta tem como função garantir ao beneficiário o perfeito e pontual cumprimento da obrigação do garantido; assim, o garante está obrigado a pagar a quantia determinada quando aquela situação não se verifique. Esta garantia tem por objecto a indemnização do dano resultante para uma das partes do incumprimento pela outra parte da prestação característica do contrato. Existe aqui uma obrigação anterior, cujo interesse económico leva o beneficiário a pedir este tipo de garantia. Olhando para a sua função podemos distinguir duas formas: por um lado temos as garantias de entrega e, ao lado destas, temos aquelas que decorrem de contractos. c) a garantia de reembolso de pagamentos antecipados. Também é frequente referirmo-nos a esta garantia como garantia de restituição ou simplesmente garantia de reembolso. Esta garante que o beneficiário receberá o valor que já pagou, se a outra parte não cumprir o acordado. Ou seja, se o beneficiário da garantia não recebeu do garantido aquilo a que este se obrigou e que já havia pago, o garante está obrigado a entregar o preço acordado. d) a garantia de pagamento. A garantia de pagamento é a de mais fácil compreensão, reconduzindo-se à obrigação de o garante pagar quando o garantido não cumpra, ou não cumpra pontualmente, a obrigação pecuniária a que se obrigou, pelo que não carece de mais explicações. A garantia em apreciação integra-se na categoria das garantias de reembolso de pagamento antecipado (Repayment Bonds ou advance payment bond), que se traduzem na possibilidade de o beneficiário ser satisfeito pelo garante quando já adiantou montantes ao ordenante que não cumpriu. O garante assegura a devolução dos valores adiantados pelo beneficiário da garantia, em caso de incumprimento da prestação em função da qual tais adiantamentos foram efectuados. Os princípios fundamentais relativos ao funcionamento da garantia bancária autónoma não são, evidentemente, absolutos e rígidos. Existem, porém, situações em que o garante pode recusar o pagamento. E é assim que para Galvão Tellesa única razão que justifica a recusa do banco em honrar a garantia prestada, será a manifesta má-fé do beneficiário. Exigindo-se a “manifesta” ou “patente” má-fé. Outros autores admitem, como única excepção ao pagamento imediato da garantia, o caso de “fraude manifesta, de abuso evidente, por parte do beneficiário”, que terão de ser “inequívocos”. Deve, pois, concluir-se que o critério para aferir dos limites à recusa de pagamento de uma garantia bancária tem de ser muito restritivo, com exigência de clara, inequívoca e manifesta má-fé, por parte do beneficiário, sob pena de se desvirtuar a razão de ser da garantia bancária automática. Assim, em regra, os efeitos da garantia bancária autónoma não poderão ser perturbados pela intervenção de medidas cautelares, salvo em raras excepções reduzidas ao mínimo. Por um lado, devem situar-se numa estreita faixa delimitada pelas regras da boa fé ou do abuso de direito ou pela necessidade de evitar benefícios decorrentes de factos ilícitos, designadamente envolvendo fraudes ou falsificação de documentos. Ora, a questão que é suscitada nestes autos reside em saber se os factos alegados serão susceptíveis de integrar uma situação excepcional nos termos descritos, de molde a justificar a recusa do pagamento da garantia, sendo certo que o tribunal não pode deixar de se orientar pelo referido critério restritivo, que faça jus à natureza autónoma da garantia e ao seu carácter “on first demand”, de modo que o decretamento de qualquer providência inibitória deve ser reservado para a alegação e prova de circunstâncias que traduzam os conceitos acima referidos. A jurisprudência maioritária dos nossos Tribunais Superiores tem entendido que quando a providência cautelar é requerida como forma de obstar a uma solicitação abusiva ou fraudulenta por parte do beneficiário, deve ser exigida a prova líquida, inequívoca, pronta e irrefutável, sob pena de se subverter a finalidade para a qual agarantia foi configurada, o que se torna evidente quando tratamos de uma garantia à primeira solicitação especialmente desenhada para as situações em que o credor pretende uma garantia forte, semelhante ao depósito de dinheiro, em que se abdica de qualquer possível discussão por parte do garante das relações subjacentes à e de qualquer comprovação de incumprimento. Revertendo ao caso em apreço, é claro que tal prova não existe (nomeadamente prova escrita e inequívoca de tal fraude e abuso), não se afigurando que tal prova liquida e irrefutável seja feita através da prova testemunhal. É, pois, manifesta a improcedência da pretensão formulada pela requerente. Pelo exposto, indefere-se a presente providência cautelar não especificada intentada pela Requerente, A..., LDA e dela se absolve as Requeridas, B..., UNIPESSOAL LDA e C..., S.A.. Custas a cargo da Requerente.(negrito nosso)
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 1ª- Do incumprimento do ónus de alegação.
Entende a Recorrida B... que a Recorrente não deu cumprimento ao ónus que sob si impedia, nos termos do nº2, do artigo 639.º, do Código de Processo Civil, na medida em que não alegou quais as normas jurídicas violadas nem o sentido com que as normas aplicadas pelo Tribunal a quo devia ser interpretado ou aplicado o direito e, como tal, deve o recurso sob resposta ser indeferido.
Assim não sucede, pois que, nas alegações, são convocadas normas como violadas (as específicas do meio adjetivo empregue - art. 362º e segs, daquele diploma legal -, concretamente as suas específicas regras de direito probatório)e é referido o sentido da sua interpretação (ser legalmente admissível a prova testemunhal e a prova por declarações de parte, requerida e julgada inadmissível/inidónea em matéria de providência inibitória do acionamento de garantia bancária), sendo essa a violação a analisar.
Acresce que nunca a consequência da falta das especificações a que alude o nº2, do art. 639º, seria o indeferimento, estatuindo a lei despacho de aperfeiçoamento para situações de omissão das referidas especificações (cfr. nº3, do referido artigo).
No caso, mostra-se desnecessário despacho de aperfeiçoamento, bem resultando das alegações de recurso o regime jurídico alegadamente violado (as regras da admissibilidade, no procedimento cautelar, da prova testemunhal e por declarações de parte) e o sentido da interpretação que a recorrente lhe atribui (poder a prova dos, alegados, abusos e má fé “ser obtida com recurso a qualquer um dos meios de prova admitidos para as providências cautelares não especificadas, mormente, a prova testemunhal”).
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2ª. Da admissibilidade dos meios de prova testemunhal e declarações de parte (legalidade e pertinência).
Insurge-se a apelante contra a decisão do Tribunal a quo a julgar improcedente a pretensão por si formulada, no seguimento de um critério restritivo quanto a admissibilidade de prova em matéria de garantia bancária on first demand. Afirmou aquele Tribunal imperativos de fazer jus à natureza autónoma da garantia e ao seu carácter “on first demand” e, por isso, para obstar a uma solicitação abusiva ou fraudulenta por parte do beneficiário, ser de exigir prova líquida, inequívoca, pronta e irrefutável, sob pena de se subverter a finalidade para a qual a garantia foi configurada. Considera que, inexistindo prova escrita e inequívoca de fraude e abuso, tem a providência de ser indeferida, nunca podendo a prova liquida e irrefutável ser feita através da prova testemunhal, afirmando “é claro que tal prova não existe (nomeadamente prova escrita e inequívoca de tal fraude e abuso), não se afigurando que tal prova liquida e irrefutável seja feita através da prova testemunhal”.
Motiva a Recorrente a sua apelação no erro do Tribunal a quo que, ao não admitir a produção da prova testemunhal e declarações de parte, por considerar não constituir prova pronta, líquida e irrefutável dos factos essenciais ao decretamento da providência, podendo sê-lo, apenas, prova constituída, como a documental, não deu oportunidade à Recorrente de produzir a, admissível, prova que ofereceu.
A apelada B... manifesta bem ter andado o Tribunal ao considerar desnecessária/inútil a produção de prova testemunhal, porque da mesma não iria resultar a prova pronta, líquida e irrefutável de abuso da Recorrida B..., sendo que dos factos articulados e dos documentos juntos para os demonstrar, já era evidente que inexistia.
Analisando a decisão recorrida, verifica-se que o Tribunal a quo sequer entrou na apreciação da matéria de facto da causa e, por isso, não apreciou as circunstâncias do caso.
Com efeito, não procedeu à análise dos factos alegados e da prova constituída.
E afirmados se mostrando, no requerimento inicial, a manifesta má fé e o abuso da beneficiária e, mais, carecendo os documentos apresentados em língua estrangeira de tradução, bem pode resultar, no confronto da demais prova que venha a ser produzida, a livre convicção a fundamentar o direito invocado pela requerente, não sendo de enveredar pelo critério restritivo seguido, este sem apoio legal, quer em regras de direito probatório formal quer em regras de direito probatório material, e, não sendo o direito de acionar a garantia um direito absoluto, bem pode resultar que, não obstante as características da mesma, se justifique lhe seja imposto limite lançando mão das válvulas de segurança do sistema, daí a legalidade e pertinência dos meios de prova requeridos.
Analisemos da admissibilidade e relevância dos meios de prova requeridos e do dever do juiz de os ordenar.
A proposição e a produção da prova em juízo visam demonstrar a realidade dos factos relevantes para o processo[1], sendo que regras existem, para a balizar, de direito probatório material, de natureza substantiva, a regular a admissibilidade e força probatória, inseridas no Código Civil, e de direito probatório formal, a regular os procedimentos probatórios, e que têm sede no Código de Processo Civil.
O artigo 410º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, com a epígrafe “Objeto da instrução”, bem estatui que “A instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova”, neles se incluindo quer os essenciais quer os instrumentais, sobre que a prova incide, pois que o real e efetivo objeto da instrução é sempre matéria fáctica, nos termos dos arts 341º e segs, do Código Civil.
E é garantida ampla liberdade, em sede de instrução, no sentido de permitir que, na produção de meios de prova (máxime, prova testemunhal, pericial ou por depoimento de parte), sejam averiguados os factos circunstanciais ou instrumentais, designadamente aqueles que possam servir de base à posterior formulação de presunções judiciais, sendo que a instrução da causa “deve ter como objetivo final habilitar o juiz a expor na sentença os factos que relevam para a decisão da causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito”[2].
Sendo as diversas fases do processo a proposição, a audiência contraditória e a admissão (ou rejeição), com vista à produção das provas e decisão, podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão, não deve ser permitido seja objeto de instrução aquilo que se apresenta como irrelevante para a concreta causa, tal como desenhada se mostra.
Assim, para a apreciação da prova, que tem lugar na fase da decisão final, só são admitidos os meios de prova propostos, após audiência da parte contrária, que relevem de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito.
Estamos perante um procedimento cautelar comum, com regras adjetivas específicas (art.s 362º e segs), tendo as regras próprias de tal meio adjetivo de ser observadas, nenhuma existindo, quer de direito probatório formal quer de direito probatório material, a consagrar a inadmissibilidade dos meios de prova em causa, pertinentes para apurar os factos que se prendem com o direito que se pretende exercer no procedimento (fundado em manifestos má fé e abuso).
Tem, pois, de ser atendido ao especificamente consagrado, no nº1 do art. 293º e no nº1, do art. 294º - poder ser oferecido rol de testemunhas, até cinco testemunhas, e serem admissíveis outros meios de prova -, preceitos subsidiariamente aplicáveis aos procedimentos cautelares por força do nº3, do artigo 365º, nenhuma norma de direito substantivo existindo a impor prova constituída, designadamente a documental (esta que, a ser oferecida em língua estrangeira, carecida de tradução se encontra - cfr. nº1, do art. 133º e 134º), pois que em causa não está o estipulado na garantia, mas situações de abusos, a limitar direitos da beneficiária. E bem pode da prova testemunhal e das declarações de parte resultar a prova dos factos essenciais alegados a justificar a solicitada inibição do acionamento da garantia bancária on first demand, pertinente sendo, por isso, tais meios de prova, dado que de um direito absoluto ao acionamento se não trata, antes de direito a que são impostos limites (desde logo por imposição da boa fé, para evitar abuso).
No caso, não é licita restrição de meios de prova, em ilegal compressão do direito à prova incorrendo, na verdade, o Tribunal a quo ao decidir a causa como não provada sem produzir a prova requerida à matéria de facto alegada.
E, na verdade, após proposição da prova, segue-se decisão sobre a admissão ou não e, na admissibilidade legal da prova proposta, por legal e pertinente, cabe, no amplo exercício da contraditoriedade, a sua produção e só após decisão de facto se segue a de direito. Efetivamente, só perante a seleção dos factos (provados/não provados), estará o julgador habilitado a entrar na sua qualificação jurídica e a decidir da alegada conduta abusiva da Recorrida B....
Sendo jurisprudência nesta matéria:
“1. A garantia autónoma é, no essencial, um contrato outorgado entre o mandante da garantia e o garante, a favor de um terceiro, o beneficiário, só podendo o garante opor a este as excepções que constem do próprio texto da garantia, mas já não as derivadas da relação contratual que está na base daquela. 2. A garantia autónoma é uma figura triangular, supondo três ordens de relações jurídicas: (i) relação entre o garantido (dador da ordem) e o beneficiário (credor principal); (ii) relação entre o garantido (dador da ordem) e o garante (banco); (iii) relação entre o garante (banco) e o beneficiário (credor principal). 3. Entre as situações de garantia autónoma, figura a garantia on first demand, que se pode traduzir por uma promessa de pagamento à primeira interpelação ou primeira solicitação, não podendo ser discutido o cumprimento ou incumprimento do contrato, bastando a interpelação do beneficiário da garantia. 4. A automaticidade da garantia on first demand não é, porém, absoluta, não podendo ter-se como ilimitada a possibilidade da sua exigência pelo beneficiário, já que se tem de estabelecer alguns limites à exigência da garantia, sempre que o imponham as regras da boa fé (artigo 762º, nº 2, do Código Civil) ou o procedimento abusivo do beneficiário (artigo 334º do mesmo diploma legal). 5. É admissível o recurso a medidas cautelares destinadas a impedir o beneficiário de receber a quantia objecto da garantia, impendendo sobre o respectivo requerente o ónus de alegar e provar, não só o risco de prejuízos graves que sofrerá na ausência de tal medida cautelar, mas também apresentar prova pronta (pré-constituída, i.e, documental, sem recurso a produção de prova suplementar) e líquida, ou seja, prova inequívoca, permitindo a percepção imediata e segura da invocada fraude ou aproveitamento abusivo por parte do beneficiário. 6. A não apresentação com a petição inicial de tal prova, pronta e líquida, implica o indeferimento liminar do pretendido procedimento cautelar, o que se não traduz numa restrição desproporcionada ou irrazoável dos instrumentos de prova, nem comporta uma significativa afectação do direito à tutela jurisdicional efectiva”[3],
não é ela líquida quanto à questão dos meios de prova admissíveis e idóneos para comprovar situação de fraude/de abuso do beneficiário, como se pode verificar, desde logo, do voto de vencido do referido Acórdãono sentido de, quanto à prova do abuso:
“…deverá ser inequívoca, mas tal inequivocidade deverá (…) ser aferida a final, no saldo da produção dos meios de prova legalmente admissíveis (entre os quais se inclui a prova testemunhal) e do debate que se suscite entre as partes, perante o tribunal, no contraditório a que houver lugar. Nesse sentido nos revemos no decidido no acórdão da Relação do Porto, de 23.02.2012, processo 598/11.8TVPRT.P1, acórdão da Relação de Lisboa, de 25.10.2012, processo 1482/12.3TVLSB-B.L1-6 e acórdão da Relação de Lisboa, de 09.6.2016, processo 29163-15.9T8LSB.L1-6, todos consultáveis em www.dgsi.pt”.
Vem sendo, na verdade, Doutrina e Jurisprudência uniforme impor-se maior exigência quanto à prova do direito invocado neste tipo de providências, face ao que consta do texto da garantia[4], devendo exigir-se uma prova segura, líquida, inequívoca e pronta.
Contudo, a lei não exige prova com força probatória plena nem prova pré-constituída, sequer veda prova testemunhal e declarações de parte, não se podendo considerar, face à situação de abuso alegada, desde logo, injustificada, pois que, como vimos, o direito da beneficiária não é absoluto. E o direito invocado pela requerente (densificando o limite ao direito da requerida/beneficiária) carece de demonstração, mostrando-se admissível, por legal e pertinente, a testemunhal e declarações de parte.
Com efeito, a suspensão/inibição do acionamento de garantia bancária não constitui procedimento cautelar específico, antes sendo o procedimento requerido o comum, sujeito, por isso, ao regime geral, com a tramitação do procedimento e a exigência, para a sua procedência, de preenchimento dos requisitos para ele impostos. E nenhuma restrição ou derrogação do regime se justifica quanto a meios de prova, bem podendo os factos densificadores de comportamento abusivo, de má fé, de fraude, ser livremente apreciados pelo julgador com recurso a prova de natureza subjetiva, como declarações de parte e prova testemunhal. Assim, prova líquida, segura, inequívoca e pronta de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário da garantia bancária on first demand pode ser obtida por todos os meios legalmente admissíveis, designadamente prova documental,prova testemunhal e declarações de parte, assentando tal prova na livre convicção do julgador, a resultar da análise crítica, conjunta e conjugada de todos os meios de prova produzidos.
Como se analisa no referido Acórdão RL de 6/5/2021, proc. 3962/21.0T8LSB.L1-8:
“Neste tipo de garantia o garante (o banco) fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente, sem poder discutir o incumprimento do devedor nem invocar em seu benefício qualquer meio de defesa relacionado com o contrato base, celebrado entre o ordenador e o beneficiário. É, pois, exequível mediante simples, imotivada, ou potestativa comunicação pelo beneficiário do incumprimento da obrigação principal do mandante.
A obrigação garantida é devida "mesmo que a relação principal se mostre inválida e sem que o garante possa opor ao beneficiário os meios de defesa do devedor, visto que o garante assume uma obrigação própria, independente (desligada) do contrato base. Nem o devedor pode, por isso, impedir o garante de prestar a soma acordada logo que o beneficiário a solicite " (cfr. Almeida Costa e Pinto Monteiro, in “Garantias Bancárias. O contrato de garantia à primeira solicitação”, C.J. 1986. t. V, págs. 15 e segs).
Conforme escrevem estes autores pode haver recusa a pagar de imediato a garantia nos seguintes casos: a) de prova inequívoca de fraude manifesta; b) de abuso evidente por parte do beneficiário.
Nessa medida – escrevem os referidos autores –, o devedor pode impedir o pagamento ou execução da garantia através de medidas de natureza cautelar se possuir provas inequívocas do abuso evidente por parte do beneficiário.
Também na jurisprudência se tem entendido que é possível instaurar procedimento cautelar com vista a obter a suspensão do pagamento deste tipo de garantias desde que se produza prova líquida e inequívoca que o beneficiário atua com má fé, abuso de direito, fraude à lei, ou em caso de extinção da garantia por cumprimento ou outra causa similar (dação em cumprimento, compensação), resolução ou caducidade, tendo em conta as características específicas dessas garantias, com especial realce para a sua autonomia em relação ao contrato subjacente, reservando o decretamento de tais providências para situações excecionais, sob pena desse desvirtuar a finalidade da obrigação autónoma automática. (5)(Neste sentido v. Ac. STJ de 23/06/2016, Ac. da Relação de Lisboa de 10/11/2016 e de 09/06/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt)
Não suscitando dúvidas a maior exigência quanto à prova do direito invocado neste tipo de providências, que não se deve bastar com juízos de verosimilhança, antes devendo ser a respetiva prova inequívoca, segura, já no que respeita à exigência de prova pré-constituída, não sujeita a instrução, resumindo-se a mesma a prova documental (ou quiçá pericial) se nos afigura excessiva e sem qualquer correspondência no disposto no artº 362º e ss. do CPC.
Na medida em que a paralisação do acionamento de garantia bancária não constitui um procedimento cautelar específico, com regras próprias, está sujeito ao regime geral, não se justificando que a peculiaridade, adveniente da natureza autónoma da garantia, imponha uma derrogação daquele regime no que respeita aos meios de prova. Nem se vislumbra que os factos integrantes do comportamento abusivo, da má fé, da fraude, não possam ser sujeitos a instrução, mormente mediante prova testemunhal, sujeita à livre apreciação pelo juiz.
Seguimos, pois, a corrente jurisprudencial menos restritiva, segundo a qual a prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário pode ser efetuada pelos meios legalmente admissíveis, designadamente documental e testemunhal. (6) (Neste sentido Ac. da Relação de Lisboa de 25/10/2012 e de 09/06/2016, in www.dgsi.pt)
“Enunciadas estas especificidades e sendo admissível o recurso ao procedimento cautelar cremos que a análise da prova e a sua admissibilidade terá de ser vista neste contexto – o contexto das providencias cautelares – não se impondo as limitações enumeradas na decisão recorrida.
“Essa restrição aos meios de prova admissíveis concretizar-se-ia na exigência de que o garante demonstre a falta de cabimento material da pretensão do beneficiário exclusivamente através de “provas líquidas”, quando essa carência não resulte de factos notórios. Contudo, o que seja de entender por “meios de prova líquidos” é altamente controvertido: alguns defendem que líquida é exclusivamente a prova documental, outros admitem ainda a prova pericial, debate-se acerca da “liquidez” da prova testemunhal e da possibilidade da valoração dos depoimentos das partes. Por outro lado, alguns autores sustentam que apenas seria admissível o recurso pelo garante a provas pré – constituídas. Só através destas restrições – invoca-se – seria respeitado o “fim da liquidez” da garantia autónoma à 1ª solicitação, pois só assim se permitiria ao beneficiário uma rápida obtenção da soma de garantia”, Miguel Brito Bastos, in Recusa licita da prestação pelo garante na garantia autónoma “on first demand”, Estudos em homenagem ao Prof Doutor Sérvulo Correia, Vol. III, p. 547.
Entendemos que a prova líquida, pronta e inequívoca pode extrair-se de qualquer meio de prova permitido em direito e não apenas da prova documental, sendo por isso possível o recurso a prova testemunhal.” (7) (Ac. da Relação do Porto de 23/02/2012, in www.dgsi.pt).
Não podemos deixar de assim o entender, tendo a prova testemunhal e por declarações de parte requerida por ambas as partes de ser prontamente produzida para, depois, se aferir da verificação dos requisitos de viabilidade da providência requerida.
Alegada se mostrando, no caso, situação de manifesta má fé e de abuso da Beneficiária/Requerida é na análise das circunstâncias do caso concreto que se tem de alicerçar a existência ou não da possibilidade de paralisar o acionamento da garantia bancária e tal análise tem de ser efetuada após efetiva produção das provas requeridas, no confronto dos factos que resultarem provados.
Tem o procedimento cautelar comum como requisitos: i) - Não estar a providência a obter abrangida por qualquer procedimento cautelar especificado, acima referido (nº 3, do art. 362º), sendo este procedimento destinado a fazer face a situações de “periculum in mora” não especialmente acauteladas através dos procedimentos cautelares especificados na lei (prevenidas no Capítulo II ou em legislação avulsa), sendo uma “verdadeira ação cautelar geral”; ii)- A provável existência do direito (fumus boni iuris); iii) - O atual e fundado ou sério receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora) - (nº 1, do art. 362º e nº 1 do art. 368º); iv)- A adequação da providência solicitada a evitar a lesão e assegurar a efetividade do direito ameaçado (parte final do nº 1, do art. 362º); v)-Não resultar da providência prejuízo consideravelmente superior ao dano que ela visa evitar, pois, conforme estabelece o nº 2, do art. 368º, a providência deve ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.
Dentro dos procedimentos cautelares regulados no Código de Processo Civil, as providências cautelares não especificadas surgem como um procedimento cautelar subsidiário, só aplicável quando o caso se não subsumir a qualquer outro. Só pode recorrer-se ao procedimento cautelar comum quando a situação de “periculum in mora” não esteja especialmente tutelada por medida prevista nos procedimentos cautelares típicos nem por medida prevista em legislação avulsa. A subsidiariedade pressupõe que não haja nenhuma providência nominada que abstratamente seja aplicável[6]. Consagra-se “a vigência de uma “cláusula geral” em sede de justiça cautelar, implicando a atribuição às partes de um poder genérico de requerer as medidas cautelares mais adequadas à garantia da efectividade de todo e qualquer direito ameaçado, com o consequente poder-dever do juiz de decretar a providência concretamente mais adequada à prevenção do risco de lesão invocado”[7].
Assim, como vimos, na inexistência de providência específica para acautelar o direito invocado, cumpre, nos termos do art. 362º e na produção da prova requerida, legalmente admissível, por lícita e pertinente, analisar, da verificação dos requisitos do decretamento de procedimento cautelar não especificado: i) – verificação do direito invocado pela requerente; ii) – fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a esse direito (periculum in mora); iii)- da adequação da providência requerida a remover o perigo de lesão existente; iv) – não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar.
Tem, pois, previamente à analise do concreto preenchimento dos referidos requisitos, de ser produzida toda a prova oferecida, cabendo, ainda, ser determinada a junção da tradução dos documentos oferecidos em língua estrangeira.
Neste conspecto, procedem as conclusões da apelação, não podendo a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogando a decisão recorrida, determinam o prosseguimento dos autos para produção da prova requerida pelas partes, devendo, também, ser ordenada a junção da tradução dos documentos apresentados em língua estrangeira.
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Custas pela Apelada B..., Unipessoal, Lda, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
Porto, 8 de janeiro de 2024
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Manuel Domingos Fernandes
Fátima Andrade
_____________ [1] Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, vol. I, 2017, Almedina, pág 420 [2] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág 483 [3] Ac. RL de 12/7/2018, proc. 761/18.0T8LSB.L1-2, in dgsi.pt [4] Como se analisa no Ac. RL de 11/5/2023, proc. 24524/22.0T8LSB.L1-6, acessível in dgsi.pt, a garantia em causa: “assume natureza autónoma, na medida em que não é, nem pode ser afectada pelas vicissitudes da relação principal (Neste sentido, Menezes Cordeiro, “Manual de Direito Bancário”, 2ª ed., 2001, pág. 654). Com efeito, uma vez exigida a garantia, o garante só poderá opor ao beneficiário as exceções literais que constem do próprio texto da garantia, nunca as derivadas da relação principal. Do exposto resulta que, estruturalmente, a garantia bancária autónoma é uma figura triangular, que supõe três ordens de relações, traduzidas em três contratos distintos: o contrato base, entre o dador da ordem e o beneficiário; o contrato pelo qual o garante (Banco) se obriga perante o dador de ordem; e o contrato de garantia, entre o garante e o beneficiário. Por outro lado, o escopo da garantia não é assegurar o cumprimento do contrato principal, mas antes, “assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da própria garantia, uma determinada quantia em dinheiro”(Menezes Cordeiro, ibidem).». (…) consiste, na definição do Prof. Galvão Telles, no "contrato pelo qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base) sem poder invocar em seu beneficio quaisquer meios de defesa relacionados com esse contrato" (in O Direito, ano 120, III-IV, 1988, pág. 283). Logo, uma das suas características fundamentais repousa na sua autonomia relativamente à obrigação garantida, tal como ensina Menezes Cordeiro, o banco só pode opor ao beneficiário as excepções que constem do próprio texto da garantia e nunca as derivadas da relação principal. Ou seja, "perante uma garantia autónoma à primeira solicitação, de nada servirá esgrimir argumentos retirados do contrato principal. A garantia tem fins próprios e é auto-suficiente (Cfr. Manual de Direito Bancário pág. 609-610). Engrácia Antunes (in “Direito dos Contratos Comerciais”, 3ª Reimpressão da edição de Outubro de 2009, Almedina, 2014, p. 537) a propósito desta figura e a par do já constante da decisão recorrida refere que «(a)s garantias bancária autónomas – que já chegaram a ser reputadas de “sangue da vida comercial internacional” – devem a sua difusão essencialmente à eficácia e segurança conferidas aos direitos dos terceiros beneficiários: o garante obriga-se a pagar ao terceiro garantido logo que para tanto solicitado, independentemente da sorte da obrigação principal – isto é, independentemente de saber se esta obrigação é válida ou inválida, ou se foi ou não cumprida.». No Acórdão da Relação do Porto de 23/10/2014, (proc. nº 2072/11.3TJPRT.P1, in Jurisprudencia.pt ) alude-se ainda que «(a) em vez do garantido, é um contrato de intervenção tripartida muito aproximado ao contrato a favor de terceiro para remição de dívida com beneficiário determinado, garantia bancária à primeira solicitação, em que o banco se compromete a pagar ao beneficiário genericamente regulado pelo art.º 443 do CC (anota-se que essa condição tripartida exclui a aplicação do regime específico dos contratos de garantia financeira previsto no Decreto-Lei 105/2004, de 8/5). Sucede que também o regime jurídico do contrato a favor de terceiro para remição de dívida com beneficiário determinado não deve ser aplicado, por analogia, à regulação do contrato de garantia bancária à primeira solicitação, na medida em que o art.º 449º do CC prevê que o garante/promitente pode opor ao beneficiário/terceiro todos os meios de defesa que lhe poderiam ser opostos pelo garantido/promissário.». Ora, como bem se alude no Acórdão do STJ de 30/03/2023 (proc. nº 3088/20.4T8MAI-A.P1.S2, endereço da net aludido): «Há, porém, que ter presente que esta posição dos três intervenientes na equação não é absoluta, pois que em determinadas situações o garante poderá recusar o pagamento. (…) nas garantias bancárias autónomas, em que se estabelece a interpelação on first demand, o garante apenas ficará desobrigado de cumprir com o pagamento que lhe for exigido pelo credor garantido, caso seja manifesta e patente a má fé deste (É este o entendimento da maioria da doutrina, de onde se destacam, o Prof. Galvão Telles (ob. Citada a pág. 289), Profs. Almeida Costa e Pinto Monteiro ("Garantias Bancárias - O Contrato de Garantia à Primeira Solicitação" C.J. XI-1986-V, 20) e o Dr. José Simões Patrício ("Preliminares sobre a garantia on first demand", R.O.A. 43º, III, 1983, 715-716). Donde, são muito limitados os motivos que podem ser invocados pela entidade garante para recusar o seu cumprimento. Pelo que face a tal limitação, como referimos, a jurisprudência e a doutrina têm procurado encontrar algumas das excepções ditadas, em regra, pelos princípios da boa-fé ou do abuso de direito ou pela necessidade de evitar benefícios decorrentes de factos ilícitos, envolvendo fraudes ou falsificação de documentos. E é pacífico o entendimento de que os factos pertinentes devem resultar de uma prova sólida e irrefutável, não bastando a formulação de meros juízos de verosimilhança sobre a ocorrência dos respectivos requisitos substanciais. Sobre tais requisitos importa ter presente o decidido no Acórdão do STJ de 5/07/2012 (Proc. nº 219/06.06TVPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt, com vasta referência doutrinárias sobre a questão) ao indicar que a legitimidade da recusa tem sido defendida designadamente nas seguintes circunstâncias: - Manifesta má fé ou a má fé patente, isto é, que não oferece a menor dúvida, por decorrer com absoluta segurança de prova documental em poder do ordenante ou do garante; - Casos de fraude manifesta ou de abuso evidente por parte do beneficiário; - Quando o contrato garantido ofender a ordem pública ou os bons costumes; - Sempre que exista prova irrefutável de que o contrato-base foi cumprido.» (no mesmo sentido, entre outros, Acórdãos do STJ de 25/11/2014, proc. 526/12.3TBPVZ-A.P1.S1, de 20/03/2012, proc. 7279/08.8TBMAI.P1.S1 e de 13/04/2011, proc. 41342/04.YYLB-A.L1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.). (…) Não obstante estar em causa a apreciação de uma providência cautelar, a jurisprudência tem entendido que para impedir a execução da garantia, é necessário um abuso manifesto, fundado numa “prova inequívoca, permitindo a percepção imediata e segura da invocada fraude ou aproveitamento abusivo por parte do beneficiário” (Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-07-2018 (Processo n.º 761/18.0T8LSB.L1-2/ Relatora: Ondina Alves), disponível em http://www.dgsi.pt.), não bastando assim um juízo de mera plausibilidade quanto a tal abuso”. [5] Ac. RL de 6/5/2021, proc. 3962/21.0T8LSB.L1-8, acessível in dgsi.pt. [6] Cfr. Ac. STJ de 8/04/97, proc. 96A940, in www.dgsi.pt. [7] Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I, Coimbra, Almedina, 2004, p. 341.