INCIDENTE DE DESPEJO IMEDIATO
FUNDAMENTO
NOTIFICAÇÃO DO ARRENDATÁRIO
CONTESTAÇÃO DO INCIDENTE
MEIOS DE PROVA
Sumário

1.–O incumprimento do dever principal do arrendatário, de pagamento da renda, mantém-se no decurso da ação de despejo, independentemente do fundamento (ou fundamentos) dessa ação, constituindo-se, assim, como um novo fundamento resolutivo, tornando-se, por isso, desnecessária a prossecução da ação para se conhecer da concreta causa de pedir.

2.–Por conseguinte:
- o fundamento do despejo imediato é o não pagamento das rendas vencidas na pendência da ação de despejo;
- o fundamento da ação de despejo é o não pagamento das rendas vencidas antes da propositura da ação.

3.–Com a implementação de um tal regime, pretendeu o legislador evitar que o arrendatário mantenha o gozo da coisa locada durante a pendência da ação sem a correspondente remuneração do locador.

4.–No âmbito de um incidente de despejo imediato, inexistindo norma especial que exija a notificação pessoal dos réus, nem se destinando a notificação a chamá-los para a prática de qualquer ato pessoal (n.º 2 do art. 247.º CPC), vigora a regra geral segundo a qual «as notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais» (n.º 1, do art. 247.º).

5.–A presunção decorrente da notificação eletrónica prevista no n.º 5 do art. 21.º-A, da Portaria nº 114/2008, de 6 de fevereiro, nela introduzido pela Portaria nº 1538/2008, de 30 de dezembro, é passível de ilisão, nos termos do n.º 1 do art. 248.º CPC, apenas o podendo ser pelo próprio mandatário notificado, provando que ela não foi efetuada ou que ocorreu em data posterior à presumida, por razões que não lhe são imputáveis, para tanto não servindo o critério da leitura efetiva, por tal desiderato se não encontrar elencado no texto legal.

6.–É dever dos réus na ação de despejo, caso pretendam evitar o decretamento do despejo imediato, contestarem, no prazo legal, a matéria incidental, apresentando prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na pendência da ação, assim como, sendo o caso, da respetiva indemnização, nos termos previstos nos citados normativos.

7.–O que os réus não podiam era, uma vez notificados para os termos do incidente, remeterem-se ao mais absoluto silêncio, e virem depois, em sede de apelação da decisão que decretou o despejo imediato, apresentar documentos tendentes a comprovarem o pagamento ou o depósito das rendas na pendência da ação, de modo a reverterem aquela decisão.

8.–É que, o seu absoluto silêncio, acarretou a consequência a que aludem as disposições conjugadas dos arts. 293.º, n.º e 574.º, n.º 2, CPC: a admissão, por acordo dos réus, aqui apelantes, do alegado não pagamento das rendas na pendência da ação de despejo.

9.–Tendo os réus, no articulado de contestação apresentada na ação de despejo, assentado a sua defesa no pressuposto da existência de um contrato de arrendamento, sem prazo, cujo objeto é o imóvel dos autos, do qual se afirmam arrendatários desde 1 de janeiro de 2006, não deixaria de constituir intolerável abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, a invocação, pela primeira vez, no dia 2 de novembro de 2023, em sede de recurso da decisão que julgou procedente o incidente de despejo imediato, da invalidade formal do contrato arrendamento, para obstarem a uma situação de despejo imediato por falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da ação de despejo, instaurada precisamente com fundamento na falta de pagamento de rendas.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO:


M instaurou a presente ação de despejo contra J e mulher, A, alegando, em síntese, e no que para aqui e agora interessa, que no dia 27 de Dezembro de 2019, adquiriu, por doação, a fração autónoma designada pela letra “_”, correspondente ao _º andar poente, para habitação, que faz parte do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ____, n.º__, localidade de ____, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ____, da referida freguesia, descrito na Conservatória de Registo predial de ____, sob o número ____, da freguesia de ____.
A fração foi-lhe doada onerada com um contrato de arrendamento a favor dos réus, para habitação destes e respetivo agregado familiar, mediante a renda mensal de € 380,00.
A partir de março de 2020, e sem qualquer justificação, os réus deixaram de proceder ao pagamento da respetiva  renda mensal, não tendo sequer pedido a aplicação de qualquer moratória no âmbito da pandemia Covid-19.
No dia 29 de setembro de 2020, a  autora requereu a notificação judicial avulsa dos réus para pagarem as rendas em atraso, correspondentes aos meses de junho, julho, agosto e setembro de 2020, no valor de € 1.520,00, acrescido de 20% a título de indemnização, no total de € 1.804,00, por essa via lhes comunicando também a resolução do contrato de arrendamento, com fundamento na mora no pagamento das rendas por período superior a 3 meses, com obrigação de desocupação do locado no prazo de 30 dias a contar da notificação.
Os réus foram notificados no dia 30 de outubro de 2020 e, a partir de então, procederam, de forma esporádica, ao pagamento de algumas rendas, do que a autora foi dando a competente quitação, na data de cada pagamento, mas reportando os respetivos recibos de renda eletrónicos às rendas em dívida pelos meses mais antigos.

Concluem assim a petição inicial:
«Nestes termos, nos melhores de Direito (...), deve a presente acção ser julgada procedente, por provada e, em consequência:
a)-ser declarado resolvido o contrato de arrendamento entre A. e RR. e em causa nos presentes autos e referente à fração autónoma designada pela letra “_”, correspondente ao _º andar poente, para habitação, que faz parte do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ____, n.º__, localidade de ____, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ____, da referida freguesia, descrito na Conservatória de Registo predial de ____, sob o número ____, da freguesia de ____;
b)-Serem os RR. condenados a entregar o locado à A. livre de pessoas e bens e nas condições em que o mesmo lhe foi entregue;
c)-Serem os RR. condenados a pagar à A. as rendas vencidas, no valor de 3.040,00 EUR (três mil e quarente euros), e rendas vincendas até efetiva desocupação e entrega do locado, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor até efetivo e integral pagamento.»
*

Os réus contestaram, pugnando para que a ação seja julgada improcedente, com a sua consequente absolvição dos pedidos formulados pela autora.
*

No dia 19 de dezembro de 2022, a autora apresentou o seguinte requerimento:
«M, A. nos autos supra identificados, vem respeitosamente informar o tribunal, que para além dos 4 meses que se encontravam em atraso aquando da propositura da ação e até à presente data, os RR. acumularam, mais 9 meses de renda em atraso, totalizando 13 meses de rendas em mora, como resulta de extratos bancários que se junta e onde constam o pagamentos feitos, nos anos de 2021 e 2022, até 30 de Outubro.
O mês de novembro deste ano, já foi pago, e mês de dezembro ainda está em dívida.»
*

No dia 28 de fevereiro de 2023, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho (Ref.ª Citius 155679518):
«Uma vez que a A. alega que os RR., não procederam ao pagamento de mais nove rendas, notifique os mesmos para, no prazo de dez dias, procederem ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sob pena de, não o fazendo, poder ser requerido o seu despejo imediato, nos termos do disposto no art. 14.º, n.ºs 3, 4 e 5, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
Notifique.»
*

Consta do documento com a Referência Citius 156266753, além do mais, o seguinte:
«Notificação
Processo n.º 1443/21.1T8TVD
Referência deste documento: 156266753
Certificação Citius em: 21-03-2023
                                                        Exmo(a) Senhor(a)
                                                        Dr(a). ____
                                                        ____
Referência:156266753  Ação de Processo Comum 1443/21.1T8TVD
Autor: M
Réu: J
Data: 21-03-2023
Assunto: Despacho
Fica V. Exª. notificado, na qualidade de Mandatário, e relativamente ao processo supra identificado, de todo o conteúdo do despacho que se anexa.
O/A Oficial de Justiça,
CF….
*

O despacho anexado a essa notificação foi o acima transcrito despacho datado de 28 de fevereiro de 2023 (Ref.ª Citius 155679518).
*

No dia 10 de maio de 2023, a autora apresentou o seguinte requerimento (Ref.ª Citius 13753000):
«M, A. nos autos supra identificados, vem respeitosamente informar que na sequência do douto despacho de V, Exa. com a referência CITIUS 155679518, dando novo prazo aos RR. para procederem ao pagamento das rendas em dívida, acrescidas da indemnização respectiva, juntando prova de tal pagamento aos autos, e tendo já decorrido tal prazo, sem que os RR. tenham feito qualquer pagamento, vem a A. requerer nos termos do artigo 14, n.º 3, 4 e 5 da Lei 6/2006 de 27 de fevereiro requerer o despejo imediato dos RR.»
*

No dia 15 de maio de 2023, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho (Ref.ª 156832921):
«Requerimento referência 13753000 (10.05.2023):
Notifique os RR. para, querendo, no prazo de dez dias, se pronunciarem.
Notifique.»
*

Consta do documento com a Referência Citius 157257123, além do mais, o seguinte:
«Notificação
Processo n.º 1443/21.1T8TVD
Referência deste documento: 157257123
Certificação Citius em: 14-06-2023
                                                        Exmo(a) Senhor(a)
                                                        Dr(a). ____
                                                        ____
Referência: 156266753 Ação de Processo Comum 1443/21.1T8TVD
Autor: M
Réu: J
Data: 14-06-2023
Assunto: Despacho
Fica V. Exª. notificado, na qualidade de Mandatário, e relativamente ao processo supra identificado, de todo o conteúdo do despacho que se anexa.
O/A Oficial de Justiça,
CF…….»
*

O despacho anexado a essa notificação foi o acima transcrito despacho datado de 15 de maio de 2023 (Ref.ª Citius 156832921).
*

No dia 9 de outubro de 2023, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho (Ref.ª Citius 158323347):
«Do incidente de despejo imediato (requerimento referência 13753000, de 10.05.2023):
M deduziu incidente de despejo imediato, alegando que os RR. J e A, arrendatários no contrato de arrendamento identificado nos autos, não procederam ao depósito das rendas vencidas na pendência da acção, estando em dívida, em 19.12.2022, treze meses de renda.
Notificados os RR. para, no prazo de dez dias, procederem ao pagamento ou ao depósito do valor das rendas em dívida, acrescido da indemnização devida, juntando prova aos autos, sob pena de ser ordenado o seu despejo imediato, estes nada disseram.

Cumpre apreciar e decidir.

Determina o art. 14º, nos seus nºs 3, 4 e 5, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção em vigor, que:
3Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais.
4Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.
5–Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do artigo 15.º e nos artigos 15.º-J, 15.º-K e 15.º-M a 15.º- O”.
Resulta do exposto que as rendas que se forem vencendo na pendência da acção de despejo devem ser pagas ou depositadas nos termos gerais. A falta de pagamento ou depósito tempestivo das rendas que se vencerem na pendência do procedimento especial de despejo, seja qual for o fundamento invocado para o despejo, constitui título autónomo para desocupação do locado, com a faculdade de o requerente a efectivar imediatamente[i].
Ora, formulado o pedido de despejo imediato, os réus só a ele poderiam obstar se provassem, documentalmente, que haviam procedido ao pagamento ou ao depósito das rendas vencidas. Não se verificando nem uma hipótese, nem outra, porquanto os réus permaneceram em silêncio, deve ser deferido o pedido formulado.
Ademais, o art. 15.º, n.º 7, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, aplicável por remissão do art. 14.º, n.º 5, da mesma lei, prescreve que “Sempre que os autos sejam distribuídos, o juiz deve pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas e, independentemente de ter sido requerida, sobre a autorização de entrada no domicílio.”.

Compulsados os autos, verifica-se que estão reunidos todos os pressupostos e não se verifica nenhum motivo de recusa, pelo que deverá ser autorizada a entrada no domicílio, nos termos dos arts. 14.º, n.º 5, 15.º, n.º 7, e 15.º-L, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
Com os fundamentos de facto e de Direito acima expostos, DECIDE-SE decretar o despejo imediato da fracção autónoma designada pela letra “_”, correspondente ao 5.º andar poente, para habitação, que faz parte do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ____, n.º __, em ___, concelho de ____, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ____, da referida freguesia, descrito na Conservatória de Registo predial de ____ sob o número ____.
Mais se decide condenar os RR. no pagamento das custas do incidente, por irem vencidos no pedido (art. 527.º, do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.»
*

Inconformados com esta decisão, dela vêm os réus interpor o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«I.Entendem os Recorrentes que a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo carece de fundamento de facto e de direito, ao decretar o despejo imediato dos Recorrentes da sua habitação, contrariando o disposto no artigo 14.º, n.ºs 3, 4 e 5, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro;
II.Segundo consta da própria sentença, os Réus foram notificados “para, no prazo de dez dias, procederem ao pagamento ou ao depósito do valor das rendas em dívida, acrescido da indemnização devida, juntando prova aos autos, sob pena de ser ordenado o seu despejo imediato”;
III.Seguidamente, o Tribunal a quo decretou o despejo imediato nos termos do disposto artigo 14.º, n.ºs 3, 4 e 5, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, com fundamento no não pagamento, pelos Réus, das rendas que se venceram na pendência do procedimento especial de despejo;
IV.O “valor das rendas em dívida, acrescido da indemnização devida” não é o mesmo que as rendas que se venceram na pendência do procedimento especial de despejo.
V. (...)[ii]
VI.Os Réus não foram notificados para comprovarem, nos autos, o pagamento das rendas que se venceram na pendência do procedimento especial de despejo;
VII.Acresce que os Réus pagaram, efectivamente, as rendas que se venceram na pendência do procedimento especial de despejo;
VIII.O espírito da lei ao criar o incidente de despejo imediato, agora previsto no artigo 14.º n.º 4 e 5 do N. R. A. U., foi sempre o de não permitir que alguém pudesse, gratuitamente, desfrutar de imóvel, durante o longo período que poderia durar a acção até ao despejo efectivo, numa situação que não seria reparável por nenhuma condenação em indemnização, ou pelo pagamento das rendas vencidas, por ser frequente o despejado não ter bens bastantes para o efeito;
IX.Pretende-se evitar que o devedor da renda permanecesse no gozo da coisa injustificadamente e à custa alheia;
X.In casu, isso não se verifica, uma vez que os Réus procederam ao pagamento das rendas que se foram vencendo na pendência do procedimento especial de despejo;
XI.E não foram os Réus notificados para comprovarem o pagamento dessas rendas vencidas na pendência da acção;
XII.Por força do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção não é automático;
XIII.Até porque o contrato em questão enferma de invalidade formal, por nunca ter sido reduzido a escrito por vontade da Senhoria, pelo que é controversa a causa de pedir da acção;
XIV.O incidente de despejo imediato implica a existência e validade do contrato de arrendamento e da obrigação de pagamento das rendas em causa;
XV.O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito;
XVI.O contrato de arrendamento urbano verbal é nulo, por vício de forma, nos termos gerais do artigo 220.º do Código Civil;
XVII.Assim, é controversa a existência e validade formal do contrato de arrendamento que serve de causa à acção e ao incidente de despejo imediato, pelo que não podia proceder nem operar o despejo imediato dos Réus do imóvel;
XVIII.Não é admissível o despejo imediato dos aqui Recorrentes, pelo que deverá a Douta Sentença de que aqui se recorrer ser revogada, com todas as consequências legais.»
Conforme refere Rui Pinto, «depois de formular conclusões, o recorrente termina deduzindo um pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial.»[iii].

No presente recurso, após a formulação das conclusões as apelantes deduzem o seguinte pedido revogatório:
«Nestes termos (...), deverá o presente RECURSO ser admitido e julgado totalmente procedente, por provado, devendo, em consequência, ser proferido ACÓRDÃO que revogue a Douta Sentença recorrida, proferida no incidente de despejo imediato, com todas as consequências legais, pois só assim se fará a COSTUMADA JUSTIÇA!»
*
A apelada contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
***

III–Âmbito do recurso:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2).

À luz destes considerandos, neste recurso colocam-se as seguintes questões:
- saber se os réus devem, ou não, considerar-se notificados para comprovarem nos autos o pagamento das rendas que se venceram na pendência da ação;
- saber se estão reunidos os pressupostos para o decretamento do despejo imediato do locado.
***

III–FUNDAMENTOS:

3.1–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
A factualidade relevante para decisão do presente recurso é a que decorre do relatório que antecede.
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3.1–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

3.1.1-Saber se os réus devem, ou não, considerar-se notificados para comprovarem nos autos o pagamento das rendas que se venceram na pendência da ação:
Como se constata, na pendência desta ação de despejo instaurada por M contra J e mulher, A, por falta de pagamento de rendas, veio a autora deduzir incidente de despejo imediato, ao abrigo do disposto nos n.ºs 3 a 5 do art. 14.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, com as alterações decorrentes da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, que dispõem assim:
«3Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais.
4Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.
5Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do artigo 15.º e nos artigos 15.º-J, 15.º-K e 15.º-M a 15.º-O.»
Assim, na pendência da ação de despejo mantém-se a obrigação do arrendatário de pagamento das rendas.
Conforme refere Maria Olinda Garcia, «o incumprimento do dever principal do arrendatário (…) no decurso da acção de despejo, independentemente do fundamento (ou fundamentos) dessa acção, constitui-se, assim, como um novo fundamento resolutivo, tornando-se, por isso, desnecessária a prossecução da ação para se conhecer da concreta causa de pedir.»[iv].

Por conseguinte:
- o fundamento do despejo imediato é o não pagamento das rendas vencidas na pendência da ação de despejo;
- o fundamento da ação de despejo é o não pagamento das rendas vencidas antes da propositura da ação.
Pretende o legislador, com a implementação de um tal regime, evitar que o arrendatário mantenha o gozo da coisa locada durante a pendência da ação sem a correspondente remuneração do locador.
Posto isto, a primeira questão a decidir é esta: devem, ou não, os réus considerar-se notificados para comprovarem nos autos o pagamento das rendas que se venceram na pendência da ação de despejo?
A resposta não oferece dúvida: é evidente que foram!

Recapitulando, no caso concreto ocorreu o seguinte:
No dia 19 de dezembro de 2022, a autora apresentou nos autos o requerimento que acima se deixou transcrito:
«M, A. nos autos supra identificados, vem respeitosamente informar o tribunal, que para além dos 4 meses que se encontravam em atraso aquando da propositura da ação e até à presente data, os RR. acumularam, mais 9 meses de renda em atraso, totalizando 13 meses de rendas em mora, como resulta de extratos bancários que se junta e onde constam o pagamentos feitos, nos anos de 2021 e 2022, até 30 de Outubro.
O mês de novembro deste ano, já foi pago, e mês de dezembro ainda está em dívida.»
A senhora juíza a quo, e bem, entendeu esta peça como um requerimento da autora a dar início a um incidente de despejo imediato.
Daí a prolação do despacho datado de 28 de fevereiro de 2023 (Ref.ª Citius 155679518), também acima transcrito:
«Uma vez que a A. alega que os RR., não procederam ao pagamento de mais nove rendas, notifique os mesmos para, no prazo de dez dias, procederem ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sob pena de, não o fazendo, poder ser requerido o seu despejo imediato, nos termos do disposto no art. 14.º, n.ºs 3, 4 e 5, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
Notifique.»

Esse despacho foi notificado à ilustre mandatária dos réus no dia 21 de março de 2023, conforme resulta do teor do documento com a Referência Citius 156266753, também acima transcrito.
Não existindo norma especial que exija a notificação pessoal nem se destinando a notificação a chamar a parte para a prática de qualquer ato pessoal (n.º 2 do art. 247.º), vigora a regra geral segundo a qual «as notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais» (n.º 1, do art. 247.º)[v].
Dispõe o art. 21º-A, da Portaria nº 114/2008, de 6 de fevereiro, nela introduzido pela Portaria nº 1538/2008, de 30 de dezembro, no que para aqui e agora interessa:
«1–As notificações por transmissão eletrónica de dados são realizadas através do sistema informático CITIUS, que assegura automaticamente a sua disponibilização e consulta no endereço eletrónico http://citius.tribunaisnet.mj.pt.
2–Quando as notificações sejam realizadas por transmissão electrónica de dados, não há lugar a notificações por qualquer outro meio.
4–As notificações às partes em processos pendentes são realizadas por transmissão eletrónica de dados, na pessoa do seu mandatário (...).
5–O sistema informático CITIUS assegura a certificação da data de elaboração da notificação, presumindo-se feita a expedição no terceiro dia posterior ao da elaboração, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o final do prazo termine em dia não útil.
(...).»
O n.º 5 consagra uma mera presunção iuris tantum, passível de ilisão nos termos previstos no n.º 1 do art. 248.º, segundo o qual «os mandatários são notificados por via eletrónica nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, devendo o sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais certificar a data da elaboração da notificação, presumindo-se esta feita no terceiro dia posterior ao do seu envio, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja.»
A presunção decorrente da notificação eletrónica prevista nos citados normativos só pode ser ilidida pelo próprio mandatário notificado, provando que ela não foi efetuada ou que ocorreu em data posterior à presumida, por razões que não lhe são imputáveis e para tanto não servindo o critério da leitura efetiva, por tal desiderato se não encontrar elencado no texto legal.
Não se mostra ilidida a presunção de que os apelantes, através da sua ilustre mandatária, receberam a notificação efetuada no dia 21 de março de 2023, documento com a Referência Citius 156266753.
Em suma: os apelantes têm de considerar-se notificados, no dia 24 de março, do supra transcrito despacho datado de 28 de fevereiro de 2023 (Ref.ª Citius 155679518), que, reitera-se, os notifica para, no prazo de dez dias, procederem ao seu pagamento ou depósito das rendas vencidas e não pagas na pendência da ação de despejo, e ainda da importância da indemnização devida, devendo juntar aos autos, prova do pagamento ou depósito, sob pena de, não o fazendo, poder ser requerido o seu despejo imediato, nos termos do disposto no art. 14.º, n.ºs 3, 4 e 5, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.

3.1.2-Saber se estão reunidos os pressupostos para o decretamento do despejo imediato do locado:
A decisão sobre tal questão pressupõe, conforme se fez menção no despacho do relator aquando da verificação da existência de alguma circunstância obstativa do conhecimento do recurso (art. 652.º, n.º 1, al. b)), que nos pronunciemos, agora, também quanto à admissibilidade dos documentos juntos pelos apelantes:
- quer com as alegações de recurso apresentadas no dia 2 de novembro de 2023;
- quer com o requerimento autónomo apresentado no dia 3 de novembro de 2023[vi].
Conforme salientado por João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, «o direito português consagra o modelo do recurso de ponderação, pelo que a lei só permite a utilização de documentos supervenientes quanto a factos já alegados que não tenham sido dados como provados por falta do documento. Em consonância com o modelo de reponderação, também para os tribunais de recurso vale o disposto no art. 611.º n.º 1: a decisão do recurso deve reflectir a situação de facto existente no momento do encerramento da discussão em 1.ª instância.»[vii].
Nos termos do art. 651.º, n.º 1, «as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.»
Dispõe, por sua vez, o art. 425.º, que «depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.»
Tal como refere Luís Filipe Espírito Santo, esta limitação legalmente imposta à apresentação de documentos em sede de recursos “é totalmente compaginável e coerente com o facto de na instância recursiva não serem apreciadas questões novas, não submetidas à análise e à discussão no tribunal de 1ª instância.
Deverão ser, em princípio, os mesmos elementos de prova sobre os quais o juiz a quo proferiu a sua decisão (neles se fundando), que serão agora, em fase de recurso, reapreciados no acórdão final.
Não podem ser valorados elementos documentais novos que, por isso mesmo, escaparam à análise e ao crivo do julgador de 1ª instância e ao exercício do contraditório pelo recorrido.
Se a parte podia ter juntado os documentos no momento processual próprio e não o fez – arcando com as consequências no âmbito da apreciação pelo juiz a quo daquele material probatório apresentado e não outro –, não lhe é concedida segunda oportunidade para a junção dessa documentação aquando da interposição do recurso, como bem se compreende e está em conformidade com os ditâmes de lealdade e lisura processuais”[viii].
Abrantes Geraldes salienta que «em sede de recurso, é legítimo às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objetiva ou subjetiva).»[ix].
Lebre de Freitas / Isabel Alexandre afirmam que «constituem exemplos de impossibilidade de apresentação o de o documento se encontrar em poder de terceiro, que, apesar de lhe ser feita a notificação nos termos do art. 429 ou 432, só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida  ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento. Acresce o caso em que o documento, com que se visa provar um facto já ocorrido e alegado, só posteriormente se tenha formado (contendo, por exemplo, uma declaração confessória  extrajudicial desse facto); mas não o documento que, embora posteriormente formado, prove um facto não alegado e, ele próprio, de ocorrência posterior (...).»[x].
Retornando ao caso concreto, os documentos cuja junção aos autos agora é pretendida pelos apelantes nos termos atrás descritos, destinam-se, segundo eles, a comprovar o pagamento «das rendas do imóvel, entre Janeiro de 2020 e Outubro de 2023.»
Afirmam ainda os apelantes que juntam tais documentos «por serem relevantes para a descoberta da verdade material e boa decisão da presente causa.»
É evidente que “as coisas” não são assim!
Tal como se escreve no Ac. da R.C. de 18.11.2014, Proc. n.º 628/13.9TBGDR (Teles Pereira), in www.dgsi.pt, «(...) a junção de documentos em sede de recurso (junção que é positivamente considerada apenas a título excepcional) depende da caracterização (rectius, da alegação e da prova[xi]) pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remessa do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º; (2) o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.»
No Ac. da mesma Relação, datado de 08.11.2011, Proc. n.º 39/10.8TBMDA.C1 (Henrique Antunes), in www.dgsi.pt, escreveu-se que «a parte que pretenda, nas condições apontadas, oferecer o documento deve, portanto, demonstrar a impossibilidade da junção do documento no momento normal, i.e., alegando e demonstrando o caráter objetiva ou subjetivamente superveniente, desse mesmo documento.»
Como refere Rui Pinto, «mister é que a parte consiga demonstrar a referida superveniência, objectiva ou subjectiva.»[xii].
Os apelantes não alegaram sequer um único facto tendente a demonstrar que, sem culpa sua, não lhes foi possível a apresentação, no momento processual próprio, dos documentos cuja junção agora pretendem nos termos acima descritos.
No entanto, «podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude de julgamento proferido, máxime quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.
A jurisprudência (...) sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado[xiii].
É evidente que a junção aos autos dos documentos agora apresentados, não se mostra necessária em virtude do decidido em 1.ª instância quanto ao incidente de despejo imediato.
Conforme referem Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, no caso da junção de documentos em virtude da decisão proferida em 1.ª instância, «(...) a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção[xiv] (ter perdido, quando espera obter ganho da causa) e pretender, com tal fundamento juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1.ª instância.
O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes da decisão proferida.»[xv].
Ainda de acordo com Antunes Varela, «a junção de documentos com as alegações da apelação, afora os casos de impossibilidade de junção anterior ou de prova de factos posteriores ao encerramento da discussão de 1.ª instância, é possível quando o documento só se tenha tornado necessário em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância. E o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou a dedução da defesa) quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado.
(...)
A decisão da 1.ª instância pode, por isso, criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se funde em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. Só nessas circunstâncias a junção do documento às alegações da apelação se pode legitimar (...).»[xvi].
Não é, manifestamente, o caso da situação sub judice!
A necessidade da junção aos autos não resultou - e não resultou apenas - de nenhum meio probatório requisitado pelo tribunal que fosse necessário rebater, nem da aplicação de qualquer regra de direito, na elaboração da decisão proferida em 1.ª instância quanto ao incidente de despejo imediato, com que as partes (ou, pelo menos os apelantes) não pudesse razoavelmente contar.
Tenha-se uma vez mais presente que:
- no dia 19 de dezembro de 2022, a apelada apresentou nos autos o seguinte requerimento:
«M, A. nos autos supra identificados, vem respeitosamente informar o tribunal, que para além dos 4 meses que se encontravam em atraso aquando da propositura da ação e até à presente data, os RR. acumularam, mais 9 meses de renda em atraso, totalizando 13 meses de rendas em mora, como resulta de extratos bancários que se junta e onde constam o pagamentos feitos, nos anos de 2021 e 2022, até 30 de Outubro.
O mês de novembro deste ano, já foi pago, e mês de dezembro ainda está em dívida.»
- no dia 28 de fevereiro de 2023, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho (Ref.ª Citius 155679518):
«Uma vez que a A. alega que os RR., não procederam ao pagamento de mais nove rendas, notifique os mesmos para, no prazo de dez dias, procederem ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sob pena de, não o fazendo, poder ser requerido o seu despejo imediato, nos termos do disposto no art. 14.º, n.ºs 3, 4 e 5, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
Notifique.»
- notificados desse despacho no dia 21 de março de 2023, os apelantes nada disseram.
- no dia 10 de maio de 2023, a apelada apresentou o seguinte requerimento (Ref.ª Citius 13753000):
«M, A. nos autos supra identificados, vem respeitosamente informar que na sequência do douto despacho de V, Exa. com a referência CITIUS 155679518, dando novo prazo aos RR. para procederem ao pagamento das rendas em dívida, acrescidas da indemnização respectiva, juntando prova de tal pagamento aos autos, e tendo já decorrido tal prazo, sem que os RR. tenham feito qualquer pagamento, vem a A. requerer nos termos do artigo 14, n.º 3, 4 e 5 da Lei 6/2006 de 27 de feveriro requerer o despejo imediato dos RR.»
- no dia 15 de maio de 2023, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte despacho (Ref.ª 156832921):
«Requerimento referência 13753000 (10.05.2023):
Notifique os RR. para, querendo, no prazo de dez dias, se pronunciarem.
Notifique.»
- os apelados foram notificados desse despacho no dia 14-06-2023 e, uma vez mais, nada disseram.
- no dia 9 de outubro de 2023, a senhora juíza a quo proferiu o despacho recorrido.
É, assim, evidente, que os réus, ora apelantes, foram notificados do incidente de despejo imediato e, não uma, mas duas vezes, lhes foi dada a oportunidade de virem aos autos demonstrar que procederem ao pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da ação, bem como da indemnização devida em caso de mora, fazendo prova desses factos, e com a advertência da possibilidade de ser decretado o despejo imediato, nos termos do art. 14.º, n.ºs 3, 4 e 5, da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro.
Não obstante, conforme referido, os réus, aqui apelantes, nada fizeram ou disseram.
Era seu dever, caso pretendessem evitar o decretamento do despejo imediato pelo tribunal de 1.ª instância, contestarem a matéria incidental, apresentando prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na pendência da ação, assim como, sendo o caso, da respetiva indemnização, nos termos previstos nos citados normativos.
O seu absoluto silêncio, na sequência das referidas notificações, acarretou a consequência a que aludem as disposições conjugadas dos arts. 293.º, n.º 3 e 574.º, n.º 2: a admissão, por acordo dos réus, aqui apelantes, do alegado não pagamento das rendas na pendência da ação de despejo.
Logo, não sê vê como poderia o despejo imediato deixar de ser decretado.
O princípio da autorresponsabilidade das partes, intimamente relacionado com o conjunto de ónus e cominações processuais que sobre elas impendem, impunha aos réus, aqui apelantes, a apresentação nos autos, de prova demonstrativa do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da ação, nos termos atrás descritos.
Não o tendo feito, em nenhuma das duas vezes que, em 1.ª instância, lhes foi concedido o prazo de dez dias para o efeito, precludiu o direito de o fazerem em momento posterior, sobretudo em sede de alegações de recurso, ou posteriormente a estas.
Como se sabe, o princípio da autorresponsabilidade das partes é aquele segundo o qual incumbe às partes deduzir e fazer valer os meios de prova de ataque e de defesa que lhes correspondam, incluindo as respetivas provas, suportando uma decisão adversa, em caso de omissão de algum, redundando a negligência ou inépcia das partes, inevitavelmente, em prejuízo das mesmas porque não pode ser suprida pela iniciativa e atividade do juiz; trata-se de um princípio cuja conexão com o dispositivo é evidente[xvii].
Afirmam os apelantes que «por força do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção não é automático.»
Assiste-lhes, em termos genéricos, inteira razão!
Mas não com reporte ao caso concreto!
É que, como se vem evidenciando, na situação presente não foi automático o despejo imediato.
Os apelantes tiveram, por duas vezes, oportunidade:
- de se pronunciarem sobre a pretensão da apelada de proceder ao despejo imediato;
- de juntarem prova do pagamento das rendas vencidas ou de terem procedido ao depósito das mesmas.
Não pretenderam, no entanto, exercer tempestivamente nenhum daqueles direitos.
Por outras palavras, por duas vezes lhes foi dada a oportunidade de alegarem e provarem factualidade impeditiva do despejo imediato, e nada fizeram.
Os apelantes não foram privados do exercício de qualquer direito.
O que sucedeu foi que, tendo-lhes sido dada, por duas vezes, a possibilidade do respetivo exercício, remeteram-se, pura e simplesmente, ao mais absoluto silêncio.
Sibi imputet!
Tal como se escreve no Ac. da R.P. de 04.05.2022, Proc. n.º 2225/21.6T8MTS-A.P1 (Isoleta de Almeida Costa) in www.dgsi.pt, o «tribunal constitucional tem-se pronunciado pela inconstitucionalidade da interpretação do artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, que não corresponda ao “sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, o réu não deve ser impedido de exercer o contraditório mediante a utilização dos correspondentes meios de defesa. (ver, Decisão Sumária n.º 101/2010, na qual se aplicou a jurisprudência do Acórdão n.º 673/2005 decidindo pela inconstitucionalidade da norma “na interpretação segundo a qual, mesmo que na ação de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da ação, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida).
Com efeito, na Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, o legislador manteve a obrigação de pagamento ou depósito das rendas que se vençam na pendência de ação de despejo (artigo 14.º, n.º 3 do NRAU) e determinou que, em caso de incumprimento dessa obrigação, o arrendatário deve ser notificado para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento ou depósito das rendas vencidas por um período igual ou superior a três meses, e ainda da indemnização devida (artigo 14.º, n.º 4 do NRAU), sob pena de o senhorio estar habilitado a pedir certidão relativa a esses factos, constituindo título executivo para efeitos de despejo do local arrendado, na forma de processo executivo comum para entrega de coisa certa (artigo 14.º, n.º 5 do NRAU).
A Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, alterou o artigo 14.º do NRAU, ao reduzir para dois meses o período a que se reporta o incumprimento da obrigação (artigo 14.º, n.º 4), e veio determinar que o exercício do direito do senhorio de requerer o despejo imediato do arrendatário passasse a ser, em parte, tramitado nos termos definidos para o procedimento especial de despejo (artigo 14.º, n.º 5; artigo 15.º, n.º 1).
Como refere o Tribunal Constitucional, “a impossibilidade de o arrendatário exercer outros meios de defesa que não a apresentação de prova de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em dívida é comum aos vários regimes que se sucederam nesta matéria, importa considerar que o Tribunal Constitucional teve já ocasião de se pronunciar sobre o regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro. De facto, pelo Acórdão n.º 673/2005, este Tribunal julgou inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90 de 15 de outubro, “na interpretação segundo a qual, mesmo que na ação de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interve¬niente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da ação, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida”.
(…)
“Entende-se, porém, que o parâmetro constitucional mais pertinente se centra no princípio da proibição da indefesa, que decorre, em primeira linha, do princípio do contraditório, a que se deve subordinar todo o processo, uma vez iniciado. Como refere Carlos Lopes do Rego (Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime de citação em processo civil, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 835  859): A garantia da via judiciária ínsita no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e a todos conferida para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos envolve, não apenas a atribuição aos interessados legítimos do direito de ação judicial, destinado a efetivar todas as situações juridicamente relevantes que o direito substantivo lhes outorgue, mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, se deve subordinar a determinados princípios e garantias fundamentais: os princípios da igualdade, do contraditório e (após a revisão constitucional de 1997) a regra do «processo equitativo», expressamente consagrada no n.º 4 daquele preceito constitucional, sendo do princípio do contraditório que decorre, em primeira linha, a regra fundamental da proibição da indefesa.
Veio o tribunal constitucional reconhecer que “uma restrição constitucionalmente intolerável do direito de defesa a limitação, no incidente de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência de ação de despejo, das possibilidades de defesa do requerido à alegação e prova de que, até ao termo do prazo para a sua resposta, procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização. Tal meio de defesa é manifestamente desajustado em todos os casos em que justamente se questiona o próprio dever de pagamento de determinada renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento válido, não serem autor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário, dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação de diverso título para justificar a ocupação do local).
(…)
Tal entendimento não assegura um tratamento equitativo das partes nem a efetividade da tutela jurisdicional, pelo que não pode deixar de ser considerado como violador do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da CRP”.
Com efeito a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem acentuado que “o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante o correto funcionamento das regras do contraditório” (cfr. Acórdão n.º 86/88).
Sendo que o direito ao contraditório traduz-se, sobretudo, na possibilidade de cada uma das partes deduzir as suas razões (de facto e de direito), de oferecer as suas provas, de controlar as provas do adversário e de discretear sobre o valor e resultados de umas e outras (cfr. Acórdão n.º 1193/96). Deste modo, a proibição da indefesa assume-se como um princípio decorrente de um direito geral ao contraditório, extraível do direito fundamental de acesso à justiça, nomeadamente da garantia de um processo justo e equitativo, sendo de atentar ao exposto no Acórdão n.º 286/2011: “O princípio da proibição da indefesa, ínsito no direito fundamental de acesso à justiça, tem sido caracterizado pelo Tribunal Constitucional como a proibição da privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito.
O Tribunal tem entendido o contraditório, exigido no artigo 20.º da Constituição, essencialmente, como o direito de ser ouvido em juízo, do qual retira uma genérica proibição de indefesa, isto é, a proibição da limitação intolerável do direito de defesa do cidadão perante o tribunal onde se discutem questões que lhe dizem respeito”. No Acórdão n.º 350/2012, o Tribunal refere: “(...) no âmbito de proteção normativa do artigo 20.º da CRP se integrarão, além de um geral direito de ação, ainda o direito a prazos razoáveis de ação e de recurso e o direito a um processo justo, no qual se incluirá, naturalmente, o direito de cada um a não ser privado da possibilidade de defesa perante os órgãos judiciais na discussão de questões que lhe digam respeito. Integrando, assim, a proibição da indefesa o núcleo essencial do processo devido em Direito, constitucionalmente imposto, qualquer regime processual que o legislador ordenaria venha a conformar - seja ele de natureza civil ou penal - estará desde logo vinculado a não obstaculizar, de forma desrazoável, o exercício do direito de cada um a ser ouvido em juízo”.
Também na adoção deste entendimento foram recentemente prolatados os Acórdãos n.ºs 251/2017, 401/2017 e 771/2017 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No entanto, sem prejuízo da vigência do princípio da proibição da indefesa, o Tribunal Constitucional vem a reconhecer que a norma do artigo 20º da CRP não é absoluta, podendo ser objeto de restrições em função de outros princípios e interesses dotados de proteção constitucional, como é bom exemplo o exposto no Acórdão n.º 20/2010: “Da estrutura complexa que detém o princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 20.º da Constituição, decorrem, para o legislador ordinário, para além da obrigação que se cifra em não lesar o princípio da proibição da indefesa, a obrigação de conformar o processo de modo tal que através dele se possa efetivamente exercer o direito a uma solução jurídica dos conflitos, obtida em tempo razoável e com todas as garantias de imparcialidade e independência, existindo à partida, entre os valores da proibição da indefesa e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica, uma relação de equivalência constitucional, devendo o legislador optar por soluções de concordância prática, de tal modo que das suas escolhas não resulte o sacrifício unilateral de nenhum dos valores em conflito, em beneficio exclusivo de outro ou de outros”.»
No caso presente, reitera-se, os réus, aqui apelantes, não foram privados de qualquer direito de alegação e prova, uma vez que nada disseram ou requereram nas duas vezes em que tiveram oportunidade de o fazer.
Nada dizendo, óbvia e consequentemente, não invocaram qualquer controvérsia contratual suscetível de interferir no dever de pagamento das rendas, pelo que é de concluir que o seu direito ao contraditório ou à prova não foi restringido.
Continuando a acompanhar o citado Ac. da R.P., «(...) o incidente de despejo imediato corresponde a um meio de reação à não liquidação das rendas vencidas no decurso de ação de despejo. Compreende-se que o legislador o configure como um incidente de tramitação simples e célere, procurando-se evitar que o arrendatário mantenha o gozo do prédio na pendência da ação de despejo sem que o senhorio seja devidamente remunerado [neste sentido, ainda sobre o artigo 58.º do RAU, ANTÓNIO PAIS DE SOUSA afirma com particular acuidade que o incidente de despejo imediato responde à eventual delonga da ação de despejo, procurando-se evitar que “[U]m arrendatário menos sério, ou porque soubesse antecipadamente a sua falta de razão, ou por outro motivo, podia aproveitar-se da demora da lide para não pagar as rendas, que entretanto, se fossem vencendo, mas sem deixar de se aproveitar do prédio” (cfr. Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 6.ª Edição atualizada, Reis do Livros, Lisboa, 2001, p. 174.)].
Estamos, aliás, na sua globalidade, perante um fim que vem modelando a recente evolução do regime substantivo, mas também processual dos contratos de arrendamento, em especial no plano da agilização, judicial e extrajudicial, dos meios de reação do senhorio perante o incumprimento do contrato pelo arrendatário. Esta foi reconhecidamente uma das principais finalidades prosseguidas pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano, bem como das alterações promovidas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, pelo que não se ignora que a interpretação do artigo 14.º, n.º 4, agora em crise, encontra suporte num regime cuja arquitetura, substantiva e processual, tem sido delineada em função de reais preocupações de celeridade na tutela do direito de propriedade do senhorio que encontra, por si, proteção constitucional (artigo 62.º, n.º 1 da Constituição) nos casos de incumprimento contratual por parte do arrendatário.
Não ocorrendo uma privação de direitos do inquilino, nos termos expostos, não é defensável a posição sustentada no recurso, porquanto o mesmo nada invocou que pudesse obstar ou evitar, pelo menos nesse momento, o despejo. Não há nada para discutir ou provar. Não se trata de efeito automático decorrente da não junção de comprovativo de pagamento ou depósito das quantias alegadamente em dívida, mas de efeito cominatório por ausência de resposta e, portanto, admissão por acordo dos factos indicados no requerimento incidental (artigo 574º nº 2 e 293 nº 3 ambos do CPC).
De resto, “aquilo que verdadeiramente ofende o princípio da proibição de indefesa é não permitir outros meios de defesa naqueles casos em que na ação de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual” (v. Acórdão n.º 673/2005).»

Em suma, no caso concreto:
- não foi proferida decisão de despejo imediato automática;
- não foi violado qualquer comando ou princípio constitucional, nomeadamente o da proibição da indefesa.
Os apelantes afirmam ainda que «(...) o contrato em questão enferma de invalidade formal, por nunca ter sido reduzido a escrito por vontade da Senhoria, pelo que é controversa a causa de pedir da acção;
(...) O incidente de despejo imediato implica a existência e validade do contrato de arrendamento e da obrigação de pagamento das rendas em causa;
(...) O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito;
(...) O contrato de arrendamento urbano verbal é nulo, por vício de forma, nos termos gerais do artigo 220.º do Código Civil;
(...) Assim, é controversa a existência e validade formal do contrato de arrendamento que serve de causa à acção e ao incidente de despejo imediato, pelo que não podia proceder nem operar o despejo imediato dos Réus do imóvel;
(...).»
É, apenas para dizer o mínimo, inconcebível o assim afirmado pelos apelantes, apenas justificável a título de uma desesperada tentativa de evitarem aquilo que se afigura inevitável.
Em momento algum dos autos os réus, aqui recorrentes, invocam, ao de leve que seja, a invalidade (formal) do contrato de arrendamento em causa.
Logo no art. 2.º da contestação que apresentaram no dia 30 de setembro de 2012, alegam que «(...) o imóvel em causa foi dado em arrendamento aos aqui Réus, por MLSD..., mãe da Autora, em 1 Janeiro de 2006, data em que teve início o contrato de arrendamento ainda vigente[xviii], e não em 1 de Dezembro de 2020, como alega a Autora.»
No art. 4.º alegam que «não foi estipulado, entre as partes, qualquer prazo de vigência do contrato, nem estabelecida a data do termo do mesmo.»
No art. 6.º alegam que «a própria Autora alega, no artigo 2.º da sua Douta Petição Inicial, que a fracção lhe foi doada “onerada com arrendamento, sendo os RR os arrendatários”
No art. 8.º alegam que «o contrato de arrendamento, na realidade, teve o seu início em 1 de Janeiro de 2006, sem estar sujeito a qualquer prazo de vigência.»
No art. 9.º alegam que «a Autora e os Réus não celebraram entre si qualquer novo contrato de arrendamento, nem convencionaram qualquer novo valor da renda mensal ou novo prazo de vigência, mantendo-se em tudo vigente o contrato de arrendamento celebrado em Janeiro de 2006.»
No art. 16.º alegam que «(...) os Réus não aceitaram a resolução do contrato de arrendamento pela Autora, por falta de fundamento legal (...).»;
No art. 17.º alegam que «responderam os Réus à Autora que se opõem à resolução do contrato de arrendamento, não aceitando a mesma.»;
No art. 18.º alegam que «tendo sido notificados, nesse acto, da comunicação do contrato de arrendamento à Autoridade Tributária e Aduaneira para efeitos de Imposto do Selo, feita pela Autora, na qual figura que o contrato de arrendamento teve início em 1 de Janeiro de 2020 e tem termo em 31 de Dezembro de 2020, sendo renovável, vieram os Réus manifestar a sua oposição a essa comunicação e ao seu conteúdo, na medida em que essas condições não correspondem ao contrato de arrendamento existente, nem tais condições ou termos foram acordados ou mereceram a sua aceitação.»
No art. 19.º alegam que «o contrato foi celebrado em 1 de Janeiro de 2006, sem prazo ou termo, pela renda mensal de €380,00 (trezentos e oitenta euros), valor esse que nunca foi objecto de qualquer alteração, como se referiu já.»
Toda a defesa dos réus no seu articulado de contestação assenta, como se vê, no pressuposto da existência de um contrato de arrendamento, sem prazo, tendo por objeto o imóvel identificado nos autos, do qual se afirmam arrendatários desde 1 de janeiro de 2006.
Perante isto, a invocação, pelos réus/apelantes, pela primeira vez, em sede de recurso, no dia 2 de novembro de 2023, da invalidade formal do contrato arrendamento, para obstarem a uma situação de despejo imediato por falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da ação de despejo, instaurada precisamente com fundamento na falta de pagamento de rendas, não deixaria, nunca, de constituir um intolerável abuso de direito, nos termos do art. 334.º do CC, na modalidade de venire contra factum proprium.
Aliás, entendendo os arrendatários, aqui réus e apelantes, que o contrato de arrendamento em causa é nulo por falta de forma, com as legais consequências daí de correntes, não se compreende até a razão pela qual vieram agora, em sede de recurso, juntar documentos aos autos tendentes a demonstrar o pagamento das rendas até outubro de 2023.
Seja como for, conforme já referido, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando “ius novarum”, ou seja, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Conforme refere Rui Pinto, «o recurso julga a decisão; […] o recurso refaz a decisão», o que significa, segundo o Autor, que o pedido de revogação é dirigido à decisão judicial, incidindo o pedido de substituição sobre a matéria que foi objeto daquela decisão, nos moldes em que foi conhecida pelo tribunal a quo[xix].
Ou seja, o presente recurso destina-se unicamente à reponderação das questões colocadas perante o tribunal recorrido, apenas e só no âmbito do incidente de despejo imediato e que nele foram apreciadas, e não ao conhecimento de questões novas, por ele não apreciadas e que extravasam, como é evidente, o âmbito daquele incidente.
No âmbito do concreto incidente a que nos vimos reportando, os arrendatários, aqui réus e apelantes, apenas evitariam o decretamento do despejo imediato, caso tivessem contestado a matéria incidental, apresentando prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na pendência da ação, assim como, sendo o caso, da respetiva indemnização, o que não fizeram.
*

IV–DECISÃO:

Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
4.1–Em não admitir a junção aos autos dos documentos apresentados pelos apelantes:
- quer com as alegações de recurso apresentadas no dia 2 de novembro de 2023;
- quer com o de requerimento autónomo apresentado no dia 3 de novembro de 2023;
4.2–Em julgar a improcedente a apelação, mantendo, em consequência a decisão recorrida.
As custas do recurso, na vertente de custas de parte, são a cargo dos apelantes (art. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2).



Lisboa, 9 de janeiro de 2024



José Capacete
Cristina Silva Maximiano
Ana Mónica Mendonça Pavão



[i]«Cfr., neste sentido, Abílio Neto, Despejo de Prédios Urbanos, 1.ª edição, pág. 97, e Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 6.ª edição, 2013, pág. 232.»
[ii]Os apelantes transcrevem, desnecessariamente, em sede de conclusões, os n.ºs 3 a 5 do art. 14.º da Lei n.º 6/2006, de 27 fevereiro.
[iii]Manual do Recurso Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 293.
[iv]Arrendamento Urbano Anotado, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2014, p. 192.
[v]Cfr., neste exato sentido, o Ac. do S.T.J. de 13.07.2027, Proc. n.º 783/16.6T8SLM-A.L1.S1 (Maria da Graça Trigo), in www.dgsi.pt.
[vi]São exatamente os mesmos, os documentos juntos pelos apelantes com as alegações de recurso apresentadas no dia 2 de novembro de 2023 e com o requerimento autónomo apresentado no dia 3 de novembro de 2023.
Por outro lado, sempre os documentos teriam de ser apresentados com a alegação de recurso, e nunca depois.
[vii]Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, 2022, pp. 133 ss.
[viii]Recursos Civis: O Sistema Recursório Português. Fundamentos, Regime e Actividade Judiciária, Nova School of Law-CEDIS, 2020, p. 232.
[ix]Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, 2022, p. 286.
[x]Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, Almedina, 2017, p. 243.
[xi]O destacado a negrito é da nossa autoria.
[xii]Código de Processo Civil Antado, Vol. II, Almedina, 2018, p. 313.
[xiii]Recursos…,cit., pp. 286-287.
[xiv]No caso, do
[xv]Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985. pp. 533-534.
[xvi]Antunes Varela, em anotação ao Ac. do S.T.J. de 09.12.1980, R.L.J. 115º, n.º 3696, pp. 90-96 (esp. 95.96).
[xvii]Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 378.
[xviii]O destacado a negrito é da nossa autoria.
[xix]Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, pp. 62-63.