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ARRENDAMENTO
CESSAÇÃO
OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO
PLURALIDADE DE ARRENDATÁRIOS
COMUNICAÇÃO SUBSCRITA POR PROCURADOR
RECEBIMENTO DE RENDAS APÓS CESSAÇÃO
Sumário
I.–O disposto no Art. 11º, nº3, do NRAU (“Havendo pluralidade de arrendatários, a comunicação do senhorio é dirigida ao que figurar em primeiro lugar no contrato, salvo indicação daqueles em contrário”) colhe aplicação apenas quanto às comunicações do senhorio que versem sobre a cessação do contrato de arrendamento, sobre a atualização da renda e obras (cf. Artigo 9º, nº1, do NRAU).
II.–A carta registada com aviso de receção contendo oposição à renovação de arrendamento (Art. 1097º do Código Civil) - subscrita por alguém invocando a qualidade de procurador do senhorio, sendo rececionada pelo inquilino sem que este tenha exigido ao representante, em prazo razoável, a comprovação dos poderes de representação - produz efeitos na esfera jurídica do representado, sendo eficaz também perante o inquilino.
III.–Não ocorre renovação do contrato de arrendamento, nos termos do Artigo 1056º do Código Civil, quando o senhorio remete ao inquilino, menos de um ano após a caducidade do contrato por oposição à renovação, carta reiterando a extinção do contrato e propondo outras condições para a eventual celebração de novo contrato de arrendamento.
IV.–A receção das rendas, no período subsequente à extinção do contrato de arrendamento por oposição à renovação, de per si, não comporta a leitura de constituir assentimento à renovação, sendo que incumbe ao arrendatário pagar o valor da renda a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado (cf. Artigo 1045º do Código Civil).
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
AB, Unipessoal, Lda. intentou, junto do Balcão Nacional de Arrendamento, procedimento especial de despejo contra AM e CM, pedindo o seu despejo do imóvel sito na Rua (...), nº ..., 1º Direito, (...) Lisboa.
Para tanto, alegou, como fundamento do despejo, a “cessação por oposição à renovação pelo senhorio”. Juntou cópia do contrato de arrendamento e da comunicação à Requerida da oposição à renovação do contrato. AM apresentou oposição, na qual, em síntese, alegou que:
CM, também Requerida faleceu no dia 20.07.2020, pelo que o arrendamento passou a ficar concentrado na pessoa da sua filha e já coarrendatária, AM;
o formulário de Requerimento de Despejo como a correspondente exposição de factos, não contêm qualquer assinatura (digital ou outra) ou data de apresentação, pelo que contesta a sua autoria, legitimidade e poderes de representação da Requerente de quem quer que se venha a apurar ser o autor dessa peça processual;
anota a ausência de qualquer comprovativo de pagamento da taxa de justiça devida;
impugna a alegação de que o locado não é casa de morada de família;
impugna o teor do comprovativo de pagamento de Imposto de Selo e sua correspondência com o locado destes autos;
impugna que o subscritor da carta de oposição à renovação tivesse poderes de representação, pelo que contesta a autoria da carta constante do Documento 2 do Requerimento e a legitimidade do seu subscritor, por falta dos poderes de representação da Requerente de que se arroga;
alega que após a renovação decorreu 1 ano, 3 meses e 22 dias até à data da citação da Requerida para estes autos, sendo que a esta permaneceu no gozo público e pacífico do locado, sem qualquer oposição da Requerente que, pelo contrário, continuou a receber as transferências bancárias mensais do valor global das rendas respeitantes aos 3 espaços locados. Assim, alega que, por força do disposto no art.º 1056.º do Código Civil, o contrato de arrendamento dos autos encontra-se renovado, nos termos estipulados no n.º 2 da Cláusula Primeira.
Conclui que o requerimento de despejo ser indeferido, por não se mostrarem reunidos os requisitos exigidos pela alínea c) do n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 6/2006, de 27/02, designadamente por faltar AB, UNIPESSOAL, LDA. a comunicação prevista no n.º 1 do artigo 1097.º do Código Civil, com validade e eficácia, pelo contrário se verificando a renovação do contrato de arrendamento por novo período de 3 anos, por força do disposto no artigo 1056.º do Código Civil.
Notificada a Autora para responder à matéria de excepção, veio esta sustentar que:
o requerimento de despejo foi apresentado por advogado, com procuração junta ao requerimento, que lhe confere poderes de representação da Autora, sendo a sua assinatura eletrónica, o que lhe confere toda a legitimidade para apresentação do referido requerimento;
a taxa de justiça foi liquidada após a apresentação do requerimento de despejo nos termos legais;
reitera que o locado, nos termos do artigo 12º do NRAU, não é casa de morada de família;
o pagamento do imposto de selo foi feito pela atual proprietária, à posteriori e, em cumprimento pelo disposto no artigo 15º-B nº 2 alínea h) 1ª parte, do NRAU;
alega que nunca antes a Ré tinha vindo impugnar a carta de oposição, nem nunca foi antes solicitada pela Ré a comprovação desses poderes de representação, mas vem, ainda assim, juntar procuração passada em nome de LD, concluindo não existir qualquer irregularidade e ineficácia da carta de oposição à renovação enviada pela Autora, tendo a mesma produzido os seus efeitos legais;
mais refere que não existe qualquer interesse da Autora em manter o arrendamento, o contrato de arrendamento encontra-se extinto, devido à oposição à renovação, por iniciativa da senhoria, e que produziu efeitos em 31 de Agosto de 2021, pelo que todas as quantias entregues pela Ré a partir da data de extinção do contrato do arrendamento serão imputadas ao valor de indemnização devido pela não entrega atempada do imóvel à proprietária, nos termos do disposto pelo artigo 1045º do Código Civil, não reconhecendo qualquer contrato de arrendamento em vigor.
Entretanto, e face ao decesso da 2ª Requerida, foi determinada a suspensão da instância, sendo que foi determinado, ao abrigo do enunciado no artigo 15º-G do NRAU, o prosseguimento dos autos apenas contra a Requerida AM.
Após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo procedente o presente procedimento especial de despejo e, consequentemente: 5.1.–Declaro validamente efectuada a oposição à renovação do contrato, que cessou a vigência em 31.08.2021, devendo a Requerida AM entregar à Requerente AB, Unipessoal, Lda. o 1.º andar direito, sito na Rua (...), nº ..., da freguesia de (...) e concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa com a descrição n.º (...) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (...), livre e devoluta de pessoas e bens; 5.2.–Condeno a Requerida AM no pagamento das custas processuais nesta parte, sem prejuízo da condenação da Requerente já determinada por despacho de 12.06.2023.»
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Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerida, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES: A.–«Vem o presente recurso interposto da douta Sentença proferida nos autos à margem identificados, a qual julgou procedente o pedido formulado pela Requerente, em virtude de considerar validamente realizada a comunicação de oposição da Requerente à renovação do contrato de arrendamento e de ser inaplicável, ao caso dos autos, o disposto no art.° 1056.° do CC, além do que deu por verificada a oposição da Requerente à continuação do gozo do locado pelo prazo de 1 ano após a cessação do contrato. B.–Além de o CPC aprovado pela Lei n.° 41/2013, de 26/06 iniciar a vigência posteriormente à Lei n.° 31/2012, de 14/08, o facto é que a norma citada incide, exacta e especificamente, sobre os recursos de apelação (de decisões judiciais para desocupação do locado, seja por invalidade, extinção ou reconhecimento de extinção do arrendamento, pondo em crise a posse de casa de habitação) antes regulados pelo citado art.° 15.°-Q do NRAU, sendo patente a estrita incompatibilidade de ambas as normas, a qual torna inequívoca a intenção do legislador, de que a norma geral da alínea b) do n.° 3 do art.° 647.° do CPC revogue a norma especial precedente do art.° 15.°-Q do NRAU (cfr. art.° 7.°, n.° 3 do CC) no que respeita ao arrendamento habitacional. C.–O art.° 15.°-Q NRAU viola o princípio da igualdade (art.° 13 CRP) porquanto os inquilinos que soçobrem num PED têm a eficácia prática do seu recurso limitada pelo efeito devolutivo do art. 15.°-Q NRAU, ao passo que os inquilinos que percam uma acção de natureza diferente (não submetido ao art.° 15.° do NRAU), em que se discuta a validade do seu contrato de arrendamento vêem atribuída eficácia suspensiva ao seu recurso, sem sequer ficarem dependentes do pagamento de caução. Há assim uma diferenciação no tratamento da mesma situação (a desocupação forçada do locado), violando não só o direito à igualdade (art.° 13.° CRP), como o direito a uma tutela jurisdicional efectiva (art.° 20.°, n.°s 1 e 4 CRP), para além de pôr em causa o direito à habitação (art.° 65.° CRP). D.–Assim, ao presente recurso de apelação não pode deixar de ser atribuído efeito suspensivo da douta Sentença proferida, por força do disposto no art.° 647.°, n.° 3 b) do CPC. E.–Duas pessoas associadas num mesmo processo negocial e em subsequentes processos judiciais com idêntico objecto recebem simultaneamente declarações idênticas, ambas subscritas pelo mesmo Sr. LD, em ambas invocando os mesmos poderes de representação da Requerente, não se podendo ter como irrelevante, para o caso da ora Recorrente, as diligências empreendidas pela sua comparte Ana ……, para verificação desses poderes de representação, e o insucesso de tais diligências. Por isso, contrariamente ao decidido na douta Sentença recorrida (pág. 2 da secção 4.2 – Fundamentação de Direito), deveria ter sido atribuída relevância à conjugação entre o facto provado indicado sob o n.° 9 e as diligências testemunhadas pela Dra. Ana ….. e supra indicadas, para efeitos de aplicação do disposto no art.° 260.°, n.° 1 do CC. F.–Assim, a douta Sentença recorrida não poderia considerar o facto dado como provado sob o n.º 3, designadamente que “A Requerente remeteu à Requerida ... carta registada com aviso de recepção, datada de 29 de Abril de 2019 ...”, uma vez que a falta de prova dos poderes de representação invocados pelo subscritor dessa carta, retira eficácia a essa declaração, por força do disposto no art.° 260.°, n.° 1 do CC. G.–O erro verificado na enunciação do facto dado como provado sob o n.° 4 não deve ser qualificado como mero lapso, antes lhe deve ser atribuída relevância porquanto, não obstante aquelas comunicações – cfr. Documentos 1 e 2 da Oposição – e os seus efeitos jurídicos, estipulados pelo art.° 1107.° do CC (a saber, o de a ora Recorrente se tornar a única arrendatária do locado e contraparte contratual da Requerente), a Requerente continuou a expedir todas as suas comunicações apenas para a ex-inquilina CM, designadamente a carta mencionada no facto provado n.° 10, que deveria ter sido considerada inválida e ineficaz, porque não endereçada a quem de direito. H.–A falta de resposta às diligências empreendidas pela testemunha Ana ……, constante do mesmo meio de prova que determinou a inclusão do facto n.° 8, assume crucial relevância para efeitos da devida aplicação do disposto no art.° 260.°, n.° 1 do CC, quanto à ineficácia da declaração de 29/04/2019. I.–O depoimento prestado pela testemunha JMS não pode ser dado como credível, uma vez que revela falta de conhecimento sobre as matérias de facto abordadas ou, em alternativa, falta de aderência à verdade dos factos. J.–A douta Sentença recorrida incorre em violação do disposto no art.° 607.°, n.° 4 do CPC ao não incluir no elenco de factos provados as duas cartas constantes dos Documentos 1 e 2 da Oposição, o que assume relevância dados os seus efeitos jurídicos, estipulados pelo art.° 1107.° do CC (a saber, o de a ora Recorrente se tornar a única arrendatária do locado e contraparte contratual da Requerente), sendo que a Requerente continuou a expedir todas as suas comunicações apenas para a ex inquilina CM, designadamente a carta mencionada no facto provado n.° 10, que deveria ter sido considerada inválida e ineficaz, porque não endereçada a quem de direito. K.–De igual modo, ao desconsiderar a confissão da Requerente, por falta de cumprimento do ónus de impugnação especificada da matéria de facto respeitante à excepção de falta de oposição à permanência da Requerida no locado, durante mais de 1 ano após o alegado termo da última renovação, pelo que o contrato se renovara por força do disposto no art.° 1056.° do CC, o que importa assumpção desse facto por acordo. L.–A douta Sentença recorrida não deveria considerar que, mesmo que se considerasse a dita carta do Sr. LD de 29/04/2019 emitida sem poderes de representação, sempre se deveria entender a interposição dos presentes autos como ratificação daquele acto, com o efeito retroactivo previsto nos artigos 268.°, n.° 2 e 471.° do CC (cfr. pág. 3 da secção 4.2 Fundamentação de Direito).
M.– Com efeito, não só esses efeitos retroactivos previstos no art.° 268.°, n.° 2 do CC ressalvam os direitos de terceiro (in casu a Requerida), como essa ratificação atribuiria eficácia àquela comunicação em data bem posterior à da ocorrência da renovação do contrato presentemente em curso, não sendo essa comunicação, reportada ao período contratual precedente, susceptível de produzir qualquer efeito sobre o período contratual corrente, sob pena de frontal violação do disposto no art.° 1097.°, n.° 1 b) do CC. N.–A oposição à renovação do contrato de arrendamento habitacional dos autos (se pudesse ser considerada existente, válida e eficaz) não se baseia no estipulado no art.° 1055.° do CC, mas antes no art.° 1097.° do CC (cfr. Doc. 2 do Requerimento de despejo). Além disso, o entendimento de inaplicabilidade do disposto no art.° 1056.° do CC confunde o acto e seus efeitos com as suas consequências: ao abrigo do disposto nos artigos 1096.°, n.° 3 e 1097.° do CC, o senhorio pode declarar a sua oposição à renovação automática do contrato, quando ocorrer a cessação do período em curso, desse modo impedindo a ocorrência da dita renovação automática; a consequência desse acto é a de, chegada a data do termo do período de vigência da relação contratual, ocorrer a sua caducidade, nos termos da alínea a) do art.° 1051.° do CC. O.–Tanto segundo a letra do art.° 1056.° do CC como segundo o decidido no aresto supra citado, a carta expedida pela Requerente, com data de 17/06/2022, não cumpre o requisito de manifestação inequívoca de oposição ao continuado gozo do locado pela Requerida, já que se limita a propor a negociação de novo contrato de arrendamento (do que decorreria a continuação da ocupação do locado), não apresentando qualquer exigência de desocupação do locado, mesmo em alternativa àquela negociação. P.–Dispõe o art.° 231.° do CC que a morte do destinatário determina a ineficácia da declaração ou da proposta negocial que lhe seja endereçada. Como é óbvio, a Requerida CM perdeu a qualidade de arrendatária pela sua morte em 20.07.2020. Assim, o contrato manteve-se apenas em nome da ora Recorrente, a quem sempre teria de ser validamente dirigida qualquer comunicação. Q.–Mais importante ainda é a circunstância de tal carta violar frontalmente o que imperativamente dispõe o art.° 11.°, n.° 3 do NRAU: havendo pluralidade de arrendatários e salvo indicação em contrário, as comunicações do senhorio devem ser dirigidas ao inquilino que figurar em primeiro lugar no contrato, ou seja, à ora Recorrente e não à sua Mãe, como resulta do contrato que constitui o facto provado 2. Logo, ainda que a Requerida CM fosse viva, essa carta seria inválida e não produziria efeitos, nomeadamente em relação à ora Recorrente, como primeira arrendatária. Esta questão é de conhecimento oficioso, pelo que a Mma. Juiz deveria ter reconhecido a invalidade da carta e disso extraído as devidas consequências. R.–Caso a Requerente atribuísse à sua carta de Junho de 2022 o objectivo de manifestar alguma forma de oposição à permanência da Requerida no locado, como afirmado pela douta Sentença recorrida, certamente teria sido a própria Requerente a juntá-la como contraprova ao teor dos últimos artigos da Oposição ao despejo. Pelo contrário, verificou-se que, quando foi requerida a junção da carta em apreço e da sua resposta, em sede de audiência de discussão e julgamento, como resulta da Acta da Audiência, a Requerente opôs-se a essa junção. Obviamente porque dessa carta não entendia poder retirar as consequências que a douta Sentença recorrida em seu lugar entendeu retirar. A Mma. Juiz utilizou esta carta como facto instrumental, quando a Parte, a quem o documento acabou por aproveitar, não retirara qualquer benefício dessa mesma carta, que tinha em sua posse e era de sua autoria. S.–Constitui violação do disposto no já mencionado art.º 11.º, n.º 3 do NRAU e do art.º 3.º, n.º 1 do CC a afirmação constante da douta Sentença Recorrida (secção 4.2. Fundamentação de Direito, pág. 4, 3º parágrafo) de que era do conhecimento da Requerida que a Requerente, por hábito, apenas dirigia a correspondência à Requerida CM. Com efeito, ainda que estivéssemos perante um costume, como a douta Sentença recorrida parece insinuar, esse costume jamais poderia ir para além da lei ou contra a lei. Não só porque somente uma lei pode revogar outra, mas como também está em causa o princípio da segurança jurídica. Acresce que, mesmo que fosse considerado um uso – que não o é – também não poderia ser juridicamente atendível, a não ser que a lei dispusesse nesse sentido e o permitisse (artigo 3º/1 do CC). T.–O entendimento plasmado a pág. 6 da secção 4.2 Fundamentação de Direito da douta Sentença recorrida importaria a possibilidade de, ao longo de 1 ano, 2 anos, 5 anos, 10 anos, se manter a ocupação do locado pela Requerida, com pagamento das rendas devidas (sem emissão da correspondente documentação contabilística) e sem que existisse título para tal ocupação (apesar do duradouro comportamento das Partes), nem o art.º 1056.º do CC pudesse produzir o efeito supletivo para que foi gizado, o que não pode deixar de ser havido como solução jurídica repugnante.
Nestes termos e nos mais de Direito cujo douto suprimento de V. Exas. se espera e invoca, deve a douta Sentença recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que negue provimento à pretensão da Requerente, com o que se fará a costumada justiça.»
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Contra-alegou a apelada, concluido pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes: i.-Impugnação da decisão da matéria de facto (conclusões E) a K); ii.-Validade das comunicações endereçadas pela autora/apelada (conclusões P), Q), S); iii.-Validade da oposição à renovação do arrendamento (conclusões F), L), M) e N)); iv.-Renovação do contrato de arrendamento ao abrigo do Artigo 1056º do Código Civil (Conclusões O), R), T).
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade: 1)-Pela apresentação n.º 2410, de 03.09.2018, mostra-se inscrita a aquisição, por compra à Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, SA, a favor da Requerente dos prédios urbanos sitos na Rua do (...), nºs 40, 40-A, 42, 42-A e 42-B “A”, onde se inclui o 1.º andar direito, sito na Rua (...), nº ..., da freguesia de (...) e concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa com a descrição n.º (...) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (...). 2)-Por documento particular datado de 29.08.2008, intitulado “Contrato de Arrendamento para Habitação com Prazo Certo”, a Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, SA, na qualidade de Primeiro Contraente ou Senhorio, e as Requeridas AM e CM, na qualidade de Segundas Contraentes ou Arrendatárias, e JF, na qualidade de Terceiro Contraente ou Fiador, declararam o seguinte: É celebrado o presentecontrato de arrendamento para habitação com prazo certo, tendo por objecto o 1º, andar direito, de que o Primeiro Contraente é proprietário, do prédio urbano sito na Rua (...), n.º 42, em Lisboa, freguesia de (...), concelho de Lisboa (..), nas condições estipuladas nas cláusulas seguintes: Cláusula Primeira (Vigência, Renovação e Objecto) UM–O arrendamento é celebrado sob a forma de prazo certo, ao abrigo do disposto nos artigos 1095º e seguintes do Código Civil, e terá a duração de 10 anos, com início em 1 de Setembro de 2008 e termo em 31 de Agosto de 2018. DOIS–No termo do prazo contratual, o arrendamento renovar-se-á por iguais e sucessivos prazos de 3 anos, salvo se for denunciado, por qualquer das partes. TRÊS–O locado destina-se, exclusivamente, a habitação das Arrendatárias. (...) Cláusula Segunda (Oposição à Renovação e Denúncia) UM–O Senhorio poderá opor-se à renovação automática do contrato mediante comunicação, remetida às Arrendatárias por carta registada com aviso de recepção, com a antecedência não inferior a um ano do termo do contrato. (...)QUATRO–Quando o Senhorio proceda à denúncia do contrato nos termos previstos no número UM ou o contrato cesse por qualquer outra causa e as Arrendatárias não restituam o locado até ao termo do prazo contratual em vigor ou até à data em que o deveriam fazer, as Arrendatárias constituem-se na obrigação de indemnizar o Senhorio no valor diário correspondente a 1/10 (um décimo) do valor mensal da renda por cada dia de atraso na restituição do locado e anda na obrigação de suportar as despesas judiciais e extrajudicias que o Senhorio venha a ter, incluindo custas judiciais e honorários de Advogado ou de Solicitador de Execução.
Cláusula Terceira (Renda) UM–A renda inicial é de € 500,00 (quinhentos euros), no 2.º ano passa a ser de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros), n.º 3.º ano passa a ser de € 600,00 (seiscentos euros) e no 4.º ano passa a ser de € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros). (...)TRÊS–A partir do 5º. Ano e seguintes, a renda poderá ser actualizada peloSenhoriono final de cada período de doze meses, de acordo com o índice de actualização das rendas habitacionais previsto na lei. Na falta deste índice, será utilizado como base de actualização o índice de aumento de preços ao consumidor em Portugal Continental, publicados pelo Instituto Nacional de Estatística para o ano civil precedente. (...)CINCO–A renda será paga pelas Arrendatárias mediante transferência bancária ou por outro meio a indicar por escrito pelo Senhorio às Arrendatárias. SEIS–Os recibos da renda serão enviados pelo Senhorio para as Arrendatárias,após efectivo pagamento. 3)–A Requerente remeteu à Requerida AM, que a recebeu em 02.05.2019, carta registada com aviso de receção, datada de 29 de Abril de 2019, com o seguinte teor: (...) Assunto: Oposição à renovação de arrendamento (artº 1097º do Código Civil) Imóvel:R (...), N.º ..., 1º Dto. (adinate designado locado). Exmo/a. Senhor/es/a(s). Fazemos referência ao contrato de arrendamento com prazo certo, acima identificado sito em imóvel de que esta sociedade (adiante apenas designada por “Senhoria”) é proprietária e no qual a posição contratual de Senhoria lhe foi transferida, em consequência da compra e venda oportunamente comunicada V. Exas, Pela Presente,a Senhoria vem comunicar a oposição à renovação do contrato de arrendamentode que V. Exas, são titulares, em conformidade com o disposto no art.º 1.097º do Código Civil e no Novo Regime do Arrendamento Urbano (adiante designado NRAU). Em conformidade com o disposto no artigo 1097º do Código Civil, a presente oposição à renovação produzirá efeitos no termo do prazo inicial ou termo da renovação actualmente em curso, i.e. em 31/08/2021. Na data da produção de efeitos da presente oposição à renovação, deverão V. Exas. proceder à entrega do locado, com a devolução das chaves de acesso ao locado e a sua restituição livre de pessoas e bens, no estado de conservação e limpeza previsto no contrato e legislação aplicáveis. O não cumprimento da obrigação de entrega no tempo e termos referidos, determinará a responsabilidade dos arrendatários e eventuais garantes do contrato de arrendamento nos termos legais e contratuais. Relembramos que as rendas e demais montantes a cargo dos arrendatários, deverão continuar a ser pagas até ao termo do contrato, não sendo possível efectuar quaisquer compensações com montantes pagos anteriormente, nomeadamente e sem limitar, a título de caução. (...) O Procurador (Assinatura manuscrita) (LD) 4)–A Requerida CM faleceu em 20.07.2022. 5)–A Requerida AM não procedeu, até à presente data, à entrega do locado, 6)–Continuando a usar o mesmo, 7)–Mais efectuando transferências bancárias mensais do valor global das rendas respeitantes a 3 espaços locados (R/C Esq.°, 1.° Esq.° e Dto.), actualmente no montante de € 1.695,26, correspondendo € 483,04 ao R/C Esq.°, € 483,04 ao 1.° Esq.° e € 729,18 ao 1.° Dto., que a Requerida recebe. 8)–AG, igualmente arrendatária da Requerente, recebeu carta similar à mencionada em 3), subscrita pelo mesmo Procurador, tendo aquela solicitado a comprovação dos poderes de representação deste. 9)–Antes do recebimento da carta referida em 3) o aludido Procurador não era mencionado na correspondência remetida pela Requerente a CM (a Requerente apenas expedia correspondência para uma das co-locatárias). 10)–A Requerente remeteu a CM uma carta datada de 17.06.2022, com o seguinte teor: (...) Assunto: Renegociação de contrato Na sua qualidade de Arrendatário(a) da AB, S.A. (vossa Senhoria), vimos informar que o seu contrato de arrendamento terminou em 31/08/2021, data em que deveria entregar o imóvel ou, em alternativa, iniciar um novo contrato de arrendamento. Nesse sentido, e sendo do seu interesse em assinar um novo contrato, apresentamos em seguida as condições do mesmo: (..). Ficamos a aguardar a sua resposta até ao dia 15/07/2021, data n(a) qual a proposta apresentada fica sem efeito, sob pena de serem acionados os mecanismos legais. 11)–A Requerida AM remeteu, através do seu mandatário, à Requerente resposta, datada de 29.08.2022, com o seguinte teor: (...) Ass.: Participação de óbito de coarrendatária (...)Faço referência às minhas cartas de 19/10/2020 de 03/11/2020, relativas ao assunto mencionado em epígrafe, das quais junto cópias para facilidade de referência. Como indicado, nessas cartas, elas eram relativa ao contrato de arrendamento habitacional, respeitante ao fogo mencionado em epígrafe, co-titulado pelas Exmas. Sras.CM e AM. Por meio dessas cartas, foi dado cumprimento ao disposto no art.º 1107.º do Código Civil, informando o óbito da Exma. Sra. Dra. CM, ocorrido no dia 20/07/2020, pelo que o arrendamento passou a ficar concentrado na pessoa da sua filha e já coarrendatária, a Exma. Sra. Dra. AM. Surpreendentemente, no passado dia 18/07/2022, chegou à posse da minha Constituinte, a Exma. Sra. Dra. AM, uma carta de V. Exas datada de 17/06/2022, dando conta de que o contrato teria terminado em 31/08/2021 e propondo uma renegociação de novo contrato. Começo por observar que, nessa vossa carta, é solicitada uma resposta até 15/07/2021, cerca de 13 meses antes da data de expedição da carta ou, se entendêssemos o ano de 2021 como lapso a corrigir, 3 dias antes da data de recepção da mesma carta. Por outro lado, convirão V. Exas. que, não tendo sido feita qualquer comunicação de oposição à renovação do contrato, nos termos do disposto no art.º 1097.º do Código Civil, o contrato de arrendamento renovou-se. Além disso, esta comunicação de 18/07/2022, endereçado a quem, por motivo (..) Assunto: Renegociação de contrato Na sua qualidade de Arrendatário(a) da AB, S.A. (vossa Senhoria), vimos informar que o seu contrato de arrendamento terminou em 31/08/2021, data em que deveria entregar o imóvel ou, em alternativa, iniciar um novo contrato de arrendamento. Nesse sentido, e sendo do seu interesse em assinar um novo contrato, apresentamos em seguida as condições do mesmo: (..). Ficamos a aguardar a sua resposta até ao dia 15/07/2021, data n(a) qual a proposta apresentada fica sem efeito, sob pena de serem acionados os mecanismos legais. 12)–A Requerente remeteu à Requerida, que a recebeu, uma carta, datada de 17.02.2023, dirigida a R (...), N.º 42, 1º Dt 1º andar Dto. (...) Lisboa, na qual consta (...) Assunto: Regras de Conduta no prédio L12.1D Dirigimo-nos a V. Exas., na V. qualidade de arrendatários do Edifício sito na R (...), N.º 42, 1º Dt. 1.º andar Dto., Arroios, em Lisboa, para solicitar que sejam respeitados os princípios de boa convivência e de respeito entre moradores (...).
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO (CONCLUSÕES E) A K).
Em primeiro lugar, a apelante considera que o facto provado sob 3 (carta remetida pela requerente à requerida, em 2.5.2019, consubstanciando a oposição à renovação do arrendamento) não deveria ter sido considerando provado «uma vez que a falta de prova dos poderes de representação invocados pelo subscritor da carta, retira eficácia a essa declaração».
O Tribunal a quo fundamentou a resposta a esse facto nestes termos:
«Pontos 1) a 3): a factualidade em referência encontra-se assente por acordo das partes (cfr. artigo 5740, n.0s 1 e 2 do Código de Processo Civil), ainda que coadjuvantemente se tenha valorado quanto à propriedade do imóvel o teor da certidão do registo predial e da caderneta predial urbana (Docs. 5 e 6 juntos com o requerimento de despejo), quanto ao contrato a cópia do mesmo (junto como Doc. 1 com o requerimento de despejo) e quanto à carta de resolução o teor da cópia da mesma (junta como Doc. 2 com o requerimento de despejo).
Importa atentar que a Requerida não arguiu a falsidade da assinatura constante do contrato de arrendamento e que lhe é imputada (cfr. n.0 1 do artigo 3740 e 3760, ambos do Código Civil), sendo que quanto à carta referida em 3), não coloca em causa o seu envio e recebimento, mas outrossim os poderes do seu subscritor, questão que analisaremos infra.»
Apreciando.
A apelante confunde a fixação da matéria de facto com a subsquente qualificação jurídica. De facto, o que está provado sob 3 é o envio e receção da carta e seus termos, aqui por transcrição das expressões utilizadas na carta. Saber se quem assinou a carta, invocando a qualidade de procurador, tinha poderes bastantes ou não, é questão que extravasa a redação singela do facto e não determina a alteração deste. A (in)suficiência desses poderes poderá derivar de outra factualidade que não do facto 3 em si.
Em segundo lugar, sustenta a apelante que existe erro na redação do facto 4 porquanto a requerida CM faleceu em 20.7.2020 e não em 20.7.2022.
O tribunal a quo fundamentou o facto 4 assim:
«Ponto 4): a prova deste facto decorre do teor do assento de óbito junto aos autos.».
Ora, resulta de tal assento bem como da escritura de habilitação de herdeiros que o óbito ocorreu em 20.7.2020, tratando-se de erro de escrita suprível (cf. Artigo 614º, nº1 e nº2, do Código de Processo Civil).
Assim, retifica-se a redação do facto 4 para : A Requerida CM faleceu em 20.7.2020.
Em terceiro lugar, a apelante insurge-se contra a valoração dada pelo tribunal à testemunha JMS, sustentando que o mesmo revela falta de conhecimento sobre as matéria abordadas ou, em alternativa, falta de aderência à verdade dos factos.
Improcede a pretensão da apelante porquanto não cabe ao Tribunal da Relação certificar depoimentos mas apenas, sendo o caso, alterar concretos factos com base em meios de prova. Nos termos em que a questão é colocada, a sua apreciação é absolutamente inútil.
Com efeito, o direito à impugnação da decisão de facto não subsiste a se mas assume um caráter instrumental face à decisão de mérito do pleito. Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.[3] Dito de outra forma, o princípio da limitação dos atos, consagrado no Artigo 130º do Código de Processo Civil, deve ser observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.5.2017, Isabel Pereira, 4111/13.
Em quarto lugar, a apelante pretende que sejam aditados dois factos correspondentes às duas cartas constantes dos documentos 1 e 2 da oposição, o que assumirá relevância para efeitos do Artigo 1107º do Código Civil (comunicação da transmissão ou concentração do arrendamento).
Compulsados os autos, verifica-se que a autora/apelada não suscitou qualquer questão quanto ao envio e receção de tais cartas, razão pela qual deve aditar-se o facto 13 com a seguinte redação: 13.–Com data de 19.10.2020, JFA subscreveu a carta de fls. 32 dirigia à autora, nos termo da qual afirma : «Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1107º do Código Civil, cumpro o doloroso dever de informar o óbito da Exma. Sra. Da. CM (…) , ocorrido no dia 20.7.2020 (…) Assim, o arrendamento fica concentrado na pessoa da sua filha e já coarrendatária, a Exma. Sra. Dra. AM(…) .» Em 3.11.2020, o mesmo JFA dirigiu nova carta à autora, clarificando que a comunicação anterior dizia respeito à totalidade do objeto do contrato de arrendamento.
Em quinto lugar, a apelante pretende se considere assente, por acordo, a falta de oposição da autora/apelada à permanência da requerida no locado, para efeitos do disposto no Artigo 1056º do Código Civil.
Improcede a pretensão porquanto, aquando do exercício do subsequente contraditório, a autora afirmou que: «Contrariamente ao que a Ré quer fazer parecer, não existe qualquer interesse da autora em manter o arrendamento, o contrato de arrendamento encontra-se extinto, devido à oposição à renovação, por iniciativa da senhora, e que produziu efeitos em 31 de agosto de 2021 (30); Face à conduta relapsa da Ré, a Autora foi obrigada a lançar mão do procedimento especial de despejo (31); Todas as quantias entregues pela ré a partir da data da extinção do contrato de arrendamento serão imputadas ao valor de indemnização devido pela não entrega atempada do imóvel à proprietária, nos termos do disposto pelo artigo 1045º do Código Civil (32).
Não há admissão por acordo porquanto- atento os termos do exercício do contraditório – a versão da Ré mostra-se contrariada pelo contraditório considerado no seu conjunto (cf. Artigo 574º, nº2, do Código de Processo Civil).
VALIDADE DAS COMUNICAÇÕES ENDEREÇADAS PELA AUTORA/APELADA (CONCLUSÕES P), Q), S).
Sustenta a apelante que: atento o óbito de CM em 20.7.2020, a partir daí as comunicações da autora – para serem válidas – teriam de ser dirigidas à apelante; a carta remetida pela autora, em 17.6.2022, viola frontalmente o disposto no artigo 11º, nº3, do NRAU; nesse sentido, é errada a afirmação feita na sentença impugnada de que era do conhecimento da requerida que a requerente, por hábito, apenas dirigia correspondência à requerida CM (conclusões P), Q) e S)).
Apreciando.
A partir do óbito da coarrendatária CM, as notificações da autora teriam, em princípio (cf. infra), de ser dirigidas à Ré AM.
A única notificação que poderá estar em causa é aquela a que se reporta o facto provado sob 10 na medida em que tal carta foi endereçada à já então falecida CM. Ora, essa carta (de 17.6.2022) visa, em primeira linha, manifestar a disponibilidade da autora para renegociar o contrato de arrendamento, hipótese esta que é colocada na sequência da já ocorrida extinção do contrato em 31.8.2021 por força da oposição à renovação, expressa na carta de 29.4.2019, dirigida à Ré AM. Assim, a carta de 17.6.2022 não teve (nem pretendeu ter) efeitos extintivos do contrato de arrendamento, consistindo apenas num convite a negociar no contrato. A sua asserção de que o contrato «terminou em 31.8.2021»não é constitutiva, justificando-se apenas face à carta de 29.4.2019. Esta, sim, teve efeitos extintivos do contrato e foi corretamente dirigida à Ré AM (cf. Artigos 9º, nº1, e 11º, nº3, do NRAU).
Conforme refere Maria Olinda Garcia, O Arrendamento Plural, Quadro Normativo e Natureza Jurídica, 2009, pp. 99-100:
«A nosso ver, as regras consagradas no artigo 11º (havendo pluralidade de senhorios ou de arrendatários) devem ser consideradas no seu contexto sistemático, ou seja, enquanto hipóteses específicas dentro do âmbito temático traçado pelo art. 9º da Lei nº 6/2006. São aí referidas três matérias relativamente às quais as comunicações entre as partes se devem processar segundo regras traçadas pelos arts. 9º e seges: cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras.»
Em suma, não integrando essa carta de per si uma comunicação constitutiva da cessação do contrato (sobre esta incidiu, sim, a carta de 29.4.2019), nem versando sobre a atualização legal da renda ou obras, não tinha a mesma de ser impreterivelmente dirigida à Ré AM, daí não emergindo qualquer vício relevante para a apreciação de mérito dos autos, tanto mais que a Ré AM recebeu a referida carta e tomou conhecimento do seu teor (cf. facto 11).
VALIDADE DA OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO DO ARRENDAMENTO (CONCLUSÕES F), L), E N)).
Sustenta a apelante que o procurador da autora, que subscreveu a carta de oposição à renovação de 29.4.2019, não tinha os poderes de representação invocados. Mais argumenta que a interposição desta ação não pode ser considerada com constituindo ratificação daquele ato com efeitos retroativos porquanto os efeitos retroativos ressalvam os direitos de terceiro (no caso, a Ré), sendo essa comunicação insuscetível de produzir efeitos, sob pena de violação do disposto no Artigo 1097º, nº1, al. b), do Código Civil.
Sobre esta matéria, o tribunal a quo pronunciou-se nestes termos:
«Apurou-se igualmente que, por carta registada com aviso de receção, recebida pela Requerida em 02.05.2019, a Requerente comunicou à Requerida que se opunha à renovação do contrato, que produziria os seus efeitos em 31 de Agosto de 2021 (cf. ponto 3. dos factos provados), assim respeitando a forma e o prazo de antecedência mínima da comunicação enunciado na cláusula segunda, primeiro parágrafo do contrato (O Senhorio poderá opor-se à renovação automática do contrato mediante comunicação, remetida às Arrendatárias por carta registada com aviso de receção, com a antecedência não inferior a um ano do termo do contrato).
Face a isto importa apurar se a alegada falta de poderes de representação do procurador da Requerente, que assinou a mesma, é, desde logo, tempestiva se efetuada em sede de oposição no âmbito da presente ação.
A característica fundamental da representação é a produção de efeitos na esfera jurídica de uma pessoa distinta da que manifesta a vontade negocial (cf. artigo 258º do Código Civil), na medida em que o representante atua expressando uma vontade que se irá repercutir, direta e imediatamente, na esfera jurídica de outrem.
Na representação, o representante age, de modo expresso e assumido, em nome do representado, dando a conhecer aos interessados o facto de representação, como ocorre no caso vertente em que LD assina na qualidade de procurador.
Nessa circunstância, o destinatário da conduta tem o direito, nos termos do artigo 260º, n.º 1 do Código Civil, de exigir que o representante faça prova dos seus poderes, pois caso contrário a declaração não produzirá efeitos.
A lei sanciona a representação sem poderes com a ineficácia do negócio em relação ao dominus, sem prejuízo de este o poder ratificar, caso em que o negócio adquire total eficácia, desde o momento da atuação do representante, como se nunca tivesse havido qualquer vício.
No caso em apreço não resulta minimamente demonstrado, nem alegado foi, que a aqui Requerida, quando recebeu a carta de oposição à renovação do contrato haja exigido a justificação dos seus poderes. Uma outra pessoa, quando recebeu uma carta similar, mas até relativa a outro locado, fê-lo (embora não saibamos, porque não foi sequer alegado, em que concretas circunstâncias), mas não a aqui Requerente, veja-se.
Ora, o terceiro perante quem o procurador age invocando poderes de representação tem o ónus material de averiguar se o representante possui ou não os poderes alegados, sendo que o risco da falta de poderes correrá pelo terceiro – cf. neste sentido, Pedro de Albuquerque, Código Civil Comentado – I – Parte Geral, Coordenação António Menezes Cordeiro, CIDP, 2020, pp. 763-764.
Temos assim que, ainda que o procurador que subscreveu a carta de oposição à renovação não detivesse os poderes necessários para representar, seguro é que a Requerida não solicitou prova da existência desses poderes.
Mais, mesmo que se houvesse de considerar que o procurador atuou no contexto de uma gestão de negócios, nos termos do artigo 464º do Código Civil, a interposição da presente ação, com a utilização daquela carta, sempre teria de ser considerada como ratificação do ato do procurador, com o efeito retroativo decorrente do estatuído nos artigos 268º, n.º 2 e 471, ambos do Código Civil- neste sentido, entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1-07-2004, relator Oliveira Barros, processo n.º 04B2214; e de 14-04-1998, Rodrigues Gonçalves, processo n.º 074579.
Aliás, como se fez notar no muito recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 18510/21.4T8PRT.P1, de 09.02.2023, Juiz Desembargador relator Filipe Caroço, acessível em https://jurisprudencia.pt/acordao/213428/, (...) É extemporânea a invocação pelo inquilino, apenas na contestação, da falta de poderes do representante aparente do senhorio relativamente ao ato por ele praticado de denúncia do contrato de arrendamento cerca de três anos antes, sem que alguma vez tivesse colocado em causa a existência desses poderes.
Ou, ainda como mais expressivamente se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo n.º 1196/10.9TBALR-A.E1, de 27.03.2014, Juiz Desembargador relator Francisco Xavier, acessível em www.dgsi.pt, se o destinatário da conduta não exigir a comprovação dos poderes de representação aceitou o representado a praticar o ato, o qual produz efeitos na sua esfera jurídica.
Conclui-se, assim, que aquela comunicação de oposição à renovação foi validamente efetuada e o contrato de arrendamento em causa cessou, por esta via, os seus efeitos em 31 de Agosto de 2021.»
O enquadramento e fundamentação adotados pelo Tribunal a quo não merecem censura.
Nos termos do Artigo 260º, nº1, do Código Civil, «Se uma pessoa dirigir em nome de outrem uma declaração a terceiro, pode este exigir que o representante, dentro de prazo razoável, faça prova dos seus poderes, sob pena da declaração não produzir efeitos.»
Consagra-se aqui um ónus de diligência a cargo do destinatário da declaração (cf. Januário Costa Gomes, Em Tema de Revogação do Mandado Civil, Almedina, 1989, p. 236).
Conforme sinaliza a jurisprudência citada pelo tribunal a quo, o prazo razoável não pode ser interpretado de modo a que, colocada perante uma comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento datada de 29.4.2019, a inquilina só venha suscitar a questão da existência dos poderes de representação do procurador em 5.1.2023, aquando da oposição ao procedimento especial de despejo.
Neste mesmo sentido, pronunciou-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 4.10.2023, Paulo Reis, 2280/22:
«Se o réu, ora apelante, perante a missiva de comunicação de oposição à renovação assinada pelo mandatário do autor/recorrido, não fez uso da disciplina consagrada no artigo 260.º do CC, nem tal foi alegado e comprovado nos autos, nada obsta à eficácia da comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento subscrita por advogado, em representação do senhorio.»
Releva também nesta sede, o acórdão proferido nesta mesma Secção em 12.10.2021, Micaela Sousa, 736/21, nos termos do qual:
«Ora, o terceiro perante quem o procurador age invocando poderes de representação tem o ónus material de averiguar se o representante possui ou não os poderes alegados, sendo que o risco da falta de poderes correrá pelo terceiro – cf. neste sentido, Pedro de Albuquerque, Código Civil Comentado – I – Parte Geral, Coordenação António Menezes Cordeiro, CIDP, 2020, pp. 763-764.
Assim, ainda que o procurador que subscreveu a carta de denúncia não detivesse os poderes necessários para representar, seguro é que o réu não solicitou prova da existência desses poderes.
Além disso, mesmo que se houvesse de considerar que o procurador atuou no contexto de uma gestão de negócios (cf. art. 464º do Código Civil), a interposição da presente ação sempre teria de ser considerada como ratificação do ato do procurador, com o efeito retroativo decorrente do estatuído no art. 268º, n.º 2 do Código Civil (cf. art. 471ºdo Código Civil) – cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1-07-2004, relator Oliveira Barros, processo n.º 04B2214; e de 14-04-1998, Rodrigues Gonçalves, processo n.º 074579.»
A argumentação utilizada por este acórdão no que tange à ratificação, replicada na sentença impugnada, constitui um argumento obiter dictum porquanto a resolução da questão não necessita de extravasar – consoante visto – o regime do próprio Artigo 260º, nº1, do Código de Processo Civil.
Esta linha jurisprudencial é reiterada na jurisdição laboral a propósito dos processos disciplinares (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8.1.2006, Sousa Grandão, 06S2579, de 21.3.2012, Fernandes da Silva, 161/09; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.3.2017, Nelson Fernandes, 5948/15).
Em suma, não tendo a apelante exigido ao representante, em prazo razoável, a comprovação dos poderes de representação, o ato praticado (comunicação da oposição à renovação) pelo representante produz efeitos na esfera jurídica do representado, sendo eficaz também perante a declaratária/Ré.
A Ré/apelante não pode aproveitar-se de atos praticados por outra arrendatária (cf. facto 8) porquanto estes não extravasam a respetiva esfera jurídica, tratando-se de relações jurídicas completamente distintas.
RENOVAÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO AO ABRIGO DO ARTIGO 1056º DO CÓDIGO CIVIL (CONCLUSÕES O),R),T).
A apelante sustenta que ocorreu renovação do contrato de arrendamento porquanto se manteve no gozo do locado durante mais de um ano após a caducidade, não tendo ocorrido oposição relevante do senhorio.
O tribunal a quo pronunciou-se sobre a questão nestes termos:
«No caso vertente é indiscutível que a Requerida se mantém no gozo do locado há mais de um ano desde que o contrato cessou os seus efeitos, ou seja em 31.08.2021. Mas tal consubstancia uma situação de caducidade? E a manutenção no gozo ocorre sem oposição do locador? Vejamos.
Desde logo refere Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, Volume II, 4ª edição atualizada, Almedina, páginas 837 e 838, que Tecnicamente, a oposição à renovação é (...) uma “declaração de vontade do sujeito destinada a fazer cessar a relação que o vincula ao outro sujeito”, um verdadeiro negócio jurídico, já que (...) desde que (...) “é o ato que determina, ele próprio, a cessação”. Na nossa conceção da realidade, a ineficácia superveniente do contrato é, assim, um efeito direto da vontade do oponente à renovação (rectius, à prorrogação) – e, portanto, uma forma de cessação do contrato urbano distinto da caducidade. A declaração destina-se a aproveitar o avizinhar-se da prorrogação tácita para, através de uma manifestação autónoma da vontade, afastar a sua verificação. (...) Não constituirá, portanto, uma denúncia, nem em sentido não técnico, mas um negócio jurídico típico (...).
Já Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 4ª Edição, página 399, referem que, em anotação ao artigo 1056º, que a caducidade do arrendamento pode dar-se em consequência da denúncia, se a causa for o decurso do prazo, ou pela verificação de alguma das demais circunstâncias referidas na alínea b) e seguintes do artigo 1051.º, mais afirmando que a exigência da falta de oposição do locador, para que se verifique a renovação do contrato, mostra que este artigo se funda numa presunção – a de que as partes acordaram tacitamente na renovação.
Numa situação em que existiu uma oposição à renovação não podemos falar de qualquer comportamento tácito, pelo contrário, na medida me que existe uma expressão de vontade objetiva em sentido contrário e não uma ausência absoluta de comportamento a que a lei vem dar valor. Parece-nos, assim, que a lei exclui do artigo 1056º a situação enunciada no artigo 1055º, ambos do Código Civil.
Mas, caso assim não se entenda, vejamos então se, no caso vertente, e após 31.08.2021 e no ano seguinte o locador se opôs validamente.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 079780, de 11.04.1991, Juiz Conselheiro relator Pereira da Silva, acessível em www.dgsi.pt., I-Em caso de caducidade do arrendamento, nos termos do artigo 1056 do Código Civil, torna-se necessária a verificação dos seguintes requisitos para que a renovação do contrato tenha lugar:a) que o locatário se mantenha no gozo da coisa locada, após a caducidade do arrendamento; b) que essa posse perdure pelo prazo de um ano; c) que não haja oposição do locador. II- O requisito da falta de oposição por parte do locador tem de ser provado pelo locatário, apesar do facto poder ser negativo. III- A oposição à renovação do contrato não está sujeita a forma especial, podendo ser feita por simples missiva dirigida pelo locador ao locatário, ou por qualquer outro meio, importando apenas que o locador se manifeste através de um ato de que o arrendatário tenha ou deva ter conhecimento e que manifeste, por forma inequívoca, o seu propósito de se opor à renovação.
Da conjugação do referido resulta que a oposição do senhorio à permanência do arrendatário no gozo da coisa locada pode ser manifestada por qualquer meio, nos termos gerais do artigo 217º do Código Civil, desde que leve ao conhecimento do locatário ou dele torne conhecida a sua vontade. Em face de tal, e como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 7797/2005-1, de 06.02.2007, Juiz Desembargador Rui Vouga, acessível em www.dgsi.pt, a ação de despejo com fundamento em caducidade do arrendamento não tem de ser proposta no prazo previsto no art. 1056º do Código Civil; pode ser proposta mais tarde, desde que o senhorio se tenha oposto ao gozo do arrendatário em tempo oportuno (isto é, dentro do ano imediatamente subsequente ao facto determinante da caducidade do arrendamento).
No caso vertente, temos que a Requerente remeteu a CM, coarrendatária da aqui Requerida, sendo que era do conhecimento da Requerida que a Requerente apenas a esta, por hábito dirigia a correspondência, uma carta datada de 17.06.2022, na qual a propósito de uma proposta de renegociação do contrato, refere que Na sua qualidade de Arrendatário(a) da AB, S.A. (vossa Senhoria), vimos informar que o seu contrato de arrendamento terminou em 31/08/2021, data em que deveria entregar o imóvel ou, em alternativa, iniciar um novo contrato de arrendamento. Nesse sentido, e sendo do seu interesse em assinar um novo contrato, apresentamos em seguida as condições do mesmo: (...). Ficamos a aguardar a sua resposta até ao dia 15/07/2021, data n(a) qual a proposta apresentada fica sem efeito, sob pena de serem acionados os mecanismos legais.
A Requerida AM não só teve conhecimento (de acordo com a resposta que remeteu) em 18.07.2022 (ou seja antes de decorrido um ano sobre a data do término do contrato e igualmente um ano antes da instauração / citação para a presente ação), como responde afirmando a inexistência de qualquer comunicação de oposição à renovação do contrato, nos termos do disposto no art.º 1097.º do Código Civil, carta de oposição que no âmbito dos presentes autos reconhece ter recebido (embora colocado em causa a legitimidade do procurador, o que não fez naquela data) o contrato de arrendamento renovou-se. Além disso, esta comunicação de 18/07/2022, endereçado a quem, por motivo de óbito oportunamente comunicado, já não é arrendatária do fogo em questão, padece de total ineficácia para todo e qualquer efeito que pretendesse produzir.
Esta carta, e uma vez que na mesma a Locadora reitera a cessação do contrato em 31.08.2021, afirmando que a relação contratual a manter-se será com base em distinto contrato, não podemos deixar de considerar, atenta a teoria da impressão do destinatário, que a Requerida não poderia deixar de considerar tal afirmação como uma forma de reiterar oposição à sua manutenção no locado.
Aliás, não é sequer por a Requerente continuar a receber o montante equivalente à renda, nem mesmo numa carta remetida a todos os que residem no prédio (a respeito de questões que se reportam claramente a todos os que ali residem e não especificamente à Requerida) utilizar a palavra “Arrendatária”, que poderia a Requerida presumir a manutenção do contrato, quando existiram dois atos expressos em sentido contrário: carta de oposição à renovação e proposta para iniciar um novo contrato de arrendamento, com condições totalmente distintas.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 974/21.8T8PFR.P1, de 17.05.2022, Juiz Desembargador Rui Moreira, acessível em www.dgsi.pt, III.-Tendo sido devidamente comunicada ao inquilino a oposição à renovação do contrato, para a data do seu termo, a falta de restituição do locado e o ulterior recebimento de rendas não traduz a renovação do contrato. IV.-O recebimento de tais rendas, representando a compensação mínima pela continuidade do gozo do locado para além da cessação do contrato, não justifica a qualificação de uma ação de despejo ulterior como abuso de direito, na forma de venire contra factum proprium.
Aliás, refere-se de forma muito clara nessa decisão que, de preceito nenhum resulta que a aceitação de rendas e a continuação da ocupação do locado determinem novas renovações do contrato. Com efeito, inexiste norma que equipare esta situação à prevista no art. 1056º, em função da qual, após a caducidade do arrendamento, a continuidade do gozo do arrendado determina ope legis a renovação do contrato. É que esta solução procede de uma falta de oposição do locador. Diferentemente, no caso da cessação do contrato por oposição à sua renovação pelo locador, a oposição deste está adquirida. Pelo contrário, do disposto no art. 1054º resulta que o contrato se não renova após a declaração de oposição de qualquer dos contraentes, ao que acresce que em norma alguma se fixa qualquer prazo para a instauração da ação de despejo, no caso de recusa de entrega do arrendado pelo inquilino, como condição de eficácia da oposição à renovação. Aliás, nem sequer a apelante invoca qualquer regra jurídica em que possa sustentar essa sua perspetiva do caso. Assim, só eventualmente à luz do instituto do abuso de direito, (...) é que se poderia discutir qualquer impedimento ao exercício do direito à recuperação do arrendado, em face da manutenção do status quo entre o momento do fim da vigência do contrato (...) e a dedução da pretensão de despejo, por via da presente ação.
À semelhança do que ocorria no caso ali em discussão, estando a Requerente convencida da legitimidade da sua atuação, é natural que esperasse algum tempo pela entrega do arrendado, sem necessidade da vinda a juízo. Ao que acresce que de nenhum outro facto provado na causa se pode extrair a contribuição de qualquer ação da autora para criar na inquilina a convicção de que havia prescindido da cessação do contrato, conformando-se com a sua renovação, antes pelo contrário tendo em conta que veicula, em 2022, a possibilidade de celebração de novo (o que pressupõe a cessação do anterior) contrato.
E também como ali se refere a verificação de abuso de direito pressupõe um investimento de confiança, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma atividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa atividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente.»
A Requerida limitou a deixar prolongar a situação, pagando o valor de renda que sempre representaria uma contrapartida mínima pela continuação do gozo do locado, sendo que nada alegou quanto a qualquer investimento de confiança logrado, resultante da continuidade da situação material proporcionada pelo uso do locado desde 31.08.2021, assim não se verificando igualmente qualquer situação de abuso de direito.
Em suma, entende-se não se poder considerar estar verificada qualquer renovação do contrato nos termos do artigo 1056º do Código Civil.»
Apreciando.
Nos termos do Artigo 1056º do Código Civil, «Se, não obstante a caducidade do arrendamento, o locatário se mantiver no gozo da coisa pelo lapso de um ano, sem oposição do locador, o contrato considera-se igualmente renovado nas condições do artigo 1054º.»
Na análise deste regime, relevam nomeadamente os seguintes contributos doutrinários.
Ana Raquel Pessoa in António Agostinho Guedes e Júlio Vieira Gomes (Coords.), Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em Especial, UCP Editora, 2023, pp. 453-454:
«Nos termos do artigo em análise, a oposição do locador impede a renovação do contrato. A lei não fixa uma forma especial para a oposição por parte do locador, e tem-se entendido que recai sobre o locatário o ónus de demonstrar que não houve oposição da parte do locador. De facto, de acordo com a regra geral da distribuição do ónus da prova (artigo 342º), cade ao titular do direito fazer a prova dos factos constitutivos do seu direito. Nos termos do nº3 do artigo 342º, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito. Assim, a não oposição à renovação seria um facto constitutivo do direito do locatário. Esta prova, no entanto, é difícil de fazer, porquanto se trata de uma prova de um facto negativo. Tem-se entendido que o locador deverá colaborar e indicar qualquer oposição que tenha manifestado à revalidação do contrato, ao abrigo do princípio de colaboração processual (artigo 7º do Código de Processo Civil) e de dever de cooperação para a descoberta da verdade (artigo 417º do Código de Processo Civil). A falta de colaboração do locador, em violação dos artigos referidos do Código de Processo Civil, poderá ser livremente apreciada pelo juiz. Na falta de fixação de requisitos especiais, valerá como oposição do locador qualquer comportamento que demonstre a sua intenção na não renovação do contrato. Por exemplo: instauração de uma ação de despejo com fundamento na caducidade; simples carta dirigida ao locatário; qualquer conduta do locador da qual se possa inferir a sua intenção de não renovação (por exemplo: mudança do canhão da porta; colocação no terreno de um letreiro de “arrenda-se”).
A circunstância de o locador continuar a receber as rendas após a verificação da caducidade não é, só por si, indiciador do seu consentimento na continuação do contrato. De facto, nos termos previstos no artigo 1045º, nº1, em caso de atraso na restituição da coisa objeto do contrato cessante, o locatário fica obrigado a pagar, a título de indemnização e até ao momento da restituição da coisa locada, o valor correspondente à renda ou ao aluguer convencionado pelas partes no âmbito do contrato que cessou.
Embora a lei não o refira expressamente, parece que se deverá considerar a oposição à não renovação como uma declaração recetícia, que deverá ser levada ao poder ou ao conhecimento do destinatário para se tornar eficaz.»
António Menezes Cordeiro (Coord.), Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, Almedina, p. 121, conflui no mesmo tipo de conclusões quanto à forma da comunicação da oposição, à natureza recipienda da oposição, bem como à circunstância de o recebimento das rendas, após a caducidade, não implicar o consentimento do senhorio.
Volvendo às circunstâncias do caso, a autora/senhoria manifestou, de forma suficiente e eficaz, oposição à renovação do contrato (para efeitos do Artigo 1056º do Código Civil) através da remessa da carta de 17.6.2022, recebida pela Ré AM (cf. facto 11), frisando que o contrato de arrendamento havia terminado em 31.8.2021, apresentando - do mesmo passo- as suas condições para a eventual renegociação de novo contrato de arrendamento. Tal carta foi expedida menos de um ano após a caducidade do contrato de arrendamento por oposição à renovação.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.1.2002, Moitinho de Almeida, Revista nº 3862/01, Sumários: I-O art.º 1056 do CC assenta na presunção de que as partes acordaram tacitamente na renovação do contrato. O legislador entendeu que não se tendo o senhorio, dentro do ano posterior à caducidade, oposto à renovação do contrato, o arrendatário pode legitimamente com ela contar. II-Uma carta enviada dentro do referido prazo pelo senhorio ao arrendatário, propondo uma nova renda, não permite a este último contar com a renovação do contrato, sendo de considerar aquela como um acto de oposição para efeitos do disposto no art.º 1056 do CC.
Assim, a carta referida constitui meio idóneo e suficiente para demonstrar a oposição à renovação do contrato, atento o regime do Artigo 1056º do Código Civil.
Conforme também acima enunciado, a receção das rendas, no período subsequente a 31.8.2021, de per si, não comporta a leitura de constituir assentimento à renovação, sendo que incumbe ao arrendatário pagar o valor da renda a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado (cf. Artigo 1045º do Código Civil). Teriam que estar demonstrados outros factos autónomos indiciadores de que a senhoria criou uma situação de confiança na esfera do inquilino, inexistindo a demonstração de tais factos no caso.
Termos em que, sendo desnecessárias outras considerações, deve ser julgada improcedente a apelação.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).
Lisboa, 9.1.2024
Luís Filipe Pires de Sousa Micaela Sousa Cristina Silva Maximiano
[1]Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186. [2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha,156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu,214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge Leal, 331/21. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, FonsecaRamos, 971/12). [3]Cf.: Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.4.2012, Beça Pereira, 219/10, de 14.1.2014, Henrique Antunes, 6628/10, de 27.5.2014, Moreira do Carmo, 1024/12; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3.10.2019, Paulo Reis, 582/17; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.1.2020, Tomé Gomes, ECLI:PT:STJ:2020: 4172.16.4T8FNC.L1.S1., de 24.9.2020, Graça Trigo, 127.16, ECLI, de 19.5.2021, Júlio Gomes,1429/18, de 14.7.2021, Fernando Baptista, 65/18, de 25.10.2022, Lima Gonçalves, 721/18, de 3.11.2023, Mário Morgado, 835/15; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14.7.2020, Rita Romeira, 1429/18, de 12.4.2021, Eusébio Almeida, 6775/19; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.10.2022, Castelo Branco, 7241/18; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.5.2023, Albertina Pedroso, 1996/19.