I - As causas de não execução facultativa de MDE previstas no art. 12.º, n.º 1, da Lei n.º 65/2003, de 23-08, para ser operantes devem ser plenamente preenchidas e justificadas em termos factuais.
II - Relativamente ao motivo de não execução facultativa previsto na al. g) do n.º 1 do art. 12.º da Lei n.º 65/2003, é razoável concluir que não existe ligação estável com o Estado de execução de um MDE de um nacional de outro Estado membro da União que reside no Estado de execução com o agregado familiar há menos de cinco anos, com residência fiscal no Estado de que é nacional e após a prolação da decisão condenatória que se visa executar, não se encontrando involuntariamente no Estado de execução aquando do pedido de execução do MDE.
III - A circunstância de o tribunal competente do Estado de execução considerar bastante a informação de que se trata de «Sentença final e vinculativa de (…)», para considerar satisfeita a condição de entrega da pessoa procurada da al. f) do n.º 1 do art. 3.º da Lei n.º 65/2003 («sentença transitada em julgado») no formulário do MDE, quando no Estado de emissão a decisão possa ser ainda suscetível de impugnação, encontra fundamento no sistema normativo de organização e funcionamento do mecanismo do MDE, não se verificando inconstitucionalidade, por violação do art. 32.º, n.º 1, in fine, da CRP, de tal interpretação normativa.
[Processo 320/23.6YRPRT - Tribunal da Relação do Porto/… Secção Criminal]
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Acordam em conferência na Secção Criminal de Turno do Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. Por acórdão de 29 de novembro de 2023 (Ref.ª Citius ......85) do Tribunal da Relação do Porto (doravante, TRP), proferido no processo supra epigrafado, para execução de Mandado de Detenção Europeu (doravante, MDE) emitido pelas autoridades judiciárias competentes da República Checa-Chéquia, foi decidido:
«Face ao exposto, acordam os juízes da … Secção Criminal (… Secção Judicial) deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento à oposição deduzida por AA e, mostrando-se preenchidos os pressupostos legais do presente Mandado de Detenção Europeu, deferem a sua execução, determinando que, após trânsito, se proceda à entrega do requerido às autoridades judiciárias da República Checa, no prazo máximo de 10 dias, consignando-se que o requerido renunciou ao princípio da especialidade.
Sem custas.
Notifique.
DN.
Após trânsito cumpra o art.º 28º da Lei nº 65/2023.
Até que se verifique alguma alteração das circunstâncias, deverá o requerido continuar sujeito à medida de coação que lhe foi aplicada.»
2. De tal acórdão interpôs recurso o arguido AA, apresentando a competente motivação, sendo o seguinte o teor das respetivas conclusões:
« E – CONCLUSÕES (Artº 412º, nº 1 CPP)
1- O Acórdão recorrido, padece de erros de facto e de Direito, que foram atempada e regularmente invocados, em sede de oposição, mas que não foram acolhidos pelo Tribunal “a quo”, bem como emana do mesmo, um sentido persistente em determinar, sem mais, de que o aqui recorrente terá de ir “forçosamente” para o seu Pais de origem.
2- O que não se entende, face à sua ligação e permanência incontornável em Portugal, com caráter duradouro, estável e regular, sendo que o recorrente apenas pretende cumprir a sua pena em Portugal, porque aqui integra os conceitos de permanência e residência, porquanto as evidências de tal factualidade, são incontornáveis, como infra se demonstrará.
3- Como refere o Acórdão do STJ, de 10/09/2009, Proc.º nº 134/09.6YREVR, nesta perspetiva, as causas de recusa facultativa não podem (não devem) ser vistas isoladamente, mas, antes, consideradas e aplicadas tendo como critérios de decisão os feixes referenciais que constituem a teleologia da categoria no regime de execução do instrumento europeu de cooperação.
4- A lei não define, no entanto, no que respeita a algumas das causas, os fundamentos e os critérios para o exercício da faculdade, que é faculdade do Estado português como Estado da execução, como resulta da expressão da lei - a execução «pode» ser recusada.
5- Não são, porém, causas cuja aplicação releve da vontade ou do arbítrio, pois poder recusar é, no contexto, faculdade vinculada se o tribunal considerar que se verificam as circunstâncias que fundamentam a recusa de execução; a faculdade não significa exercício discricionário, nem arbítrio, mas obrigação de decisão segundo critérios e vinculações normativas.
6- Especificamente, a alínea g) do nº 1 da referida disposição (retomando o artigo 4º, par. 6 da Decisão-Quadro) habilita as autoridades nacionais a recusarem a execução do mandado quando «a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa».
7- Ora, retiramos da norma, quatro requisitos, sendo que os primeiros três, se verificam na plenitude, pois intimamente ligados à real condição do aqui arguido, porquanto o mesmo, “encontra-se em Portugal”, “reside em Portugal” e o MDE em causa é para “cumprimento de pena”.
8- Culminando então a recusa facultativa em causa, com a verificação do quarto requisito, do qual subjaz “que Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa”.
9- A reserva de soberania que está implícita na norma e na faculdade compromissória que prevê e que a justifica, apenas se compreende pela ligação subjectiva e relacional entre a pessoa procurada e o Estado da execução.
10- A decisão é, assim, deixada inteiramente ao critério do Estado da execução, que satisfará as suas vinculações europeias, executando a pena aplicada a um seu nacional ou a pessoa que tenha residência nesse Estado, em lugar de dar execução ao mandado entregando a pessoa procurada ao Estado da emissão para execução da pena nesse Estado.
11- Fixando a lei causa de recusa deixada à faculdade do Estado de execução, o plano da lei só se completará com o estabelecimento de critérios que permitam integrar a função da norma, com base em princípio que se não remetam a discricionariedade ou oportunidade simples sem suporte.
12- Não estando fixados tais critérios, manifesta-se uma incompletude contrária a um plano que se traduz numa lacuna, que o juiz deve integrar segundo os critérios injuntivos para a integração de lacunas definidos no artigo 10º do Código Civil, seja por recurso a casos análogos, seja por apelo a princípios operativos compreendidos na unidade do sistema.
13- Neste necessário enquadramento metodológico, haverá que integrar a lacuna resultante da omissão legislativa, enunciando os fundamentos, motivos e critérios que, na perspetiva das valorações inerentes imponham ou justifiquem a execução ou, diversamente, a recusa de execução, seja por motivos de política criminal, de eficácia projetiva sobre o melhor exercício, de ponderação com outros valores, ou da realização de direitos ou de interesses relevantes que ao Estado da execução cumpra garantir.
14- Não estando diretamente fixados, tais critérios internos hão-de ser encontrados na unidade do sistema nacional, perante os princípios de política criminal que comandem a aplicação das penas, e sobretudo as finalidades da execução da pena (o acórdãos do Supremo Tribunal de 27 de Abril de 2006, proc. nº1429/06, e de 21 de Fevereiro de 2007, proc. 250/07).
15- Nesta perspetiva, pode haver maior eficácia das finalidades das penas se forem executadas no país da nacionalidade ou da residência; a ligação do nacional ao seu país, a residência e as condições da sua vida inteiramente adstritas à sociedade nacional serão índices de que é esta a sociedade em que deve (e pode) ser reintegrado, aconselhando o cumprimento da pena em instituições nacionais.
16- Porém, o tribunal a quo postergou e desvalorizou a prova documental e testemunhal apresentada, nem permitindo sequer uma audição completa e saudável ao arguido e família, o que apenas conjugado com a vasta prova irrefutável apresentada sobre a sua evidente residência em Portugal, iria certamente ajudar a compreender, que a fundamentação apresentada, está eivada de factos imprecisos, incoerentes e desajustados, no tempo e lugar, socorrendo-se de uma “convicção própria” ou de uma teoria ou “embuste”, que não existe.
17- Ainda que tal convicção fosse, ou seja, a esteira do tribunal “a quo”, sempre se diria, que a continuidade da audiência para sindicar a prova, permitiria maior celeridade processual, bem como daria a conhecer ao tribunal, factos concretos, que esbatem “in totum” a fundamentação invocada, em razão às nulidades e desconformidades vertidas, nomeadamente por erro notório e omissão de diligencias, bem como não constituiria uma grosseira violação das garantias de defesa do arguido.
18 - O tribunal limitou-se na sua fundamentação, a sindicar apenas parte da prova apresentada, conjugando a mesma erradamente no tempo e lugar, numa tentativa de “construir” uma tese inaceitável e fantasiosa, apoiada em “inverdades”, esquecendo que a mesma deve ser conjugada de forma concreta com a realidade dos factos, pois dessa forma, o tribunal faria uma avaliação justa, regular e equitativa.
19 - Nestes termos, não se tendo pronunciado sobre tais pressupostos, o tribunal “a quo” deixou de se pronunciar sobre questão que lhe era deferida, ou seja a existência de causa de recusa facultativa de execução.
20 - Tal omissão integra a nulidade do acórdão – artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP, pelo se deverá anular o acórdão recorrido e assim remeter à 1ª instância para que o Tribunal se pronuncie;
21 - Em despacho datado de 24/11/2023, com a refª citius ......68 e apenas notificado ao aqui subscritor a 29/11/2023 (refª citius ......30), cuja data de trânsito em julgado é contemporânea da decisão aqui recorrida – (porquanto o prazo de 5 dias da arguição da nulidade é coincidente com o prazo de 5 dias para a interposição do recurso da presente decisão, ou seja, tempestivamente invocada), releva que apenas cerca de 25 dias após a apresentação da oposição, o tribunal “a quo”, comunicou o indeferimento da continuidade da audiência, assim como as demais diligências probatórias pedidas;
22 - Esclarece-se que os documentos ora juntos, na audiência do arguido a 17/10/2023, atinentes à dinâmica do agregado familiar do arguido, nomeadamente sobre o estado de saúde do mesmo, aliás entre muitos outros igualmente juntos ao processo, nunca foram alvo de pronúncia “coerente”, por parte do tribunal, o que, como veremos, constitui uma nulidade relativa, por omissão de diligências, todas essenciais para a descoberta da verdade material.
23 - Portanto, no mesmo ato, o tribunal determinou a “pertinência probatória” dos documentos e concedeu10 dias para o arguido apresentar oposição e “os meios de prova atinentes”, e no acórdão de que aqui se recorre, bem como do sobredito despacho de 24/11/2023, é referido que os elementos de prova apresentados são suficientes, indeferindo as diligências probatórias, em manifesta contradição e omissão de diligências de prova, bem como a postergação do exame do abundante acervo documental, o que, com o devido respeito, não se aceita.
24 - Considera o arguido que o tribunal “a quo”, teve um entendimento “restrito” e nada garantístico, quanto aos direitos de defesa do arguido;
25 - Como sabemos, a Lei 65/2003 regula o processo judicial de execução do MDE na secção II do capítulo II dedicado à Execução do mandado de detenção europeu emitido por Estado membro estrangeiro, em termos que permitem distinguir entre uma fase declarativa e uma fase de execução da entrega da pessoa identificada.
26 - A fase declarativa, que aqui nos interessa particularmente, desenrola-se entre o que pode chamar-se de fase preliminar, obrigatória, (que se vai desde a receção do MDE (art. 16º) até à declaração do detido sobre o consentimento e a sua homologação judicial (art. 20º, n.º3)), e uma fase controvertida/ eventual, que visa dirimir a controvérsia suscitada com a oposição à entrega por parte da pessoa procurada, a qual se desenvolve entre a declaração de não consentimento da pessoa procurada (art. 21º) e a decisão final, fundamentada, sobre a execução do MDE (arts 22º e 23º) e o respetivo recurso (arts 24º e 25º).
27 - Retomando a análise do regime processual estabelecido na lei 65/2003, confrontemo-nos agora com o disposto no art. 21º, n.º3, segundo o qual, no caso de a oposição (com ou sem produção de prova), ser logo apresentada pelo defensor, a diligência de audição do detido prosseguirá com a tomada de posição do MP sobre as questões suscitadas e sobre a verificação dos requisitos de que depende a execução do mandado, findando a diligência se não houver lugar a produção de prova, pois o n.º5 do art. 21º apenas prevê alegações orais pelo MP e o defensor da pessoa procurada quando haja lugar a produção de prova. Segue-se a prolação de decisão fundamentada sobre a execução do MDE conforme estabelece o art. 22º.
28 - Todavia e conforme verificado no caso em apreço, ou seja, requerido e fixado prazo para apresentação da oposição e/ou de meios de prova no decurso da diligência de audição do detido (conforme a regra estabelecida no art. 21º, n.º4), após audição do MP sobre o requerimento em cumprimento do princípio do contraditório (art. 327º do CPP, ex vi do art. 34º da Lei 65/2003), a diligência será interrompida pelo tempo concedido, após o que, no figurino legal, se retomará a diligência com a apresentação da oposição pelo defensor e eventual produção de prova que tenha sido deferida.
29 - Certo é que, como vimos no despacho de 24/11/2023, supra referido, o Tribunal “a quo” erradamente, determinou o indeferimento de toda a prova apresentada, o que deveria ter feito, nos termos do artigo anterior, pois não se entende como, na audição do arguido em 17/10/2023, se determina que “Atenta a pertinência probatória”, (com os parcos documentos ali entregues) e no despacho de 24/11/2023, refere que, os 61 documentos apresentados na oposição, de pouco valem, nomeadamente o necessário e precioso confronto dos mesmos com as 5 testemunhas arroladas.
30 - Note-se que, assim, apesar de algumas indicações sobre os documentos ora juntos na oposição, o acórdão em crise apenas demonstra, que o tribunal “usou” de sua própria e única convicção do que emana dos mesmos, coartando ao arguido, o verdadeiro contraditório, pois dessa forma tais conclusões que ali se retiram sobre os documentos, têm apenas e só a convicção do Tribunal “a quo”, sendo assim vedada a possibilidade ao arguido, em conjunto com 5 testemunhas indicadas, de poder sindicar toda a prova.
31 - Prova disso mesmo é a sequência confusa que o tribunal invoca na sua fundamentação quanto às datas e moradas do arguido e seu agregado familiar, desde 2021, numa tentativa de “aparentar” um desajustamento nas mesmas, quando o que se retira dali é que O ARGUIDO E SUA FAMILIA VIVEM PERMANENTEMENTE CÁ EM PORTUGAL, DESDE 2021, independente de 3, 4 ou 5 moradas. VIVE!
32 - E veja-se, sendo tal despacho elaborado em 24/11/2023, mas apenas notificado e disponível (em citius) exatamente na data da notificação do Acórdão. Ou seja, o indeferimento da produção de prova, para todos os efeitos legais, dá-se no mesmo dia da prolação do Acórdão, nunca em benefício e respeito pelos direitos do arguido.
33 -Mas, ao invés,se tivesse havido lugara produção de provaea continuação da audição do arguido, como se impunha, finda aquela seria concedida a palavra ao MP e ao defensor para alegações orais, conforme dispõe o n.º 5 do artigo 21º, concluindo-se assim a diligência de audição do detido, o que também não sucedeu.
34 - Ora, estando aqui em causa, a “persistente” e “vontade férrea” do tribunal “a quo” em insistir e reinsistir, em que o arguido não reúne o conceito de residente permanente em Portugal, sendo esse o foco principal deste litígio, pergunta-se porque não determinou o tribunal “a quo”, a produção de prova, limitando-se “suavemente” a determinar que a mesma era prescindível, utilizando uma errada subsunção dos fatos ao direito, como infra se dirá.
35 - E ainda releva que, tendo decorrido 25 dias, entre a oposição (4/11) e a notificação do despacho e do Acórdão (29/11), pergunta-se, porque nesse hiato de tempo, o tribunal não tenha determinado a continuidade da audiência, nos sobreditos termos, na qual em sede de produção de prova, em confronto direto da prova documental e testemunhal, se alcançaria o verdadeiro contraditório, bem como a verificação dos direitos e garantias de defesa do arguido, inexistindo até a necessidade do presente recurso;
36 - Ora, tendo por base os sobreditos 25 dias decorridos, arrisca a dizer o recorrente que, caso tivesse sido determinado a continuação da audiência e produção de prova, certamente que a celeridade processual necessária e invocada no Acórdão, teria logrado obter melhor consolidação, razões que são bem visíveis na referência do art. 21º, n.º4, à necessidade de se cumprirem os prazos máximos estabelecidos no art. 26º para a prolação de decisão sobre a execução do MDE.
37 - E diga-se, em abono da verdade, garantias estas, que o arguido invocou, em sede de recurso, para este Supremo Tribunal de Justiça, porquanto o tribunal “a quo”, apoiado pelo MP, mais uma vez, preteriu prova documental necessária, para se averiguar da aplicação de medida de coação, o que culminou, como não podia deixar de ser, em decisão parcialmente procedente, repondo assim a verificação de tais garantias de defesa.
38 - Dizer que a audição do arguido se encontra “satisfatória”, no pouco tempo em que a mesma decorreu, equivale a declarar que a sua audição está completa, quando o mesmo não entende totalmente a língua portuguesa, esteve detido 48 horas antes da audição, em condições bastante agrestes, sem dormir, com ausência de tomas de insulinas diárias e medicação para a doença de Alzheimer de que padece, com interprete no ato e sem reunir previamente e detalhadamente com o aqui mandatário?
39 - E releva que, sobre as doenças em causa, o arguido entregou tais relatórios médicos, na dita audição, porquanto e face também às graves patologias referidas, teria sempre a expectativa e, em sede de produção de prova e continuidade de audiência a posteriori, aportar informações válidas ao processo, as quais, se conjugadas com a extensa prova documental (61 documentos) e testemunhas arroladas (5), iria certamente permitir ao tribunal “a quo”, uma decisão mais bem ponderada, justa e equitativa, o que não sucedeu;
40 - No ponto 1.9 a fundamentação do tribunal “a quo” é conclusiva e arbitrária, desde logo porque parte do principio que a decisão é final quando refere que, “… sendo certo que as demais diligencias probatórias, essencialmente dirigidas a uma fase processual posterior que implicasse a revisão e confirmação de sentença estrangeira, se justificariam apenas para a eventualidade de vir a recusada tal execução…”, porquanto o tribunal, determina “..não havendo produção de prova”…, num caminho sequencial, que não é mais do que coartar os direitos de defesa do arguido;
41 - Até porque refere “...diligências probatórias, essencialmente dirigidas a uma fase processual posterior…”. Ora se é essencial, não é exclusiva. Qual a razão, para determinar a não produção de prova, em sede de continuidade de audiência, quando é manifesto um desconhecimento da factualidade, no tempo e espaço, na fundamentação apresentada? Como se disse, com a produção de prova o Tribunal iria entender que a dinâmica de vida do arguido é muito diferente daquilo que no Acórdão recorrido alega ser;
42 - Razão pela qual, se reitera como supra se fez a arguição da nulidade relativa a que alude o art.º 120º, nº 2, alínea d), 2ª parte do CPP, pela evidente omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade, a qual deverá ser sanada ordenando-se ao tribunal de 1ª instância, a realização das diligências requeridas em sede de requerimento de prova, no âmbito da Oposição;
43 - Diz o artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, mais uma vez desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o erro notório na apreciação da prova.
44 - O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.
45 - Ora, compulsado o libelo decisório em crise, consideramos existirem três erros flagrantes que constam expressamente do texto da decisão, a saber as questões A, B e C, ora transcritos nos segmentos da parte da motivação.
46 – Do primeiro excerto do Acórdão, fica claro que o raciocínio do Tribunal “a quo”, que subjaz a tal fundamentação, prende-se com uma convicção unilateral e com o devido respeito, suportada por “convicções” próprias, pois na audição foi perguntado ao arguido se falava português, naturalmente num contexto de “entrevista”, ao que naturalmente disse necessitar de interprete.
47 - E como se disse, o arguido tem 63 anos, tem Alzheimer e é diabético insulino dependente, cuja insulina não fez nas 48 horas antes da audição, fatos dados a conhecer com a apresentação ali de relatórios médicos, pelo que afirmar, apenas e só, que naquele pouco tempo de audição, o arguido não entende a língua portuguesa é redutor;
48 - O arguido domina a língua portuguesa o suficiente para as rotinas básicas do dia-a-dia, até porque de acordo com oficio da DGRS, que se encontra nos autos, dado de 5/12/2023, (refª Citius..), o mesmo indica que: “Com efeito, o arguido não domina a língua portuguesa, apenas percebendo e articulando alguns rudimentos básicos da nossa língua, o suficiente (sublinhado nosso) para as rotinas básicas do dia-a-dia….”
49 - Ora, do segundo excerto do Acórdão, fica claro que o raciocínio do Tribunal “a quo”, que subjaz a tal fundamentação, prende-se com uma convicção unilateral e com o devido respeito, suportada por “convicções” próprias, pois tratam-se de suposições especulativas, porquanto o arguido SEMPRE negou a teoria de fuga, insistentemente preconizada pelo tribunal “a quo” e apoiada pelo Digníssimo MP;
50 - Mas sobre esta insistente teoria do “embuste”, também releva que na oposição o aqui arguido juntou factualidade bastante e prova documental atinente, para esclarecer os motivos para vir viver em Portugal;
51 - Efetivamente nos vários pontos da oposição, o arguido, juntou documentos de inúmeras visitas que fez a Portugal desde 2003 e mesmo em 2019 e 2020, OU SEJA, EM DATA ANTERIOR A QUALQUER CONDENAÇÃO e sob a qual o tribunal fez “tábua rasa”;
52 - Pelo que afirmar que, o arguido e família vieram para Portugal num esquema “engendrado” para se furtarem às suas, eventuais e potenciais, responsabilidades vindouras é um manifesto erro na apreciação da prova, porquanto não condiz, com a realidade;
53 – Do terceiro e último excerto do Acórdão, fica claro que o raciocínio do Tribunal “a quo”, que subjaz a tal fundamentação, prende-se maus uma vez, com uma convicção unilateral e com o devido respeito, suportada por uma “estória” desajustada, fantasiosa, que, pelos erros patentes, que facilmente seriam evitados, caso tivesse sido produzida a prova ora requerida em sede de Oposição;
54 - É referido na fundamentação do Acórdão que,o filho do arguido “frequentou, apenas no recente último ano letivo de 2022/2023, o Colégio …”, quando na realidade o arguido juntou,como doc. 19 da sua oposição,faturas liquidadas de frequência daquele estabelecimento de Setembro e Outubro de 2023, porquanto o filho atualmente, frequenta tal estabelecimento pelo 3º ano consecutivo, o que constituiu um erro notório, um lapso manifesto
55 - E ainda, no âmbito do erro notório, relevam os pontos 2.1.5 ao ponto 2.1.20 da fundamentação, pois naqueles 15 pontos, o tribunal fundamenta e invoca um “arrazoado” ciclo e circuito de moradas e factos, completamente desajustados e desarticulados no tempo, postergando “obrigações” prévias a verificar, que bem sabe necessários, mas não invoca.
56 - Na sobredita exposição da fundamentação, o tribunal invoca 2 moradas do agregado familiar, desde 2021 e registos das mesmas em diversos documentos pessoal do arguido, fazendo-o, com o devido respeito, de forma tendenciosa, desajustada e completamente, fora da realidade. Bem sabe o tribunal, que a tramitação administrativa de tal realidade, obedece a uma cadência de atos prévios e subsequentes, que são absolutamente necessários observar;
57 - De acordo com a prova documental apresentada, o agregado familiar teve de facto 3 moradas. Diga-se, todas no Distrito …. A primeira delas arrendada, logo mal chegaram ao nosso Paísem Setembro de 2021, pois face à intenção clara de aqui viverem permanentemente, ou seja, comprar casa, constituir empresa, inscrição da Segurança Social e autoridade tributária, entre outros, arrendaram uma casa na ..., no ..., onde permaneceram poucos meses.
58 - E foi nesse período curto de tempo e após terem a necessária morada fiscal, contrato de trabalho, a possibilidade de constituírem empresa – todo em sintonia com tais requisitos necessários e obrigatórios, constituíram a empresa, de titularidade própria, para só e apenas, ser possível à posteriori, adquirir a 1ª casa que compraram, na Rua ..., a qual se tornou a casa de morada de Família;
59 - Ora, tendo por base que esta foi a primeira casa própria aqui em Portugal, desse agregado familiar, torna-se evidenteque amaiorpartedosdocumentos do arguido esteja aposta esta morada, ou seja, morada fiscal, morada no Centro de saúde, no Banco, nas instituições de saúde, no colégio que o filho frequenta, nas faturas, etc. Pergunta-se, o que tem de “estranho”, essa realidade?
60 - Mas não deixa de ser curioso, que, nesta vasta cadência de fatos articulados pelo Tribunal, o mesmo não faz sequer uma referência às faturas da Água, Luz e MEO, juntas na oposição, as quais determinam o local dos consumos em conformidade, na morada do agregado familiar e veja-se em circunstância que o tribunal nem sequer apreciou;
61 - Caso para dizer, ainda bem que o arguido teve 3 moradas oficiais, o que reforça ainda mais a sua ligação ao nosso País, pois caso não tivesse nenhuma, maior dificuldade certamente existiria;
62 - Aliás, diga-se, analisando os sobreditos 15 pontos da fundamentação e a inerente e detalhada factualidade lá vertida, com os vastos registos, as comunicações e ligações que o arguido tem, nestes últimos 3 anos, com as inúmeras instituições publicas e privadas Portuguesas, ali relatadas, não subsistem duvidas de que deveria ter sido apreciada tal factualidade pelo tribunal “a quo”, no sentido de confirmar, com segurança, a residência em Portugal e não, como fez o tribunal;
63 - Nestes termos, deverá ser declarada a existência de vício de erro notório da apreciação da prova, a que alude o art.º 410º, nº 2, alínea c) do CPP, o que deverá determinar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do estabelecido no artigo 426º, nº 1 do CPP: “Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do art.º 410º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso, determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo, ou a questões concretamente identificadas na decisão do reenvio”.
64 - Em termos procedimentais, toda a estrutura de cumprimento do mandado tem subjacente o propósito de criar um instrumento ágil com base na confiança mútua, e num quadro de respeito por princípios fundamentais, como é o exercício do direito de defesa, que estão inscritos na matriz de criação da EU.
65 - Como sabemos, a decisão de recusa da execução constitui faculdade do Estado da execução, o estabelecimento de critérios não releva da natureza dos compromissos, mas do espaço de livre decisão interna em função da reserva de soberania implicada na referida causa de recusa facultativa de execução, pelo que não estando diretamente fixados, tais critérios, internos, hão-de ser encontrados na unidade do sistema nacional, perante os princípios de política criminal que comandem a aplicação das penas, e sobretudo as finalidades da execução da pena.
66 - Uma primeira projeção sistemática poderá encontrar-se no art. 40.º, n.º 1, do CP e na afirmação da reintegração do agente na sociedade como uma das finalidades das penas. Nesta perspectiva, pode haver maior eficácia das finalidades das penas se forem executadas no país da nacionalidade ou da residência; a ligação do nacional ao seu país, a residência e as condições da sua vida inteiramente adstritas à sociedade nacional serão índices de que é esta a sociedade em que deve (e pode) ser reintegrado, aconselhando o cumprimento da pena em instituições nacionais.
67 - Ora, tendo em conta a prova apresentada na oposição (61 documentos), mas desconsideradapelo tribunal “a quo”, os elementos carreados aos autos, SEM EXCEPÇÃO, dizem TODOS, respeito à seguinte factualidade, pois:
a) O seu agregado familiar é composto por este, pela sua companheira de há quase 20 anos, e pelo filho menor, conforme certidões de nascimento e documento de identificação;
b) O filho menor estuda no Colégio... pelo 3ºanoconsecutivo(desde 2021 com bom aproveitamento escolar), onde se encontra inscrito atualmente – N... ....... .. ...., sito na Rua ..., na cidade da ... -, conforme recibos e comprovativo de matrícula entregues;
c) O Requerido e companheira, bem como a sociedade que ambos detêm, são titulares e intervenientes em diversos contratos com entidades portuguesas, nomeadamente MEO, EDP e Águas …;
d) O agregado familiar tem seguro de saúde, concretamente Advance Care;
e) O Requerido e sua companheira são detentores de participações sociais em entidade portuguesa, com, respetivamente 50% cada um;
f) Com esta entidade, o Requerido tem contrato de trabalho, com um rendimento anual de cerca de € 13.000,00;
g) O requerido, filho e companheira, são titulares de NIF, sendo o NIF daquele .......75. O agregado familiar liquida os seus impostos em Portugal, tendo o requerido liquidado o seu IRS nos anos de 21 e 22, em completa ligação com a AT;
h) Está inscrito na Segurança Social, é titular de NISS e paga as suas contribuições inerentes.
i) Está inscrito como residente na Rua ..., ..., conforme declarações emitidas pela União das freguesias de ..., onde habitou todo o agregado familiar supra descrito, ou seja, companheira e filho menor, conforme doc.18 e agora inscrito na AT no domicílio na RUA ... / ... – ...;
j) Tendo feito assim um investimento global no nosso país de cerca de € 640.000,00, de acordo com o carater permanente que assume a sua residência em Portugal;
k) Sofre de doença incapacitante e necessita por isso de acompanhamento médico regular e que o obriga por vezes a ficar com baixa médica e é acompanhado por enfermeiro permanentemente, conforme relatórios médicos, bem como tem inúmeras despesas de índole medicamentosa,bem como consultas reiteradas, com um gasto substancial;
l) O filho menor é piloto/atleta federado da competição internacional de ... e por isso representa a federação portuguesa de automobilismo e ... (FPAK), conforme documento 20, pois vive permanentemente em Portugal na companhia dos seus pais;
m) A casa de morada de família onde reside o agregado familiar, ou seja, juntamente com a mulher e filho menor, é bem próprio dos mesmos, pois pertence à sobredita sociedade familiar cujas quotas são detidas também pelo requerido, bem como novo imóvel que mais recentemente adquiriram e onde agora vivem, conforme cadernetas prediais juntas;
n) O requerido sobre de doença degenerativa, vulgo Alzheimer desde 2016, em conformidade com os relatórios supra e por isso é associado também aqui em Portugal de associação dos doentes que sofrem deste tipo de patologia;
o) Está inscrito no centro de saúde e tem por isso médico de família adstrito ao agregado familiar, e a companheira e filho têm declaração de permanência em Portugal, conforme documento certificado europeu de permanência entregue;
68 - Ora, com tais circunstâncias, deixamos para este Supremo Tribunal, as conclusões sobre a melhor aplicação dos factos ao direito, nomeadamente na presença de execução da penano Estado da emissão, relativamenteaumnacional doEstadodeexecução,possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal, pois oarguido,tem63anos, sofre depatologias graves e caso seja verificada a execução, não tem nada, nem ninguém, para o apoiar na reclusão em causa, no país de emissão;
69 - Em suma, na interpretação do citado art. 12.º, al. g), deve existir recusa do Estado da execução, quando estejam em causa nacionais, residentes ou pessoas que se encontrem no território nacional, em primeiro lugar por razões ligadas às próprias finalidades das penas, de que a reinserção social é objetivo fundamental e impostergável, nos termos do art. 40.º, n.º 1, do CP, sendo evidentemente mais adequada a reintegração do condenado operada através do sistema de execução da pena ou da medida de segurança do próprio país onde reside ou de que é nacional,ou onde se encontre temporariamente, e mais benéfica e menos penosa para o mesmo condenado, tendo em vista o seu enraizamento social, familiar e nacional.
70 - Ponderação esta não verificada, de todo, pelo Tribunal “a quo”, pois incumbia à autoridade judiciária de execução examinar se existem entre a pessoa procurada e o Estado de execução, com base numa apreciação global dos elementos objetivos que caracterizam a situação dessa pessoa, laços suficientes, nomeadamente familiares, económicos e sociais, suscetíveis de demonstrar a sua integração na sociedade desse Estado de forma que se encontre efetivamente numa situação comparável à de um nacional;
71 -Não são, porém, causas cuja aplicação releve da vontade oudo arbítrio. Poderrecusar é, no contexto, faculdade vinculada se o tribunal considerar que se verificam as circunstâncias que fundamentam a recusa de execução; a faculdade não significa exercício discricionário, nem arbítrio, mas obrigação de decisão segundo critérios e vinculações normativos.
72 - Assim, para uma correta subsunção dos factos ao direito, deveria o tribunal, ao contrário da tese ficcional sustentada em residência não permanente, concluir pela integração do individuo na sociedade portuguesa, pela sua ligação, pessoal, familiar, profissional, financeira, médica, fiscal, tudo em dinâmica de um verdadeiro cidadão português e assim, determinar-se que o mesmo, cumpra a pena imposta em estabelecimento prisional português e seu regime de direito penitenciário;
73 - Por último e em total correspondência com os factos supra invocados, releva relatório social datado de 13/12/2023, com a refª Citius ....40, (para aferir da exequibilidade da aplicação da OPHVE requerida), onde na sua conclusão é referido que: “Da avaliação realizada conclui-se pela existência de condições formais, designadamente ao nível habitacional, familiar e económico, para aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.”
74 - Na motivação na Oposição apresentada, foram invocados os efeitos da decisão condenatória e possibilidade de Recursos, cuja decisão aqui recorrida, e ora transcrita naparte da motivação do presente recurso, ficou desde logo notório, na ata de audição do arguido, que o mesmo referiu não ter sido regularmente notificado pelo tribunal da condenação, ao que, culminou com a promoção do Digníssimo MP, no sentido de oficiar o estado emitente para esclarecer se o requerido (I)foi notificado da decisão, (II)se teve defensor no processo, (III) se foi informado ao direito de ter novo julgamento e (IV) da possibilidade de intentar recurso, promoções estas que não tiveram qualquer ação do tribunal “a quo”;
75 - Sucede, porém, que o processo que deu origem a esta condenação, não está encerrado, porquanto poderão ser ainda interpostos diversos recursos, nomeadamente para o Superior Tribunal de Justiça, para o Tribunal Constitucional, bem como ainda para o TEDH.
76 - No entanto e com esta realidade, o oponente encontra-se a aguardar a sua oportunidade, como se disse, para aferir a possibilidade de novos recursos, ou julgamento, nos termos supra referidos, pois pretende ver esgotados todos os procedimentos, consolidando-se a decisão emitida ou, na alternativa, aguarde o resultado do novo julgamento ou decisão. Tal iria forçosamente, afetar a força executiva da decisão que constitui o fundamento do mandado de detenção europeu.
77 - Coloca-se, assim, a questão de se ter por assente se esta decisão é definitiva, ou se, ao invés, a mesma ainda corre os seus termos por aplicação de eventuais efeitos suspensivos atribuídos a esses recursos, pois aqui, os recursos para os tribunais superiores e os recursos de decisões finais para o tribunal Constitucional têm invariavelmente efeito suspensivo;
78 - Estando pendente a possibilidade de ser interposto recurso, caberá a este Tribunal indagar, se os mesmos têm efeito suspensivo ou meramente devolutivo e até em última análise se o trânsito em julgado, se verifica no mesmo dia da leitura de sentença.
79 - É, assim, inconstitucional a interpretação normativa da alínea f) do artigo 3º da lei 65/2003, de 23 de Agosto, no sentido de se considerar como transitada em julgado uma sentença penal estrangeira, quando ainda substituem dois graus de recurso nos tribunais de origem, sem apuramento prévio dos efeitos que lhes podem ser atribuídos, por violação do disposto do art.º 32º, nº 1, segunda parte da CRP, mais concretamente por violação das garantias de defesa do arguido ínsitas a este normativo;
80 - Efetivamente, os direitos de defesa do arguido, não se esgotaram com esta condenação o que pode ter consequências verdadeiramente a contrario da ora decisão em crise, o que seria manifestamente uma grosseira violação dos mais basilares direitos fundamentais.
- Verificaram-se, nesta medida, os seguintes vícios do procedimento e da decisão: art.ºs 379º, nº 1, alínea c), 120º n. 2 d), 410º nº 2, alínea c), todos do CPP, art.º 12º, alínea g) , da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, bem como a inconstitucionalidade normativa invocada, por violação do artigo 32º, nº 1 da CRP.
TERMOS EM QUE,
Deverá ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se, nos sobreditostermos,o teor da decisão recorrida,assim se fazendo inteira e sã
JUSTIÇA»
3. Respondeu ao recurso o Senhor procurador-geral-adjunto junto do TRP, apresentando as seguintes conclusões da sua motivação:
«1.ª - Nos presentes autos de Execução do Mandado de detenção europeu – M.D.E. (European Arrest Warrant – E.A.W.), em que é requerente a Autoridade Judiciária competente da Republica Checa, Tribunal Municipal de ... (M...... .... . .....) emitido em 22 de agosto de 2022, com a referência n.º.../2018, por força do Acórdão do Tribunal Municipal de ... (Mì..... .... . .....) de 31 de janeiro de 2020, com referência n.º ...-11813, em conjugação com a Resolução do Tribunal Superior de ... (V..... .... . .....) de 17 de junho de 2021, com a referência n.º .../2020-12695, transitado em julgado nesse dia 17 de junho de 2021, executa-se a pena de prisão remanescente de 11 anos, 03 meses e 28 dias.
2.ª - Não se vislumbra a existência de qualquer obstáculo legal ponderoso que legitime a recusa obrigatória ou facultativa da presente execução do mandado de detenção europeu – M.D.E. nos termos da disciplina normativa contida nos programas das disposições conjugadas dos artigos 11.º, 12.º e 12.º - A do Regime Jurídico Geral ou Organização Quadro do mandado de detenção europeu aprovado pela Lei n.º 65/2003 de 23/08/2003 publicada no Diário da Republica n.º 194/2003, Serie I – A, em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho de 13 de junho, na redação introduzida e editada pelas Leis n.ºs 35/2015, de 4 de maio, e 115/2019, de 12 de setembro.
3.ª - Mau grado o requerido ter sido encontrado em Portugal e alegado ter aqui residência, bem como o Mandado de detenção europeu – M.D.E. (European Arrest Warrant – E.A.W.) ter sido emitido pelas autoridades judiciárias da Republica Checa para cumprimento de pena de prisão, aos nossos olhos e modesta opinião, não decorre das circunstâncias de vida do Requerido um enraizamento de tal modo forte e intenso que pudesse permitir a afirmação de que a ligação com o nosso país assegurava, de maneira indiscutível, a legalmente pretendida reintegração e reinserção social do condenado que escapasse e não fosse alcançável pela execução da pena de prisão no Estado emitente, como bem observou e foi salientado no douto Acórdão recorrido.
4.ª – Em todo o caso e de qualquer modo (mesmo se por mera hipótese se admita que foram praticadas as nulidades e o erro notório que o recorrente apregoa, que só se concede intelectualmente, para realçar a falta de norma legal de apoio que sustente a pretensão recursória), a causa de recusa facultativa convocada pelo recorrente – residência habitual em Portugal - mostrou-se, sempre, insuscetível de ponderação e consideração por este T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto, na medida em que o requerido não reconheceu à decisão penal condenatória em pena de prisão para cujo cumprimento foi emitido o M.D.E. em causa nos autos, eficácia e exequibilidade, pondo em causa a sua capacidade executiva, o transito e anunciou ainda a intenção de recorrer da mesma para os tribunais superiores da Republica Checa.
5.ª - Esse inconformismo com a decisão condenatória do Tribunal Checo e a declaração de impugnação por via de recurso para os tribunais superiores daquele país (e outros areópagos internacionais) sempre inviabilizaria a convocação do procedimento de reconhecimento da sentença penal checa para execução em Portugal da pena aplicada, pressuposto indeclinável para o preenchimento da causa de recusa facultativa invocada pelo requerido.
6.ª - Com efeito, não é possível conciliar a declaração de consentimento no reconhecimento de uma sentença penal estrangeira e ao mesmo tempo questionar o transito em julgado da mesma sentença anunciando a interposição de recursos que visam a sua alteração, criando-se assim áreas de aleatoriedade que prejudicariam gravemente a certeza e segurança na aplicação do Direito.
7.ª – Da cártula do Mandado de detenção europeu – M.D.E. (European Arrest Warrant – E.A.W.) consta expressamente que a decisão transitou em julgado e possui capacidade executiva da pena aplicada, razão pela qual encontrava-se este T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto dispensado de pedir esclarecimentos adicionais ao Estado emitente no sentido de apurar se ainda subsistiam mais dois graus de recurso para os tribunais superiores segundo o seu Direito interno.
8.ª - Desta forma é manifestamente improcedente a invocação pelo requerido de interpretações alegadamente inconstitucionais - artigo 3.º alínea f) da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, por violação do artigo 32.º, n.1, segunda parte, da Constituição da República Portuguesa – quando o que pretende pôr verdadeiramente em causa é o Principio da Suficiência do Mandado de Detenção Europeu – M.D.E. (European Arrest Warrant – E.A.W.) e simultaneamente (para acentuar a contradição), o mesmo requerido não impugnou a autenticidade, genuidade e o conteúdo do que consta da cártula do mandado, aceitando-o sem hesitações ou reservas.
9.ª – No travejamento essencial dos pergaminhos mais caracterizadores e medulares que enformam o Principio do Reconhecimento, Confiança e Respeito Mutuo a que os Estados membros se vincularam e no Regime Jurídico Geral ou Organização Quadro do mandado de detenção europeu aprovado pela Lei n.º 65/2003 de 23/08/2003 publicada no Diário da Republica n.º 194/2003, Serie I – A, em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho de 13 de junho, na redação introduzida e editada pelas Leis n.ºs 35/2015, de 4 de maio, e 115/2019, de 12 de setembro, não se descortina que a doença, os incómodos pessoais e familiares ou a inimputabilidade superveniente do requerido possam integram qualquer causa de recusa facultativa ou obrigatória do Mandado de detenção europeu – M.D.E. (European Arrest Warrant – E.A.W.) e esses motivos e factos devem ser suscitados perante os tribunais do Estado de emissão, que certamente recorrerá às normas legais pertinentes do Direito interno para regular e disciplinar de forma inovatória essas situações, só agora carreadas e dadas a conhecer.
10.ª – Razão pela qual não impendia a obrigação processual sobre este T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto em realizar qualquer exame pericial às faculdades mentais do requerido a fim de apurar da sua eventual inimputabilidade superveniente, por tal facto dizer respeito à forma de execução da sanção aplicada pelo tribunal checo e os tribunais portugueses se encontrarem materialmente desprovidos da indispensável jurisdição.
11.ª - A execução do presente mandado de detenção europeu – M.D.E. observa escrupulosamente todas as exigências de forma e de conteúdo legalmente exigidas pelo Regime Jurídico Geral ou Organização Quadro do mandado de detenção europeu aprovado pela Lei n.º 65/2003 de 23/08/2003 publicada no Diário da Republica n.º 194/2003, Serie I – A, em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho de 13 de junho, na redação introduzida e editada pelas Leis n.ºs 35/2015, de 4 de maio, e 115/2019, de 12 de setembro.
12.ª – Também não foi cometida pelo tribunal recorrido qualquer nulidade insanável ou relativa, encontrando-se o processado destituído de qualquer erro de procedimento e muito menos errou o Acórdão criticado na apreciação e valoração dos meios de prova, que foram todos sopesados em cotejo com a matéria de facto coligida, apresentando o recorrente uma versão alternativa dos factos feita à sua medida e de acordo com os seus interesses muito pessoais, impugnando sem sentido a convicção adquirida por este T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto, que pretende substituir pela sua, num inadmissível exercício de subtração da jurisdição e inversão de papeis funcionais legalmente proibida.
13.ª - A argumentação esgrimida nas doutas alegações não encontra respaldo probatório nas regras da experiência comum, nem nas normas pretensamente violadas, afigurando-se-me manifestamente inócua e destituída de fundamento legal em contraponto com a decisão revidenda, que objetivamente, não é passível de crítica relativamente à decisão da matéria de facto e de Direito, não avançando o recorrente razões válidas que permitam, sequer, reavaliar ou revisitar a prova produzida, pois nas doutas alegações de recurso, não aduziu nem desenvolveu um quadro argumentativo que demonstre através da análise das provas por si especificadas que a convicção formada pelo tribunal a quo, relativamente aos pontos de facto por si contestados é impossível ou desprovida de razoabilidade.
14.ª - O pedido ou pretensão de execução do Estado emitente é legitimo, juridicamente atendível, fundamentado e não contraria qualquer norma legal interna e da ordem publica internacional, como foi reconhecido pelo Acórdão revidendo.
15.ª - A pretensão recursória veiculada pelo requerido nas alegações, não possui norma legal de apoio, é injustificada e manifestamente ilegal, contendo contradições insanáveis que impedem a integração de todos os elementos constitutivos da causa de recusa facultativa invocada, razão pela qual, por via disso, deve ser julgada improcedente e desprovida de tutela jurisdicional.
16.ª – Afigura-se-me então imperioso que se deve deferir, reconhecer e julgar procedente a pretensão do Estado emitente e conferir-lhe a necessária executoriedade em território português entregando-se o requerido às autoridades judiciárias da Republica Checa, para efeitos de cumprimento da pena fixada, pelos factos e infração penal que a motivaram, como bem decidiu o Acórdão recorrido.
17.ª – Em jeito conclusivo, com o devido respeito, que para além de sincero é superlativo, os elementos de racionalidade jurídica, factual e intelectual em que se apoiam os alicerces da retórica argumentativa utilizada requintadamente pelo recorrente na presente instância recursória, não obstante a inteligência, argúcia e erudição que manifestamente apresentam, são francamente assépticos, estruturalmente frágeis, globalmente estéreis, tendencialmente omissos e todos sem cabimento legal, razões pelas quais, o recurso está votado ao insucesso e não merece provimento.
18.ª - Nessa conformidade, essencialmente pelo exposto, sem necessidade de mais aturadas considerações, tudo visto, analisado e ponderado, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, à reflexão doutrinária e jurisprudencial que as questões equacionadas tem merecido, à plêiade, força e validade dos argumentos aduzidos, à dogmática vigente, numa interpretação sistémica, integrada e entrelaçada das normas legais pertinentes, compatibilizando o que é conciliável, não desvalorizando o que deve ser valorizável e face à altíssima complexidade de tudo o que é humano, bem como, no empoderamento de um acto prudencial de eliminação, esbatimento ou minimização do risco para patamares socialmente suportáveis inerente a qualquer decisão judicial cujo objecto diga directamente respeito aos direitos, liberdades e garantias como aquela que criteriosamente se proferirá, afigura-se-me que, na desinência da pretensão formulada, se deverá julgar o presente recurso improcedente e manter-se o Acórdão recorrido nos seus precisos e exactos termos, com todas as legais consequências substantivas e adjectivas.
Como é de Justiça.»
4. O requerente tem legitimidade e o recurso foi regularmente interposto e admitido com o correto regime e efeitos de subida.
Dispensados os vistos, e mantendo-se a regularidade da instância recursiva, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 Fundamentação de Facto
5. Factos provados
São os seguintes os factos relevantes para a decisão, estabelecidos no acórdão recorrido:
«2.1.1. Pelo Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de ..., República Checa, foi emitido, para efeitos de cumprimento de pena de caráter institucionalizado, um Mandado de Detenção Europeu – M.D.E. (European Arrest Warrant – E.A.W.) com a data de 22/08/2022, relativo ao cidadão ora requerido, AA, de nacionalidade checa, de sexo masculino, natural de ..., ..., onde nasceu em .../.../1960, titular do passaporte n.º ...............31, filho de BB e CC, com última residência conhecida em parte incerta de ...;
2.1.2. Este mandado tem por base e fundamento uma Decisão Judicial datada de 31/01/2020 do Tribunal da Comarca de ..., proferida no âmbito do processo criminal checo, em cujo julgamento o requerido esteve presente, transitada em julgado no dia 17/06/2021, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível na Secção .../1; 2C 4C do Código Penal Checo -, que lhe aplicou a pena concreta de 12 anos de prisão efetiva, restando por cumprir a pena remanescente de 11 anos, 03 meses e 28 dias de prisão, pelo cometimento dos seguintes factos:
2.1.3. «O requerido juntamente com outros participou na distribuição ilegal e venda de canábis seca durante o período de 02/06/2015 a 06/06/20215; de 09/07/2015 a 11/07/2015, de 05/08/2015 a 08/08/2015 e juntamente com os seus coautores organizaram o transporte de canábis seca de modo a vendê-la na Áustria a um comprador desconhecido. O individuo juntamente com outros participou pelo menos desde 2013 até 26/09/2016 em seis instalações para cultivo e fabrico ilegal de modo a obterem canábis seca com elevado teor de THC. Para isso utilizaram um sistema de cultivo altamente sofisticado incluindo lâmpadas artificiais, substâncias para crescimento e ventiladores de modo a obterem uma elevada quantidade de canábis. O indivíduo referido, juntamente com outros, no período de 15/10/2015 a 26/09/2016, participou no transporte de rebentos de canábis para outras instalações de cultivo situadas na República Checa. Estabeleceram também armazéns para canábis na República Checa de modo a puderem distribuir o produto na Alemanha. O individuo referido juntamente com outros participou, pelo menos em quatro processos no período de 27/01/2016 a 15/06/2016 para a distribuição de canábis seca a consumidores finais na cidade de...».
2.1.4. O mandado de detenção europeu, inserido no Sistema S.I.S. - Sistema de Informação SCHENGEN -, foi cumprido por elementos da Polícia Judiciária - P.J. do ... -, que detiveram o requerido pelas 15 horas do dia 15/10/2023, na cidade do Porto;
2.1.5. Pela Tranquilidade AdvanceCare foi remetido aviso para pagamento do prémio de seguro de saúde, com data de 24/10/2022, dirigido ao requerido AA, indicando como morada a Rua ..., ...;
2.1.6. A 24/11/2021, foi reconhecida a assinatura do requerido, por solicitadora inscrita na Ordem dos Solicitadores, constando do respetivo reconhecimento que o requerido tinha morada na Quinta ..., ..., ...;
2.1.7. Da certidão permanente subscrita em 13/09/2023, consta a matrícula da firma L.... ....... – Investments, Lda., com sede na Praça ...., ..., ..., tendo como objeto a compra, venda e revenda de bens imóveis, arrendamento e exploração de bens imóveis, venda ou revenda de veículos automóveis ligeiros ou pesados, e outros, dela constando ainda como sócio-gerente da sociedade J... ...... e como sócio o requerido AA, ambos com morada na Quinta..., ..., ..., constando da mesma certidão que o requerido passou a ser sócio-gerente a 24/11/2021, cargo a que renunciou no dia 29/09/2022,
2.1.8. Em documento denominado “contrato de trabalho por tempo indeterminado”, celebrado em 01/12/2021 entre o legal representante da sociedade referida em 2.1.7., que se identifica na respetiva assinatura com o primeiro nome legível e o apelido “…” e o requerido AA, fez-se constar como morada do requerido a Quinta ..., ..., ... e que o mesmo seria admitido ao serviço como trabalhador, com a categoria de Diretor, auferindo como remuneração a quantia líquida mensal de 1.000,00;
2.1.9. A Autoridade Tributária e Aduaneira, em documento emitido para substituição do cartão e identificação fiscal do requerido AA, com data de 24/11/2021, fez constar como residência fiscal do mesmo a morada situada na República Checa, mais precisamente ..., ...;
2.1.10. A mesma autoridade Tributária e Aduaneira remeteu ao requerido, em agosto de 2022, notificação para pagamento de IRS em dívida, até ao dia 31/08/2022, dirigida à morada do requerido sita na Quinta ..., ..., ...;
2.1.11. A mesma Autoridade Tributária remeteu ao requerido demonstração de liquidação de IRS, com reembolso referido à data de transferência de 18/05/2023, para a Rua ..., na ...;
2.1.12. Na declaração modelo 3, relativa aos rendimentos do ano de 2021, no campo de preenchimento respeitante ao seu estado civil, sinalizou o requerente a sua situação de solteiro, divorciado ou separado judicialmente, marcando a respetiva quadrícula, e deixando por preencher a referente à de “Unido de facto”, assim como assinalou a quadrícula de não residente;
2.1.13. Na mesma declaração relativa aos rendimentos de 2022, assinalou como residência fiscal o “Continente”;
2.1.14. Mas na declaração modelo 3 apresentada a 18/06/2022, relativamente à residência fiscal assinalou novamente a quadrícula “Não residente”.
2.1.15. do Ofício da autoridade tributária de 28/11/2022, remetido para a Rua ..., na ..., é referida a solicitação por parte do requerido da alteração do domicílio fiscal, e para que confirmasse a morada constante do respetivo envelope;
2.1.16. A freguesia de ..., a 24/02/2022, emitiu “atestado”, nos termos do qual e com base nos documentos que aí foram apresentados, declarou que o requerido habitava a morada sita na Rua ..., na ....
2.1.17. Foram juntos aos autos pelo requerido diversos documentos, com datas de 30/09/2022 (receita médica), 02/12/2023 e 18/09/2023 (declarações médicas), 14/07/2023 (exame hematológico), 19/05/2023 (receita médica) 28/09/2023 (inscrição e notificação para pagamento de quota, como sócio da associação Alzheimar Portugal), 02/12/2022 (consulta médica), 28/06/2023, 18/09/2023 (consultas em clínica dentária), 03/06/2023 (emitido por empresa de serviços óticos), 02/02/2023 (clínica dentária da ...), referentes ao requerido, dos quais constam a morada sita na Rua ..., na ....
2.1.18. A 11 de outubro de 2023 foi emitida declaração por Sociedade P..... ....... .... .. ....., Lda., da qual consta que DD é piloto licenciado pela Federação Portuguesa de ..., e que participou na Taça de Portugal de ... de ...;
2.1.19. Do cartão de cidadão, emitido pela República Checa, consta que DD nasceu a .../.../2011, como filho do requerido;
2.1.20. Com data de 21/06/2023, os Serviços Administrativos do Colégio N... .. ...., certificaram que DD, filho de AA e de EE, nascido a .../.../2011, natural da ... frequentou aquela Escola, em 2022/2023, o 2º Ciclo do Ensino Básico.»
Inexistem outros factos.
A convicção do tribunal recorrido baseou-se no teor do MDE emitido pelas competentes autoridades judiciárias checas e na demais documentação considerada relevante, junta ao processo, quer pelo Ministério Público, quer pelo requerido.
II.2. Fundamentação de Direito
6. A Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho da União Europeia, relativa ao Mandado de Detenção Europeu (doravante, MDE) e aos processos de entrega entre os Estados-Membros (publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias L 190, de 18.07.2002), foi um dos atos adotados em aplicação do título VI do Tratado da União, nomeadamente, das alíneas a) e b) do seu art. 31.º e da alínea b) do n.º 2 do seu art. 34.º.
Considerou então o Conselho, tendo em conta a proposta da Comissão e o parecer do Parlamento Europeu, além do mais:
- deveria ser abolido o processo formal de extradição no que diz respeito às pessoas julgadas embora ausentes cuja sentença já tenha transitado em julgado, bem como acelerados os processos de extradição relativos às pessoas suspeitas de terem praticado uma infração;
- o objetivo de dar execução ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais;
- o objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça;
- a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permitindo suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos procedimentos de extradição;
- a substituição das relações de cooperação clássicas que até ao momento haviam prevalecido entre Estados-Membros por um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.
O MDE previsto nessa Decisão-Quadro constituiu, pois, a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de «pedra angular» da cooperação judiciária.
Mais se atentou em que o mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros.
Foi, pois, em cumprimento dessa mesma Decisão-Quadro que a Lei n.º 65/2003 (publicada no D.R. I Série-A n.º 194, de 23.08), alterada, depois, pelas Leis n.os 35/2015, de 04-05, 115/2019, de 12-09 e 53/2023, de 28-08, veio aprovar o regime jurídico do MDE, que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2004, aplicando-se aos “pedidos recebidos depois desta data com origem em Estados membros que tenham optado pela aplicação imediata” daquela (seu art. 40.º).
Na definição legal dada pelo art. 1.º, n.º 1, “O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade”, sendo executado, à luz do n.º 2 do mesmo preceito, com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na mesma Lei e na mencionada Decisão-Quadro.
Esta última não define o princípio do reconhecimento mútuo, tal como aquela Lei não o faz, mas não sofre dúvida que ele assenta na confiança mútua que pressupõe compreensão, impondo às autoridades de um Estado que aceitem reconhecer os mesmos efeitos às decisões estrangeiras que às decisões nacionais, apesar das diferenças que oponham as ordens jurídicas em causa (assim, Manuel Guedes Valente, Do Mandado de Detenção Europeu, Coimbra: Almedina, 2006, p. 83, citando Inês Fernandes Godinho, em Trabalho de Mestrado em Direito apresentado em 2003/2004, na FDUC, na cadeira de Processo Penal, sob a regência de Anabela Miranda Rodrigues, «O Mandado de Detenção Europeu e a “Nova Criminalidade”: A Definição da Definição ou o Pleonasmo do Sentido», p. 14; cfr., também, Anabela Miranda Rodrigues, «O mandado de detenção europeu – Na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto?», RPCC, Ano 13.º, N.º 1, jan.-mar., 2003, pp. 27 ss.; Ricardo Jorge Bragança de Matos, «O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu», RPCC, Ano 14.º, N.º 3, jul.-set., 2004, pp. 325 ss.).
Anabela Miranda Rodrigues, citando Daniel Flore, explicitou, por seu turno, que desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde ela procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União, significando que as autoridades competentes do Estado-Membro do território no qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente desse Estado («O Mandado de detenção europeu…», RPCC, Ano 13.º, N.º 1, jan.-mar., 2003, p. 33).
Tal princípio de confiança subjacente ao reconhecimento mútuo, ligado ainda a finalidades de simplicidade e de celeridade, só através da ausência de exigência absoluta da dupla incriminação (no Estado-Membro de emissão e no Estado- Membro de execução) poderia ser concretizado, motivo por que se elencou, no art. 2.º, n.º 2, identicamente ao que consta da Decisão-Quadro, um catálogo de infrações relativamente às quais se aboliu o controlo da dupla incriminação desde que puníveis com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a três anos.
No respeitante a infrações aí não previstas, o legislador português parece ter, todavia, optado por sujeitá-las ao princípio da dupla incriminação (n.º 3 do mesmo art. 2.º).
Na esteira, ainda, da Decisão-Quadro, e das alterações que mereceu através da Decisão-Quadro 2009/299/JAI, do Conselho, de 26.02 (publicada no Jornal Oficial da União Europeia L 81/24, de 27-03-2009), enveredou-se por uma solução de compromisso entre a abolição geral da verificação/controlo da dupla incriminação e a reserva da soberania dos Estados, mediante a previsão de motivos de não execução obrigatória ou facultativa do MDE, bem como de determinadas garantias que, em casos especiais, devem ser fornecidas pelo Estado-Membro de emissão, como decorre do disposto nos artigos 12.º, 12.º-A e 13.º.
Optou-se, pois, por uma abolição relativa da verificação ou controlo da dupla incriminação, que não afetasse essa reserva de soberania e que correspondesse aos desideratos de preocupação comum da União.
Por outro lado, a pessoa entregue em cumprimento de um MDE não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do MDE, nos termos do art. 7.º, o que consubstancia o denominado princípio da especialidade, embora com as exceções previstas no seu n.º 2, em que se inclui a renúncia da pessoa a essa regra, nos moldes definidos no seu n.º 3.
Importa desde já assinalar – o que nem sequer é questionado pelo requerido – que o presente mandado de detenção europeu respeita as disposições legais supra transcritas, visto estarem em causa crime e penas cujos limites observam o disposto no art. 2.º da Lei n.º 65/2003, e se mostrar aquele mandado elaborado de acordo com o previsto no art. 3.º (conteúdo e formulário).
7. No caso em apreço, está em causa a detenção e entrega de pessoa procurada, AA, às autoridades judiciárias da República Checa-Chéquia, com vista a cumprimento de pena de prisão remanescente – de onze anos, três meses e vinte e oito dias – de uma pena total de doze anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, relativamente ao qual não se torna necessária a verificação da dupla incriminação (art. 2.º, n.º 2, alínea e), da Lei n.º 65/2003)
Por Acórdão do Tribunal Municipal de ... (M...... .... . .....) de 31 de janeiro de 2020, referência n.º .../2018-11813, em conjugação com a Resolução do Tribunal Superior de ... (V..... .... . .....) de 17 de junho de 2021, referência n.º .../2020-12695, transitado em julgado no dia 17 de junho de 2021 foi o requerido condenado na pena de 12 anos de prisão, faltando ainda cumprir a pena remanescente de 11 anos, 03 meses e 28 dias de prisão pela prática de crime relacionado com o tráfico ilícito e transnacional de substâncias estupefacientes, previsto e punível na Secção 282/1; 2C do Código Penal – C.P. Checo.
Uma vez que não foi possível proceder à detenção do requerido no Estado de emissão, donde é nacional, as autoridades judiciais checas do Tribunal Municipal de ... (M...... .... . .....) em 22 de agosto de 2022, com a referência n.º.../2018 emitiram o presente Mandado de Detenção Europeu - E.A.W. (European Arrest Warrant – E.A.W.) para a execução daquela pena de prisão.
No dia 15-10-2023, pelas 15h00, o arguido foi detido em cumprimento da emissão de tal MDE.
Procedeu-se à audição do requerido-detido, no dia 17-10-2023, pelas 11H00, no Tribunal da Relação do Porto, nos termos do artigo 18.º da Lei n.º 65/2003, tendo o mesmo declarado opor-se à entrega e renunciar ao princípio da especialidade.
O arguido recorreu do despacho de 18-10-2023, que lhe aplicou a medida de coação de prisão preventiva, tendo, nessa sequência, sido proferido o acórdão deste Supremo Tribunal, de 23-11-2023 (Ref.ª Citius ......59), que julgou parcialmente procedente o recurso, «(…) mantendo-se o requerido em prisão preventiva mas sem prejuízo das averiguações requeridas, tendo em vista a possibilidade de uma futura, se viável ou exequível, aplicação de OPHVE com efectiva garantia de se evitar adequadamente eventual perigo de fuga e a inexequibilidade do MDE por via dessa possibilidade de ocorrência.»
O requerido apresentou oposição à execução do MDE, tendo, na sequência da mesma, sido proferido pelo TRP o acórdão ora recorrido.
8. O MDE deve ser executado com base no princípio do reconhecimento mútuo. Significa isto que o respetivo processo de execução assume, comparativamente, com outros instrumentos de cooperação judiciária internacional, designadamente com a Lei n.º 144/99, de 31-08, especial simplificação e acrescido grau de executoriedade.
Conforme se refere no Acórdão do STJ de 15-04-2021, processo n.º 792/20.0YRLSB.S2 (in www.dgsi.pt):
«O MDE, enquanto mecanismo privilegiado de cooperação internacional em matéria penal entre os membros da União Europeia, deve ser “executado com base no princípio do reconhecimento mútuo” (art. 1.º, n.º 2, da LMDE) e constitui a primeira concretização deste princípio. Ora, “o núcleo essencial do reconhecimento mútuo reside em que «desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde ela procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União. Isto significa que as autoridades competentes do Estado-Membro no território do qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente desse Estado [...]”. O que significa que cada Estado membro confia nos outros Estados-membros, respeitando as decisões de cada Estado.
O Conselho (…), na sua Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, de 13.06, procurando compatibilizar o princípio do reconhecimento mútuo e a confiança mútua entre os Estados-membros com a consciência das divergências existentes entre os diversos ordenamentos jurídicos dos Estados, consagrou uma solução de consenso e compromisso, definindo uma lista de infrações para os quais a dupla incriminação (dos factos) não constitui pressuposto da execução do MDE.
Na LMDE, no seu art. 2.º, n.º 2, vigora a ausência de controlo do requisito da dupla incriminação quando estão em causa determinados tipos de criminalidade. Conforme salienta Lopes Costa, tendo por base art. 2.º, n.º 2 da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13-06, transposto para o art. 2.º, n.º 2, da LMDE, é enumerado «um elenco taxativo de 32 domínios de criminalidade grave (a chamada lista positiva) que “caso sejam puníveis no Estado-Membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos e tal como definidas pela legislação do Estado-Membro de emissão determinam a entrega com base no mandado de detenção europeu (…) sem controlo da dupla incriminação do facto”; e apenas nos restantes casos de criminalidade fora do elenco apresentado no art. 2.º pode “a entrega (...) ficar sujeita à condição de os factos para os quais o mandado de detenção europeu foi emitido constituírem uma infração nos termos do direito do Estado-Membro de execução”.
(…)
O art. 2.º, n.º 2, da própria decisão-quadro estabelece a lista positiva das trinta e duas infrações penais que obrigam à entrega da pessoa sobre que recai um MDE, ainda que a legislação do Estado-Membro de execução as não qualifique como tal. (...) Em todo o caso, (...) constitui uma excepção (decerto importante) à regra geral segundo a qual a obrigação de execução de um MDE pressupõe que o facto determinante da sua emissão seja considerado crime não só no Estado de emissão mas também no Estado de execução”.
Desta forma, impõe-se ao Estado de execução do mandado, no caso Portugal, verificar se as infrações indicadas pelo Estado-Membro de emissão do MDE integram ou não o elenco do art. 2.º, n.º 2, da LMDE, com penas privativas da liberdade superiores a 3 anos porque, caso assim suceda, inexiste controlo da dupla incriminação dos factos. Ou seja, não se impõe verificar se aqueles factos, indicados no MDE do Estado de emissão, constituem infração à luz do direito interno Português».
Também no mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do STJ de 04-01-2007, processo n.º 4707/06, in www.dgsi.pt.
Por fim, é relevante mencionar o que penetrantemente se refere no Acórdão do STJ de 26-07-2023, Proc. n.º 107/23.6YRGMR.S1 (em www.dgsi.pt):
«De acordo com o princípio do reconhecimento mútuo, uma decisão definitiva proferida por uma autoridade judiciária competente de um Estado-Membro («Estado de emissão»), em conformidade com o direito interno desse Estado, tem um efeito pleno e direto no território dos demais Estados-Membros, concretamente no Estado em que deva ser executada («Estado de execução»), como se de uma decisão de uma autoridade judiciária deste Estado se tratasse, desde que não se verifique motivo de não execução.
Nesta base, a autoridade judiciária do Estado de execução encontra-se obrigada a executar o MDE que, emitido de acordo com o formulário anexo à DQ 2002/584/JAI (com a alteração introduzida pela DQ 2009/299/JAI), preencha os requisitos legais, estando limitado e reservado à autoridade judiciária de execução um papel de controlo da execução e de emissão da decisão de entrega, a qual só pode ser negada em caso de procedência de motivo de não execução obrigatória ou facultativa (artigos 3.º, 4.º e 4.º-A da Decisão-Quadro, a que correspondem os artigos 11.º, 12.º e 12.º-A da Lei n.º 65/2003) ou de falta de prestação de garantias que possam ser exigidas (artigo 5.º da DQ, a que corresponde o artigo 13.º da Lei n.º 65/2003) – assim, nomeadamente, os acórdãos do TJUE proferidos nos processos C-388/08, de 1.12.2008, C-123/08, de 6-10-2009, C-261/09, de 16.11.2010, C-42/11, de 5.9.2012, e C-396/11, de 29.1.2013 e, entre muitos outros, mais recentemente, o acórdão de 11.3.2020, no processo C‑314/18 e o acórdão de 26.10.2021, nos processos apensos C‑428/21 PPU e C‑429/21 PPU. Os motivos de não execução (obrigatória e facultativa) do MDE são apenas os que constam dos artigos 3.º, 4.º e 4.º-A da Decisão-Quadro (a que correspondem os artigos 11.º, 12.º e 12.º-A da Lei n.º 65/2003; assim, também, «Reconhecimento mútuo de decisões judiciais em matéria penal no espaço da União Europeia», in Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Vol. II, Paulo Pinto de Albuquerque (org.), Católica Editora, 2019, pp. 1142 ss).»
É pois, uma obrigação do Estado de execução proceder à execução do MDE, desde que o mesmo seja emitido pelo Estado de emissão, de acordo com o formulário anexo à DQ 2002/584/JAI (com a alteração introduzida pela DQ 2009/299/JAI) e preencha os requisitos legais, reservando-se à autoridade judiciária de execução um papel de controlo da execução e de emissão da decisão de entrega, a qual só pode ser negada em caso de procedência de motivo obrigatório ou facultativo de não execução ou de falta de prestação de garantias que possam ser exigidas.
Importa aplicar este esquemático enquadramento normativo ao caso em apreço.
9. Da motivação e conclusões do recurso do requerido, extrai-se que a sua pretensão é a de que sejam apreciadas as seguintes questões:
i) - Se ocorre nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia – artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP;
ii) - Se ocorre nulidade relativa a que alude o art. 120.º, n.º 2, alínea d), 2.ª parte do CPP, pela evidente omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade;
iii) - Se se verifica erro notório da apreciação da prova, a que alude o art. 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP, por ter indevidamente concluído a) pelo não domínio, pelo arguido, da língua portuguesa; b) pelo empreendimento de “fuga” do arguido às responsabilidades penais, e c) pela suspeita de estabilidade face à diversidade de residências em Portugal do requerido e seu agregado familiar; e
iv) - Se ocorre inconstitucionalidade da interpretação normativa da alínea f) do artigo 3.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, no sentido de se considerar como transitada em julgado uma sentença penal estrangeira, quando ainda substituem1 dois graus de recurso nos tribunais de origem, por violação do artigo 32.º, n.º 1 da CRP.
Apreciemos.
10. i) - Se ocorre nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia – artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP;
De acordo com o recorrente, a circunstância de o tribunal recorrido não ter verificado com segurança se, perante a situação, as condições de vida da pessoa procurada e as finalidades da execução da pena, se justificaria a não execução do mandado, por haver vantagens no cumprimento da pena em Portugal segundo a legislação interna, na sequência do pedido formulado pela pessoa procurada, integraria nulidade (absoluta) do acórdão, por omissão de pronúncia, enquadrável no disposto do artigo379.º, n.º 1, alínea c) do CPP. O tribunal recorrido teria alegadamente postergado e desvalorizado a prova documental e testemunhal apresentada, não permitindo sequer uma audição completa e saudável do arguido e testemunhas indicadas, o que apenas conjugado com a demais prova apresentada sobre a sua residência em Portugal, iria certamente ajudar a compreender que a fundamentação apresentada está eivada de factos imprecisos, incoerentes e desajustados, no tempo e lugar, socorrendo-se de uma “convicção própria” ou de uma teoria ou “embuste”, que não existe.
O art. 12.º, alínea g) da Lei n.º 65/2003, prescreve o seguinte:
«1 - A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:
(…)
g) A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa;
(…)»
O referido preceito é claro no sentido de poder ser recusada a execução do MDE quando a pessoa procurada seja residente em Portugal. Essa recusa apenas é admitida desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa. Ora, conforme se assinalou, apesar de o mandado em questão ter sido emitido para cumprimento de pena de prisão, pelo tribunal recorrido foi entendido que as circunstâncias apuradas não coincidem com as invocadas pelo arguido, em termos de (não) integrar o referido motivo de não execução facultativa do MDE.
A este respeito, importa assinalar que, consubstanciando o mandado de detenção europeu um modelo de substituição integral da extradição, simplificado e inteiramente jurisdicionalizado, a matéria anteriormente regulada pelo regime da extradição – no que aos Estados Membros que subscreveram o sistema do MDE diz respeito –, deve ser integrada no regime do mandado de detenção europeu, no que respeita ao respetivo âmbito objetivo e subjetivo de aplicação (Acórdão do STJ de 10-09-2009, proc. 134/09.6YREVR.S1), sendo, como tal, inaplicáveis à presente situação as referências feitas pelo recorrente à Lei n.º 144/99, de 31-08 (Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal), para justificar a negação de cooperação.
É questionada no recurso interposto a circunstância de o despacho do Senhor Desembargador relator no TRP, de 24-11-2023 – após ter, de certa forma, acalentado a expectativa de que seria produzida a prova (testemunhal) que o requerido indicara – ter inviabilizado a produção de prova o que, em seu entender, se tivesse sido produzida, implicaria outra conclusão probatória.
Porém, como pertinentemente refere o Senhor magistrado do Ministério Público junto do TRP:
«(…) o acto decisório que dispensou a produção de prova e a inquirição das testemunhas arroladas na oposição, não foi o Acórdão criticado, mas sim o despacho proferido em 24/11/2023, em relação ao qual o recorrente não reagiu, como já acima deixamos explicado.
Assim não pode o recorrente assacar ao Acórdão criticado um pretenso vicio que foi alegadamente praticado por outra decisão. A omissão de pronúncia a que se refere a al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal – C.P.P., aplicável por força do artigo 425.º, n.º 4 do Código de Processo Penal – C.P.P., significa, fundamentalmente, a ausência de tomada de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias relativamente às quais a lei imponha que o juiz tome posição expressa e incide sobre problemas ou assuntos ainda não decididos por outra decisão.
A nulidade por omissão de pronúncia só se verifica quando o tribunal não se pronuncia sobre alguma questão que devesse apreciar e não conhecida por outra decisão. Este vício traduz-se num non liquet em relação ao objecto questionado, à questão ou situação questionada, legalmente relevante, e que por isso, tem de ser expressamente decidida e significa, na essência, ausência de posição ou de decisão do tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa sobre questões que lhe sejam submetidas ainda não decididas: as questões que o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal, de forma inovatória e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digamrespeito à relação material, quer à relação processual.»
Consideramos convincente esta posição, sendo certo que além de a produção da prova precludida haver sido indeferida pelo despacho de 24-11-2023, e não pelo acórdão recorrido, neste faz-se uma ampla análise crítica de todos os elementos documentais juntos pelo arguido, não podendo dizer-se ter havido qualquer omissão de pronúncia relativamente a certo tipo de prova (testemunhal) que pretendesse produzir.
O tribunal recorrido pronunciou-se sobre a estabilidade, inserção social, perspectivas de ressocialização e intensidade dos laços pessoais do requerido com Portugal, concluindo não serem suficientes, de acordo com a prova produzida, para suportar factualmente o motivo de não execução facultativa legalmente previsto.
No acórdão recorrido não se denegou a possibilidade de produção de nenhum meio de prova, tendo-se admitido até poder ser necessário apreciar a que o recorrente indicou; apenas se selecionou aquela prova que o tribunal entendeu ser bastante para decidir. Certo é que o tribunal a quo não deixou de apreciar, no acórdão recorrido, todas as questões que deviam ser efetivamente apreciadas à luz da prova produzida.
Se há algo que pode afirmar-se com certeza e rigor é que ao requerido foi assegurado o conjunto de direitos de defesa e contraditório, apreciando-se criticamente toda a prova necessária e pertinente para apreciar aquelas circunstâncias do art. 12.º, n.ºs 1, al. g), 3 e 4 a contr., da Lei n.º 65/2003.
Pode haver, na verdade, discordância do arguido quanto ao sentido decisório do acórdão recorrido e quanto aos elementos prova cujo resultado o suporta, mas tal não significa ter havido omissão de pronúncia quanto às questões que o tribunal deveria decidir, como decidiu.
Em consequência, julga-se improcedente o vício de nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia.
10. ii) - Se ocorre nulidade relativa a que alude o art. 120.º, n.º 2, alínea d), 2.ª parte do CPP, pela evidente omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade.
O recorrente vem questionar o acórdão recorrido (de 29-11-2023) e não o despacho proferido em 24-11-2023 – que dispensou e indeferiu a produção dos meios de prova que indicou na oposição à execução –, tendo-se, porém, conformado com tal despacho.
Desse despacho não caberia recurso, em face da limitação dos meios recursivos previstos no artigo 24.º n.º 1 da Lei n.º 65/2003. Porém, não arguiu qualquer nulidade de tal despacho, que seria, no fundo, a decisão suscetível de impugnação por ter indeferido a produção dos meios de prova indicados pelo recorrente.
O tribunal recorrido, contudo, emitiu justificada fundamentação e explanou validamente os motivos pelos quais não iria dar continuidade à audiência e proceder à produção de prova requerida pelo recorrente, tendo-o feito da forma seguinte:
«Considerando que os elementos de prova constantes dos autos permitem uma decisão sobre o mérito da oposição à execução do mandado de detenção europeu, indefere-se a inquirição das testemunhas indicadas pelo requerido, assim como as demais diligências probatórias pedidas, aliás, essencialmente dirigidas, e, nessa medida, neste momento injustificáveis, a uma fase processual posterior que implicasse a revisão e confirmação da respectiva sentença penal, que só em face de uma eventual recusa de execução do mandado de detenção europeu poderia ter lugar.
Por outro lado, não havendo lugar à produção de prova testemunhal, também sem fundamento fica a realização de quaisquer alegações orais ademais porque relativamente à prova documental produzida no processo já os sujeitos processuais, e fundamentalmente o requerido, se pronunciaram, e, em audiência anteriormente realizada, teve também já lugar a audição presencial do requerido, acompanhado pelo Il. Defensor, na qual expressamente declarou não consentir a sua entrega às autoridades judiciais da República Checa e que renunciava ao princípio da especialidade, tendo ainda requerido prazo para deduzir oposição por escrito, “em conformidade com a factualidade plasmada na al. g), nº 1, do art.º 12º da Lei 65/2002, e apresentar prova que a sustentasse”, o que fez».
Para todos os efeitos, o despacho em causa transitou em julgado. O recorrente conformou-se com o seu fundamento e decisão, não o tendo impugnado tempestiva e autonomamente.
Porém, é relativamente ao acórdão recorrido que o recorrente agora dirige as suas críticas, defendendo ter sido praticada uma nulidade relativa enquadrável artigo 120.º, n.º 2, alínea d), 2.ª parte, do CPP, mais concretamente a “omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade”.
O regime geral de invalidades e os regimes específicos para as sentenças e para os despachos que aplicam medidas de cocção encontram-se previstos, respetivamente nos artigos 97.º e 118.º a 123.º, nos artigos 374.º e 379.º e no artigo 194.º, todos do CPP.
O regime geral das invalidades em processo penal aqui aplicável por força do disposto no artigo 34.º da Lei n.º 65/2003, é subordinado ao princípio da legalidade, numerus clausus ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os atos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (artigo 118.º, n.º 1 do Código de Processo Penal). Fora desses casos, se for cometida alguma ilegalidade suscetível de afetar o valor do ato praticado, estar-se-á perante uma irregularidade (n.º 2 do citado artigo 118.º do CPP).
Qualquer ato processual que não seja nulo, deve considerar-se padecer de irregularidade - «a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo só determinam a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei» (art. 118.º, n.º 1, do CPP), acrescentando o n.º 2 deste artigo que «nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular».
Esta norma consagra o princípio da tipicidade ou da legalidade em matéria de nulidades, do qual resulta que só algumas das violações das normas processuais é que têm como consequência a nulidade do respetivo ato. No que respeita às nulidades, o Código de Processo Penal distingue as nulidades insanáveis (ou absolutas), a que se refere o artigo 119.º, e as nulidades dependentes de arguição (ou nulidades relativas), a que se referem os artigos 120.º e 121.º do CPP.
O referido artigo 119.º do CPP classifica como nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, as situações tipificadas nas suas alíneas «além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais».
Por outro lado, o n.º 1, do artigo 120.º, do CPP dispõe que «qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte».
Por isso, ao invés do regime das nulidades ditas insanáveis, as restantes nulidades ficam sanadas se os interessados renunciarem expressamente à sua arguição, tiverem aceite expressamente os efeitos do ato ou se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia (cf. artigo 121.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Mas estas invalidade devem ser tempestivamente arguidas pelos interessados, pelo que, não reagindo os mesmos, as mesmas não são oficiosamente conhecidas, e o vício considera-se sanado.
De acordo com o disposto no n.º 3, do artigo 120.º, do CPP, as nulidades relativas têm de ser arguidas nos seguintes prazos: tratando-se de nulidade de ato a que o interessado assista, antes que o ato esteja terminado [alínea a)]; tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência [alínea b)]; tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito [alínea c)]; e logo no início da audiência nas formas de processo especiais [alínea d)].
No que respeita aos efeitos da declaração de nulidade, o artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – C.P.P., estabelece que «as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar», sendo que, nos termos do n.º 2 deste artigo «a declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição», dispondo-se no n.º 3 que «ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela».
Todavia, o sistema de organização, funcionamento (emissão e execução) do Mandado de Detenção Europeu (European Arrest Warrant – E.A.W.) existem outros valores relevantes para além do direito à obtenção de uma decisão equitativa que dirima os conflitos de interesses entre o Estado emitente e o recorrente, como o da estabilidade das decisões e a celeridade e simplicidade processual que este mecanismo de Cooperação Judiciária Internacional impõe.
Aos requeridos é sempre garantido o exercício dos direitos de defesa e de reação legalmente previstos, não tendo, porém, o requerido reagido autónoma e tempestivamente contra o despacho do Senhor Desembargador relator de 24-11-2023.
Ora, em função do princípio da legalidade ou numerus clausus (art. 118.º do CPP) – segundo o qual a violação ou inobservância das disposições da lei do processo só determina a nulidade do ato quando for expressamente cominada na lei – e de acordo com as regras gerais em matéria de conhecimento da nulidade relativa – que fixam a necessidade da sua arguição pelo interessado, ou seja, pelo titular do direito protegido pela norma violada, nos estritos prazos legais, ficando o vício sanado se não for tempestivamente arguido – verifica-se que o recorrente não o fez tempestivamente.
Não tendo o recorrente arguido tempestivamente tal suposta invalidade, o ato tornou-se processualmente regular e válido, não podendo ser sindicado posteriormente.
Acresce que o conhecimento oficioso pelo Tribunal das invalidades (nulidades absolutas) está circunscrita aos casos em que o vicio contende com a violação de uma norma que exteriorize a concretização de valores e princípios constitucionais que enformam o sistema do MDE, tendo então o legislador entendido que nestas situações o conhecimento sobre a sua violação, suscetível de afetar a própria realização da justiça no caso concreto, não pode ficar condicionada à eventual invocação da mesma por banda de um sujeito ou interveniente processual, permitindo ainda que esse conhecimento seja efetivado ex officio pelo tribunal para que seja reposta a imprescindível legalidade do ato ou atos processuais afetados.
Mas, como se procurou demonstrar, não é isso que se passa nos presentes autos. Não tendo o recorrente arguido tempestivamente o suposto vício do ato, tornou-se o mesmo regular e passível de produzir todos os efeitos pressupostos por lei.
De qualquer modo – mesmo ultrapassando a previsibilidade do teor do depoimento das testemunhas indicadas pelo recorrente – não é seguro que as conclusões probatórias que o recorrente sugere que o tribunal atingiria o fossem efetivamente. De resto, sufraga-se a opinião jurisprudencial consolidada no sentido em que no âmbito do Mandado de Detenção Europeu – M.D.E. (European Arrest Warrant – E.A.W.) onde pontifica a celeridade, simplicidade e respeito pelo reconhecimento mútuo assente num principio de confiança e de reciprocidade no acerto das decisões proferidas pelas autoridades judiciais do Estado membro de emissão, bem como a estipulação e observância de prazos muito curtos, o ato de audiência e produção de prova cuja omissão foi criticada não é de realização obrigatória, ao invés do que parece sugerir o recorrente (assim, Acórdãos do STJ de 11-10-2023 e de 27/05/2021 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14/03/2023, disponíveis em www.dgsi.pt.).
Em face do exposto se julga improcedente a arguição da nulidade (relativa) quanto ao acórdão recorrido.
11. iii) - Se se verifica erro notório da apreciação da prova, a que alude o art. 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP, por ter indevidamente concluído a) pelo não domínio, pelo arguido, da língua portuguesa; b) pelo empreendimento de “fuga” do arguido às responsabilidades penais, e c) pela suspeita de não estabilidade face à diversidade de residências em Portugal do requerido e seu agregado familiar.
O recorrente alega a existência de erro notório na apreciação da prova, ao abrigo do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP (pontos 43. a 63. das conclusões da motivação), quando, como resulta do corpo da motivação e das conclusões, não é isso que verdadeiramente sucede.
Advertir-se-á, por isso, que a suscitação do (suposto) vício de “erro notório na apreciação da prova” não foi formulado de forma processualmente adequada, pelo que, em rigor, deveria ser rejeitado o recurso nesta parte. Considerando, porém, tratar-se do único grau de recurso e estarem minimamente observados os requisitos do art. 412.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, procuraremos proceder à apreciação do pedido de impugnação ampla da matéria de facto.
De facto, não é o vício do 410.º do CPP que se verifica; o que o recorrente alega é que a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido é, na sua perspetiva, “manifestamente errada”. Porém, esta realidade não confunde com o erro notório na apreciação da prova. Dito por outras palavras: a apreciação errada da prova não é logo caso de erro notório na apreciação da prova de que cuida a lei – aquela errada apreciação pode não se evidenciar, e normalmente não se evidencia, no texto da decisão e tem de ser impugnada em moldes especiais. O que é facto incontornável é que o recorrente emite o seu juízo opinativo sobre um raciocínio e uma dada conclusão probatória do tribunal, não indicando, porém, elementos que, resultando do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência, impusessem decisão diversa daquela a que se chegou.
Pugna o recorrente que o tribunal a quo chegou a conclusões probatórias “notoriamente erradas” a propósito dos três núcleos de questões que poderiam sustentar o motivo de não execução facultativa do MDE, prevista no art. 12.º, n.º 1, al. g) da Lei n.º 65/2003: o domínio da língua portuguesa; (não) ter fugido à execução da prisão na República Checa e a estabilidade residencial no nosso país.
Apreciando a decisão recorrida, constata-se que no mesmo se empreendeu um percurso analítico rigoroso, coerente e isento de contradições, no tocante a essas três questões, cujo sentido e conclusões podem não agradar ao recorrente, mas não merecem censura, como se demonstrará.
Sobre a primeira objeção, pretensamente conducente ao “erro notório”, o tribunal recorrido considerou:
«Como o próprio requerido alega, e resulta documentado no processo, constituiu com a companheira, também de nacionalidade checa, com quem vivia antes de vir para Portugal, uma sociedade por quotas, em 2021, mas uma sociedade em que ambos são os únicos sócios, o que associado ao facto de não falar a língua portuguesa não deixa qualquer indício de que através dela pudessem ter encetado qualquer processo de integração na sociedade portuguesa, tanto mais que o requerido, na recente audiência após a sua detenção, ao abrigo dos presentes autos, declarou e revelou não entender nem falar a língua portuguesa, razão por que lhe foi nomeado intérprete.»
Para além da circunstância de o tribunal recorrido se ter apercebido da falta de domínio do português por parte do recorrente durante a sua audição inicial, na declaração da Clínica C...... .. ......, de 02-12-2022, é afirmada a «forte limitação linguística», não dispensando a (eventual) realização de um exame pericial de tradução para português (documento n.º 6, junto com a oposição).
Esse elemento só pelo recorrente é empolado, não assumindo, de resto, especial importância no quadro geral de ligação estável de um requerido ao Estado de execução de um MDE. Mas, em todo o caso, compreender um conjunto mais ou menos limitado de palavras e expressões de uma língua não é ter domínio sobre o idioma.
Relativamente à segunda objeção, a que o acórdão recorrido alegadamente incorre em “erro notório”, releva o seguinte:
«O crime pelo qual o requerido foi condenado, como é sabido, integra a criminalidade altamente organizada, forma organizada essa, aliás, bem expressa nas condutas por que foi condenado, pela quantidade de droga produzida e transnacionalmente traficada, a impor logicamente, um elevado nível de planeamento e capciosa organização.
Como o próprio requerido alega, e resulta documentado no processo, constituiu com a companheira, também de nacionalidade checa, com quem vivia antes de vir para Portugal, uma sociedade por quotas, em 2021, mas uma sociedade em que ambos são os únicos sócios, o que associado ao facto de não falar a língua portuguesa não deixa qualquer indício de que através dela pudessem ter encetado qualquer processo de integração na sociedade portuguesa, tanto mais que o requerido, na recente audiência após a sua detenção, ao abrigo dos presentes autos, declarou e revelou não entender nem falar a língua portuguesa, razão por que lhe foi nomeado intérprete.
Os factos referidos, bem como a data em que constituiu a apontada sociedade, e a altura em que diz ter passado a residir em Portugal, no ano de 2021, não podem ser desligados da data em que transitou em julgado a sentença condenatória, proferida pela autoridade judicial checa, ou seja, 17/06/2021, e sobretudo a circunstância de a decisão ter sido proferida a 31/01/2020, e o requerido ter comparecido na audiência de julgamento, encontrar-se representado no processo por advogado, como o próprio alega e não poder ignorar o desfecho que tal processo para si traria, sendo muito plausivelmente essa a razão por que, nos termos alegados pelo requerido no ponto 59 da oposição, andou por Portugal e Espanha, em julho de 2020, após, portanto a prolação da sentença condenatória, juntamente com a companheira (usando as suas palavras) para “aferir, avaliar e materializar a possibilidade de passar a viver permanentemente ali”. Ou seja, em Espanha ou em Portugal. A que não será alheio o facto de o MDE referir que o requerido estaria em parte incerta, em Espanha. Sendo nesse quadro de fuga e de planeamento dirigido ao afastamento ou dificultação da execução da sentença condenatória contra si proferida que se mobilizou e mobilizou também o seu reduzido agregado familiar, isto é, a sua companheira e o filho menor, com 12 anos de idade, que também foi inscrito e frequentou, apenas no recente e último ano letivo de 2022/2023, o Colégio .... .. .....»
Objetivamente, portanto, o recorrente só após a condenação por cuja pena aplicada se pretende executar o presente MDE se mudou para Portugal, juntamente com o agregado familiar.
Certo que o arguido terá sido autorizado a ausentar-se para o estrangeiro em anos anteriores, nomeadamente em 2018, de acordo com a legislação processual penal checa, conforme decorre do documento n.º 17 (junto à oposição), quando se encontrava sujeito a outro processo na República Checa, por idêntico crime (de tráfico de estupefacientes) pelo qual foi condenado nos autos base deste processo. Todavia, o certo é que, relativamente ao processo por cuja condenação agora é procurado, as autoridades tiveram de emitir o MDE em apreço, não tendo o arguido regressado voluntariamente. É, pois, um facto que concludentemente demonstra uma situação não involuntária de ausência.
A conclusão do tribunal a quo não é, por isso, de forma alguma, infundada, imotivada ou errada.
Por fim, considerou o tribunal recorrido não poder ser o recorrente considerado “residente”, nos termos seguintes:
«A densidade ou relevância material da residência em Portugal da pessoa procurada, assente numa reserva de soberania do Estado da execução, deverá ser encontrada no âmbito do sistema jurídico interno, sobretudo à luz dos princípios que regem a aplicação e execução das penas, e desde logo das finalidades a elas atribuídas, em especial as de prevenção especial, a que alude o art.º 40.º, n.º 1, do CP, ou seja, a reintegração do agente na sociedade, com o específico sentido de efetivamente haver no país de execução uma maior eficácia na realização das finalidades da punição, segundo as normas que regem a respetiva execução, do que haveria se a pena fosse cumprida no Estado requerente.
Uma tal densidade ou exigência, impõe-se também por força do princípio do reconhecimento mútuo, que, nos termos do Acórdão do Tribunal de Justiça, de 06/10/2009, processo C‑123/08, “está subjacente à economia da Decisão‑quadro 2002/584” e “implica, nos termos do artigo 1º, nº 2, desta última, que os Estados‑Membros são, em princípio, obrigados a dar execução a um mandado de detenção europeu (…) com exceção dos casos de não execução obrigatória previstos no artigo 3º da mesma decisão, e os Estados‑Membros apenas podem recusar dar execução a tal mandado nos casos enumerados no artigo 4.º desta”. Aí se acrescentando: “A este respeito, importa sublinhar que, embora o motivo de não execução facultativa enunciado no artigo 4º, nº 6, da Decisão‑quadro 2002/584 tenha, como o artigo 5º, ponto 3, desta, designadamente por objetivo permitir dar especial relevância à possibilidade de aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada no fim da pena em que foi condenada (v. acórdão Koz³owski, já referido, nº 45), tal objetivo, por mais importante que seja, não pode excluir que os Estados‑Membros, ao darem execução a esta Decisão‑quadro, limitem, no sentido indicado pela regra essencial enunciada no artigo 1º, nº 2, desta, as situações em que deveria ser possível recusar a entrega de uma pessoa abrangida pelo âmbito de aplicação do referido artigo 4º, ponto 6”. E, ainda, no ponto 67: “Importa sublinhar, como já se afirmou no nº 62 do presente acórdão, que o motivo de não execução facultativa enunciado no artigo 4º, nº 6, da Decisão‑quadro 2002/584 tem designadamente por objetivo permitir dar especial relevância à possibilidade de aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada no fim da pena em que foi condenada. Consequentemente, é legítimo que o Estado‑Membro de execução apenas prossiga tal objetivo relativamente às pessoas que tenham demonstrado um grau de integração real na sociedade do referido Estado‑Membro” (sublinhado nosso). Aí se considerando ainda, com referência à legislação neerlandesa, que “o mero requisito da nacionalidade para os seus próprios nacionais, por um lado, e o requisito de residência ininterrupta ao longo de um período de cinco anos para os nacionais dos outros Estados‑Membros, por outro, podem ser considerados suscetíveis de garantir que a pessoa procurada está suficientemente integrada no Estado‑Membro de execução. Em contrapartida, um nacional comunitário que não tenha a nacionalidade do Estado‑Membro de execução e que não tenha residido ininterruptamente no território deste Estado‑Membro ao longo de um dado período, tem, geralmente, uma maior ligação com o seu Estado‑Membro de origem do que com a sociedade do Estado‑Membro de execução”. Ou, segundo o Acórdão do mesmo Tribunal, de 17/07/2008, Proc.º nº C-66/08, “as expressões «residente» e «se encontrar» têm, respetivamente, em vista as situações em que a pessoa sobre a qual recai um mandado de detenção europeu ou fixou a sua residência real no Estado-Membro de execução ou criou, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado, determinados laços com este último, de grau semelhante aos resultantes de uma residência.” Laços esses que, como vimos supra, terão de ter o significado, a consistência e a dimensão de poderem justificar ou mesmo aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada após o cumprimento da pena em que foi condenada.
Neste sentido, pode ver-se também o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 03/10/2012, Proc.º 203/12.5TRPRT.P1 (disponível em www.dgsi.pt).
Ora, é a determinação de o requerido se “encontrar” em Portugal e aqui “residir”, com o sentido, a dimensão e a consistência supra referidos, para efeitos do disposto no art.º 12º, nº 1 al. g), da Lei nº 65/2003, que não vislumbramos possível no caso dos autos.»
Todos os factos que o recorrente enumera no ponto 65.º das suas conclusões são, com efeito, factos que revelam que um cidadão de um Estado membro da União se encontra em situação regular no nosso País. Mas isso é o que se espera de qualquer nacional da União que pretenda estabelecer-se com a família e em termos empresariais noutro País (artigos 7.º e 9.º da Lei n.º 37/2006, de 09-08). Tal não é, porém, suficiente para que se dê como automaticamente demonstrado que tal cidadão já estabeleceu, pelo período de permanência e pelos laços sócio culturais e económicos aqui desenvolvidos, uma relação com estabilidade com o País de instalação.
O recorrente reside aqui há menos de cinco anos (desde setembro de 2021), período que, não sendo tabelar, é um critério temporal indicador de efetiva ligação estável do arguido ao contexto social do Estado de execução.
Acresce que perante as autoridades tributárias nacionais, o recorrente indica ser «não residente» e ter domicílio fiscal na República Checa (cfr. Doc. 33 – documento provisório de identificação fiscal N.º ...........22, apresentado pelo requerido em 27-10-2023). O facto de se ter domicílio fiscal no País de origem, não significa por si só que não possa haver uma ligação social ao País para onde se tenha deslocado, mas indicia que, afinal, pelo menos em termos tributários, o requerido continua a pretender não se vincular ao Estado-membro de execução.
O tribunal recorrido concluiu – acertadamente –, após apreciação global da situação do recorrente, ser mais razoável a conclusão de o mesmo não ter ainda uma ligação estável ao País de execução. Tudo com claro suporte nos elementos documentais que foram fornecidos pelo Ministério Público e pelo próprio requerido.
Anote-se que, como se refere no acórdão recorrido, importa lembrar o acórdão proferido no processo C-66/08, Koz³owski, no qual o Tribunal de Justiça da União declarou que as expressões «residente» e «se encontrar» do artigo 4.o, n.o 6, da Decisão-Quadro relativa ao MDE devem ser objeto de uma definição uniforme, uma vez que se referem a conceitos autónomos do direito da União. Essas expressões abrangem, respetivamente, as situações em que a pessoa procurada tiver fixado a sua residência efetiva no Estado-Membro de execução ou tenha adquirido, na sequência de uma presença estável nesse Estado, determinados laços com este último que são de grau semelhante aos resultantes de uma residência. A determinação da expressão «se encontrar» exige uma avaliação global de diversos fatores objetivos, nomeadamente a duração, a natureza e as condições da presença da pessoa e as ligações familiares e económicas com o Estado-Membro de execução.
Por outro lado, como entendeu o Tribunal de Justiça da União no acórdão proferido no processo C-123/08, Wolzenburg, no que diz respeito ao artigo 4.o, n.o 6, da Decisão-Quadro relativa ao MDE e ao princípio da igualdade de tratamento dos cidadãos da União, uma regulamentação nacional que prevê a não execução de um MDE no caso de cidadãos da União, tendo em vista o cumprimento de uma pena de prisão, unicamente se tivessem sido legalmente residentes no território nacional durante um período ininterrupto de cinco anos, é compatível com o artigo 12.o do Tratado que institui a Comunidade Europeia (atual artigo 18.o do TFUE). Contudo, um Estado-Membro não pode sujeitar a aplicação do motivo de não execução facultativa de um MDE do artigo 4.o, n.o 6, da Decisão-Quadro relativa ao MDE a requisitos administrativos adicionais, como a posse de uma autorização de residência com duração indeterminada.
É por isso que, não se divisando, no texto e no contexto da motivação e análise crítica da prova e na própria fundamentação de direito do acórdão recorrido, qualquer erro notório, dele decorrente ou em combinação com as regras da experiência comum – que se pauta por um raciocínio coerente e isento de censura e de lapsos de razoabilidade e de arrimo à normalidade do acontecer (id quod plerumque accidit) –, também não pode proceder este segmento da fundamentação do recurso do requerido.
12. iv) - Se ocorre inconstitucionalidade da interpretação normativa da alínea f) do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, no sentido de se considerar como transitada em julgado uma sentença penal estrangeira, quando ainda subsistem dois graus de recurso nos tribunais de origem, por violação do artigo 32.º, n.º 1 da CRP.
Preambularmente, deve salientar-se que a argumentação do requerido coloca em causa a validade do princípio da suficiência do MDE em apreço, sendo certo que o mesmo não questiona a legitimidade, autenticidade, genuinidade e o próprio conteúdo do presente MDE, aceitando-o sem reservas.
Tal argumentação enferma de incoerência, ou, mesmo, de contradição, quando o requerido se dispõe, por um lado, a cumprir a pena (remanescente) em Portugal, e por outro lado, anuncia a intenção de exercer meios impugnatórios da decisão condenatória, que alega ter à sua disposição, por entender não ter transitado em julgado a decisão condenatória cuja execução é solicitada pelas autoridades judiciárias da República Checa.
Prefigura-se-nos, de resto, contraditório com tal asserção a circunstância de ter já cumprido parte da pena aplicada na República Checa, decorrente de uma decisão condenatória presuntivamente definitiva e dotada de plena exequibilidade.
Enfim, o requerido dispõe-se a cumprir uma pena cuja decisão condenatória entende não ter transitado em julgado…., desde que seja executada em Portugal.
Na verdade, na hipótese de o requerido poder passar a cumprir a pena, após uma hipotética decisão de reconhecimento do tribunal do Estado de execução, num estabelecimento prisional português, tal não precludiria – de acordo, aliás, com a fundamentação do seu recurso – o seu direito a uma eventual contestação do trânsito em julgado da decisão, como ensaiou, desde já, neste recurso, circunstância que em muito dificultaria a exequibilidade de tal condenação no nosso País.
Mas nem isso seria decisivo impedimento a que tal sucedesse.
O que torna inviável aceitar a sua pretensão é o facto de os tribunais do Estado de execução não poderem interferir no regime de admissibilidade de meios impugnatórios ordinários ou extraordinários existentes no ordenamento processual do Estado emitente, relativamente à decisão cujo trânsito em julgado (definitividade?) o requerido questiona.
É de todo em todo conveniente que os meios impugnatórios virtualmente idóneos a invalidar a decisão condenatória sejam efetivados no processo onde tem origem o MDE – no qual se verificou a sua condenação –, e não, como é óbvio, no processo que corre no tribunal competente do Estado requerido para efeito de execução daquele MDE, ou seja, nestes autos.
Por isso, em rigor, os tribunais nacionais careceriam de competência absoluta para conhecer do respetivo objeto. E, caso fosse desencadeado o pedido de reconhecimento e execução de tal decisão condenatória, a sua eventual revisão apenas poderia ser decidida pelo (tribunal competente do) Estado de emissão (cfr. art. 4.º, n.º 2 da Lei n.º 158/2015, de 17-09).
Afirmando que a decisão condenatória não teria transitado em julgado, o requerido vem, assim, arguir de inconstitucional, por violação do direito ao recurso (art. 32.º, n.º 1 da CRP) a interpretação normativa do disposto no art. 3.º, n.º 1, al. f) da Lei n.º 65/2003, feita no acórdão recorrido.
Este preceito tem o seguinte teor:
«1 - O mandado de detenção europeu contém as seguintes informações, apresentadas em conformidade com o formulário em anexo:
(…);
f) Pena proferida, caso se trate de uma sentença transitada em julgado, ou a medida da pena prevista pela lei do Estado membro de emissão para essa infracção;»
Refere o requerido que:
«(…) o processo que deu origem a esta condenação, não está encerrado, porquanto poderão ser ainda interpostos diversos recursos, nomeadamente para o Superior Tribunal de Justiça, para o Tribunal Constitucional, bem como ainda para o TEDH.» (ponto 146.º da motivação);
«Na verdade, o oponente pretende impugnar a decisão em crise, invocando razões válidas e objetivas sobre a desconformidade, nomeadamente da prova produzida, da discrepância de acontecimentos identificados nos autos, ausência de direitos processuais elementares, e sobre o qual espera aguardar resposta favorável e, portanto, passível de uma alteração dos factos, quiçá, da medida da pena» (ponto 147.º).
«No entanto e com esta realidade, o oponente encontra-se a aguardar a sua oportunidade, como se disse, para aferir a possibilidade de novos recursos, ou julgamento, nos termos supra referidos, pois pretende ver esgotados todos os procedimentos, consolidando-se a decisão emitida ou, na alternativa, aguarde o resultado do novo julgamento ou decisão. Tal iria forçosamente, afetar a força executiva da decisão que constitui o fundamento do mandado de detenção europeu» (ponto 151.º).
«Coloca-se, assim, a questão de se ter por assente se esta decisão é definitiva, ou se, ao invés, a mesma ainda corre os seus termos por aplicação de eventuais efeitos suspensivos atribuídos a esses recursos;» (ponto 154.º).
«É, assim, inconstitucional a interpretação normativa da alínea f) do artigo 3º da lei 65/2003, de 23 de Agosto, no sentido de se considerar como transitada em julgado uma sentença penal estrangeira, quando ainda substituem dois graus de recurso nos tribunais de origem, sem apuramento prévio dos efeitos que lhes podem ser atribuídos, por violação do disposto do art.º 32º, nº 1, segunda parte da CRP, mais concretamente por violação das garantias de defesa do arguido ínsitas a este normativo;» (ponto 160.º).
Toda esta argumentação desconsidera, contudo, a configuração do sistema de organização e funcionamento do MDE, inaugurado com a Decisão-quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, nomeadamente no tocante aos princípios do reconhecimento mútuo e da reciprocidade e da suficiência do MDE.
Todos os putativos direitos (de impugnação da decisão condenatória) que o requerido invoca terão de ser exercitados nos tribunais do Estado de emissão, donde é nacional.
Sabemos, por outro lado, que há sistemas processuais que admitem a execução de decisões condenatórias, desde que haja “dupla conforme” em duas instâncias, mas não haja ainda trânsito em julgado; pode haver exequibilidade de decisões condenatórias penais (de penas prisão) sem haver trânsito em julgado das mesmas. Ignoramos, na verdade, se tal é o caso da República Checa. Daí que o art. 8.º, n.º 1, al. c), da Decisão-quadro 2002/584/JAI, do Conselho contenha a expressão «(…) existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva»2. O que é reproduzido no art. 3.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 65/2003: «Indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva».
Conforme se refere no Manual sobre a Emissão e a Execução de um Mandado de Detenção Europeu, divulgado pela Comissão em 17.11.2023 C (2023) 7782 final (C/2023/1270):
«Quando o MDE for emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, deve existir uma decisão nacional com força executiva para esse efeito. Em alguns sistemas jurídicos dos Estados-Membros, pode ser emitido um MDE para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade mesmo que a pena ainda não seja definitiva e esteja sujeita ao controlo jurisdicional. Nos sistemas jurídicos de outros Estados-Membros, este tipo de MDE só pode ser emitido quando a pena ou medida de segurança privativas de liberdade for definitiva. Recomenda-se que a autoridade judiciária de execução reconheça, para efeitos de cumprimento do MDE, a qualificação aplicada pela autoridade judiciária de emissão, mesmo que não corresponda à qualificação do seu próprio sistema jurídico a este respeito» (JOUE, Série C, 15-12-2023, p. 15; acessível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=OJ:C_202301270).
Aos tribunais do Estado de execução está, pois, vedado sindicarem com base na classificação de cada Estado-Membro, a natureza de exequibilidade ou definitividade da decisão a cumprir, face a informações inequívocas do formulário do MDE a tal respeito.
O MDE em presença refere que a decisão a que se pretende dar execução é a «Sentença final e vinculativa de 17.6.2021».
Saber se tal decisão transitou em julgado – à luz do conceito vigente entre nós (art. 628.º do CPC) – ou se a mesma goza de exequibilidade é, no caso, indiferente, face ao sistema vigente de funcionamento e organização do MDE, emergente da Decisão-quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de junho de 2002 e da Lei n.º 65/2003.
Ao Estado de execução não cabe escrutinar o pedido de MDE com base em dúvidas de tal natureza.
Cabendo, agora, apreciar da justeza, ou não, da invocação da inconstitucionalidade da interpretação normativa feita na decisão recorrida emergente do disposto no art. 3.º, n.º 1, al. f), da Lei n.º 65/2003, por violação do art. 32.º, n.º 1, II.ª Parte, da CRP, mais concretamente por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, importa dizer que corresponde ao nosso sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade a característica de normatividade.
No acórdão recorrido, expendeu-se a seguinte fundamentação, para exautorar a já então invocada inconstitucionalidade:
«(…) não se verificando qualquer pressuposto de recusa de execução do mandado de detenção europeu, e nomeadamente o previsto no art.º 12º, nº 1, al. g), da Lei nº 65/2003, de 23/08, irá ser negado provimento à oposição deduzida pelo requerido, determinando-se a execução do MDE com a entrega do requerido às autoridades judiciárias da República Checa. Ficando, por outro lado, prejudicada a apreciação dos problemas de saúde do requerido, nomeadamente a doença de Alzheimer de que poderá padecer, mas cujos efeitos incapacitantes, em todo o caso, não foi dado verificar na audição presencial efetuada, ou as demais questões suscitadas em torno de uma pretendida revisão e confirmação de sentença estrangeira, porquanto as primeiras são questões que deverão ser suscitadas no âmbito da execução da pena que vier a ter lugar no país requerente, e as segundas, como meridianamente resulta do art.º 12º, nºs 3 e 4, da Lei nº 65/2003, só seriam suscitáveis perante este Tribunal no caso de haver fundamento para a recusa de execução do MDE, que, como vimos supra, não existe. Assim como as questões que possam ser suscitadas relativamente à regularidade do processo que levou à condenação por sentença transitada em julgado, também apenas no país requerente poderão ser levantadas, porquanto estão fora dos poderes de apreciação estabelecidos no âmbito da execução do MDE, não se olvidando ainda que o requerido as convoca com base em hipotéticas considerações jurídico-processuais, produzidas por advogado que em sua representação interveio no respetivo processo ou que as produz no próprio interesse do requerido. Sendo também por isso que, dado a sentença ir ser executada no país emissor do MDE, e ter a mesma transitado em julgado, não vislumbramos qualquer fundamento para se poder afirmar, como faz o recorrente, que a norma do art.º 3º, al. f), da Lei 65/2003, é inconstitucional, por violação do disposto no art.ºs 32º, nº 1, da CRP, alegando para tal haver ainda lugar a dois graus de recurso nos tribunais da origem, argumentação que é contraditória ao que resulta da documentação juta aos autos, segundo a qual aquela sentença já transitou em julgado. E uma qualquer possibilidade abstrata de interposição [de] recurso extraordinário da mesma só poderá ser analisada nos tribunais do país de emissão, à luz da respetiva lei, incluindo a lei constitucional.»
Afigura-se-nos correto este entendimento.
Além de nos parecer não ser invocada inconstitucionalidade com suficiente densidade normativa – uma vez que não é enunciado o modo pelo qual a interpretação normativa identificada vulnera o direito fundamental previsto no art. 32.º, n.º 1, II.ª Parte da CRP –, ainda que o fosse, importará atentar que o regime de execução do MDE está dotado de características de celeridade e de eficiência, o que comporta também uma dimensão garantística dos direitos e prerrogativas processuais dos visados. Na verdade, para além de (os tribunais d)o Estado de execução apreciarem a validade formal do MDE, o facto de o deverem fazer com celeridade e eficiência em favor dos requeridos, implica que possam ficar relativamente postergados algumas garantias que em termos convencionais se asseguram ao estatuto da defesa dos arguidos. Trata-se, pois, de um programa assumido pelos órgãos legiferantes da União Europeia, ao pretender garantir-se, em simultâneo, o amplo exercício de direitos ao requerido no Estado de emissão de MDE e ao “abreviar” o procedimento de entrega no Estado de execução.
Além disso, não pode ignorar-se que o modelo do MDE implicou a integral substituição do sistema de extradição, passando a ser um modelo mais simplificado e inteiramente jurisdicionalizado, assim se ultrapassando, ao nível da União Europeia, a matéria anteriormente regulada pelo regime da extradição, que contempla ainda uma fase preliminar político-administrativa.
Não há, por isso, qualquer desproporcionalidade nem postergação de direitos fundamentais de defesa em processo penal, nem do direito ao recurso, prerrogativas de que o requerido continua(rá) a gozar no Estado de emissão.
Por isso, a circunstância de o tribunal do Estado de execução considerar bastante a informação de que se trata de «Sentença final e vinculativa de 17.6.2021», para considerar satisfeita a condição de entrega da pessoa procurada da alínea f) do n.º 1 do art. 3.º da Lei n.º 65/2003 («sentença transitada em julgado») no formulário do MDE, quando no Estado de emissão do MDE a decisão possa ser ainda suscetível de impugnação, não se mostra desrazoável, antes encontra claro fundamento no sistema normativo de organização e funcionamento do mecanismo do MDE, que, como se procurou demonstrar, alcança de forma exemplar o equilíbrio entre garantias de defesa e eficiência, tratando-se do caso de maior sucesso no quadro cooperação judiciária da União Europeia em matéria penal.
Em suma, ainda que se admitisse que a invocada inconstitucionalidade da interpretação normativa que emerge do art. 3.º, n.º 1, al. f) da Lei n.º 65/2003 se acha adequadamente suscitada, a solução normativa que se extraiu de tal preceito no acórdão recorrido não vulnera o direito ao recurso, previsto no art. 32.º, n.º 1 da CRP e não é desrazoável, arbitrária, desproporcional, infundada ou violadora de qualquer outro princípio ou parâmetro constitucional, antes se contendo na esfera de conformidade constitucional dentro de uma ponderação de concordância prática de interesses.
Também nesta parte se entende julgar improcedente a pretensão do recorrente.
Enfim, tendo em conta tudo o que se expôs, concluímos pela inexistência de motivos que invalidassem o decidido no acórdão recorrido, pelo que se confirma o mesmo.
13. Por analogia com o disposto no artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto – tendo em conta a natureza e as finalidades do processo de execução do MDE, que substitui a extradição nas relações entre os Estados-Membros da União Europeia –, inexistindo norma idêntica na Lei n.º 65/2003, aplica-se aos presentes autos aquela disposição, sem prejuízo do disposto no art. 35.º deste último diploma, pelo que não se fixa qualquer responsabilidade tributária.
III. DECISÃO
Por tudo quanto se expôs, acordam os juízes Conselheiros das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso do requerido AA, assim se confirmando o decidido no acórdão recorrido.
Sem tributação.
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Notifique-se.
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Supremo Tribunal de Justiça, Lisboa, 29 de dezembro de 2023
Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo Relator, sendo eletronicamente assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos (art. 94.º, n.º 2 do CPP)
Os juízes Conselheiros (em turno de serviço urgente)
Jorge dos Reis Bravo (Relator)
Lopes da Mota (1.º adjunto)
Ernesto Vaz Pereira (2.º adjunto)
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1. Presume-se que pretenderia dizer-se «(…) quando ainda subsistem (…)».↩︎
2. Negrito nosso.↩︎