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CRIME DE ACESSO ILEGÍTIMO
CONCURSO REAL DE CRIMES
Sumário
I–A atuação voluntária do recorrente com vista à angariação dos fundos de que se apropriou arreda, desde logo, a integração da conduta no art. 209.º, do Cód. Penal, que pressupõe a entrada na posse ou detenção de coisa alheia por força natural, erro ou caso fortuito.
II–Tendo por assente que a diversidade de bens jurídicos protegidos será o critério determinante da distinção na unidade/pluralidade de infrações, estamos perante um caso de concurso real de crimes, não se reconduzindo, na totalidade, o desvalor da conduta de acesso ilegítimo ao meio vinculado da prática do crime de burla informática. (Sumário da responsabilidade da relatora)
Texto Integral
Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1– Relatório
1.1–Decisão recorrida
Por sentença de 16/06/2023, foi o arguido AA, filho de BB e de CC, natural de ..., nascido a .../.../1989, solteiro, residente em ..., condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, da Lei nº 109/2009, de 15/09, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa e de um crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6.º, nºs 1 e 3, da Lei nº 109/2009, de 15/09, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa.
Em cúmulo jurídico destas duas últimas penas, foi o arguido condenado na pena única de 330 (trezentos e trinta) dias de multa, à razão diária de 5.00€ (cinco euros), o que perfaz o valor total de 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros).
A pena de prisão aplicada foi suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses, sujeita tal suspensão, porém:
-ao pagamento, pelo arguido à ofendida DD, da quantia de 200 (duzentos euros), no prazo de seis meses após o trânsito em julgado desta decisão, devendo o arguido comprovar tal pagamento documentalmente nestes autos nesse prazo; e
-ao cumprimento, pelo arguido, de plano individual de readaptação social, em termos a definir pela DGRSP.
1.2–Recurso
Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o arguido, sustentando a existência de erro de julgamento e que os factos provados apenas podem convocar os elementos típicos do crime de apropriação ilegítima de coisa achada p. e p. no art. 209.º, n.º 1 e 2 do Cód. Penal. Ainda que assim não se entenda, advoga a existência de concurso aparente entre o crime de acesso ilegítimo e o de burla informática e que as penas aplicadas se revelam excessivas, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
«1.–O arguido considera que foram incorrectamente julgados como provados os factos constantes dos pontos a, b, c, f, h, i, j, k. 2.–O arguido não prestou declarações (no rigor, não compareceu em julgamento). 3.–A testemunha não identifica o individuo com quem contactou telefonicamente. 4.–Não foi produzida qualquer prova que permita firmar a conclusão que todas as indicações fornecidas à ofendida tiveram origem no arguido. 5.–No entanto, ficou demonstrado ter sido feita uma transferência para conta bancária titulada pelo arguido, montante que não lhe pertencia, mas que dele se apropriou, de forma consciente e intencional. 6.–Tal acção dolosa configura, na nossa perspectiva, os elementos típicos do crime de apropriação ilegítima de coisa achada, previsto e punido pelo artigo 209° n.° 1 e 2 do Código Penal. 7.–No caso vertente, tendo-se considerado provado que o arguido entrou na posse daquela quantia, a qual foi transferida para a sua conta, com o seu conhecimento, entendemos que se encontra preenchido o elemento objectivo do crime. 8.–Quanto ao elemento subjectivo, provou-se que o arguido sabia que a referida quantia não lhe pertencia e ainda assim decidiu apropriar-se dela, pelo que igualmente se encontra preenchido o elemento subjectivo. 9.–Uma vez que este ilícito reveste natureza semipublica, deverá ser ordenada a reabertura da audiência de julgamento para aferir junto da ofendida tal possibilidade.
Sem prescindir do exposto; 10.–Caso o nosso entendimento não tenha acolhimento junto de V. Exc., sempre se dirá que o crime de acesso ilegítimo funciona aqui como crime instrumental ou crime-meio, já que só é cometido para viabilizar o preenchimento do crime de burla informática, real intenção da parte do arguido, que pretende a movimentação ilegítima, por processos técnicos, de valores monetários, sendo por isso este último o crime principal ou crime-fim. 11.–De modo que parece de concluir estar-se perante um caso de concurso aparente entre os referidos tipos legais. 12.–O acesso ilegítimo foi utilizado unicamente como forma de alcançar a verdadeira intenção criminosa, que seria o locupletamento com dinheiro alheio. 13.–Quanto à medida das penas, sempre se dirá que as penas de multa parcelares cominadas, e bem assim, a pena única de 330 dias, se revelam excessivas, atentos os antecedentes criminais registados pelo arguido (um único averbamento e por ilícito diverso), e bem assim atenta a inserção profissional, familiar e social daquele. 14.–O mesmo se diga no que tange à pena de prisão de 1 ano e 4 meses suspensa na sua execução, que poderia e deveria coincidir com o mínimo legal.
Normas violadas:
Artigo 209°, 221° n.° 1 do Cód. Penal
Artigos 3° n.° 1 e 2, 6° n.° 1 e 3 da lei n.° 109/2009 de 15/09»
1.3-O recurso foi admitido, por tempestivo e legal, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo. 1.4-O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela respetiva improcedência. 1.5-Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, nos seguintes termos:
«(…).
3.2.1.-Sobre a impugnação da matéria de facto.
Analisados os fundamentos do recurso, bem como a fundamentação da douta sentença recorrida, acompanhamos a resposta da Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância no sentido da improcedência do recurso interposto pelo Arguido AA.
Assim, e o que respeita impugnação sobre a matéria de facto, há que referir que o recurso sobre a matéria de facto pode processar-se pela arguição de vício do texto da decisão, nos termos do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou através do recurso amplo ou efetivo em matéria de facto, previsto no art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do Código de Processo Penal.
Ora, pretendendo o Arguido AA sindicar a valorização dos meios de prova efetuada pelo tribunal recorrido, encontramo-nos no âmbito do recurso amplo da matéria de facto, a que alude o art. 412.º do Código de Processo Penal.
O Recorrente ao impugnar expressamente parte da matéria de facto dada como provada, como impugnou, tem que especificar, sob pena de rejeição:
- Os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e
- As provas que devem ser renovadas (art. 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
E quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efetuar-se por referência ao consignado em ata (quanto ao meio de prova registado, seu início e termo), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).
Ora, o Arguido AA impugna expressamente a matéria de facto dada provada, indicando os pontos de facto da sentença recorrida que considera incorretamente julgados, no entanto não indicou qualquer prova produzida que tenha a virtualidade de impor, claramente, decisão diversa em relação aos mencionados factos pontos de facto, na medida em que indicou apenas segmentos parciais de depoimentos.
Aliás, e sempre com o salvo e devido muito respeito, o Arguido AA limita-se a divergir subjectiva e genericamente na avaliação da prova produzida com recurso a uma argumentação de valoração apoiada em apelos de vida pessoal e não apoiada em elementos de prova concretamente impositiva de sentido contrário à decidida pelo tribunal recorrido.
Porém, o Tribunal que julga em primeira instância, goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, nada obstando a que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade.
Ora, a questão fundamental é que o tribunal recorrido adquiriu a convicção firme sobre o facto e fundamentou o juízo crítico sobre a prova em que suportou tal convicção de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
A ser assim, no exame crítico levado a efeito o Tribunal recorrido seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, tendo esta sido apreciada segundo as regras da experiência e da livre apreciação, nos termos do disposto no art. 127.º do Código de Processo penal.
Assim, entende-se que não deve haver lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto e, consequentemente, deve improceder a impugnação sobre a matéria de facto.
3.2.1.-Sobre a impugnação da matéria de direito.
3.2.1.1.-Do enquadramento jurídico criminal da matéria de facto provada.
O enquadramento jurídico criminal dos factos gizado pelo tribunal mostra-se correto, impondo-se mantê-lo.
3.2.1.2.-Do eventual concurso aparente de crimes.
Atendendo ao critério do bem jurídico tutelado a ponderar para efeitos de aferir da existência de uma situação de concurso efectivo ou aparente entre normas incriminadoras, constata-se que o bem jurídico protegido no crime de acesso ilegítimo é a segurança do sistema e rede informáticos, no crime de falsidade informática é a integridade dos sistemas informáticos que se visa proteger, impedindo a prática de actos dirigidos contra a confidencialidade, fidedignidade e disponibilidade de sistemas, redes e dados informáticos, e também a sua utilização fraudulenta e no crime de burla informática e nas comunicações é a integridade do património de outrem.
A ser assim, e face à diversidade dos bens jurídicos tutelados, no caso em apreço existe uma situação de concurso efetivo.
3.2.1.3.-Da medida concreta da pena.
As penas parcelares e a pena única de multa, bem como a pena de prisão, mostram-se justas, corretas, adequadas e proporcionais.
*
Pelo exposto, e sempre com o salvo e devido respeito por diferente entendimento, somos do parecer de que o Recurso interposto pelo Arguido AA deve ser julgado improcedente e, consequentemente, deve manter-se a sentença recorrida.»
1.6-Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não tendo o arguido apresentado resposta.
1.7-Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
2.–Questões a decidir no recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 379.º, 403.º, 410.º e 412.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal e AUJ n.º 7/95, de 19/10/95, in D.R. 28/12/1995).
Atendendo às conclusões apresentadas, e não se detetando outras questões de conhecimento oficioso, cumpre conhecer:
- Do recurso da matéria de facto;
- Do enquadramento legal da conduta típica.
- Dosimetria penal.
*
3.–Da Decisão Recorrida
É o seguinte, o juízo de facto do Tribunal a quo:
«a)-No dia ... de ... de 2020, por volta das 14h00, o arguido contactou telefonicamente DD, afirmando estar interessado em comprar a cama que a mesma havia posto à venda na plataforma ..., minutos antes. b)-No decurso da chamada, concordaram na realização do negócio pelo valor de 200,00 (duzentos euros), tendo depois o arguido solicitado a DD o número do seu cartão bancário, associado à conta com o ..., bem como códigos de acesso relativos a tal cartão e conta, afirmando que necessitava de tais informações para proceder à transferência do dinheiro relativo à compra da cama. c)-Após a ofendida lhe indicar os respetivos dados, o arguido utilizou-os, sem o conhecimento e consentimento daquela e, de modo não apurado, acedeu ao serviço de homebanking associado ao cartão bancário daquela e fez várias transferências para duas outras contas, com os NIB ... e ..., às quais o arguido tinha acesso, num valor total de 380,00 €. d)-A conta com o NIB ... era co-titulada por EE e pela sua filha, menor de idade, FF. e)-A conta com o NIB ... era titulada pelo arguido. f)-Em virtude das ordens de transferência acima indicadas, o arguido recebeu na sua conta o valor total de 200,00 (duzentos euros). g)-As transferências ordenadas pelo arguido para a conta bancária co-titulada por EE e pela sua filha ascenderam ao valor total de 180,00 € (cento e oitenta euros). h)-Antes de desligar a chamada, o arguido disse á ofendida: “Obrigado! Acabou de ser roubada!”. i)-Ao actuar da forma descrita, e mesmo sabendo que não tinha autorização para tal, o arguido não se coibiu de iniciar sessão no serviço de homebanking associado à conta bancária de que a ofendida era titular, fazendo uso dos códigos que a mesma lhe forneceu, assim ordenando a transferência de diversas quantias monetárias para outras contas, com o objetivo último de as fazer suas, o que logrou concretizar face ao valor de 200,00€ (duzentos euros), bem sabendo que tais quantias não lhe pertenciam e que tal actuação iria causar prejuízo patrimonial à ofendida, proprietária de tais valores, como causou. j)-O arguido actuou de forma voluntária, bem sabendo que, ao entrar no serviço homebanking da ofendida, ordenando a realização de diversas transferências, o sistema iria assumir que tais ordens eram emitidas pela titular da conta, realizando, assim, as operações bancárias determinadas pelo arguido. k)-Não obstante saber que as suas condutas não eram permitidas e eram punidas por lei, tal facto não impediu o arguido de as praticar, agindo de forma livre, deliberada e consciente. l)-O arguido possui uma condenação criminal registada, tendo sido condenado, por sentença transitada em julgado em .../.../2022, pela prática, em .../.../2019, de um crime de receptação, na pena de 190 dias de multa.
2.2.–Factos não provados
Não há.
2.3–Motivação da decisão de facto
Genericamente, a convicção do Tribunal sobre a matéria de facto dada como provada alicerçou-se no teor da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento e na prova documental junta aos autos, apreciados tais elementos de modo conjugado, criticamente e à luz das regras de experiência comum.
Assim, do ponto de vista documental, o Tribunal teve em conta o teor do auto de denúncia de fls. 4, prints do anúncio publicado pela ofendida DD no ..., de fls. 9 a 11, registo de movimentos bancários realizados na conta de DD, de fls. 12 a fls. 13 a 21 e a fls. 26 v. e 27, informação quanto aos titulares da conta de destino com o NIB ... e respectivos dados de identificação, nomes das pessoas autorizadas a movimentar tais contas e extratos bancários relativos ao mês de ..., de fls. 66 a 89, informação quanto aos titulares da conta de destino com o NIB ... e respectivos dados de identificação, nomes das pessoas autorizadas a movimentar tais contas e extratos bancários relativos ao mês de ..., de fls. 91 a 93 e 151 a 153 e registo de movimentos bancários realizados através da conta bancária com o NIB ..., de fls. 52.
Aliás, tal documentação, nomeadamente os referidos registos de movimentos bancários, evidenciou a existência de registos de transferências da quantia total de dinheiro referida nos factos provados de uma conta bancária pertença da ofendida para uma conta bancária pertença do arguido e outra pertença de terceiro, bem como os levantamentos que o arguido realizou em seguida na sua própria conta.
Ademais, perante o depoimento espontâneo, coerente e suficientemente detalhado da ofendida DD e que mereceu a credibilidade do Tribunal, verificou-se ainda que tais transferências ocorreram sem o seu conhecimento ou consentimento.
Tal testemunha relatou ainda que foi na sequência de conversa telefónica mantida com um homem que lhe telefonou manifestando interesse na aquisição da cama que a declarante tinha colocado para venda no site ..., que tal pessoa, a dado momento, afirmou que pretendia adquiri-la de imediato, procedendo ao pagamento da quantia acordada através de aplicação informática bancária, cujo modo de funcionamento a ofendida desconhecia, circunstância que informou àquele, após o que foi recebendo deste instruções sobre como proceder, tendo, a dado momento, fornecidos vários elementos de identificação da sua conta e cartão bancários, no que pode ter incluído códigos de acesso ao sistema homebanking de tal conta.
Assim, e mediante as instruções que ia recebendo, bem como face às informações que lhe eram solicitadas, a ofendida foi respondendo ao seu interlocutor e, sem se aperceber do que ocorria, apenas já no final do telefonema, foi-lhe dito pelo mencionado indivíduo que tinha acabado de ser “roubada”, então constatando que já tinham ocorrido as transferências de dinheiro descritas na acusação sobre uma conta de que a ofendida era titular.
Ora, considerando tal depoimento, de resto confirmado, no essencial, pela mãe da ofendida, GG, bem como a supra referida documentação, nomeadamente de fls. 45 e segs. e 66 a 89, mostrou-se indubitável o modo como ocorreu o acesso à conta bancária da ofendida e que o arguido era o único titular de uma das contas bancárias beneficiária das aludidas transferências.
De resto, mostrou-se ainda que uma outra conta bancária beneficiária de parte de tais transferências, no valor de 180,00€, era pertença de FF, então menor de idade, estando por isso co-titulada pela sua mãe, EE, tendo as mesmas sido alvo de uma abordagem semelhante relativamente a um instrumento de música que a primeira tinha colocado à venda no site ..., sendo certo que se mostrou desconhecerem a ocorrência da aludida transferência na mencionada conta, bem como o modo como ocorreu.
Com efeito, tal resultou dos depoimentos prestados pelas próprias, que foram prestados de modo que se reputou espontâneo, coerente e objectivo, merecendo a credibilidade do Tribunal, denotando-se ainda, face à documentação de fls. 91 a 93 e 151 a 153, que a conta por si co-titulada recebeu quantias provenientes da conta bancária da ofendida no próprio dia .../.../2020, mostrando-se seguro ao Tribunal que a respectiva autoria foi do arguido, atenta as regras da experiência e da lógica, patenteando-se que este, além da sua conta bancária, utilizava contas pertença de terceiros para melhor “camuflar” a circulação dos proventos da sua actividade ilícita.
Em suma, perante tal contexto probatório, o Tribunal formou a convicção segura de que os factos ocorreram com a dimensão histórica dada como provada e que foram cometidos pelo aqui arguido.
Quanto ao antecedente criminal do arguido, o Tribunal socorreu-se do certificado de registo criminal junto aos autos.»
*
4.–Fundamentação
4.1-Recurso da matéria de facto - Art. 412.º, ns. 3, 4 e 6 do Cód. Processo Penal
Apela o recorrente ao erro de julgamento da matéria de facto, que ocorre quando o tribunal considera como provado determinado facto, sem que o mesmo tenha sido objeto de comprovação na audiência de julgamento ou dá por não provado facto que, perante a prova produzida, deveria ter sido considerado como provado. Trata-se de erro no processo de valoração da prova por parte do Tribunal.
De acordo com o art. 428.º do Cód. Processo Penal, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, mas os seus poderes de cognição são limitados. Permitindo o recurso a verificação e fiscalização, por parte de um tribunal superior, de eventuais erros na decisão da matéria de facto, tal não equivale a um novo julgamento do objeto do processo.
Por isso se considera que a reapreciação, com vista a detetar erros de julgamento de facto, é limitada aos pontos de facto concretos que o recorrente considera julgados de forma incorreta e às razões concretas invocadas para sustentar essa discordância.
O mecanismo de impugnação da matéria de facto aqui previsto visa corrigir erros manifestos, ostensivos de julgamento, por apelo à prova produzida e que se extraíam do registo da mesma, não legitimando a repetição do julgamento pelo tribunal ad quem.
O tribunal de recurso, ao apreciar os fundamentos da impugnação da matéria de facto, deve verificar se o tribunal de 1ª instância apreciou os meios de prova de acordo com as regras de experiência comum, não retirando deles conclusões ilógicas, irrazoáveis, sem sentido ou contrárias à lei. E, fora destes casos, deve respeitar a livre convicção do tribunal recorrido, em obediência ao princípio expresso no art. 127º, do Cód. Processo Penal.
“Isto significa que o Tribunal de recurso não pode sindicar certos meios de prova quando para a credibilidade do testemunho foi relevante o funcionamento do princípio da imediação, embora possa controlar a convicção do julgador da primeira instância quando ela se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos (…) Assim, a determinação da credibilidade como segmento do âmbito estritamente do juiz de primeira instância está condicionada pela aplicação de regras da experiência que tem de ser válidas, e legítimas, dentro de um determinado contexto histórico e jurídico»1.
O art. 127.º do Cód. Processo Penal, complementado com o art. 374.º, n.º 2 do mesmo diploma, impõe limites à discricionariedade, uma vez que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador: o ato de julgar está delimitado pelas regras da experiência comum e pela lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, impondo que se extraía das provas um convencimento lógico e motivado.
Porque o art. 374º, nº 2 do Cód. de Processo Penal exige o “exame crítico das provas” é que o tribunal deve fundamentar a decisão em operações intelectuais que permitam explicar a razão das opções e da convicção do julgador, a sua lógica e raciocínio e deve observar as normas processuais relativas à prova, segundo o aludido princípio geral da livre apreciação, mas respeitando as proibições de prova (arts. 125.º e 126.º do Cód. de Processo Penal), as nulidades de prova, as regras de valoração de alguns tipos de prova como a testemunhal (arts 129.º e 130.º do Cód. de Processo Penal) pericial (art. 163.º do Cód. de Processo Penal) e a documental (167.º a 170.º do Cód. de Processo Penal).
Em suma, no recurso cumpre verificar a prova e o respetivo processo de aquisição probatória, nomeadamente a observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação e contraditório, mas privilegiando-se a valoração da prova efetuada pela 1.ª instância.
Na génese do art. 412.º, n.º3, al.b), do Cód. Processo Penal, não basta que se apure a possibilidade de ocorrência de uma versão distinta. A imposição de decisão diversa, em que a norma se sustenta, implica que a decisão de facto recorrida está errada, que se mostra impossível ou é destituída de toda e qualquer lógica ou razoabilidade (de acordo com as regras de experiência comum), que o tribunal recorrido fez uso de meios de prova não idóneos ou que existem contradições nas provas produzidas, que levaram à formação de uma convicção inaceitável e que, por isso, não se poderá manter.
O conhecimento dos factos por parte do Tribunal Superior é, como referimos, limitado, apenas podendo introduzir alterações quando exista erro manifesto ou a audição dos registos de prova permita, com toda a segurança, afirmar que foram violadas as regras da experiência comum, não estando em posição de sindicar convenientemente as convicções do tribunal recorrido no que respeita à prova oral produzida.
E a diferente valoração do recorrente quanto à prova produzida também não sustenta a existência de erro de julgamento.
Na presente situação, analisadas as alegações de recurso, verificamos que o recorrente não cumpriu devidamente o ónus de especificação. Ainda que se possa entender que indicou os concretos pontos de facto que, em seu entender, estão incorretamente julgados (pontos a, b, c, f, h, i, j e k), no que se refere aos meios de prova suscetíveis de impor decisão diversa, limita-se a sustentar a ausência de prova e apelar ao depoimento da ofendida, mas sem o transcrever ou indicar o concreto segmento daquele que imponha decisão distinta da prolatada e sem estabelecer qualquer relação entre o conteúdo específico de cada meio de prova, ou conjugação de meios de prova, e o facto individualizado que considera incorretamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente.
Mas, nem na motivação de recurso (corpo da mesma), nem nas respetivas conclusões, o recorrente estabelece a relação entre os concretos segmentos dos depoimentos e o específico ponto ou pontos de facto provados que, por este meio, almeja alterar, para além do que resulta do diferendo quanto à convicção do Tribunal a quo.
Na verdade, o recorrente, limita-se a convocar globalmente elementos de prova e questiona, com base nos mesmos, a convicção alcançada pelo Tribunal, suportando-se na desvalorização dos meios de prova, indireta, em que a decisão recorrida, expressamente, fundou a respetiva convicção.
Não sendo meio de prova proibido por lei, pode (e deve) o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados, sendo esse (o da prova indireta) um mecanismo recorrente na formação da convicção judiciária.
Sabendo-se que, com frequência, a prova dos factos não é direta, cabendo ao Tribunal explicar o motivo pelo qual dos factos diretamente provados extrai por ilação, a prova dos demais (o que foi feito), não pode a alegação de erro de julgamento sustentar-se na mera existência da apontada ausência de constatação direta dos factos. Exige-se mais.
É que não sendo o recurso um novo julgamento, mas um mero instrumento processual de correção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada pelo recorrente, é patente a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum, imporem diversa decisão (cfr. acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 25.01.20222).
Não tendo o recorrente cumprido (nas conclusões ou sequer no corpo da motivação) o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado, não pode este Tribunal da Relação conhecer, nesta parte, do respetivo recurso, não se justificando qualquer convite para aperfeiçoamento, pois trata-se de uma deficiência da estrutura da motivação, equivalente a uma falta de motivação na plenitude dos seus fundamentos. O convite ao aperfeiçoamento equivaleria, na verdade, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso – neste sentido, cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.20043 e os acórdãos do Tribunal Constitucional nos 259/2002, 140/2004 e 660/20144.
Não obstante, o que realmente resulta, desde logo, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal alcançou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma, consagrado no artigo 127.º do Cód. de Processo Penal.
Mas o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.
Ao tribunal superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respetiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas, para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica) na decisão da primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do artigo 431.º do Cód. de Processo Penal.
Como podemos ver da transcrição da sentença condenatória, resultam as razões que determinaram o juízo probatório do Tribunal a quo, nomeadamente a prova que levou à convicção quanto à autoria dos factos que é, na verdade, o que o recorrente contesta.
O recorrente não concorda e tem outra leitura.
Não obstante, a convicção do recorrente, não se sobrepõe à do julgador.
As conclusões do Tribunal a quo relativas à matéria de facto estão em consonância com a prova produzida. A convicção assentou, essencialmente, nas declarações da ofendida e na prova documental junta aos autos, de onde se extrai a concordância das movimentações bancárias, com o depósito das quantias indevidamente retiradas da conta bancária da ofendida e transferidas para conta do arguido e de terceiro.
A impugnação apresentada pelo recorrente não cumpriu o que se lhe exigia – que fundamentasse a imperiosa existência de erro de julgamento (que nem invocou validamente), desconstruindo a argumentação expendida pelo julgador -, limitando-se, na verdade, a aportar ao processo aquela que é a sua versão dos acontecimentos, não demonstrando, com argumentos, a verificação de qualquer erro judiciário.
No fundo, o recorrente critica a valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido, pretendendo fazer valer uma perspetiva diferente da mesma, a sua versão dos factos, o que não se reconduz a uma real impugnação da matéria de facto.
E observada a decisão recorrida, verificamos que o Tribunal a quo, de forma que não nos merece reparo, demonstrou o processo do seu convencimento, indicando os meios probatórios e os motivos por que foram esses meios determinantes para a sua convicção, fazendo-o em conformidade com as boas regras de apreciação da prova.
Temos, pois, que a conjugação de todos os elementos probatórios recolhidos e devidamente explicitados na decisão do Tribunal a quo permite inferências suficientemente seguras no sentido da matéria dada como provada, não se vislumbrando qualquer razão de sentido divergente que justifique, e muito menos que imponha, solução diferente daquela a que chegou o Tribunal recorrido.
Pretende o recorrente, que vingue a sua visão pessoal sobre a prova produzida, quando a convicção prevalecente, se alcançada com isenção e imparcialidade na avaliação do conjunto da prova que perante ele é produzida, é a do Tribunal.
E assim é pois o Tribunal recorrido, que está numa posição de imparcialidade, teve contacto imediato com a ofendida e testemunhas, de onde extraiu um sem número de impressões, que transpôs para a motivação da respetiva convicção, onde não só se elencaram as provas reputadas relevantes, como, também, se procedeu ao seu exame crítico, explicitando-se, ainda, o processo de formação da convicção, tecendo considerações sobre a credibilidade a conferir aos depoimentos.
Não se vislumbra qualquer falha de lógica na convicção do tribunal a quo nem violação das regras da experiência: os factos provados e não provados não conflituam entre si, nem com a motivação e com a decisão e são bastantes para fundamentar a qualificação jurídica dos factos e a decisão e a motivação aparece na sequência lógica da factualidade provada e não provada, clarificando e esclarecendo a convicção do Tribunal de acordo com as regras da experiência.
A sentença proferida pelo Tribunal a quo assenta em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova, sendo a versão dada como provada plenamente plausível, face às provas em análise, não revelando ter havido qualquer arbítrio, ou discricionariedade na sua apreciação, nem atentado contra a lógica, ou as regras da experiência comum.
Resta, por isso, considerar, nesta parte, improcedente o recurso, tomando como assente a matéria de facto provada.
4.2–Do enquadramento legal da conduta típica.
Sustenta o recorrente que a sua conduta é suscetível de preencher, apenas, o tipo legal previsto no art. 209.º, n.º 1 e 2 do Cód. Penal.
Caso assim não se entenda, invoca a existência de uma relação de concurso aparente entre os crimes de acesso ilegítimo e de burla informática, tendo o primeiro sido instrumental do segundo.
O Tribunal recorrido sustentou o enquadramento típico das condutas provadas nos seguintes moldes:
«3.1.-Quanto ao crime de burla informática
Vem o arguido acusada, além do mais, como autor material, na forma consumada, da prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221º, nº 1, do C. Penal.
Estabelece o n º 1 de tal normativo que, “ Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizado no processamento, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.” .
Por outro lado, dispõe o nº 3 de tal preceito legal, que a tentativa é punível.
Verifica-se, assim, que, no que respeita ao bem jurídico protegido, o tipo consubstancia um crime contra o património.
Trata-se de um crime de dano cuja consumação depende da efectiva ocorrência de um prejuízo patrimonial, só se consumando com a saída dos bens e valores da esfera da disponibilidade da vítima.
Como refere ALEMIDA COSTA, in Comentário Conimbricense do Código penal Vol. II, p. 329, o crime de burla informática consubstancia um crime de execução vinculada, mas essa natureza restringe-se à exigência de que a lesão do património se produza através da utilização de meios informáticos, porquanto a referência a “qualquer outro modo não autorizado no processamento”, constante da parte final do nº 1 do preceito, constitui uma cláusula geral que confere à enumeração um carácter meramente exemplificativo.
Deste modo, a burla informática realiza-se num atentado directo ao património, num “(…) num processo executivo que não contempla, de permeio, a intervenção de outra pessoa (…) (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de Maio de 2002, disponível in www.dgsi.pt) e, como tal, não comporta um duplo nexo de imputação causal como acontece no crime de burla.
Verificando-se a utilização de meios informáticos, bastará para que estejamos perante este tipo de ilícito que o agente produza um dano material mediante interferência directa num sistema ou dado informático.
No que respeita ao tipo subjectivo do ilícito temos que, o crime de burla informática é um crime doloso, em que se exige que o agente actue com a intenção de obter para si ou para outrem, um enriquecimento ilegítimo, não se exigindo, no entanto, a efectiva verificação do benefício económico do agente ou de terceiro. Trata-se por isso de um delito de resultado cortado ou parcial.
No caso dos autos, atenta a factualidade dada como provada, resulta que a conta bancária da aqui ofendida foi alvo de um ataque cibernauta por parte do arguido, mediante a utilização de um ardil prévio tendente a obter daquela a informação atinente aos respectivos códigos secretos de acesso ao respectivo sistema de homebanking e ao meio de pagamento associado ao cartão bancário pertença da ofendida, reportado a uma conta bancária de que esta era titular e sobre a qual o arguido determinou a realização de operações de pagamento de quantias de que veio a beneficiar e de que se apropriou, pelo menos em parte.
Na verdade, o arguido logrou obter da ofendida os referidos códigos de acesso, ademais fazendo-se passar por pessoa genuinamente interessada na realização de um negócio de compra de uma cama que a ofendida tinha anunciado para venda, ou seja, criando o arguido a imagem artificial de que pretendia a realização de tal negócio, quando, na verdade, antes pretendia apoderar-se de quantias pertença da ofendida como fez, nas circunstâncias já descritas e dadas como provadas.
Mais se provou que, convencida da seriedade da proposta de compra do arguido e de que as solicitações que lhe fazia eram destinadas à concretização do negócio, a ofendida acedeu aos pedidos do arguido, transmitindo-lhe todos os dados que este solicitou.
E, na posse desses dados de acesso à conta bancária da ofendida, através da internet e conhecedor dos códigos que permitiram efectuar/validar transacções, o arguido, acedeu à referida conta bancária através do sistema homebanking, após o que, através dos aludidos códigos instruiu a realização de transferências bancárias num total de 380,00 para uma conta bancária de sua pertença.
Também conforme resultou provado, o arguido logrou locupletar-se com tais quantias pertenças da ofendida, sem o conhecimento e contra a vontade desta, o que fez de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.
Assim, dúvidas não existem que com tal conduta o arguido preencheu plenamente os elementos típicos do crime de burla informática por que vinha acusado, devendo ser punido pela sua prática.
3.2.–Quanto ao crime de falsidade informática
Dispõe o artigo 3º da Lei nº 109/2009, de 15/09, que: “1-Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias. 2-Quando as ações descritas no número anterior incidirem sobre os dados registados, incorporados ou respeitantes a qualquer dispositivo que permita o acesso a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado, a pena é de 1 a 5 anos de prisão. 3-Quem, atuando com intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo, para si ou para terceiro, usar documento produzido a partir de dados informáticos que foram objeto dos atos referidos no n.º 1 ou dispositivo no qual se encontrem registados, incorporados ou ao qual respeitem os dados objeto dos atos referidos no número anterior, é punido com as penas previstas num e noutro número, respetivamente. 4-Quem produzir, adquirir, importar, distribuir, vender ou detiver qualquer dispositivo, programa ou outros dados informáticos destinados à prática das ações previstas no n.° 2, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos. 5-Se os factos referidos nos números anteriores forem praticados por funcionário no exercício das suas funções, a pena é de prisão de 2 a 5 anos.”
Importa dizer que não é consensual a densificação do bem jurídico protegido com a incriminação em apreço, “(…) havendo quem entenda que é a integridade dos sistemas informáticos, pretendendo o legislador, por via desta incriminação, impedir a prática de actos que atentem contra a confidencialidade, a integridade e a disponibilidade dos sistemas informáticos e dos dados informáticos,bem como a utilização fraudulenta dos mesmos (…)”, como há quem considere estar em causa a “segurança nas transacções bancárias” ou “a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório (…), o que se deve à circunstância que de o crime de falsidade informática e o crime de falsificação de documento previsto e punido pelo art. 256.° do Código Penal serem de tal modo semelhantes (apenas se distinguindo quanto ao modus operandi, em que releva a execução pelo meio informático) pelo que se julga ser de admitir que o legislador visou assegurar a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório (onde se inclui a segurança nas transacções bancárias) embora (….) ainda que de forma meramente reflexa, acabe por tutelar também a integridade dos sistemas informáticos, integridade dos sistemas informáticos” (cfr. DUARTE NUNES, O Crime de Falsidade Informática , Julgar Online, Outubro de 2017, 7 e seguintes, in www.julgar.pt).
Quanto ao tipo objectivo do ilícito é integrado “pela introdução, modificação, apagamento ou supressão de dados informáticos ou por qualquer outra forma de interferência num tratamento informático de dados, de que resulte a produção de dados ou documentos não genuínos, consumando-se o crime apenas com a produção deste resultado”, sendo que, subjetivamente “o tipo legal supõe o dolo, sob qualquer das formas previstas no art. 14.° do Código Penal, exigindo, enquanto elemento subjectivo especial do tipo, a intenção de provocar engano nas relações jurídicas, bem como, relativamente à produção de dados ou documentos não genuínos, a particular intenção do agente de que tais dados ou documentos sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se fossem genuínos” - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/05/15, (disponível in www.dgsi.pt).
No caso dos autos, resultou demonstrado que o arguido introduziu dados informáticos associados à pessoa de outrem em sistema informático de dados, a saber códigos de acesso ao sistema de homebanking associados a um cartão e conta bancária pertença da ofendida, desse modo os convertendo em dados destituídos de genuinidade, para lograr apropriar-se de quantias alheias.
Com efeito, tais códigos de acesso, introduzidos no sistema informático, ficaram associados ao cartão bancário da ofendida, com desvirtuamento que permitiu aceder à respectiva conta bancária e executar as transferências que o arguido acabou por realizar para a sua conta bancária e uma conta bancária de terceiro.
Ademais, provou-se que o arguido estava ciente de que, com semelhante conduta, subvertia o tratamento de dados pessoais e identificativos, pretendendo fazer-se passar por outra pessoa, para que outros nisso acreditassem, sabedor de que aqueles dados não eram verdadeiros e não eram os seus, tratando-se de comportamento adequado a induzir em erro quem se julgasse em contacto com informações e conteúdos autênticos e fidedignos.
Como melhor se explica no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/05/2021 (disponível in www.dgsi.pt). “ (…)os dados informáticos mencionados no artigo 3° da Lei do Cibercrime (Lei nº 109/2009, de 15/09), são expressões gerais que descrevem características das entidades sobre as quais operam algoritmos. A palavra tem origem no latim datum (aquilo que se dá), uma informação que permite chegar ao conhecimento de algo ou deduzir as consequências legítimas de um facto, que serve de apoio. Estas expressões devem ser apresentadas de maneira a que possam ser tratadas por computador. Os dados por si só não constituem informação, a menos que esta surja do adequado processamento de dados. A Lei do Cibercrime define também o que são dados informáticos para efeitos jurídico-penais no seu art.° 2.° al.ª b), como qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob uma forma susceptível de processamento num sistema informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar uma função”.
Por conseguinte, in casu, constata-se que o arguido, através da ofendida, logrou a introduzir dados num sistema informático que criavam uma autenticação falsa e com vista a uma finalidade jurídica relevante: o reconhecimento pela entidade gestora de pagamentos bancários, no seu sistema informático, como pertencendo verdadeiramente ao utilizador do cartão bancário contratado e, em substituição deste, a possibilidade de realizar sendo reconhecido pelo sistema como legítimo todas as funções que a aplicação permite.
Ademais, provou-se ainda que o arguido actuou como o propósito concretizado de provocar um engano nas relações jurídicas, criando a convicção no sistema informático de pagamentos que o utilizador do sistema homebanking da ofendida era esta, sua utilizadora legítima, quando tal não ocorria, o que fez de modo livre, voluntário e consciente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
Em suma, a conduta do arguido preencheu plenamente os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em apreço e deve também ser condenado pela respectiva prática.
3.3.–Quanto ao crime de acesso ilegítimo
Dispõe o artigo 6°, n° 1, da referida Lei n° 109/2009, de 15/09, que “Quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de parte dele, de qualquer modo aceder a um sistema informático, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
E estatui o seu n° 2 que na mesma pena incorre quem “(…)ilegitimamente produzir, vender, distribuir ou por qualquer outra forma disseminar ou introduzir num ou mais sistemas informáticos dispositivos, programas, um conjunto executável de instruções, um código ou outros dados informáticos destinados a produzir as acções não autorizadas descritas no número anterior” prevendo o respectivo n° 3 que a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias se as acções descritas no número anterior se destinarem ao acesso para obtenção de dados registados, incorporados ou respeitantes a cartão de pagamento ou a qualquer outro dispositivo, corpóreo ou incorpóreo, que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento.
O tipo objectivo de ilícito preenche-se com o acesso do agente a sistema informático de qualquer modo, razão pela qual, no que tange à incriminação prevista no n° 1, se prescinde da utilização indevida de dados como o nome do utilizador, a palavra-passe, o código “PIN”, ou quaisquer outros mecanismos de segurança de acesso ao sistema.
Verificando-se essa usurpação relativamente a cartão, sistema ou meio de pagamento, a incriminação a observar é, diversamente, a plasmada no nº 3, referente ao tipo de crime agravado.
O acesso é reputado como ilegítimo sempre que o agente se move “num quadro não justificado, visando somente conhecer dados ou informações que não lhe estavam acessíveis [v.g., por via das suas funções profissionais ou prévia autorização do titular dos dados], agindo por motivos exclusivamente pessoais ou particulares,” dispensando o tipo subjetivo do ilícito “qualquer intenção específica (como seja o prejuízo ou a obtenção de benefício ilegítimo), ficando preenchido com o dolo genérico de intenção de aceder a sistema, sem consentimento do seu titular” - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/04/2021 (disponível in www.dgsi.pt).
Deste modo, torna-se legítimo concluir que o crime de acesso ilegítimo veio, no essencial cobrir a área do que se vem denominando de “hacking informático”, conceito sob o qual se agregavam “as condutas que se traduziam na mera entrada ou acesso a sistemas informáticos por «mero prazer» ou «gozo», em superar as medidas ou barreiras de segurança, isto é, sem qualquer falta de autorização para aceder a um sistema ou rede informáticos ou interceptar comunicações que se processam numa rede ou sistema informático “ -cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/03/2018 (disponível in www.dgsi.pt).
No caso, resultou demonstrado que o arguido, sem o consentimento da titular da conta bancária em questão, acedeu a um sistema informático, para o que usou códigos de acesso e, no âmbito desse acesso, fez uso de dados registados que lhe possibilitaram imiscuir-se em sistema de pagamento, nessa senda efectuando as transferências e fazendo seu um montante pecuniário que lhe não pertencia.
Na verdade, não apenas o arguido acedeu ao sistema informático que regula a movimentação de contas através da internet, como, para o efeito, fez uso de códigos de acesso da ofendida de forma a poder movimentar quantias monetárias pertença desta, criando a aparência de antes pertencerem ao arguido.
Mais se provou que o arguido se encontrava plenamente ciente de todos os contornos da actuação que protagonizou, representando, querendo e logrando o efeito gerado pelas suas condutas e que sabia proibidas e punidas por lei.
Assim, deve também ser condenado nesta parte.»
O recorrente pretende ver a sua conduta tipificada no art. 209.º ns 1 e 2 do Cód. Penal. Mas, perante a falência da impugnação dirigida à matéria de facto provada, é patente que não lhe assiste qualquer razão.
A atuação voluntária do recorrente com vista à angariação dos fundos de que se apropriou arreda, desde logo, a hipotética integração da conduta no apontado tipo legal, que pressupõe a entrada na posse ou detenção de coisa alheia por força natural, erro ou caso fortuito.
Sustenta, ainda o recorrente a existência de uma relação de concurso aparente entre o crime de acesso ilegítimo e o de burla informática, na medida em que o primeiro é instrumental deste último, que constitui o crime-fim.
Mas, não sendo unânime o entendimento quanto à relação de concurso entre estes dois tipos de ilícito, também aqui entendemos que não assiste razão ao recorrente, atendendo à dissemelhança de bens jurídicos protegidos com cada uma das incriminações em apreço, como vem realçado na decisão recorrida, critério que o nosso Tribunal Superior tem considerado na distinção entre o concurso real e aparente (acórdãos de fixação de jurisprudência 8/2000 e 10/2013 e de ... de ... de 1992).
E tomamos, a este propósito, de empréstimo os considerandos do acórdão do TRP de 22/03/2023 (Proc. n.º 283/20.0PBVLG.P1, Relator Luís Coimbra, www.dgsi.pt) que subscrevemos na íntegra:
«Por ter pertinência para o enquadramento inicial desta questão, deixamos aqui um extrato do Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010 (relatado pelo Cons. Henriques Gaspar, no processo 474/09.4PSLSB.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt) que de uma forma concisa analisa o tema do seguinte modo:
“A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no artigo 30º do Código Penal a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.
A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal. Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).
O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.
A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.
Especialmente difícil na sua caracterização é a consunção. Diz-se que há consunção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cfr. v. g. H. H. JESCHECK e THOMAS WEIGEND, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, p. 788 e ss.).
A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.
O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, id. est, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Ao critério de bem jurídico têm de ser referidas as soluções a encontrar no plano da teoria geral do crime, sendo a matriz de toda a elaboração dogmática (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de 29/06/2006, proc. nº 1942/06-3ª).”
Voltando ao nosso caso afigura-se-nos claro, serem diversos os bens jurídicos violados, tal como aliás, entende o Ministério Público em ambas as instâncias.
No crime de acesso ilegítimo, o bem jurídico protegido é a segurança dos sistemas informáticos (cfr., entre outros, o acórdão da Relação do Porto de 08.01.2014 (processo nº 1170/09.8JAPRT.P2), o acórdão da Relação de Coimbra de 15/10/2008 (Proc. 368/07.8TAFIG.C1) e o acórdão da Relação de Guimarães de 12.04.2021 (processo 19/19.8GCBRG.G1).
E como ensina Duarte Rodrigues Nunes: “Começando pelo grau de lesão do bem jurídico, no caso das condutas previstas nos n.ºs 1 e 3 do art. 6.º da Lei n.° 109/2009, a consumação do crime basta-se com a conduta de aceder, de qualquer modo, a um sistema informático (não se exigindo a verificação de qualquer dano em dados informáticos ou em sistemas informáticos nem a efetiva tomada de conhecimento de informações armazenadas no sistema informático acedido), pelo que estamos perante um crime de perigo abstrato. No fundo, o legislador presume (e bem) que tais condutas são passíveis de constituir um perigo para a segurança dos sistemas informáticos, sem, contudo, exigir a criação de um perigo efetivo.” (cfr., citado autor, in Os crimes previstos na Lei do Cibercrime, Gestlegal, 2020, págs. 157 e 158).
(…)
Já o crime de burla informática, p. e p. pelo art 221º do Código Penal, configura um crime contra o património. Trata-se de um crime de execução vinculada, no sentido de que a lesão do património se produz através da intromissão nos sistemas e da utilização em certos termos de meios informáticos. E é um crime de resultado- embora de resultado parcial ou cortado - exigindo que seja produzido um prejuízo patrimonial de alguém, sendo que dos vários modos vinculados de execução típica, importa, no caso, considerar a «utilização de dados sem autorização», com a intenção do obter um enriquecimento ilegítimo. A burla informática, por isso, na construção típica e na correspondente execução vinculada, há-de consistir sempre em um comportamento que constitua um artifício, engano ou erro consciente, não por modo de afetação direta em relação a uma pessoa como na burla tipo, mas por intermediação da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados.
E como referido a dado passo no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.09.2006 (proc. 06P1942, relator Henriques Gaspar, acessível in www.dgsi.pt): “O bem jurídico protegido é essencialmente o património; o crime de burla informática configura um crime contra o património, por comparação e delimitação com os bens jurídicos protegidos em outras incriminações, referidas à tutela de valores de natureza patrimonial ou de proteção da própria funcionalidade dos sistemas informáticos (cfr. José de Faria Costa e Helena Moniz, "Algumas reflexões sobre a criminalidade informática em Portugal", in "Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra", Vol. LXXIII, 1997, p. 323-324; A. M. Almeida Costa, "Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, p. 328, segs.).”
Tendo presentes estas considerações e a consagração de um critério teleológico referente ao bem jurídico, somos do entendimento de que, por serem distintos os bens jurídicos protegidos pelas respetivas normas incriminadoras - crimes de acesso ilegítimo e de burla informática –, ainda por cima tendo em atenção o alargamento do âmbito daquele primeiro, o cometimento dos mesmos deve ser punido autonomamente, ou seja, por via de um concurso real de crimes, assim se afastando a ideia da pretendido concurso aparente.»
Tendo por assente que a diversidade de bens jurídicos protegidos será o critério determinante da distinção na unidade/pluralidade de infrações, na situação em causa nos presentes autos concordamos estarmos perante um caso de concurso real de crimes, não se reconduzindo, na totalidade, o desvalor da conduta de acesso ilegítimo ao meio vinculado da prática do crime de burla informática improcedendo, também neste segmento, o recurso interposto5.
4.3–Dosimetria penal
A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa, aferindo-se por esta o patamar máximo da pena concreta a aplicar (art. 40.º do Cód. Penal).
A determinação da medida concreta da pena deve ser efetuada com recurso aos critérios gerais estabelecidos nos arts. 70.º e 71º, do Cód. Penal, isto é, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
E só em caso de desproporcionalidade manifesta na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª Instância alterando o quantum da pena concreta ou o modo de execução da mesma.
Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.
De tal resulta que, se a pena fixada na decisão recorrida, em todas as suas componentes, ainda se revelar proporcionada e se mostrar determinada no quadro dos princípios e normas legais e constitucionais aplicáveis, não deverá ser objecto de qualquer correção por parte do Tribunal de Recurso.
Ao recorrente foi aplicada a pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, da Lei nº 109/2009, de 15/09, a pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa pela prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221.º, n.º 1, do Cód. Penal e a pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa pela prática de um crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6.º, nºs 1 e 3, da Lei nº 109/2009, de 15/09.
Em cúmulo jurídico destas duas últimas penas, foi o arguido condenado na pena única de 330 (trezentos e trinta) dias de multa, à razão diária de 5.00€ (cinco euros), o que perfaz o valor total de 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros).
O recorrente questiona as penas parcelares e a pena única aplicada, limitando-se singelamente a invocar a respetiva desproporcionalidade.
Quanto à determinação e medida das penas aplicadas ao recorrente, refere a sentença recorrida que:
«O crime de burla informática é punido, em abstracto, com pena prisão de um mês a 3 anos ou pena de multa de 10 a 360 dias - cfr. artigo 221º, nº 1, 41º, nº1, 1ª parte e 47º, nº 1, todos do C. Penal.
O crime de acesso ilegítimo com pena de multa até 240 dias, ou prisão até 2 anos - cfr. artigo 6º, nºs 1 e 3, da supra Lei nº 109/2009, de 15/09.
E o crime de falsidade informática em causa nos autos é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos artigo 3º, nºs 1 e 2, da Lei nº 109/2009, de 15/09.
Sendo os primeiros de tais crimes puníveis, em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa, há que proceder à escolha e determinação da medida da pena que, em concreto, deve ser aplicada.
Dispõe o art. 70.º do C. Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Tais finalidades, de acordo com o que preceitua o artigo 40º, nº 1, do mesmo Código, são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo, em caso algum, a pena exceder a medida da culpa do agente, sob pena de se postergar o fundamento último de toda e qualquer punição criminal que é a dignidade humana (cfr. artigo 40º, nºs 1 e 2, do C. Penal).
Estabelece, por sua vez, o art. 71.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, que a “(…) determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (…)”, nas quais se incluem tanto as vertentes de prevenção especial, como as de prevenção geral.
No caso em apreço, cumpre atentar em algumas circunstâncias que abonem a favor do arguido ou que agravem a sua culpa.
Desde logo, o arguido possui apenas um antecedente criminal, pela prática de ilícito contra o património, mas cuja condenação transitou em julgado posteriormente aos factos aqui em apreço.
Ademais, acresce que agiu sempre norteado de dolo directo e, portanto, de intensidade elevada, sendo que a ilicitude da sua actuação se mostra mais baixa em face dos valores das quantias pertença da ofendida e de que se apropriou. In casu, há ainda de atender às especialmente prementes exigências de prevenção geral atendendo aos tipos de crime em causa e às suas repercussões sociais, pois são sentidos pela comunidade com justificado alarme, abalando a confiança que esta deve ter na normalidade do comércio jurídico assente em premissas e condutas sustentadas na boa fé, gerando sentimentos de insegurança na eficácia do sistema penal no seu papel de protecção do património das pessoas, verificando-se, consequentemente, uma necessidade acrescida de incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes.
Por outro lado, pese embora o arguido ser primário relativamente aos ilícitos por que vai condenado, não compareceu em audiência de modo injustificado, assim denotando indisponibilidade para interiorizar a ilicitude da sua actuação.
Ainda assim, considerando o passado criminal do arguido e as concretas quantias em causa, considera-se ainda suficiente aplicar penas não privativas da liberdade relativamente aos crimes de burla informática e de acesso ilegítimo, uma vez que se julga que nessa parte ficarão satisfeitas as finalidades de prevenção geral e especial, sem prejuízo de a gravidade da sua actuação dever ter reflexo na medida das penas.
Tudo visto e ponderado, julga-se justo, adequado e proporcional à culpa do arguido condená-lo:
- na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa pela prática do crime de burla informática;
- na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa pela prática do crime de acesso ilegítimo; e
- na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, pela prática do crime de falsidade informática.
Cúmulo Jurídico
Dispõe o artigo 30º, nº 1, do C. Penal que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
O critério do concurso efectivo de crimes assenta na pluralidade de tipos violados pela conduta do agente, a que corresponde uma pluralidade de juízos de censura, equiparando-se na lei os casos de concurso real, em que a conduta se desdobra numa pluralidade de actos, aos de concurso ideal, em que a conduta se analisa num único acto.
Encontrando-se os crimes de burla informática e acesso ilegítimo praticados pelo arguido numa situação de concurso, uma vez que foram praticados antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, nos termos do artigo 77º do mesmo Código, sendo as respectivas penas parcelares da mesma natureza, deverá ser condenado numa única pena.
A previsão legal vertida na segunda parte do nº 1 desse preceito esclarece que a determinação de tal pena deverá resultar da consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido.
O nº 2 do preceito fixa, como limite máximo da pena aplicável, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes o que, in casu, ascende a 390 dias de multa e, como limite mínimo, situa-o na pena concreta mais elevada que foi aplicada e que integra o cúmulo ou seja, no caso em apreço, 240 dias de multa.
Atento o grau de ilicitude e culpa do arguido documentado nos factos e não se descurando o significativo desvalor das suas condutas, considera-se justa e adequada a pena única de 330 (trezentos e trinta) dias de multa.
A cada dia de multa corresponde uma quantia entre € 5,00 e €500,00 euros, a fixar em função da situação económico-financeira do condenado, nos termos do artigo 47º, nº 2 do C. Penal.
Neste âmbito, considerando desconhecer-se a condição sócio-económica do arguido, julga-se adequado fixar o quantitativo da referida pena única de multa numa taxa diária de 5,00 (cinco euros).»
O recorrente não questiona a opção pela pena de multa prevista em alternativa no que respeita aos crimes de burla informática e acesso ilegítimo, nem a opção pela suspensão da pena de prisão aplicada ao crime de falsidade informática.
Apela, unicamente, a uma pretensa desproporcionalidade na fixação da medida concreta das penas parcelares, assim como da pena de multa conjunta apurada no final da operação de cúmulo.
Mas, referindo o recorrente serem as penas concreta aplicadas exageradas, na verdade nenhuma censura é feita à operação que o Tribunal recorrido levou a cabo para encontrar a medida concreta de cada uma das penas ou de determinação da pena conjunta.
Como refere o Tribunal a quo, são prementes as exigências de prevenção geral.
E, ao nível da prevenção especial, foram valorados, como atenuantes, a existência de uma única condenação criminal, transitada em data posterior à prática dos factos.
Mas foi, também, ponderado o grau de ilicitude (média a baixa, em face dos montantes apropriados) e a intensidade do dolo (direto).
Os contornos dos factos praticados pelo recorrente, tal como resultam da matéria provada, sem que se nos deparem circunstâncias atenuantes da sua responsabilidade que o Tribunal a quo tenha desconsiderado, não permitem a redução da penalidade. Deverá notar-se que, em todos os casos, não se está perante situações de baixíssimo grau de ilicitude, como parece pretender o recorrente.
Assim, ponderando ilicitude do facto, o modo de execução, o dolo que foi directo, as consequências da conduta, e as exigências de prevenção geral que são particularmente instantes no que concerne a este tipo de crime, consideram-se adequadas as penas parcelares concretas determinadas.
Já à pena resultante do cúmulo o recorrente não aponta nenhuma concreta razão para justificar a sua desadequação.
E constata-se que, na determinação da pena conjunta, foram ponderadas pelo Tribunal as circunstâncias relevantes de harmonia com os parâmetros legais.
Como decorre do disposto no artigo 77.º, n.º 2 do Cód. Penal, a medida concreta da pena única (do concurso de crimes) deverá ser fixada dentro da moldura abstrata aplicável (a qual tem como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares concretamente aplicadas e como limite máximo a soma das penas parcelares aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão) e é determinada tendo em conta o critério específico da consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido (art. 71.º, n.º 1 do Cód. Penal).
Tudo isto, sem esquecer a medida da culpa e as necessidades de prevenção.
Tendo presente estes parâmetros, ainda que a pena tenha sido graduada acima do ponto médio da moldura abastracta do cúmulo, com a mesma logramos alcançar uma reação firme e consistente, reclamada pelas exigências de prevenção.
Entre o limiar mínimo da moldura de cúmulo – 240 dias - e o seu limiar máximo – 390 dias de prisão – o Tribunal a quo fixou a pena única em 330 (trezentos e trinta) dias de multa, suspendendo a pena de prisão na sua execução, definindo assim uma reação penal firme e adequada em face da multiplicidade de crimes cometidos, de acordo com a imagem global dos factos e apta a assegurar seriamente o êxito das finalidades de prevenção.
Dadas as circunstâncias em que o recorrente cometeu os crimes e ponderando as elevadas necessidades de prevenção que o caso demanda, seria inadequada a fixação das penas em medida mais reduzida.
De modo racional foram considerados o conjunto dos factos e a personalidade do arguido, não tendo o Tribunal a quo deixado de ponderar devidamente todas as circunstâncias relevantes.
Nestes termos, ponderando tudo o que supra se expôs e tendo em atenção os parâmetros de controlo da fixação da medida concreta das penas pelo Tribunal ad quem, impõe-se concluir, também aqui, pela improcedência do recurso interposto pelo arguido.
5.–DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando, em consequência, a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s (arts. 513º, nº1, do Cód. Proc. Penal e art.8º, nº9, do Reg. Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
Notifique.
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Lisboa, 9 de janeiro de 2024
Mafalda Sequinho dos Santos (Juíza Desembargadora Relatora)
Sandra Pinto (Juíza Desembargadora Adjunta)
Carla Francisco (Juíza Desembargadora Adjunta)
1.STJ 29/10/2008, in www.dgsi.pt.
2.No processo nº 4833/16.8T9SNT.L1-5, Relator: Desembargador ARTUR VARGUES, em www.dgsi.pt).
3.No processo nº 3286/04, 5ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
4.todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
5.No mesmo sentido, Ac. STJ de 7/01/2021, 556/18.1TELSB.S1, Relatora ISABEL SÃO MARCOS; Em sentido diverso, Ac. TRG de 23/01/2023, Proc. n.º 682/14.6JABRG.G1, Relatora HELENA LAMAS, por considerar que o bem jurídico protegido pelo crime de acesso ilegítimo é absorvido, consumido, pelo conteúdo normativo da burla do 221º Cód. Penal.