ARRESTO
CONVERSÃO DO ARRESTO EM PENHORA
PENHORA
VENDA EM EXECUÇÃO
Sumário

I - O arresto nos bens do devedor, apenas uma vez convertido em penhora, na execução subsequente ao mesmo arresto, é que confere ao credor exequente preferência, no pagamento do crédito executado, pelo valor dos bens, considerados penhorados por via da conversão do arresto em penhora.
II - Assim, se o arresto não consta como convertido em penhora da certidão de ónus e encargos junta à execução, não há lugar à citação do arrestante para a execução, porque o mesmo não possui qualquer direito real de garantia sobre os bens penhorados.
III - Por isso, o titular de arresto, não convertido em penhora, não pode intervir em execução de terceiro, em que tenha sido penhorado o bem imóvel arrestado, por não ser titular de garantia real.
IV - Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número 2 do artigo 824.º do CCivil transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens (nº 3 do mesmo preceito) o que significa que o titular do direito real de garantia que caduca, mesmo não sendo credor do titular do bem sobre o qual incide o direito real de garantia caducado e não tenha reclamado qualquer crédito no processo de execução onde a venda vai ser realizada, pode reclamar o pagamento do valor económico do direito caducado pelo produto da venda do mesmo, ainda que para o efeito possa ser necessário instaurar uma ação contra o devedor.

Texto Integral

Processo nº 4336/19.9T8GDM-A.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível do Porto-J2
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Anabela Morais
2º Adjunto Des. Jorge Ribeiro
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
AA veio requerer a presente providência cautelar de arresto contra BB, CC e A..., Lda., pretendendo que seja decretado o arresto das duas frações identificadas no artigo 1º do requerimento inicial, bem como das contas bancárias identificadas nos artigos 9º e 10º da petição inicial.
Para tanto, alega que os Requeridos são proprietários das duas frações em causa, que prometeram vender à Requerente em 24/11/2018 pelo preço global de € 107.000,00, por meio de negócio mediado pela R. A..., Lda. e sua vendedora DD. A Requerente entregou a esta sociedade um cheque no montante de € 10.700,00 a título de sinal e princípio de pagamento. Em 28/12/2018, contra a devolução desse cheque, a Requerente efetuou duas transferências bancárias no total de € 10.700,00, sendo € 4.119,50 para a conta bancária dos Requeridos e € 6.580,50 para a conta bancária da mediadora, sendo esta devido ao receio que aquela mediadora tinha de que os Requeridos não lhes pagassem a comissão pelo negócio. Estes não entregavam os documentos necessários para a escritura de compra e venda, tendo então DD informado a Requerente que tal se devia ao facto dos prédios se encontrarem penhorados. A ocultação desta informação ocorreu de má fé, com receio de que a Requerente não pagasse o sinal se tivesse conhecimento deste facto. Devido ao atraso na outorga da escritura, o empréstimo bancário que a Requerente solicitou caducou, tendo o segundo pedido sido indeferido. A Requerente exigiu a devolução do sinal, o que os Requeridos e a A... recusaram. Em 05/04/2019 a A. procedeu a interpelação admonitória dos 1º e 2º RR., nos termos previstos na cláusula 8.3 do contrato, comunicando a situação de incumprimento definitivo por culpa daqueles, bem como perda de interesse no negócio e consequente resolução do contrato, interpelando-os para o pagamento do sinal em dobro. Ocorreu violação do princípio da boa fé pré-contratual e existência de burla. Invoca receio da insuficiência de património dos Requeridos, face às penhoras que incidem sobre os prédios e ao conhecimento de que estes os colocaram novamente à venda.
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Produzida a prova foi proferida decisão que julgou parcialmente procedente a providência e consequentemente determinou o arresto:
1) da fração autónoma designada pelas letras “DG”, destinada a habitação no quarto esquerdo centro (bloco ...), com entrada pelo nº ... da Rua ..., da freguesia ..., concelho de Gondomar, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº ......, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., até ao limite de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros);
2) da fração autónoma designada pela letra “X”, correspondente a uma garagem na subcave com 21,20m2 e entrada pelo nº ..., da Rua ..., da freguesia ..., concelho de Gondomar, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ......, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., até ao limite de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros);
3) da conta bancária com o IBAN ..., até ao limite de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros).
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Deduzida oposição e ouvida a prova indicada foi proferida decisão que manteve nos exatos termos a providência inicialmente decretada.
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Em 12/06/2023 a Requerente da presente providência apresentou nos autos o seguinte requerimento:
“Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito
AA, Requerente nos presentes autos de arresto, vem Expor e, a final, Requerer a V. Excelência nos seguintes termos e fundamentos:
1º) No âmbito dos presentes autos foi proferida a douta decisão de arrestar duas frações autónomas (uma habitação e uma garagem), que se encontravam registadas a favor dos Requeridos BB e CC;
2º) Tal arresto destinou-se a garantir o crédito de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros) que a Requerente detinha sobre os Requeridos, caso o Tribunal lhe viesse a dar razão na ação que iria propor contra os Requeridos;
3º) O que veio a ocorrer no âmbito do processo judicial com o n.º 4336/19.9T8GDM, que corre termos no Juízo Central Cível do Porto-Juiz 2, na sequência da douta decisão proferida em 18.05.2023.
4º) Sucedeu, entretanto, que as suprarreferidas frações arrestadas, foram vendidas no âmbito do processo executivo n.º 23252/17.2T8PRT, que correu termos no Juízo de Execução do Porto-Juiz 5, intentado pelo credor hipotecário e tramitado pela sociedade “B... RL”, com sede no Parque Industrial ..., ... - ...–Braga.
5º) Sendo que, a final, depois de serem pagos todos os credores dos aqui Requeridos, sobrou a quantia de € 25.390,82 (vinte e cinco mil, trezentos e noventa euros e oitenta e dois cêntimos).
6º) Ora, tendo em conta que o crédito da Requerente veio a ser confirmado, e que o arresto doutamente decretado se destinou a garantir a satisfação de tal crédito, afigura-se-nos pertinente e adequado que a supra referida quantia sobrante, seja depositada à ordem dos presentes autos de arresto, por forma a que a Requerente possa satisfazer o seu crédito no âmbito do processo executivo n.º 10524/23.6T8PRT, que já instaurou, para o efeito, contra os Requeridos, e que corre termos no Juízo de Execução do Porto - Juiz 6.
Destarte,
Nestes termos e nos melhores de direito, doutamente supridos por V. Excelência, Requer-se que seja ordenado aos legais representantes da sociedade “B... RL” para depositarem à ordem dos presentes autos de arresto o valor de € 25.390,82 (vinte e cinco mil, trezentos e noventa euros e oitenta e dois cêntimos), quantia esta sobrante no âmbito do processo executivo n.º 23252/17.2T8PRT, que correu termos no Juízo de Execução do Porto–Juiz 5”.
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Na sequência do assim impetrado foi lavrado o seguinte despacho:
“Requerimento que antecede, sob a ref. 45818363:
Com cópia, para melhor esclarecimento do que se pretende, solicite ao Exmo. AE aí referido, que informe o que tiver por conveniente relativamente ao processo e eventual venda, alegado pela requerente, uma vez que não foi junta qualquer documentação a esse respeito (processo executivo n.º 23252/17.2T8PRT … intentado pelo credor hipotecário e tramitado pela sociedade “B... RL”, com sede no Parque Industrial ..., ... - ...–Braga”.
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A Srª agente de execução veio informar nos seguintes termos: “Pelo que, em resposta ao requerido pela requerente e atentos os fundamentos supra expostos, não há qualquer “quantia sobrante” que possa ser arrestada à ordem dos presentes autos.
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Notificada de tal resposta a Requerente veio juntar aos autos o seguinte requerimento:
“Exmo. Senhor Juiz de Direito
AA, Requerente nos autos de arresto à margem acima identificados, em que são Requeridos BB e CC, notificada da junção de documentos levada a cabo pela Sra.
Agente de Execução, vem, ao abrigo do principio do contraditório, dizer o seguinte:
1º) A Sra. Agente de Execução fundamenta a sua atuação de ter entregue aos Executados, aqui Requeridos, a quantia monetária que sobrou da venda dos imóveis, em vez de, antes, a ter depositado à ordem dos presentes autos de arresto, no facto de, em suma, as penhoras serem anteriores ao registo do arresto e ao facto da Requerente não ter ido reclamar o seu crédito à execução ao abrigo do n.º 1 do artigo 792º do CPC.
2º) Ou seja, a Sra. Agente de Execução estriba a sua fundamentação nas disposições relativas à reclamação de créditos; Contudo, refira-se que este dispositivo diz que o credor “pode”, e não “deve”, ou seja, a Requerente não era obrigada a nada ...
3º) Tendo a Sra. Agente de Execução entendido, a final, que como a Requerente não reclamou o crédito, nem requereu nos termos do art. 792º/1 do CPC, o arresto perdeu o seu valor;
4º) Contudo, a Requerente nunca invocou que o seu direito / crédito foi preterido em relação a outro credor, nem tão pouco concorreu com qualquer credor!!!
5º) O que a Requerente invoca é que face à existência do arresto a Sra. Agente de Execução não poderia ter entregue a quantia sobrante aos Executados, sem previamente ter perguntado ao Mmo. Juiz titular dos autos de arresto se tal quantia era para depositar à ordem destes autos ou se a podia entregar aos Executados, aqui Requeridos;
6º) Mas não, a Sra. Agente de Execução fez tábua rasa do arresto, decretado e registado na CR Predial, oficiosamente, pelo Tribunal (e não pela Requerente, como refere a Sra. Agente de Execução), e entregou toda a quantia sobrante aos Executados;
7º) Assim, em 16-07-2020 a Sra. Agente de Execução transferiu a favor da Executada CC, aqui Requerida, a quantia de € 12.695,41 (doze mil seiscentos e noventa e cinco euros e quarenta e um cêntimos), cfr. comprovativo que ao diante se junta sob Doc. 1;
8º) E em 17-07-2020 transferiu a favor do Executado BB, aqui Requerido, a quantia de € 12.695,41 (doze mil seiscentos e noventa e cinco euros e quarenta e um cêntimos), cfr. comprovativo que ao diante se junta sob Doc. 2;
9º) Sendo que, esta decisão da Sra. Agente de Execução de ignorar a existência do arresto, face aos princípios gerais do direito, e tendo como referência o “homem médio”, com o devido respeito, consubstancia uma aberração jurídica.
10º) Acresce que, a Sra. Agente de Execução, no antepenúltimo parágrafo dos seus esclarecimentos, ao afirmar que não foi notificada, assim bem como o Tribunal da execução, da existência de qualquer arresto posterior à penhora, está sub-repticiamente, para não dizer de má fé, a insinuar que não tomou conhecimento da existência dos presentes autos de arresto;
11º) Contudo, no pressuposto de que a Sra. Agente de Execução no dia 25-06-2020 esteve presente na escritura pública da venda dos imóveis penhorados e arrestados, pelo menos, para receber a quantia respeitante ao preço dos mesmos, certamente ouviu a Sra. Notária dizer que nas fichas de ambos os prédios se encontrava registado, além de três hipotecas e uma penhora, um arresto pela inscrição “Ap. ... de 2019/05/24”, cfr. consta da escritura a págs., 4 do ficheiro pdf que a Sra. Agente de Execução juntou agora sob Doc. 2;
12º) Destarte, de uma forma clara e inequívoca, ressalta à saciedade que a Sra. Agente de Execução quando em 16/07/2020 e 17/07/2020 procedeu à entrega da quantia sobrante aos Executados, aqui Requeridos, já tinha o perfeito conhecimento da existência do arresto, pelo menos, desde 25-06-2020, data da outorga da escritura.
13º) De igual modo ressalta à saciedade que a Sra. Agente de Execução ao insinuar que não tomou conhecimento da existência dos presentes autos de arresto, cfr. acima referido, demonstra que tem a plena consciência que agiu contra o Direito;
14º) Resultando, à contrario, que se tivesse conhecimento do arresto, não teria entregue tais quantias aos Executados, aqui Requeridos;
15º) Contudo, cfr. acima já ficou bem demonstrado a Sra. Agente de Execução já tinha tomado conhecimento da existência do arresto, pelo menos, desde 25-06-2020, data da celebração da escritura da venda dos imóveis.
16º) Em consequência da atuação negligente da Sra. Agente de Execução a Requerente perdeu a garantia do seu crédito no valor de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros), acrescido do valor respeitante aos juros de mora até efetivo e integral pagamento.
17º) Por fim reitera-se que não está aqui em causa as regras da reclamação de créditos e muito menos de concurso de credores mas tão só princípios básicos do direito.
18º) Em conclusão, tendo a Sra. Agente de Execução assumido a qualidade de fiel depositária da quantia sobrante da venda dos imóveis, deve agora ser notificada para no prazo máximo de 5 dias depositar à ordem dos presentes autos a quantia de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros), sob pena de, não o fazendo, ser ordenado o arresto dos seus bens, suficientes para garantir o referido valor, tudo cfr. o disposto, designadamente, no artigo 771º, n.º 2, do CPC.
Nestes termos e nos melhores de Direito, doutamente supridos por V. Exa., deve a Sra. Agente de Execução ser notificada para no prazo máximo de 5 dias depositar à ordem dos presentes autos a quantia de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros), sob pena de, não o fazendo, ser ordenado o arresto dos seus bens, suficientes para garantir o referido valor”.
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Sobre o assim requerido foi exarado o seguinte despacho:
“Informações da Exma. Sra. Agente de Execução que antecedem (e documentação que junta) e requerimento da requerente AA que também antecede, sob a ref. 45991982.
O arresto de imóvel decretado neste nosso procedimento cautelar, foi levado à inscrição ao registo em 24.05.2019.
Na execução hipotecária do processo nº 23252/17.2T8PRT, tal imóvel havia já sido penhorado em 05.06.2018.
Ou seja, havia sido penhorado em data anterior ao arresto, pelo que, a Exma. Sra. Agente de Execução, ao dar cumprimento ao disposto no art. 786.º do Código de Processo Civil (citação de credores), obviamente, não poderia citar a aqui requerente para a execução (pois que foi posterior o arresto).
É certo, como diz a requerente, que foi este tribunal quem diligenciou pelo registo do arresto.
Fê-lo, no entanto, a requerimento da requerente do procedimento cautelar, sendo a esta (requerente) que compete, querendo, acompanhar o iter do bem arrestado, no que se refere a registo de garantias reais anteriores e/ou venda em processo executivo que esteja a decorrer, nomeadamente podendo requerer que seja tomado em consideração, sendo disso caso, na graduação de créditos (art. 792 nº 1 do Código de Processo Civil, referido pela Sra. AE e pelo requerente).
É certo que o recurso ao disposto no art. 792 nº 1 do Código de Processo Civil é facultativo, mas, não usando tal faculdade, a cominação é a de não ser tomado em consideração, face ao disposto no art. 824 nº 1 e 2 do Código Civil, nos termos do qual a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida, sendo os bens transmitidos livres de todos os direitos reais de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente de registo.
No que se refere aos direitos reais de garantia (que são os que estão aqui em causa, como o de arresto), podem acontecer duas situações:
Sendo a constituição do direito real de garantia anterior ao registo da penhora (incidindo sobre imóveis) e o credor tiver reclamado o seu crédito na execução, feita a venda, o direito real de garantia transfere-se do bem vendido para o produto da venda do respectivo bem. Se o titular do direito real de garantia anterior ao registo da penhora, citado para o concurso de credores, não tiver reclamado o seu direito, tal direito real caduca com a venda do bem (perdendo a garantia real de que dispunha);
Sendo a constituição do direito real de garantia posterior ao registo da penhora (o que equivale a dizer que tal direito real é inoponível no processo de execução por força do disposto no art. 819 do Código Civil) então caducam com a venda ou adjudicação dos bens a que respeitam.
Ou seja, em execução os bens são sempre vendidos livres de quaisquer direitos reais de garantia, pelo que, com a respetiva venda, caducam todos esses mesmos direitos reais de garantia e quer sejam anteriores quer sejam posteriores ao registo da penhora.
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Pelo exposto e ao abrigo das disposições legais acima referidas, indefiro o requerido por AA no seu requerimento que antecede, sob a ref. 45991982.
Notifique”.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Requerente o interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
1ª) A Requerente, ora Recorrente, Requereu ao Mm.º Juiz à quo que ordenasse à Sra. Agente de Execução que depositasse à ordem dos presentes autos a quantia de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros) que os imóveis arrestados e, posteriormente, vendidos em execução garantiam, sob pena de, não o fazendo, ser ordenado o arresto dos seus bens, suficientes para garantir o referido valor;
2ª) Em virtude de na venda executiva, após o pagamento a todos os credores reclamantes, ter sobrado a quantia de € 25.390,82 (vinte e cinco mil, trezentos e noventa euros e oitenta e dois cêntimos), e a Sra. Agente de Execução, apesar de ter pleno conhecimento da existência dos presentes autos de arresto, em vez de depositar a referida quantia sobrante à ordem destes autos de arresto, entregou-a, em partes iguais, aos dois Requeridos/Réus, aqui Recorridos, com o fundamento de que a Requerente, aqui Recorrente, não havia reclamado o seu crédito em tais autos executivos;
3ª) Tendo o Mmº. Juiz à quo indeferido o Requerimento aqui em crise com fundamento, em suma, de que em execução os bens são sempre vendidos livres de quaisquer direitos reais de garantia, pelo que, com a respetiva venda, caducam todos esses mesmos direitos reais de garantia e quer sejam anteriores quer sejam posteriores ao registo da penhora;
4ª) Contudo, a questão jurídica, aqui em crise, é outra … o problema que aqui se coloca é que, nos referidos autos executivos, da venda dos dois imóveis que se encontravam arrestados, sobrou dinheiro suficiente para garantir o crédito que, entretanto, o Tribunal reconheceu à Requerente/Recorrente, mas que a Sra. Agente de Execução, em vez de depositar tal dinheiro à ordem dos autos de arresto, entregou o dinheiro aos Requeridos/Réus/Recorridos, com o fundamento de que a Requerente não tinha ido reclamar o seu crédito à execução, apesar de ter conhecimento da existência do arresto;
5ª) Ressaltando à saciedade que esta decisão da Sra. Agente de Execução é uma aberração jurídica, contrária ao direito e à justiça, sendo, por isso, injusta!
Senão vejamos,
6ª) O arresto dos imóveis aqui em crise foi levado à inscrição ao registo em 24-05-2019;
7ª) Acresce que, consta dos documentos juntos pela Sra. Agente de Execução aos presentes autos de arresto que no dia 25-06-2020 esteve presente na escritura pública da venda dos imóveis penhorados e arrestados, para receber a quantia respeitante ao preço dos mesmos, onde a Sra. Notária leu que nas fichas de ambos os prédios se encontrava registado, além de três hipotecas e uma penhora, um arresto pela inscrição “Ap. ... de 2019/05/24”, cfr. consta da escritura a págs, 4 do ficheiro pdf que a Sra. Agente de Execução juntou aos presentes autos;
8ª) Destarte, de uma forma clara e inequívoca, fica demonstrado que a Sra. Agente de Execução quando em 16/07/2020 e 17/07/2020 procedeu à entrega da quantia sobrante aos Executados, Requeridos e aqui Recorridos, já tinha o perfeito conhecimento da existência do arresto, pelo menos, desde 25-06-2020, data da outorga da escritura;
9ª) Sendo que, em consequência da atuação deveras negligente da Sra. Agente de Execução a Requerente, aqui Recorrente, perdeu a garantia do seu crédito no valor de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros), acrescido do valor respeitante aos juros de mora até efetivo e integral pagamento;
DO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA:
10ª) Ora, não está aqui em causa as regras da reclamação de créditos e muito menos de concurso de credores, nem tão pouco as regras invocadas pelo Mmº. Juiz à quo de que em execução os bens são sempre vendidos livres de quaisquer direitos reais de garantia,
11ª) Mas, tão só, estão aqui em causa as regras e os princípios básicos do direito, do bom senso e da justiça,
12ª) Sendo que, a Sra. Agente de Execução mais não fez do que, como diz o conhecido brocardo “entregar o ouro aos bandidos”...
DO DIREITO APLICÁVEL:
13ª) Face a tudo o supra exposto, não restam quaisquer dúvidas de que aos presentes autos é aplicável o disposto, designadamente, no artigo 771º, n.º 2, do CPC;
14ª) Pelo que, tendo a Sra. Agente de Execução assumido a qualidade de fiel depositária da quantia sobrante da venda dos imóveis arrestados, em consequência do seu comportamento altamente negligente, deve agora depositar à ordem dos presentes autos a quantia de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros) garantida pelo arresto, sob pena de, não o fazendo, ser ordenado o arresto dos seus bens, suficientes para garantir o referido valor.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão a decidir:
a)- saber se a Srª agente de execução no âmbito da execução nº 23252/17.2T8PR devia ter depositado à ordem dos presentes autos a quantia de € 21.400,00 na sequência da venda dos imóveis que na presente providência haviam sido arrestados, uma vez que após o pagamento a todos os credores reclamantes sobrou, nessa execução, a quantia de € 25.390,82 que foi entregue aos executados aqui recorridos.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A dinâmica factual a ter em contar para decidir a questão enunciada é a que resulta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
Isto dito e como supra se referiu é apenas uma a questão que vem posta no recurso:
a)- saber se a Srª agente de execução no âmbito da execução nº 23252/17.2T8PR devia ter depositado à ordem dos presentes autos a quantia de € 21.400,00 na sequência da venda dos imóveis que na presente providência haviam sido arrestados, uma vez que após o pagamento a todos os credores reclamantes sobrou, nessa execução, a quantia de € 25.390,82 que foi entregue aos executados aqui recorridos..
Como resulta do relatório supra, no âmbito desta providência foi decretado o arresto dos seguintes bens imóveis:
1) da fração autónoma designada pelas letras “DG”, destinada a habitação no quarto esquerdo centro (bloco ...), com entrada pelo nº ... da Rua ..., da freguesia ..., concelho de Gondomar, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº ......, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., até ao limite de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros);
2) da fração autónoma designada pela letra “X”, correspondente a uma garagem na subcave com 21,20m2 e entrada pelo nº ..., da Rua ..., da freguesia ..., concelho de Gondomar, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ......, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., até ao limite de € 21.400,00 (vinte e um mil e quatrocentos euros).
O registo do referido arresto data de 24/05/2019.
Tais frações haviam sido objeto de penhora, cujo registo é de 05/06/2018 (vide Ap. Ap. ... de 2018/06/05.-documento pdf junto pela agente de execução com a sua informação prestada nos autos em 20/06/2023), na execução n.º 23252/17.2T8PRT, que correu termos no Juízo de Execução do Porto–Juiz 5, intentado pelo credor hipotecário e tramitado pela sociedade “B... RL”, com sede no Parque Industrial ....
Na citada execução, depois de serem pagos todos os credores dos aqui recorridos, sobrou a quantia de € 25.390,82 (vinte e cinco mil, trezentos e noventa euros e oitenta e dois cêntimos) que a Srª agente de execução entregou aos executados aqui recorridos.
Alega a apelante que, daquela quantia, a Srª agente de execução devia ter depositado à ordem destes autos o montante de € 21.400,00.
Que dizer?
A penhora consiste no ato processual fulcral na execução do património do devedor (ou de terceiro).
Traduz-se ela na apreensão jurídica de bens do devedor ou de terceiro, em termos de desapossamento em relação àqueles e de empossamento em favor do tribunal, com vista à realização dos fins da ação executiva, qual seja o pagamento coercivo do crédito exequendo.
Nesta perspetiva, a penhora, nos termos do artigo 817.º, do Cód. Civil, traduz-se, segundo uma corrente da nossa doutrina, numa garantia real das obrigações que se impõe erga omnes, podendo o seu titular seguir o bem penhorado, independentemente da contingência da respetiva titularidade, em conformidade com a característica da sequela própria dos direitos reais.[1]/[2]
Nesta consonância, prevê o artigo 819.º, do Cód. Civil, que “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os atos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.
Destarte, ressalvadas as regras do registo, os atos de disposição ou oneração de bens penhorados, apesar de válidos entre as respetivas partes, são ineficazes perante o exequente, tudo se passando como se não existissem para a execução e o atingimento dos seus fins.[3]
Por outro lado, ainda, segundo o n.º 1 do artigo 822.º do CCivil, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior.
Como assim, a penhora, ao retirar ao executado a disponibilidade jurídica do bem exerce uma função instrumental, qual seja a “de salvaguardar a utilidade final do direito de execução” perante eventuais atos de disposição ou oneração por parte do executado e, ao mesmo tempo, ao prever a preferência do credor/exequente na satisfação do seu crédito, exerce, em simultâneo, uma “função de garantia (lato sensu) do cumprimento das obrigações.”[4]
O arresto, por seu turno, traduz-se “grosso modo” na providência cautelar especificada que consiste na apreensão judicial de bens, fundada no receio do credor de perda da garantia patrimonial do seu crédito.
Trata-se, pois, de uma apreensão judicial de bens que implica a sua indisponibilidade jurídica, mas sem afetar o respetivo poder de disposição, sendo-lhe aplicáveis, com as devidas adaptações, as regras da penhora–cfr. artigo 391.º, n.ºs 1 e 2 do CPCivil.
Como refere A. Abrantes Geraldes[5], “À semelhança dos restantes procedimentos cautelares, o arresto exerce uma função instrumental relativamente ao processo declarativo e, depois, ao processo executivo, sendo o mecanismo que assegura a «expropriação forçada» em que se traduz a penhora dos bens do devedor. Consiste numa apreensão judicial de bens capaz de antecipar os efeitos derivados da penhora e garantir o efeito útil que o credor procura através da sentença condenatória ou dos meios de cumprimento coercivo das obrigações (art. 619.º do CC).”
Por conseguinte, o arresto, em conformidade com o disposto no artigo 622.º, n.º 1, do Cód. Civil, torna ineficazes em relação ao requerente os atos de disposição e oneração dos bens arretados, de acordo com as regras próprias da penhora. Quer dizer, o arrestado (tal como o executado) pode validamente dispor dos bens apreendidos ou onerá-los, só que tais atos não são eficazes quanto ao arrestante, sem prejuízo das regras do registo (artigo 819.º, n.º 1, do Cód. Civil).
É, contudo, por sua natureza, uma medida provisória, cuja eficácia está na dependência da eventualidade da sua conversão em penhora (artigo 762.º do CPCivil).
Com efeito, discute-se, face ao direito constituído, se o arrestante, enquanto tal, goza de algum privilégio relativamente aos demais credores, nomeadamente de uma preferência igual à concedida ao penhorante pelo citado artigo 822.º do Código Civil.
Questão que tem, diga-se, grande relevo quer em termos substantivos, quer sobretudo em termos processuais, dado o princípio de que só são chamados a intervir na execução os credores que gozam de garantia real sobre os bens penhorados (artigo 788.º, n.º 1, do CPCivil).
A doutrina não tem posição uniforme sobre esta matéria.
Pires de Lima e Antunes Varela[6], Anselmo de Castro[7], Carvalho Martins[8] e Salvador da Costa[9], opinam que o arresto, ainda que não convertido ainda em penhora, confere ao arrestante direito de preferência no pagamento sobre o produto do bem arrestado, sendo, por isso, um direito real de garantia e devendo o respetivo beneficiário ser citado para o concurso de credores.
Em polo oposto colocam-se Teixeira de Sousa[10], Penha Gonçalves[11] e Rui Pinto Duarte[12], para os quais o arresto não confere ao arrestante o aludido direito de preferência.
Sobre o tema em discussão diz Rui Pinto Duarte que “em favor da tese afirmativa jogam as proposições legais que dizem ser, em geral, aplicáveis ao arresto os efeitos da penhora (art. 622.º, n.º 2, do Código Civil, e art. 406.º, n.º 2, do Código de Processo Civil) e que determinam a ineficácia em relação ao arrestante dos atos de disposição dos bens arrestados (art. 622º, n.º 1, do Código Civil).
Contra o reconhecimento ao arresto de efeitos similares aos da penhora em matéria de preferência no pagamento, há, porém, um argumento forte derivado da própria natureza do arresto: como reconhecer um efeito definitivo a uma medida provisória?
Tal argumento leva-nos a ter a opinião de que o arresto não confere preferência sobre os bens do devedor e, em consequência, a pensar que a figura não consubstancia um direito real (de garantia) completo, mas apenas um direito real in faciendo”.
Menos opinativo e mais perentório é Teixeira de Sousa quando refere que “o arresto enquanto não for convertido em penhora (cfr. art. 846.º), é apenas um meio de conservação da garantia patrimonial (cfr. art. 619.º, n.º 1 do CC), e não atribui qualquer preferência no pagamento, pelo que não é uma garantia real”.
No que diz respeito à jurisprudência, igualmente não existe posição uniforme sobre o tema em ponderação, defendendo-se numas decisões[13] que o arresto, ainda não convertido em penhora, é um direito real de garantia, devendo, por isso, o respetivo credor ser citado para a execução, enquanto que noutras[14] se tem seguido entendimento contrário.
Refere-se no douto Acórdão da Relação do Porto de 07/11/2002 (citado nota 15), para cuja argumentação propendemos, que “a primeira das posições vai buscar, segundo cremos, as suas raízes ao artigo de Vaz Serra, no BMJ, n.º 73, págs. 31 e segs., onde este Professor afirma que de jure condito o arresto não dá preferência senão quando convertido em penhora (pág. 41), mas de jure condendo sustenta que “no caso do arresto, o direito de preferência deve existir em termos análogos aos propostos a respeito da preferência no caso da penhora” (folhas 139).
Nessa sequência, na redação da lei que propõe (folhas 388, sempre do mesmo Boletim) fez incluir o n.º 3 do artigo 22.º, assim redigido: “O arresto atribui ao arrestante direito de preferência em termos análogos aos declarados no art. 6.º” (o artigo referente à preferência resultante da penhora).
Mas este texto legal não foi o que veio a lume.
A lume vieram os arts. 622.º, n.º 2 (“ao arresto são extensíveis, na parte aplicável, os demais efeitos da penhora”) e 822.º, n.º 2, do CC (“tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto”).
A referência à “parte aplicável” deixa-nos campo aberto para, se for caso disso, não considerarmos extensível ao arresto a preferência resultante da penhora (consignada no n.° 1, do dito art. 822.º).
Dentro desse campo de liberdade, temos a interpretação do falado n.º 2 deste mesmo artigo.
A existência dele compreende-se mal se se considerar que o arresto atribui preferência do pagamento-se assim fosse, sempre valeria a data dele (ou, no caso dos imóveis, do seu registo). Não precisava a lei de estabelecer qualquer retroatividade.

Mas, mais decisiva para a nossa posição, é a expressão “anterioridade da penhora”. É que se o arresto valesse por si, não haveria qualquer anterioridade da penhora. Não era a penhora que precisava de ser “distendida” cronologicamente, ficcionando, para estes efeitos, uma data. Era a data do arresto que valeria, sem necessidade de ficção.
Mesmo relativamente ao arresto convertido o que resulta da lei não é que conceda direito de preferência. O que a lei diz-em sentido contrário a essa ideia-é que se reporta à data dele a anterioridade da penhora.
Se-como no caso dos autos-o arresto não chega a ser convertido, então não temos penhora cuja data se possa ficcionar para estes efeitos.
A preferência inexiste”.
Ora, afigura-se-nos que o entendimento expendido no douto aresto citado, em consonância com uma das correntes da doutrina e da jurisprudência acima aludidas, é a que melhor se harmoniza com a natureza da providência cautelar de arresto, que, na realidade, não passa de uma providência destinada a assegurar a garantia patrimonial, apenas devendo ser tomado como um direito de garantia real depois da sua conversão em penhora.
Aliás, se o arresto valesse “a se” como garantia real, não teria sentido e efeito prático a sua conversão em penhora e seriam, assim, normas injustificadas as do n.º 2 do citado art. 822.º “tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto”–e do art. 762.º–“quando os bens estejam arrestados, converte-se o arresto em penhora (…)”.
Como se anota no douto Ac. da Relação do Porto de 17/01/2005 (citado nota 15), “na providência cautelar de arresto, o credor arrestante, antes da conversão do arresto em penhora beneficia, em bom rigor, tão só de uma expectativa de garantia real. Ou, como assinala Rui Duarte, acima citado, a figura do arresto não consubstancia um direito real (de garantia) completo, mas apenas um direito real in faciendo”.
O que se considera acertado, pois que o arresto nos bens do devedor, apenas uma vez convertido em penhora, na execução subsequente ao mesmo arresto, é que confere ao credor exequente preferência, no pagamento do crédito executado, pelo valor dos bens, considerados penhorados por via da conversão do arresto em penhora.
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Postos estes considerandos e revertendo ao caso e apreço, dos autos não consta que o arresto dos mencionados imóveis tivesse sido convertido em penhora.
Daqui resulta, desde logo, que se o arresto não consta como convertido em penhora, da certidão de ónus e encargos junta à execução, a apelante não tinha que ser citada para a execução que correu seus termos com o n.º 23252/17.2T8PRT no Juízo de Execução do Porto–Juiz 5, porque a mesma não possuía qualquer direito real de garantia sobre os bens penhorados (artigos 786.º, nº 1 al. b) e 788.º, nº 1 do CPCivil).
Da mesma forma que também não podia socorre-se quer do preceituado no artigo 788.º, nº 3 do CPCivil quer do preceituado no artigo 792.º do mesmo diploma legal, pois ambos pressupõem que o credor seja titular de um direito real de garantia, o que no caso não se verifica.
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E não tendo qualquer direito real de garantia sobre a parte sobrante do produto da venda dos imóveis (€ 25.390,82) não possuía fundamento legal para que esse montante fosse colocado à ordem destes autos.
Diferente seria se a apelante tivesse, face à existência de penhora anterior ao arresto e perante a venda das frações arrestadas na referida execução, pedido que o produto da venda remanescente, a existir, fosse arrestado à ordem dos presentes autos [cfr. artigo 751.º, nº 4 al. b) do CPCivil aplicável ex vi artigo 391.º, nº 2 do mesmo diploma legal[15]], coisa que o apelante, manifestamente não fez, já que se limitou no requerimento apresentado em 12/06/2023 a pedir que a mencionada parte sobrante fosse colocada à ordem dos presentes autos.
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Mas, mesmo condescendendo que a apelante gozava do direito real de garantia decorrente do arresto, não tinha a mesma qualquer título exequível (só em 18/05/2023 é que foi proferida decisão na ação declarativa que lhe reconheceu o crédito de € 21.400,00), para reclamar o crédito no âmbito da mencionada execução, pois que, nos termos do nº 2 do artigo já citado artigo 788.º, a reclamação tem por base um título exequível (…).
Na verdade, a reclamação tem, desde logo, dois pressupostos (específicos), um de natureza substancial (a titularidade de um crédito com garantia real–só podendo apresentar-se a reclamar o credor que disponha de uma garantia real sobre os bens penhorados) e um de natureza formal (a existência de um título executivo–só podendo apresentar-se a reclamar um crédito quem disponha de um título executivo).[16]
Ora, não tendo título exequível, apenas a apelante sponte sua é que podia reclamar o crédito nos termos do preceituado no artigo 792.º do CPCivil.
E contra isso não se argumente que foi o tribunal recorrido quem diligenciou pelo registo do arresto.
Acontece que, não obstante assim tenha acontecido, tal registo foi feito a pedido da apelante no âmbito da presente providência cautelar, sendo a esta que compete, querendo, acompanhar o iter do bem arrestado, no que se refere a registo de garantias reais anteriores e/ou venda em processo executivo que esteja a decorrer.
Evidentemente que o recurso ao preceituado no citado artigo 792.º é facultativo.
Acontece que, do não uso dessa faculdade, acarretou para apelante efeitos negativos no âmbito da execução n.º 23252/17.2T8PRT, que correu termos no Juízo de Execução do Porto–Juiz 5.
Analisando.
O artigo 824.°do CCivil sob a epígrafe “Venda em execução”, preceitua que:
1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que constituídos em data anterior, produzam efeito em relação a terceiros independentemente de registo.
3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens.
Como referem Cf. Pires de Lima/Antunes Varela[17] “(…) nos termos deste número (nº 2), há que distinguir duas espécies de direitos que incidam sobre os bens vendidos. Os de garantia caducam todos; os direitos de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias (Cons. Lopes Cardoso, Manual da ação executiva, 1964, 3.ª ed., n.º 214). Excetuam-se os direitos que produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo, porque estes também não caducam, se tiverem sido constituídos anteriormente ao mais antigo daqueles atos (assim, também, não caduca um usufruto sobre os bens imóveis vendidos, se o direito estiver registado antes do registo de qualquer arresto, penhora ou garantia. Também não caduca um usufruto sobre bens móveis, constituído antes do arresto, penhora ou garantia, visto esse usufruto não estar sujeito a registo)”.
Portanto, nos termos do citado preceito, em execução os bens são sempre vendidos livres de quaisquer direitos reais de garantia, pelo que, com a respetiva venda, caducam todos esses direitos, o que ocorre automaticamente, sem necessidade de qualquer despacho nesse sentido.
Todavia, nos termos do nº 3 do citado preceito acima transcrito, os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens.
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Voltemos agora a nossa atenção para a execução n.º 23252/17.2T8PRT.
Como dá nota a Srª agente de execução no âmbito do citado processo executivo não houve quaisquer reclamações de créditos–nem mesmo da AT–e com a venda das frações penhoradas, todos os ónus e encargos posteriores à penhora foram cancelados pela Conservatória do Registo Predial, e tendo remanescido produto da venda, o mesmo foi entregue aos executados.
Efetivamente, o estatuto do produto ou valor da venda no período em que este se mostra capturado pela execução, dotado, nesse período, de uma afetação funcional específica (a que decorre do fim visado por aquela execução em concreto) só poderia ser referenciada ao património dos executados aqui recorridos, na parcela sobrante, após satisfação das custas da execução e dos créditos graduados.
Daqui resulta que se apelante tivesse reclamado o seu crédito nos termos do citado artigo 792.º do CPCivil e não obstante a caducidade da sua garantia, o seu direito tinha-se transferido para o produto da venda dos respetivos bens.
Não o tendo feito, outra conduta não era exigível à Srª agente de execução, que não a de entregar aos executados aqui recorridos o remanescente do produto da venda, pois que, na execução não tinham sido reclamados quaisquer créditos a que houvesse que dar pagamento.
É claro que isso não invalida, indo por esta via (de que o arresto constitui um direito real de garantia mesmo que não convertido em penhora), que a apelante não possa reclamar dos arrestados o pagamento do valor económico do direito caducado pelo produto da venda dos mesmos, em ação a instaurar para esse efeito (cfr. citado nº 3 do artigo 824.º).
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Daqui resulta que, ao contrário do que refere a apelante, estão aqui em causa regras e normas do nosso direito adjetivo nos moldes suprarreferidos, e não apenas as regras e princípios básicos do direito, do bom senso e da justiça.
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É claro que, o que se acaba de afirmar, partiria do pressuposto do que arresto, antes da sua conversão em penhora, constituiu uma garantia real o que, como acima se decidiu, assim não é.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 19 de dezembro de 2023.
Manuel Domingos Fernandes
Anabela Morais
Jorge Ribeiro Martins
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[1] Vide, neste sentido, por todos, L. Menezes Leitão, “Garantia das Obrigações”, 2ª edição, pág. 246-247, Salvador da Costa, “Concurso de Credores”, 3ª edição, pág. 21, Marco C. Gonçalves, “Lições de Processo Civil Executivo”, 2016, pág. 231 e J. Lebre de Freitas, “A Acão Executiva–À luz do Código Revisto”, 2ª edição, pág. 218.
[2] Vide, em sentido contrário, negando a qualidade de garantia real da penhora, ainda que lhe reconhecendo os efeitos da preferência e da sequela, por todos, Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11ª edição, pág. 983-984 e, com exposição das várias posições assumidas na doutrina sobre a matéria, L. Migue Pestana de Vasconcelos, “Direito das Garantias”, 2ª edição, pág. 415-417
[3] Vide, neste sentido, por todos, Salvador da Costa, “Concurso de Credores”, 3ª edição, pág. 24, P. Lima e A. Varela, “Código Civil Anotado”, II volume, 3ª edição, Revista e Atualizada, pág. 93 e Marco C. Gonçalves, op. cit., pág. 235.
[4] Rui Pinto, “A Ação Executiva”, AAFDL, 2018, pág. 459-460.
[5] In “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV volume, Procedimentos Cautelares Especificados, 3ª edição, pág. 174
[6] Código Civil Anotado em anotação ao artigo 622º do CC, embora o pensamento destes autores não seja muito claro sobre o assunto.
[7] -A Acão Executiva Singular, Comum e Especial, 3.ª ed. pg. 178.
[8] Reclamação, Verificação e Graduação de Créditos, pg. 150.
[9] O Concurso de Credores, págs. 15 e 298.
[10] Acão Executiva Singular, pg. 333.
[11] Curso de Direitos Reais, 1992, pg. 203.
[12] Curso de Direitos Reais, págs. 246-247.
[13] Vd. Ac. da RL de 05.02.2004 in www.dgsi.pt..
[14] Vd. Acs. da RP de 07.11.2002, CJ, 2002, V, 163; da RP de 19.10.2004, CJ, 2004, IV, 192; e da RP de 17.01.2005, acessível em http://www.dgsi.pt.
[15] Pois se penhora (arresto) pode ser reforçada ou substituída quando seja ou se torne manifesta a insuficiência dos bens penhorados (arrestados) por maioria de razão tal deve ocorrer quando esses bens já não estejam na titularidade do executado por terem sido vendidos em execução.
[16] Vide, nesse sentido, e para maior desenvolvimento, o prof. Lebre de Freitas, in “Ob. cit., págs. 356/363, e o Ac. do STJ de 12/03/2009, proc. 09A345, disponível em www.dgsi.pt.
[17] Código Civil Anotado, Volume II, 4ª Ed. pág. 97.