IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE CONSUMO
VENDA DE BEM DESCONFORME
ÓNUS DA PROVA DA FALTA DE CONFORMIDADE
Sumário


1 – Quando no recurso seja impugnada a decisão da matéria de facto, o recorrente deve especificar, nas conclusões das alegações do seu recurso, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, sob pena de rejeição do recurso sobre a matéria de facto.
2 – O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.
3 - A falta de conformidade que se manifeste no prazo legal de garantia presume-se existente na data da entrega do bem, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.
4 – Em ação de responsabilidade civil contratual por venda de bem desconforme, cabe ao autor a alegação e prova dos factos que consubstanciam a celebração do contrato de consumo e a falta de conformidade, mas, em virtude da presunção de que beneficia, não necessita provar que essa desconformidade já se verificava no momento da entrega do bem.
5 – Recai sobre o vendedor o ónus de provar que a falta de conformidade não existia no momento da entrega, devendo-se a facto posterior que não lhe é imputável, ou seja, numa circunstância externa e ulterior ao momento da sua entrega, nomeadamente resultante de ato de terceiro ou do próprio comprador.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra EMP01... – Comércio e Aluguer de Automóveis e Equipamentos, Unipessoal, Lda., pedindo que a Ré seja «condenada a:
a) Pagar ao Autor a quantia de 10.409,77€ (dez mil, quatrocentos e nove euros e setenta e sete cêntimos), valor correspondente à reparação do veículo em causa nos presentes Autos, que o A. entretanto suportou.
b) Pagar ao Autor a quantia de 217,89€ (duzentos e dezassete euros e oitenta e nove cêntimos) a título de juros de mora vencidos e não pagos.
c) Pagar ao Autor a quantia de 3.682,58€ (três mil, seiscentos e oitenta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos) relativos a privação do uso.
d) Pagar ao Autor 1.000,00€ (mil euros) a título de danos não patrimoniais.
e) Pagar ao Autor juros de mora vincendos, incidindo sobre todas as quantias acima referidas e até efectivo e integral pagamento.»
Para o efeito, alegou ter comprado à Ré, em 01.06.2019, o veículo automóvel com a matrícula ..-PF-.., o qual avariou no dia 17.05.2021, não tendo a Ré assumido o custo da reparação no valor de € 10.409,77, apesar de ter procedido à peritagem do veículo, no âmbito da qual se concluiu que a avaria se deveu a uma fuga de óleo do motor através da junta da cabeça, aparentemente por falência do material.
Mais alegou que ficou privado do uso do veículo desde 17.05.2021 e até 24.07.2021, pelo que entende dever ser-lhe arbitrada uma indemnização para ressarcimento de tal dano, à razão diária de € 96,91, no valor total de € 3.682,58, e bem ainda a quantia de € 1.000,00, com vista à compensação dos danos morais que alega ter sofrido.

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A Ré contestou, invocando a ineptidão da petição inicial e alegando que a avaria se ficou a dever a conduta negligente do Autor.
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1.2. Dispensada a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, definiu-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Depois de outras vicissitudes, que para o caso não relevam, realizou-se a audiência final e proferiu-se sentença, a julgar a ação parcialmente procedente e a condenar a Ré «a proceder ao pagamento ao autor:
a) da quantia de 10.409,77€, acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor para os juros civis, a contar desde 16/6/2021 e até integral e efetivo pagamento;
a) da quantia de 900,00€, acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor para os juros civis, a contar desde a presente data e até integral e efetivo pagamento;
Absolvo a ré de tudo o demais peticionado pelo autor.»
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1.3. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

«I. O Tribunal a quo, na sentença recorrida, condenou a Ré ao pagamento do montante de €10.409,77 (dez mil quatrocentos e nove euros e setenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor para os juros civis, a contar desde 16.06.2021 e até efectivo e integral pagamento, acrescido do montante de €900,00 (novecentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor para os juros civis, desde a data da sentença e até efectivo e integral pagamento.
II. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão no facto de considerar ter ficado provado que o Autor não teve qualquer intervenção na criação e/ou na concretização da avaria da viatura, que se ficou a dever a uma fuga de óleo.
III. Como tal, considerou a sentença recorrida que a situação em causa nos presentes autos se subsume a uma venda de bem defeituoso, pelo que tendo o Autor a qualidade de consumidor, nos termos e para os efeitos do Decreto-Lei n.º 67/2003, cabia à ora Recorrente o ónus da prova de que a falta de conformidade do bem se deveu a uma causa externa e ulterior ao momento da sua entrega, considerando que a Recorrente não fez a referida prova.
IV. Contudo, face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, entende a Recorrente que a decisão tomada pelo Tribunal a quo deveria ter sido em sentido diverso e contrário, impondo-se a absolvição de todos os pedidos formulados pelo Autor, ora Recorrido.
V. No que diz respeito à alegada falta de conformidade do bem na altura da entrega, resulta tando da prova documental, como da prova testemunha, nomeadamente da inquirição da testemunha BB, que procedeu à elaboração do relatório, que afirmou ser impossível a viatura andar um período de 2 anos (período este que mediou a venda da viatura e a sua avaria), com aquele tipo de problema, tendo inclusivamente referido, que não concorda que tenha sido uma coisa de meses, tendo sido um período mais curto.
VI. Esta questão é também corroborada tanto pelas declarações do Autor, ora Recorrido, como também pelo testemunho da sua esposa, CC, tendo ambos referido que não existiu, até à data da avaria, qualquer problema com a viatura e que, inclusivamente poucos dias antes de esta suceder, tinham ido à ... e que o carro não apresentava qualquer sinal de avaria.
VII. Por outro lado, a quase unanimidade das testemunhas considerou o facto de, alegadamente, não ter aparecido qualquer aviso no painel relativo à falta de óleo da viatura, como “muito estranho”.
VIII. As testemunhas inquiridas e com experiência na condução e na reparação destas viaturas afirmaram, sem qualquer margem para dúvidas, nunca terem visto tal coisa.
IX. Acresce que considera a ora Recorrente que também foi feita prova não só suficiente, como abundante, de que era impossível não terem aparecido outros sinais no carro, nomeadamente com o facto de se acenderem outras luzes, como as luzes de temperatura ou de falta de água – para além da luz da falta de óleo.
X. Resultou também provado, na opinião da ora Recorrente, que a sinais como fumo e barulhos terão também existido, para além da exibição de manchas de óleo no chão, tendo inclusivamente as testemunhas DD e EE afirmado veementemente que não se encontravam depositados na blindagem os 5 ou 6 litros de óleo que o carro deveria ter na altura em que avariou, cabendo assim questionar para onde terá ido o óleo.
XI. A testemunha EE, que foi quem desmontou a viatura e a acompanhou do início ao fim, foi veemente a alegar que não existia qualquer avaria no sensor do óleo, que permitisse que não tivesse sido exibida, alegadamente, qualquer luz de aviso de falta de óleo, alegando também que nem o sensor do óleo nem qualquer outro sensor tenha sido substituído.
XII. Ademais, de acordo com o depoimento das testemunhas, entende a Recorrente que o Tribunal deveria ter concluído, com toda a segurança, que não foi possível verificar a existência (ou não) de avisos luminosos no painel da viatura, porquanto apenas com o motor ligado era possível a referida verificação, o que não foi possível de atestar, dado que a viatura não ligava.
XIII. Pese embora o Tribunal a quo tenha considerado provado que o Autor não criou nem agravou a avaria provocada na viatura, a verdade é que a ora Recorrente entende ter sido produzida prova suficiente, em sede de audiência de discussão e julgamento, em sentido contrário.
XIV. Desta forma, entende a Recorrente que não só não se pode subsumir o caso dos presentes autos a uma venda de bem defeituoso, como também se impunha uma decisão diversa no que diz respeito à negligência do Autor relativamente aos sinais cuja prova produzida resulta terem aparecido no painel.
XV. A viatura deu sinais de que alguma coisa não estava bem, mas o Autor optou por ignorar os referidos sinais, continuando a circular com a viatura.
XVI. Sinais como barulhos, fumo e luzes ligadas, seja do óleo ou de outros componentes da viatura foram verificados, sem que o Autor tivesse imobilizado a viatura.
XVII. Assim sendo, entende a Recorrente ter sido feita prova suficiente não só da conformidade do bem, afastando a presunção que sobre si impendia, como também logrou demonstrar que a actuação do Autor e da sua esposa, enquanto condutora do veículo, contribuíram decisivamente para o resultado final: uma falha catastrófica que resultou na necessidade de uma reparação de mais de dez mil euros.
XVIII. No que diz respeito aos valores aos quais a Recorrente foi condenada e relativos à indemnização pela privação do uso, a Recorrente entende também que se impunha uma decisão diversa por parte do Tribunal a quo, não só em virtude do que foi supra descrito, como também do facto de não existir qualquer impedimento/privação nas deslocações efectuadas pelo Autor e pela esposa, que tinham outra viatura, conforme os mesmos o confessaram.
XIX. Ora, se tinham uma outra viatura e se a viatura objecto dos presentes autos tinha como principal objectivo a deslocação em distâncias curtas, conforme o próprio Autor referiu e não tendo sido provado que as idas aos passeios ao ... e à ... – conforme expressamente referido pelo Autor em sede de declarações de Parte -, deixaram de existir em virtude da necessidade de reparação da viatura, impunha-se uma decisão diversa por parte do Tribunal a quo.
XX. No que diz respeito aos danos não patrimoniais, que mereceram tutela por parte do Tribunal a quo, com a condenação da Recorrente ao pagamento de €200,00 entende esta que esta indemnização não tem qualquer cobertura legal.
XXI. Os simples aborrecimentos e preocupações não podem ser tutelados pelo instituto da indemnização por danos não patrimoniais.
XXII. Neste caso, essa indemnização fará ainda menos sentido porquanto foi o próprio filho do Autor (FF) que, quando inquirido no âmbito dos presentes autos, veio referir ter sido ele próprio a tratar de todas as comunicações entre a Recorrente, a oficina e o Autor, em virtude de o Autor se encontrar ausente do país a maioria do tempo, dada a sua profissão de motorista de transporte internacional.
XXIII. Não poderia, assim, o Tribunal a quo ter condenado a Recorrente ao pagamento deste montante.
XXIV. Face ao supra exposto, entende a Recorrente que a decisão do Tribunal a quo deveria ter sido tomada em sentido diverso, pelo que face à prova carreada para os presentes autos e para a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, impunha-se a absolvição total do pedido formulado contra a Recorrente, requerendo-se, desde já, a revogação da sentença recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que absolva a Ré de todos os pedidos formulados contra si.»
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O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido.
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1.4. Questões a decidir

Nas conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a Recorrente suscita as seguintes questões:
i) Erro no julgamento da matéria de facto (conclusões V a XIII);
ii) Consequências em sede de direito da eventual modificação da matéria de facto, apreciando da:
a) Conformidade do bem com o contrato;
b) Inexistência de privação de uso do veículo;
c) Inexistência de danos não patrimoniais.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
«A. A ré é uma sociedade que se dedica, com carácter habitual e lucrativo, à compra, venda e aluguer de veículos automóveis.
B. O autor comprou à ré, a 01/06/2019, o veículo usado ligeiro de passageiros marca..., modelo ..., ..., com 170 cavalos de potência, matrícula ..-PF-.. (a seguir “PF”), quadro nº ..., pelo preço de 25.980,00€.
C. Foi contratualizada entre as partes uma Garantia de Venda de 36 meses nos termos e condições constantes do documento anexo à petição inicial (fls. 17 a 21 dos autos físicos), cujo teor aqui se dá por reproduzido, e de onde constam, ademais, os seguintes dizeres:
“(…)
B) Condições Gerais,
(…) o objeto da Garantia consiste na reparação gratuita de qualquer não conformidade não decorrente do desgaste natural resultante da utilização do veículo garantido e que se verifique após a sua venda, nomeadamente avarias mecânicas, elétricas e/ou eletrónicas (…) que possam ocorrer em peças do veículo vendido, durante o período de vigência da Garantia e nos termos adiante referidos.
(…)
E) Exclusões Gerais
(…)
. a substituição, reparação ou afinação de peças ou órgãos, causadas por mau uso ou pelo desgaste natural, resultante da utilização do veículo (correias, grupo de embraiagem, volante de motor, escape, filtro partículas, amortecedores, jantes, pneus, baterias, lâmpadas, pastilhas e calços de travões, tubos de borracha, controlos e afinações, incluindo alinhamento da direção, calibragem das rodas e regulação da suspensão).
(…)
. as avarias originadas ou agravadas em consequência de negligência, mau uso, utilização não prevista (sobrecarga, competição, estacionamento incorreto ou uso inadequado de combustíveis) ou incumprimento das instruções de utilização e manutenção do veículo (…)”.
D. No dia 17/05/2021, quando o veículo PF se encontrava em circulação e contava com 81.929 Kms percorridos, sofreu uma avaria porque o motor do veículo perdeu o seu líquido lubrificante (óleo do motor) por causa de uma fuga de óleo através da junta da cabeça, tendo o motor ficado irremediavelmente danificado, acabando o veículo totalmente imobilizado.
E. O autor contactou a ré no dia 17/05/2021 e, por indicação da ré, o veículo PF foi enviado para oficina autorizada, em concreto, a EMP02..., Lda., sita na Rua ..., ..., ... ..., onde acabou por entrar a 19/05/2021.
F. Na aludida oficina, por ordens da ré, foi o veículo PF sujeito a relatório de peritagem, por parte de perito da confiança da ré, a 02/06/2021, tendo sido elaborado, pelo aludido perito, o relatório de peritagem que consta de fls. 21-A a 21-F, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
G. O orçamento para a reparação ascendeu a 10.409,77€, que a ré se recusou a pagar.
H. O autor remeteu à ré carta registada datada de 22 de outubro de 2021, através da qual a interpelou para o pagamento da quantia de 13.123,25€.
I. O autor acabou por assumir os custos com a reparação.
J. … O que fez por precisar do veículo para (a esposa) se deslocar diariamente.
K. O autor viu-se privado do uso do seu veículo entre 17/05/2021 e 24/07/2021, data de levantamento do veículo.
L. Para o aluguer de um veículo com as mesmas características do PF o autor teria de suportar o valor diário de 96,91€.
M. O autor sentiu-se triste, amargurado e ansioso com toda a situação, em especial com a recusa referida em G..
N. O veículo foi entregue ao autor no dia 5 de julho de 2019, com as revisões e inspeções periódicas em dia e em ótimo estado de funcionamento.»
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2.1.2. Factos não provados
O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
«1. O referido em M. sucedeu durante largas semanas e ainda hoje o assunto causa tristeza, insatisfação e revolta ao autor.
2. A avaria referida em D. deveu-se à circunstância de o autor não ter prestado atenção ou ter desconsiderado as manchas de óleo no chão que evidenciavam uma fuga, continuando a usufruir do automóvel.
3. … E por não ter agido perante os alertas relativos aos baixos níveis de líquido de lubrificação do motor que apareceram no painel de instrumentos do veículo, continuando a usufruir do automóvel.
4. A fuga de óleo ter-se-á prolongado no tempo.
5. O autor, desde a aquisição do veículo referida em B., não procedeu à mudança de óleo periódica recomendada.
6. A causa da avaria referida em D. foi uma intervenção realizada pelo autor.
7. Caso o condutor tivesse imobilizado o veículo aquando do aparecimento dos avisos relativos ao baixo nível de óleo no motor, os custos de reparação da avaria não ascenderiam ao montante referido em G.»
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2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. Impugnação da decisão da matéria de facto
Resulta das suas alegações que a Recorrente pretende impugnar a decisão relativa à matéria de facto.
Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão sobre a matéria de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».
No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorretamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.
Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes[1], o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
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Analisadas as alegações, conclui-se que a Recorrente não cumpriu pelo menos um dos descritos requisitos que condicionam a admissibilidade da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Isto porque a Recorrente, desde logo, não especificou, nas conclusões das alegações do seu recurso, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, tal como exige o artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC. Na decisão sobre a matéria de facto julgaram-se provados 14 (catorze) factos e como não provados 7 (sete) factos. Como facilmente se pode constatar na transcrição literal efetuada no item 1.3. deste acórdão, em nenhuma das vinte e quatro conclusões das alegações do recurso se especifica que um desses vinte e um factos, provados ou não provados, foi incorretamente julgado. Sendo certo que a alínea a) do nº 1 do artigo 640º do CPC, expressamente impõe uma indicação concreta e definida dos factos impugnados («os concretos pontos de facto»), também nas conclusões não consta qualquer outro elemento que permita identificar os pontos de facto que a Recorrente visa no recurso sobre a matéria de facto, designadamente uma eventual referência a concretos artigos de uma peça processual onde se mostrem alegados os factos em causa.
Além disso, só indicando os pontos de facto objeto da impugnação se está em condições de cumprir o ónus, subsequente, de especificação da «decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas», conforme estabelecido na alínea c) do nº 1 do artigo 640º do CPC. Como é óbvio, se não se especificam as questões de facto impugnadas não é possível indicar a decisão que sobre elas deve ser proferida, pois aquela especificação constitui um pressuposto indispensável desta, atenta a relação que é necessário existir entre a decisão e o seu objeto.
Em suma: a Recorrente não aponta nas conclusões do seu recurso os pontos da matéria de facto incorretamente julgados[2] nem, seja na motivação ou nas conclusões, a decisão que deveria ser proferida sobre as questões de facto que terá pretendido impugnar.
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Os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como matéria de facto. Em ambos os casos vigora o ónus de alegar e formular conclusões.
Em conformidade com o disposto no artigo 639º, nº 1, do CPC, seja qual for a espécie e a natureza do recurso, impende sobre o recorrente o ónus de formular conclusões. Quer o recurso verse sobre matéria de direito ou verse sobre matéria de facto, «o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão».
Tratando-se de recurso em matéria de direito, o referido ónus cumpre-se procedendo à indicação dos elementos referidos no nº 2 do artigo 639º do CPC. Se o recurso for em matéria de facto, as conclusões devem especificar os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, tal como estabelecido no artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC.
Sem dúvida que há uma especificidade no recurso que envolve a matéria de facto, mas isso não dispensa o recorrente de formular conclusões. A especificidade reside em apenas se exigir ao recorrente que identifique nas conclusões os concretos pontos de facto que repute incorretamente julgados. Tudo o mais, ou seja, a fundamentação da imputação do erro de julgamento de facto[3] faz-se na motivação das alegações e já não nas conclusões.
Cingindo a nossa apreciação ao recurso em matéria de facto, poder-se-á perguntar qual a razão de ser da exigência de formulação de conclusões, traduzida na sintética indicação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados.
A razão é perfeitamente clara e compreensível: são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, em consonância com a regra geral que se extrai do artigo 635º do CPC, pelo que a enunciação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente tem de ser feita nas conclusões.
Essa especificação é indispensável, na medida em que as conclusões circunscrevem a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação[4]. Não sendo, manifestamente, uma questão de conhecimento oficioso, a circunstância de não se especificarem os concretos pontos de facto incorretamente julgados consubstancia, desde logo, uma falta de indicação do seu objeto.
Com efeito, as conclusões exercem a importante função de delimitação do objeto do recurso, através da identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende impugnar na decisão recorrida e sobre o qual se pretende que o tribunal superior faça uma reapreciação. O tribunal superior só aprecia o objeto definido pelas conclusões e, por isso, não tem de conhecer de uma questão, seja ela factual ou de direito, que não consta das conclusões, a não ser que se trate de matéria de conhecimento oficioso. O que não consta das conclusões não é objeto de conhecimento. E formular conclusões não é remeter para a motivação; a exigência de formulação de conclusões não é suprível por mera remissão.
Além de habilitar a um adequado exercício do contraditório pelo recorrido[5], a necessidade dessa especificação está também intimamente ligada às duas regras impostas no artigo 608º, nº 2, do CPC, onde se estabelece que «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Em conformidade com o disposto no artigo 635º do CPC, uma questão considera-se integrada no recurso se constar das conclusões; se assim suceder, o tribunal de recurso tem de resolver a questão que foi submetida à sua apreciação. Pelo contrário, se determinada questão não for indicada nas conclusões o tribunal não pode ocupar-se dela, ou seja, não pode dela conhecer, exceto se lhe for imposto o conhecimento oficioso.
Sendo assim, num recurso em matéria de facto, se o tribunal de recurso não aborda um ponto de facto que o recorrente identifica como incorretamente julgado, verifica-se uma nulidade por omissão de pronúncia (artigos 666º, nº 1, e 615º, nº 1-d, 1ª parte, do CPC); se decide relativamente a um ponto de facto que o recorrente não identificou como incorretamente julgado, em princípio, comete uma nulidade por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1-d, 2ª parte, do CPC).
Vejamos agora qual é a consequência da falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto incorretamente julgados.
Por um lado, exceto em matéria de que lhe cumpre apreciar oficiosamente, é inequívoco que o tribunal superior não pode conhecer de uma questão que não foi enunciada nas conclusões.
Por outro lado, a lei expressamente impõe a rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto quando o recorrente não especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC. Estabelecendo um paralelismo com a petição inicial, tal como esta padece de ineptidão quando falta a indicação do pedido, também as conclusões num recurso em matéria de facto em que não se indicam os concretos pontos de facto incorretamente julgados são “ineptas”.
E não se justifica sequer a prolação de qualquer despacho de convite à sua indicação. Foi propósito deliberado do legislador não instituir qualquer convite ao aperfeiçoamento das alegações a dirigir ao apelante. Por um lado, a lei é a este respeito imperativa, ao cominar a imediata rejeição do recurso, nessa parte, para a falta de cumprimento pelo recorrente do referido ónus processual. Por outro lado, não há lugar a convite ao aperfeiçoamento das conclusões, uma vez que o artigo 652º, nº 1, al. a), do CPC apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento das «conclusões das respetivas alegações, nos termos do nº 3 do artigo 639º», ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto.

Conquanto nos pareça que o acabado de expor é absolutamente linear e inequívoco, e embora sem termos a certeza sobre quais sejam as concretas «questões de facto impugnadas», importa fazer um esforço no sentido de apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto na única vertente que é materialmente possível, ou seja, na parte em que a Recorrente alega:
- «(…) foi feita prova não só suficiente, como abundante, de que era impossível não terem aparecido outros sinais no carro, nomeadamente com o facto de se acenderem outras luzes, como as luzes de temperatura ou de falta de água – para além da luz da falta de óleo» (conclusão IX);
- «Resultou também provado, na opinião da ora Recorrente, que a sinais como fumo e barulhos terão também existido, para além da exibição de manchas de óleo no chão (…)» (conclusão X);
- «A viatura deu sinais de que alguma coisa não estava bem, mas o Autor optou por ignorar os referidos sinais, continuando a circular com a viatura» (conclusão XV);
- «Sinais como barulhos, fumo e luzes ligadas, seja do óleo ou de outros componentes da viatura foram verificados, sem que o Autor tivesse imobilizado a viatura» (conclusão XVI).
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2.2.1.1. Facto indicado na conclusão IX
Entende a Recorrente que deveria ter sido dado como provado que se «acender[a]m outras luzes, como as luzes de temperatura ou de falta de água – para além da luz da falta de óleo».

Revista toda a prova produzida no que respeita ao aparecimento de «sinais no carro», como sejam «as luzes de temperatura ou de falta de água» ou a «luz da falta de óleo», não detetamos qualquer erro de julgamento por parte do Tribunal recorrido.
Em primeiro lugar, qualquer um dos sinais mencionados pela Recorrente na conclusão IX, caso tivessem ocorrido, ficaria registado.
A este propósito, a testemunha EE referiu que o veículo «tem um computador de bordo» e que quando «o carro está com falta de óleo ou água, dá sempre sinal no painel antes de ficar memorizado na unidade, na centralina». Afirmou que não ficou registado qualquer um desses sinais (à pergunta da Sra. Juiz respondeu: «Não, não estava.»). Por conseguinte, nenhum sinal ficou «memorizado na unidade, na centralina». Ao contrário do que a Recorrente pretende fazer crer, não é uma questão de o sinal não aparecer no painel, mas de não estar memorizado.
Além disso, conforme se pode ver no documento nº ... junto com a petição inicial, consistente numa «peritagem técnica de avaria mecânica» incidente sobre o veículo com a matrícula ..-PF-.., realizada pela testemunha BB e à qual assistiram as testemunhas DD e EE (nenhuma das aludidas testemunhas tem qualquer relação com o Autor, sendo que a primeiro interveio a pedido da Ré, enquanto perito da confiança desta, e as duas últimas trabalham na oficina para onde a Ré indicou que a viatura devia ser enviada após ter ocorrido a avaria e inerente imobilização), verifica-se que foi «efetuado um protocolo de diagnóstico, não tendo sido identificados, com o equipamento oficinal, erros associados à fuga de óleo do motor ou alertas relativos a alguma situação anormal de utilização» (é de destacar que nesse documento foi transcrito o próprio “relatório de diagnóstico”). Também aí se refere que «não foram comprovados registos de anomalias no painel de instrumentos».
Portanto, objetivamente, nenhum erro referente aos aludidos sinais foi registado pela unidade do veículo destinada precisamente a registá-los.
Assim sendo, os aludidos elementos objetivos secundam a decisão proferida pelo Tribunal recorrido relativamente à matéria de facto.

Em segundo lugar, quanto aos extratos dos depoimentos das testemunhas DD, EE e BB que a Recorrente transcreve, sob a epígrafe «da existência da informação de erros» (sem indicar o concreto facto relativamente ao qual relevam as passagens da gravação que a seguir transcreve), verifica-se que o depoimento desta terceira testemunha foi invocado, nas próprias palavras da Recorrente, «Especificamente em relação à questão da existência de fumo». Quer dizer, a Recorrente socorre-se do que a testemunha BB disse sobre a específica «questão da existência de fumo», quando aquilo que procurava demonstrar era coisa diversa, que é a «existência da informação de erros». Fumo e erros são questões factuais distintas.
Por sua vez, os depoimentos das testemunhas DD e EE não permitem concluir que «as luzes de temperatura», «de falta de água» ou de «falta de óleo» apareceram no painel de instrumentos. As testemunhas afirmaram que a situação era esquisita («aquilo foi um bocado esquisito», «nunca vi igual», «É muito esquisito. Muito, muito esquisito») e que normalmente o carro “dá sinais”.
O problema é que sendo normal que numa situação como a dos autos surjam sinais no painel, também é normal que o sistema registe uma falha como aquela que se verificou, que a Ré qualifica como “catastrófica”. E o certo é que o sistema não registou qualquer erro ou evento (por exemplo, a testemunha EE afirmou que «o óleo, pelo menos, tinha de memorizar de falta de óleo»), pelo que, por identidade de razão, também podia não apresentar qualquer sinalização. Aliás, aquando da realização do diagnóstico o automóvel também não apresentou qualquer alerta.

Em terceiro lugar, tanto o Autor (que conduziu o carro dias antes) como a sua mulher (que era condutora habitual do veículo, designadamente no dia em que ocorreu o facto referido em D), afirmaram que o veículo não emitiu qualquer alerta ou sinal.
Pelo exposto, improcede a impugnação sobre a questão factual mencionada na conclusão IX.
*

2.2.1.2. Facto indicado na conclusão X
A Recorrente opina que «sinais como fumo e barulhos terão também existido, para além da exibição de manchas de óleo no chão».
Analisados os meios de prova invocados pela Recorrente e efetuado o seu confronto com os demais que foram produzidos sobre a emissão de fumo e barulhos ou a existência de manchas de óleo no chão, não conseguimos formar uma convicção diferente da exposta pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, a qual nos parece em inteira consonância com a prova produzida e, por isso, secundamos, salientando-se as seguintes passagens da motivação, as quais são bem elucidativas dos fundamentos do assim decidido:
«É certo que a ré procurou demonstrar em juízo que a avaria em questão derivou de negligência dos autores, que teriam ignorado quer os sinais indicativos de falta de óleo que necessariamente apareceram previamente no painel de instrumentos, quer as pingas de óleo que necessariamente surgiram no piso, sinais que a testemunha GG, de forma velada, procurou demonstrar terem efetivamente existido.
Sucede que o tribunal não logrou convencer-se que, de facto, tais “sinais de alerta” tivessem existido.
De facto, quer o autor, quer as testemunhas seus familiares, negaram a existência de tais “sinais”, tendo a testemunha CC, que era quem habitualmente conduzia o veículo e o timonava na data do surgimento da avaria, asseverado, de forma que se nos afigurou genuína, que nunca anteriormente vira qualquer óleo na garagem onde aparcava o veículo, assim como nunca viu qualquer luz acesa no painel de instrumentos, tendo o carro parado de forma inesperada quando seguia numa rua com inclinação ascendente e apenas se tendo apercebido, na ocasião da imobilização, que o mesmo estava a fazer um bocadinho de fumo.
E a prova produzida pela ré contrariou as declarações sérias que assim foram produzidas?
Cremos que não.
Desde logo, a própria testemunha BB, que procedeu ao exame da viatura, tendo “pelos seus olhos” visto o seu estado (ao contrário da testemunha HH, que se limitou a analisar as fotografias que por aquele foram retiradas), admitiu que a fuga em questão poderia de facto não ter sido detetada visualmente por quem conduzia a viatura (“o que era normal”, sic), possibilidade que justificou, ademais, com a circunstância de o óleo poder ter ficado oculto/depositado nos resguardos inferiores de que o veículo era dotado, que verificou estarem efetivamente impregnados de óleo (vide fotografias de fls. 21-B verso), e com a circunstância de o óleo, em andamento, ser projetado para os componentes mecânicos, onde se foi espalhando (vide fotografias de fls. 21-B verso), podendo, segundo o mesmo, ir saindo sem perceção, até que, houve um momento em que saiu o resto e deu-se a falência do motor.
De igual forma, admitiu como possível que, após uma viagem anterior mais longa, viesse a ocorrer a falência repentina do veículo numa viagem de curta distância, como aquela em que a esposa do autor declarou ter ocorrido a avaria, tendo justificado tal possibilidade com a circunstância de o veículo, tendo já perdido anteriormente algum óleo (naquela viagem mais longa), de repente, na subida em que a autora disse seguir (para o cemitério ...), com a posição desnivelada do veículo e do óleo, vir a sofrer “escassez de óleo, sofrendo, nessas circunstância, de forma repentina, a falha catastrófica.
Ora, considerando o referido depoimento, que se nos afigurou tranquilo, tendo-se a testemunha revelado capaz de manter o necessário distanciamento em relação à posição das partes, mostrando sempre abertura para admitir e questionar todas as possíveis causas da avaria, ao contrário da testemunha GG, cujo depoimento se revelou comprometido com a posição da ré, de quem é dependente pela relação laboral que os une, tendo proferido sempre considerações de carácter subjetivo e conclusivo, o que denotou a pouca isenção com que depôs, claramente procurando sempre declarar o que fosse mais vantajoso para a sua entidade patronal, o tribunal não logrou convencer-se que, de facto, da parte do autor tivesse necessariamente havido um prévio conhecimento de qualquer pinga ou mancha denunciadora da existência de uma fuga, assim como não logrou convencer-se que a referida fuga se tivesse perpetuado no tempo pois que a própria testemunha BB admitiu que uma fuga de tal natureza poderia ocorrer numa única viagem .../..., tudo justificando a não prova da factualidade constante de 2 e 4.
De igual forma, dado que a testemunha BB, em total consonância com o declarado pelas testemunhas familiares do autor e as testemunhas II e EE, confirmou que, aquando do seu exame, o quadrante da viatura não exibia qualquer mensagem de erro, mormente de baixo nível de óleo (vide considerações do relatório de fls. 21-C), também não se convenceu o tribunal da pré-existência dos avisos referidos em 3..
De facto, tornou-se evidente, em face do depoimento das aludidas testemunhas, como também do depoimento da testemunha GG, que, numa situação de normalidade, no quadrante, previamente à avaria em questão, teria que ter aparecido o aviso de falta de óleo, havendo dois dispositivos que permitiam o controlo do nível de óleo, ou seja, um “gráfico”, que indicava o nível do óleo quando o veículo era ligado, e uma luz, que acenderia quando o nível do óleo descesse abaixo de certo nível, tendo sido aventadas duas hipóteses para a inexistência de quaisquer alertas no quadrante: delete propositado da aludida informação, através da manipulação da Centralina do veículo; mau funcionamento do sensor/elementos eletrónicos de transmissão de informação ao quadrante.
Ora, dado que o depoimento das testemunhas CC e JJ, apesar da sua relação familiar com o autor, não nos suscitou qualquer dúvida quanto à sua seriedade, nem as testemunhas II e KK, respetivamente dono e mecânico da oficina onde a viatura foi examinada e reparada, anotaram alguma circunstância que minimamente abalasse a autenticidade do relato daqueles, o mesmo tendo sucedido com o depoimento da testemunha LL, que também não deu conta de ter minimamente suspeitado de qualquer comportamento fraudulento sobre o veículo, que não mencionou no seu relatório, o tribunal não logrou convencer-se de qual foi afinal a causa da falta de registo das anomalias, e se tal falta de registo estava ou não a ocorrer anteriormente à falha catastrófica que o veículo veio a sofrer, pois que, embora não tivessem sido substituídos quaisquer elementos atinentes aos referidos componentes eletrónicos (vide fatura de fls. 22), os mesmos foram “mexidos” no decurso da reparação a que se procedeu, como deu conta a testemunha KK, pelo que, caso houvesse uma simples má ligação de alguma ficha, justificadora da ausência de alertas de falta de óleo, a mesma poderia ter sido corrigida apenas com aquela intervenção.
Perante o assim exposto, e dado que a ré não tratou de proceder ao exame mais aturado da Centralina da viatura por forma a tentar perceber qual foi afinal a causa da falta de alertas/registo de informação, prova que estaria ao seu alcance pois que a mesma poderia ter tentado uma análise mais exaustiva ao veículo/centralina através da concessionária da marca do mesmo, como aliás aventado pelas testemunhas BB e GG, tendo este aliás dado conta de haver situações em que são detetados pelas marcas casos de eliminação intencional de informação, o tribunal não logrou convencer-se também da factualidade enunciada em 3. e 7., cujo ónus probatório competia à ré.»
Termos em que improcede a impugnação sobre a apontada questão factual.
*

2.2.1.3. Factos indicados nas conclusões XV e XVI
Sustenta a Recorrente que o Autor, apesar de a viatura dar «sinais como barulhos, fumo e luzes ligadas, seja do óleo ou de outros componentes da viatura», optou por os ignorar e continuar a circular.
A existência dos aludidos sinais constitui o pressuposto da apontada conduta negligente do Autor.
Não estando demonstrado o referido pressuposto factual – a existência de sinais –, não pode julgar-se provado que o Autor os ignorou ou desconsiderou.
Por isso, improcede a impugnação também nesta parte.
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2.2.2. Reapreciação de Direito
2.2.2.1. Falta de conformidade do bem
A Ré interpôs recurso de apelação da sentença, pretendendo a sua revogação e, em decorrência, que a ação seja julgada totalmente improcedente.
A ação foi configurada na petição inicial como uma ação de responsabilidade civil contratual por venda de coisa defeituosa e o Autor enquadrou a sua pretensão no regime jurídico resultante do Decreto-Lei n° 67/2003, de 08 de abril, ou seja, na venda de um bem para consumo.
É perfeitamente pacífico que entre as partes foi celebrado um contrato de compra e venda (v. artigo 874º do CCiv) e a Ré não questiona que se está perante uma relação de consumo.
A questão suscitada pela Recorrente sobre a conformidade do bem com o contrato deve ser analisada no âmbito do Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril, na versão aplicável que se encontrava em vigor à data da celebração do contrato de compra e venda, ocorrida em 01.06.2019, que é a decorrente do Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de maio. Apesar de na alínea b) do artigo 54º do Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de outubro, se revogar «o Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril, na sua redação atual», aquele primeiro diploma estatui no nº 1 do seu artigo 53º que «as disposições do presente decreto-lei em matéria de contratos de compra e venda de bens móveis e de bens imóveis aplicam-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor».

Na sentença entendeu-se que o Autor, como consumidor, tinha direito à reparação do veículo automóvel que lhe foi vendido pela Ré, uma vez que a avaria ocorreu no prazo de garantia legal de dois anos (que no caso até se mostrava contratualmente estendida pelo prazo de três anos), que se presume que a causa da avaria existia já na data da entrega do bem e que a Ré, enquanto vendedora, não provou que a falta de conformidade do bem se deveu a causa externa e ulterior ao momento da sua entrega, nomeadamente resultante de ato de terceiro ou do próprio comprador.
A Recorrente, por sua vez, sustenta «ter sido feita prova suficiente não só da conformidade do bem, afastando a presunção que sobre si impendia, como também logrou demonstrar que a actuação do Autor e da sua esposa, enquanto condutora do veículo, contribuíram decisivamente para o resultado final: uma falha catastrófica que resultou na necessidade de uma reparação de mais de dez mil euros.»
Sucede que a tese defendida pela Recorrente não tem qualquer apoio na matéria de facto apurada. Dependia da procedência da impugnação da matéria de facto, a qual não se verificou.

Estabelece o artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril, que «o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda». Adotou-se assim a noção de conformidade, a qual tem a vantagem de abranger todas as situações que, se não fosse o mencionado diploma, teriam um tratamento diverso, como é o caso do vício ou defeito, da falta de qualidade do bem, da diferença de identidade e da diferença de quantidade. Em todas essas situações o regime é uniforme, relativo ao não cumprimento da obrigação.
A conformidade é apurada através da comparação entre a prestação estipulada no contrato e a prestação efetuada, mas o legislador consagrou várias referências a partir das quais se afere a conformidade com um contrato.
Assim, nos termos do nº 2 do artigo 2º, considera-se que os bens de consumo são desconformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:
«a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem».
No artigo 3º estabelecem-se duas regras normativas muito relevantes. No nº 1 determina-se que «o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue», daí emergindo que o momento relevante para apurar se o bem se encontra em conformidade com o contrato é o da entrega. No nº 2 prevê-se a presunção de anterioridade da falta de conformidade, reportada à data de entrega do bem: «as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respetivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade».
Portanto, em consonância com o disposto nos artigos 2º, nºs 1 e 2, e 3º, nº 2, o consumidor tem de provar a celebração do contrato e a falta de conformidade, pois, em virtude da presunção, não necessita provar que essa desconformidade já se verificava no momento da entrega do bem.
Daí que recaia sobre o vendedor o ónus de ilidir a presunção, provando que a falta de conformidade não existia no momento da entrega, devendo-se a facto posterior que não lhe seja imputável, como é o caso do uso incorreto do bem pelo consumidor[6]. Como se decidiu no acórdão de 04.06.2015 do Tribunal de Justiça da União Europeia, «o consumidor não está obrigado a provar a causa dessa falta de conformidade nem que a origem da mesma é imputável ao devedor» e a responsabilidade «só pode ser excluída se o vendedor demonstrar cabalmente que a causa ou a origem da referida falta de conformidade reside numa circunstância ocorrida depois da entrega do bem».
Em decorrência da presunção estabelecida no artigo 3º, nº 2, o vendedor responde por qualquer desconformidade que se manifeste no prazo de dois anos a contar da data de entrega da coisa móvel corpórea. O artigo 5º, nº 1, indica que os direitos de reparação do bem, substituição do bem, redução do preço e resolução do contrato (direitos esses especificados no art. 4º, nº 1) só podem ser exercidos, no caso de bem móvel, no prazo de dois anos a contar da entrega do bem, equiparando assim o prazo de garantia legal de conformidade ao da presunção da anterioridade dos defeitos. Tal prazo de garantia pode ser reduzido a um ano, por acordo das partes, tratando-se de «coisa móvel usada» (art. 5º, nº 2).
Assim sendo, no caso dos autos, ao pretender exercer um dos direitos previstos na lei, o Autor tinha de provar uma falta de conformidade do bem móvel que lhe foi vendido pela Ré.
O Autor logrou demonstrar que durante o prazo de garantia, em 17.05.2021, o veículo com a matrícula ..-PF-.. sofreu uma avaria, consistente em o motor ter perdido o seu líquido lubrificante, o que levou à danificação do motor, à consequente imobilização do veículo e à necessidade da realização de uma reparação no valor de € 10.409,77.
Como a avaria surgiu durante o prazo de garantia legal de conformidade, de harmonia com o disposto no artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril, presume-se que a causa da avaria existia na data da entrega do bem.
Por conseguinte, o Autor demonstrou os dois factos constitutivos da sua pretensão: a celebração do contrato de compra e venda de consumo e a falta de conformidade. A avaria do veículo é uma falta de conformidade do bem com o contrato, pois um automóvel avariado não cumpre a finalidade para a realização da qual foi comprado. E ao Autor bastava demonstrar que a avaria ocorreu no período legal de garantia, pois, em virtude da presunção, não necessitava provar que essa desconformidade já se verificava no momento da entrega do bem.
Para afastar a sua responsabilidade pelas consequências resultantes do evento, designadamente a obrigação de reparar a avaria e de indemnizar os demais danos, à Ré incumbia provar que a causa ou origem da falta de conformidade do bem reside numa circunstância externa e ulterior ao momento da sua entrega, ou seja, a facto posterior que não lhe é imputável, nomeadamente resultante de ato de terceiro ou do próprio comprador.
Não tendo a Ré feito tal prova, nenhuma censura merece a sentença, ao estabelecer a responsabilidade da vendedora pela indemnização ao Autor do valor que suportou com a reparação da avaria.
*
2.2.2.2. Privação do uso
O Tribunal, através do recurso à equidade e tendo por base a paralisação do veículo durante 32 dias, fixou o valor de € 700,00 «para compensar o autor de todo o dano relativo à privação do uso da viatura».
A Recorrente propugna pela revogação da decisão quanto a esta componente do pedido.

Na apreciação da questão, importa começar por fazer notar que a indemnização por privação do uso, em especial de um veículo automóvel, que é a situação factual mais comum, visa ressarcir um dano que afeta um interesse pecuniariamente avaliável, que tem expressão patrimonial. Está em causa a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Como não é possível a reconstituição natural, a respetiva indemnização é fixada em dinheiro.
O que é objeto de controvérsia, no que respeita à indemnização por privação do uso, é sobretudo a prova do dano e o frequente recurso à equidade para determinar o valor da indemnização, com fundamento no disposto no nº 3 do artigo 566º do Código Civil.
Nas últimas três décadas a questão da indemnização pela privação do uso de um veículo, decorrente da sua imobilização em consequência de acidente de viação, tem sido objeto de acesa discussão na doutrina e na jurisprudência, com múltiplas teses e correntes, tributária da progressiva autonomização de tal dano[7]. Na jurisprudência, algumas das anteriores (sub)correntes acabaram por ser abandonadas ou ultrapassadas, cingindo-se atualmente a três principais, sendo que a terceira que aqui se aponta só esparsamente se vê defendida:
a) A privação do uso de um veículo gera obrigação autónoma de indemnizar, independentemente da prova de uma utilização quotidiana do veículo, ainda que com recurso à equidade e ponderação das precisas circunstâncias que rodeiam cada situação[8];
b) A mera privação do uso do veículo é insuficiente para gerar a obrigação de indemnizar, devendo ser feita prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo, de proceder à sua utilização, embora sem exigir a prova de danos efetivos e concretos[9];
c) Para que a privação seja ressarcível terá de fazer-se prova do dano concreto e efetivo, isto é, da existência de prejuízos decorrentes diretamente da não utilização do bem[10].
Em resumo, para a primeira corrente basta a demonstração da privação do uso, para a segunda, além dessa privação, tem de demonstrar-se um propósito real de o lesado proceder à utilização do bem, enquanto a terceira não dispensa a prova de concretos prejuízos de ordem patrimonial.
Embora na sua formulação teórica sejam bem distintas entre si, na aplicação prática as duas primeiras acabam por se confundir na generalidade das situações, pois, sempre que existe uma utilização quotidiana tendem ambas a considerar que existe dano, sendo a quantificação da respetiva indemnização feita com base em critérios norteados pela equidade.
Pela nossa parte, a apreciação da ressarcibilidade nunca pode ser dissociada da análise das circunstâncias que rodeiam a privação do uso, sendo de afastar teses que defendam a fixação da indemnização de modo automático e de forma abstrata, sem qualquer ligação à situação concreta. Basta pensar na situação de alguém que deixa o veículo estacionado na rua e segue para o estrangeiro para passar férias e durante a sua ausência o veículo é danificado e reparado. Como é evidente, tal pessoa não sofreu um dano por privação do uso, pois, não tinha intenção nem possibilidade de utilizar o veículo naquele período. Vários outros exemplos se poderiam apontar de situações em que o titular do bem, apesar da danificação deste, não sofre qualquer dano autónomo de privação do uso. No fundo, não há dano autónomo suscetível de indemnização quando o titular no período de indisponibilidade do bem não se propunha aproveitar das suas vantagens ou utilidades.

No caso dos autos, o Autor pediu que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 3.682,58, a título de indemnização pela privação do uso do veículo desde 17.05.2021 e até 24.07.2021, ou seja, à razão diária de € 96,91, mas o Tribunal arbitrou-lhe apenas a quantia de € 700,00.
Sustenta a Recorrente «não existir qualquer impedimento/privação nas deslocações efectuadas pelo Autor e pela esposa, que tinham outra viatura, conforme os mesmos o confessaram».
Sucede que essa alegação não tem qualquer correspondência na factualidade que resultou demonstrada.
Em primeiro lugar, não resulta da matéria de facto que o Autor e a sua mulher “tinham outra viatura”. Nenhum facto alude a essa matéria.
Em segundo lugar, tendo o veículo avariado no dia 17.05.2021 (v. ponto D), está demonstrado que «o Autor viu-se privado do uso do seu veículo entre 17/05/2021 e 24/07/2021, data de levantamento do veículo» (K).
Em terceiro lugar, sabe-se que «para o aluguer de um veículo com as mesmas características do PF o autor teria de suportar o valor diário de 96,91€» (L).
Em quarto lugar, também se demonstrou não só que o veículo era utilizado diariamente como a necessidade do veículo para o efeito. Isto porque se provou que o Autor teve de suportar o custo da reparação (I) e que o «fez por precisar do veículo para (a esposa) se deslocar diariamente» (J).
Em suma, sendo manifesto que o Autor ficou privado da possibilidade de uso do seu veículo, verifica-se que logrou demonstrar a utilização que era habitualmente dada ao veículo e a necessidade da mesma.
O Autor não necessitava de provar direta e concretamente prejuízos efetivos, designadamente um acréscimo de despesa ou a frustração de um rendimento com o qual legitimamente contava. Isto porque, para se concluir sobre a ocorrência duma desvantagem patrimonial decorrente da privação do uso do bem, basta que resulte dos autos que o titular do correspondente direito o pretendia utilizar ou que normalmente o usaria.
Como existe substrato factual para permitir tal conclusão, a questão seguinte é a da quantificação da indemnização, o que pode perfeitamente alicerçar-se num juízo de equidade. Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2011[11], «a avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no artigo 566º, nº 3, do CC».
Por isso, nenhuma censura merece a sentença recorrida na parte em que fixou tal indemnização com recurso à equidade, operando uma redução substancial face ao valor peticionado e que se alicerçava no demonstrado facto de o aluguer de um veículo com as mesmas características daquele que lhe foi vendido pela Ré importar o dispêndio diário do valor de € 96,91.
Pelo exposto, improcedem as conclusões formuladas sobre esta questão.
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2.2.2.3. Danos não patrimoniais
Na decisão recorrida fixou-se uma indemnização no valor de € 200,00 pelo «rebate psicológico que o incumprimento da ré teve sobre o autor».
A Recorrente alega que «esta indemnização não tem qualquer cobertura legal», uma vez que «os simples aborrecimentos e preocupações não podem ser tutelados pelo instituto da indemnização por danos não patrimoniais».

Através da presente ação o Autor demanda a Ré com fundamento na responsabilidade contratual e o princípio fundamental mostra-se estabelecido no artigo 798º do Código Civil, segundo o qual «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor».
É pacificamente aceite que a aludida responsabilidade abrange tanto os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais causados ao credor pela falta culposa de cumprimento da obrigação, a apurar de harmonia com as regras gerais.
No que respeita aos danos não patrimoniais, de harmonia com o disposto no artigo 496º, nº 1, do CCiv, a obrigação de indemnização restringe-se aos «que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito».
A este respeito demonstrou-se, conforme consta da alínea M) dos factos provados, que «o autor sentiu-se triste, amargurado e ansioso com toda a situação, em especial com a recusa referida em G». No ponto G, por sua vez, deu-se como provado que «o orçamento para a reparação ascendeu a 10.409,77€, que a ré se recusou a pagar».
A situação dos autos é simples de descrever: o Autor considerava que a Ré era responsável pela reparação da avaria do veículo, enquanto esta sustentava que a dita avaria decorreu de uma conduta negligente daquele.
Por conseguinte, está apenas em causa a recusa da responsabilidade que em devido tempo o Autor imputou à Ré. É uma mera falta de cumprimento que surge no âmbito de um caso em que até se demonstrou que «o veículo foi entregue ao autor no dia 5 de julho de 2019, com as revisões e inspeções periódicas em dia e em ótimo estado de funcionamento». Não se descortina uma relevante gravidade ou censurabilidade, sendo de destacar que o Autor não logrou demonstrar o facto que consta do ponto nº 1 da factualidade não provada, isto é, que «o referido em M. sucedeu durante largas semanas e ainda hoje o assunto causa tristeza, insatisfação e revolta ao autor».
Sucede que a vida em sociedade implica que nos confrontemos regularmente com posições adversas aos nossos interesses e que nos causam transtornos, incómodos, preocupações e arrelias, pelo que a existência do litígio, desde que não se ultrapassem determinados limites comportamentais, não é só por si razão justificativa para se peticionarem e atribuírem indemnizações por “danos morais”. As consequências dessas posições têm sobretudo relevo no plano dos danos patrimoniais, como sucede no caso vertente, em que tais danos foram reparados através do êxito da ação, conforme atrás já expusemos.
Por isso, procede a apelação nesta parte.
***

III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a sentença apenas na parte em que fixou uma compensação por danos não patrimoniais no valor de € 200,00 (duzentos euros), confirmando-se em tudo o mais a decisão recorrida, o mesmo é dizer na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor:
a) a quantia de € 10.409,77 (dez mil, quatrocentos e nove euros e setenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor para os juros civis, a contar desde 16.06.2021 e até integral e efetivo pagamento;
b) a quantia de € 700,00 (setecentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor para os juros civis, a contar desde a data da sentença e até integral e efetivo pagamento.
Custas na proporção do decaimento.
*
*
Guimarães, 11.01.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Alcides Rodrigues
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira



[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, págs. 168 e 169.
[2] Segundos os acórdãos do STJ de 19.02.2015, proferido no processo 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes), de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1 (Ana Luísa Geraldes), e de 11.02.2016, proc. 157/12-8TVGMR.G1.S1 (Mário Belo Morgado), nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação. Todos os citados acórdãos estão disponíveis em www.dgsi.pt, tal como todos os que se indicarem no texto sem menção do respetivo suporte.
[3] Os fundamentos ou requisitos da impugnação relativa à matéria de facto que se mostram enunciados no artigo 640º, nº 1, alíneas b) e c), e nº 2, do CPC.
[4] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 115.
[5] Com a especificação das questões que se colocam ao tribunal ad quem para resolução, o recorrido fica a saber exatamente o que se discute no recurso e, por isso, está em condições de responder à alegação do recorrente – art. 638º, nº 5, do CPC.
[6] Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 5ª edição, Almedina, pág. 310.
[7] A autonomização do dano não tem aqui o sentido de criação de um tertium genus, relativamente aos danos emergentes e aos lucros cessantes, que têm expressão legal no artigo 564º, nº 1, do Código Civil. Face ao nosso direito positivo tal tertium genus não existe. Um dano patrimonial só é suscetível de ser enquadrado nos danos emergentes ou nos lucros cessantes. A autonomização da questão do dano de privação do uso emerge fundamentalmente da dificuldade de avaliação de tal dano patrimonial, para a qual o sistema jurídico contém solução. É um problema conceptual que conduz à criação de teorias e correntes artificiais.
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2018 (Abrantes Geraldes), no processo 176/13.7T2AVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, tal como todos os outros citados, sem indicação da fonte, no presente acórdão. No mesmo sentido, os acórdãos do STJ de 07.02.2008 (Sousa Leite), na revista 4505/07 da 6ª Secção (que pode também ser consultado na Colectânea de Jurisprudência do Supremo, Tomo I, pág. 90), e de 08.05.2013 (Maria dos Prazeres Beleza), no processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1.
[9] Acórdão do de 03.05.2011 (Nuno Cameira), no processo 2618/08.06TBOVR.P1. V. ainda os acórdãos do STJ de 09.12.2008 (Moreira Alves) e de 09.07.2015 (Fernanda Isabel Pereira).
[10] Esta era a posição considerada tradicional, mas que agora está em franco declínio.
[11]  Proferido no processo nº 2618/08.06TBOVR.P1 – relator Nuno Cameira, já atrás citado.