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CRIME DE CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
TÍTULOS DE CONDUÇÃO EMITIDOS NOS ESTADOS MEMBROS DA CPLP
Sumário
I–Pelo Decreto-Lei 46/2022, de 12julho, com o fito de reforço e melhoria da mobilidade dos cidadãos dos Estados-Membros da CPLP e de Estados-Membros da OCDE, reconhecem-se os títulos de condução aí emitidos, promove-se a dispensa de troca dos mesmos, habilitando-se tais cidadão à condução no território nacional, alterando-se os artigos 125.º e 128.º do Código da Estrada.
II–Na vigente redação do art. 125.º do Código da Estrada, a condução de veículo a motor na via pública ou equiparada por cidadão, habilitado pelo Departamento Estadual de Trânsito da República Federativa do Brasil (DETRAN) e titulado pela Secretaria Nacional de Trânsito da República Federativa do Brasil (SENATRAN), com Carteira Nacional de Habilitação (CNH) já expirada na validade, mas revalidável a todo o tempo, não integra os elementos típicos do crime de condução sem habilitação legal (artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3janeiro) somente podendo vir a preencher os elementos típicos da contraordenação prevista do n.º 8 do dito artigo 125.º, sancionável com coima de €300,00 a €1.500,00.
(Sumário da responsabilidade do relator)
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I–RELATÓRIO
1.–Decisão recorrida
Mediante Sentença datada e depositada a 17agosto2023(ref. ...), foi o Arguido AA, nascido a ..., cidadão brasileiro (portador do Passaporte emitido pela República Federativa do Brasil, n.º ...), condenado: a.-na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), num total €350,00 (trezentos e cinquenta euros), pela prática de factos que se entenderam integrantes da autoria material e na forma consumada de um crime de condução sem habilitação legal, p.p. pelo art. 3.º/1/2-DL2/98-3janeiro.
2.–Recurso
Inconformado com a referida Sentença, da mesma e junto do Tribunal a quo interpôs o Arguido recurso (entrado a 18setembro 2023- ref. ...) motivando-o e delimitando-o no objeto com as conclusões (sintéticas e adequadas) que se transcrevem (SIC, com exceção do itálico):
i)–Conclusões “1.– O Arguido foi condenado pela pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, n.º 1 e 2 do DL 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €7,00, o que perfaz o montante global de €350,00. 2.– Contudo, resultou provado que o arguido era possuidor da carta de condução brasileira n.º ..., emitida pelo ... – Brasil, cuja validade terminou em 06/04/2022. 3.– Com efeito, a entrada em vigor do DL 46/2022, de 12/07, passou a habilitar para a condução os titulares de cartas de condução emitidas pelo Brasil em território nacional, para além de que as alterações ao código da estrada efectuadas por aquele diploma determinam que, à data dos factos, a condução efectuada pelo arguido com a carta de condução brasileira caducada não configura a prática de qualquer crime mas, tão só, a prática de uma eventual contraordenação. 4.– Perfilhando-se a este respeito o entendimento disposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07/02/2023, Processo n.º 962/22.7 GLSNT.L1-5, Relator Jorge Antunes, que se passa a citar: “I.- Sendo o arguido titular de um título de condução emitido pelas autoridades competentes do Brasil, já caducado, mas revalidável a todo o tempo, a sua conduta, conduzindo um veículo automóvel na via pública em território nacional português, preenche a contraordenação prevista do n.º 8 do art. 125º, (na redacção DL n.º 46/2022, de 12/07) , sancionável com coima de €300 a €1500.” II.- A actual redacção do n.º 5 do art. 125º do Código da Estrada (conjugado com o disposto no inalterado n.º 8 do mesmo artigo) demonstra ter o legislador optado por afastar a tipicidade de condutas como a praticada pelo arguido com referência ao artigo 3º, nrs. 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, antes as subsumindo à contraordenação prevista no n.º 8 do referido normativo.” 5.– Sendo o arguido titular de um título de condução válido, embora caducado, a sua conduta poderia preencher a contraordenação prevista no n.º 8 do art. 125º do Código da Estrada, mas não a prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro, conforme entendeu erradamente o Tribual a quo. 6.– Motivo pelo qual, deverá o arguido ser absolvido da prática do crime de condução sem habilitação legal. Termos em que, e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!!!”
3.–Resposta ao recurso
Regularmente admitido o recurso, o Ministério Público junto do tribunal a quo(a 3outubro2023- ref. ...)respondeu ao mesmo de forma direta, pugnando no sentido da procedência do recurso, formulando as conclusões (sintéticas e adequadas) que se transcrevem (SIC, com exceção do itálico):
i)–Conclusões “1- São as conclusões que limitam o objecto do recurso, nos termos do art. 403º e 412º, n.º 1 in fine do Código de Processo Penal e conforme jurisprudência dominante a pacífica. 2- Nestes autos, o recorrente entende que a sua conduta não integra a prática de um crime, mas sim de uma contra-ordenação, nos termos do disposto no art. 125º, n.º 8 do Código da Estrada, com a redacção introduzida pelo DL n.º 46/2022 de 12 de Julho, uma vez que era titular de carta de condução emitida pelas autoridades brasileira, já caducada, mas revalidável. 3- No caso vertente, apurou-se que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no auto de notícia e na acusação, o arguido conduziu o veículo automóvel munido de uma carta de condução, emitida pelas autoridades brasileiras, com validade até 6/04/2022. 4- Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 46/2022, de 12 de julho, que veio definir novas regras quanto à condução de veículos a motor pelos detentores de títulos de condução emitidos por Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, o Código da Estrada veio a sofrer alterações, nomeadamente o n.º 5, do artigo 125.º, mantendo-se inalterado o n.º 8 desse mesmo artigo. 5- Ora, seguindo o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07/02/2023, processo 962/22.7GLSNT.L1-5, Relator Jorge Antunes, disponível em www.dgsi.pt, “Sendo o arguido titular de um título de condução emitido pelas autoridades competentes do Brasil, já caducado, mas revalidável a todo o tempo, a sua conduta, conduzindo um veículo automóvel na via pública em território nacional português, preenche a contraordenação prevista do nº 8 do artigo 125º, (na redacção DL n.º 46/2022, de 12/07), sancionável com coima de € 300 a € 1500. A atual redação do nº 5 do artigo 125º do Código da Estrada (conjugado com o disposto no inalterado nº 8 do mesmo artigo) demonstra ter o legislador optado por afastar a tipicidade de condutas como a praticada pelo arguido com referência ao artigo 3.º, nrs. 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, antes as subsumindo à contraordenação prevista no nº 8 do referido normativo.” 6- Não olvidamos a existência de entendimentos em sentido contrário, mas, perante a nova redacção do art. 125º do Código da Estrada, e no seguimento do mencionado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/02/2023, consideramos que não poderá deixar de assistir razão ao arguido, devendo o mesmo ser absolvido da prática do crime que lhe é imputado. Termos em que deverá ser alterada a decisão ora recorrida e substituída por outra que considere que a prática dos factos pelo arguido não integra a prática de crime de condução sem habilitação legal. Vossas Excelências não deixarão, porém, de fazer a habitual JUSTIÇA!”
4.–Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista à Digníssima Procuradora-Geral Adjunta, a qual, com concreta e circunstanciada explanação, emitiu parecer (a 28novembro2023- ref. 20775606) pugnando pela procedência do recurso interposto pelo Arguido, subscrevendo “na íntegra a posição do Ministério Público em 1.ª instância atenta a completude, pertinência, correção jurídica e clareza da sua fundamentação.”
Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório, inexistindo resposta do Arguido.
Efetuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso seja julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II–FUNDAMENTAÇÃO
1.–Apreciação do recurso
A)–Sentença recorrida
Dada a sua relevância para o enquadramento e melhor compreensão do infra a decidir em termos de delimitação do objeto de recurso, ouvida a gravação da audiência de julgamento, no que se engloba a sentença na mesma proferida, e compulsados os documentos constantes dos autos, urge, desde já, aqui verter (obviamente só na parte com interesse para a causa) a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada:
a.-Factos provados [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar a questão objeto de recurso]
1.-“No dia 10agosto2023, pelas 10h00, na ... ..., área do ..., o Arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca Honda, matrícula .....
2.- (…)
3.- Aquando da fiscalização o Arguido apresentou um titulo de condução de condução brasileiro, caducado em 6abril2022, com o número ..., emitido pelo ... – Brasil.”
2.–Objeto do recurso
Sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, é a partir das conclusões que o recorrente extrai da sua fundamentação de motivação que se determina o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem na sede de recurso (arts. 402.º;403.º;412.º/1CPP e jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 outubro 1995, in DR I-Série-A, de 28dezembro1995).
Nos termos do disposto no art. 428.º/1CPP “[a]s relações conhecem de facto e de direito.”
Excluída pelo recorrente a impugnação da matéria de facto, nada invocando em termos de vício previsto no art. 410.º/2CPP e nada se vislumbrando oficiosamente nesses diferenciados campos, o recurso versa em exclusivo matéria de direito.
Concluindo, no caso em apreço, a questão a decidir resume-se a saber se a conduta de condução de veículo automóvel na via pública, por parte de cidadão brasileiro com título de condução emitido pelo Estado Brasileiro, expirado, mas a todo o tempo renovável, constitui os elementos típicos do crime de condução sem habilitação legal, p.p. pelo art. 3.º/1/2-DL2/98-3janeiro.
A)–Da subsunção, ou não, dos factos aos elementos do tipo de Crime de condução sem habilitação legal
Dispõe o art. 3.º do DL2/98-3 janeiro: 1- Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2- Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.”
São elementos objetivos do tipo de condução de veículo sem habilitação legal: a condução de veículo a motor, em via pública ou equiparada e a falta de título legal que habilite a condução do concreto veículo a motor.
O bem jurídico que diretamente se visa proteger com a incriminação da condução sem habilitação legal é a segurança da circulação rodoviária, estabelecendo o legislador uma presunção fundada na observação empírica de que o exercício da condução inabilitada (v.g. pela ausência de conhecimentos básicos que só com a aprendizagem ministrada para a obtenção do título se obtém; pelo desconhecimento de regras estradais diferenciadas entre Estados; pela perda de validade do título, o que pode operar por diferenciadas razões, entre as quais as de reporte a aptidão física, mental e/ou psicológica) é perigoso em si mesmo, tendo em vista os bens jurídicos penalmente tutelados, sendo que se admite que indiretamente se tutelem valores jurídicos de particular relevo que se prendem com essa mesma segurança, tais quais (sem pretensão de exaustão), a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais. (sobre a questão, Tolda Pinto, in Código da Estrada Anotado, Vislis Editores, 2000, p. 254).
Revela-se, assim, tipo penal como um “tipo aberto”(não uma norma em branco) na justa medida em que para o apuramento (concretização/densificação) de um seu elemento se reenvia expressamente para legislação extrapenal: “sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada”.
Sendo assim, como o é, liminarmente se pode afirmar não revelar estranheza - mesmo à face do princípio da legalidade em direito penal (art. 29.º/1CRP e art. 1.º/1/3CP) - a opção ampla do legislador no campo da interpretação e atuação do que signifique “habilitação” e no quanto daí derive em termos de punir de forma “similar” a atuação de quem está habilitado legalmente com título emitido por Estado estrangeiro, de quem sequer está habilitado legalmente ou de quem já esteve habilitado e perdeu essa faculdade. Certo é que a opção do legislador, as mais das vezes, vai nesse sentido, intenção que se compreende à luz da globalidade e abstração de situações que o fenómeno da habilitação legal para conduzir abarca.
Nos termos do art. 121.º/1CE (código da estrada – DL 114/94-3 maio, na redação do DL 2/98-3janeiro, a vigente à data dos factos), sob a epígrafe “habilitação legal para conduzir”, diz-se que “Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito.”
À data dos factos – 10agosto2023 – a redação do art. 125.ºCE, sob a epígrafe “outros títulos”, era a resultante do art. 2.º do DL 46/2022-12julho, mediante a qual se dispõe, no quanto interessa ao caso dos autos, que: “1- Além da carta de condução são títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes: (…) c)- Títulos de condução emitidos por outros Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), desde que verificadas as seguintes condições cumulativas: i)- O Estado emissor seja subscritor de uma das convenções referidas na alínea seguinte ou de um acordo bilateral com o Estado Português; ii)- Não tenham decorrido mais de 15 anos desde a emissão ou última renovação do título; iii)- O titular tenha menos de 60 anos de idade; (…) 5- Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação, encontrando-se válidos e não apreendidos, suspensos, caducados ou cassados por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor. (…) 8- Quem infringir o disposto nos n.os 3 a 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.”
Resulta do Despacho n.º 10942/2000 do Diretor-Geral da Direção-Geral de Viação - Ministério da Administração Interna, de 21março2020 (publicado no DR, 2.ªS, de 27maio2000), sob a epígrafe “Carteira nacional de habilitação brasileira (CNH), o seguinte: “Torna-se necessário confirmar a validade das carteiras nacionais de habilitação brasileiras para habilitar à condução de veículos a motor, nos termos do artigo 125.º do Código da Estrada, Tendo presente que a legislação de trânsito brasileira em vigor reconhece a carta de condução portuguesa para conduzir no Brasil e para ser trocada pela correspondente carteira nacional de habilitação brasileira, com dispensa de exame, o que preenche o requisito constante da alínea e) do n.º 1 daquele artigo, determino: As carteiras nacionais de habilitação brasileiras (CNH) que se apresentem dentro do seu prazo de validade habilitam à condução de veículos em território nacional, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 125.º do Código da Estrada.”
À data deste Despacho n.º 10942/2000 o art. 125.ºCE dispunha que: “1.- Além dos títulos referidos nos artigos 123.º e 124.º, habilitam também à condução de veículos a motor: (…) e)- Licenças de condução emitidas por Estado estrangeiro, desde que este reconheça idêntica validade aos títulos nacionais; (…)
Este Despacho n.º 10942/2000, face à nova redação do art. 125.º, deve ser lido de forma necessariamente atualista, pelo que o conteúdo normativo da então alínea e), corresponde, no essencial, ao da al. d) do texto atualmente em vigor, o qual plena e diretamente não soluciona o caso, antes devendo o enquadramento ser feito pela via da atual alínea c), a que acresce o quanto consta, e seja ainda válido em termos de procedimento, na Deliberação do Conselho Diretivo do IMT, IP. aprovada a 7agosto2019 – Troca de Títulos de Condução – Estrangeiros Não Comunitários – Ed. 04, assim como o quanto resulte da legislação Brasileira e das Convenções a que Portugal e o Brasil se mostrem vinculados.
A República Federativa do Brasil é um dos países que, em Lisboa e a 17julho1996, assinou a Declaração Constitutiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), sendo ainda signatária de uma das Convenções de Trânsito (in casu a Convenção de Viena de 1968).
O arguido, cidadão Brasileiro, nasceu a .... Tinha 30 anos à data dos factos.
Era titular da CNH com o n.º ..., emitida pelo ... – Brasil, que foi válida até 6abril2022.
Ora, a habilitação para a condução só será reconhecida se a dita CNH se apresentar dentro do seu prazo de validade (sendo linear que a validade de um documento é atribuída pela entidade que o emite, no caso em apreço, cabe à SENATRAN - Secretaria Nacional de Trânsito da República Federativa do Brasil expedir a CNH e cabe ao DETRAN – Departamento Estadual de Trânsito da República Federativa do Brasil aferir, através de exames, se o candidato está ou não habilitado a conduzir), pelo que importa determinar se o documento de que o ora Arguido é titular era válido, ou não, na ocasião em que o mesmo foi fiscalizado.
Tal CNH, por força da Portaria Contran n.º 208, de 24março2021, conjugada com a Deliberação Contran n.º 243, de 8novembro2021, referendada pela Resolução Contran n.º 894, de 13dezembro2021, e com o despacho n.º 10942/200, permitia ao Arguido continuar habilitado a conduzir no Brasil até 31dezembro2022 e por consequência também em Portugal até essa data. (cfr. https://www.gov.br/transportes/pt-br/assuntos/transito/conteudo-contran/resolucoes/Resolucao8942021.pdf) (CONTRAN – Conselho Nacional de Trânsito)
Tudo a não impedir que o Arguido à data dos factos, e pelos meios legais ao dispor, pudesse já ter solicitado diretamente ao IMT I.P., através da plataforma disponibilizada para troca de títulos de condução estrangeiros, a troca da CNH. (cfr. https://www.gov.br/mre/pt-br/consulado-faro/carteiras-nacionais-de-habilitacao-cnh-cartas-de-conducao e https://www.imt-ip.pt/sites/IMTT/Portugues/Noticias/Paginas/Alteracoes-CodigoEstrada%e2%80%93TrocaCartas-270722.aspx)
Isto visto, dir-se-á que a inequívoca opção legislativa constante desta nova redação do art. 125.ºCE põe termo à querela mediante a qual uns entendiam que cidadãos brasileiros dotados de título estrangeiro, mas com validade expirada e como tal não passível de reconhecimento em Portugal, ao conduzirem veículo na vida pública, por o fazerem sem um título legítimo à condução em território nacional, praticavam os elementos típicos do crime de condução sem habilitação legal, p.p. pelo art. 3.º/1/2-DL2/98-3janeiro, e outros, ao invés, já entendiam que tal só consubstanciava a prática de ilícito de mera contraordenação social. (sobre o tema cfr., em Acórdãos do TRÉvora, Sérgio Corvacho, a 7janeiro2016 e 22outubro2019, nos NUIPC 651/13.3PAPTM.E1 e 126/18.4GBPTM.E1, Edgar Valente, a 8novembro2022, no NUIPC 1821/20.3GBABF.E1, todos acessíveis inwww.dgsi.pt/jtre e Artur Vargues, em Acórdão desta 5.ª Secção do TRLisboa, de 20outubro2020, NUIPC 872/18.2SISLB.L1-5, acessível inwww.dgsi.pt/jtrl)
Pois bem.
As modificações ínsitas na nova redação do art. 125.ºCE não se restringem ao alargar da dispensa da obrigação de troca do título estrangeiro por título nacional quando se tratem de títulos emitidos pelos Estados-Membros da CPLP e da OCDE (uma vez verificadas condições específicas), sendo forçoso concluir que o legislador, intencionalmente, tomou posição na querela jurisprudencial reportada, impondo o afastamento da tipicidade de certas condutas, ou seja, decididamente pretendendo que certas condutas deixassem de poder ser interpretadas como integrantes na previsão do art. 3.º/1/2-DL2/98-3janeiro, passando a subsumir as mesmas a mero ilícito de contraordenação social, nos moldes previstos no n.º 8 do dito art. 125.º, pelo que cumpre aquilatar se assim o é na conduta com os contornos da encetada pelo Arguido.
A questão, agora face a esta nova redação do art. 125.ºCE, vem sendo tratada de forma unânime na Jurisprudência dos Tribunais Superiores. Assim o é desde que Jorge Antunes (em Acórdão desta 5.ª Secção do TRLisboa, de 7fevereiro2023, NUIPC 962/22.7GLSNT.L1-5, acessível inwww.dgsi.pt/jtrl) começou por dizer que “a finalidade assumida da publicação do, como expressamente se prevê no respectivo artigo 1º, foi a de alterar o Código da Estrada com vista a conceder habilitação à condução de veículos a motor em território nacional aos detentores de títulos de condução emitidos por Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Como se explicita no respectivo preambulo: «A liberdade de circulação é um elemento essencial para o exercício pleno da cidadania, para tal, Portugal tem procurado reforçar os direitos dos cidadãos estrangeiros que se deslocam para o nosso país, quer tratando-se de deslocações temporárias com finalidades turísticas quer tratando-se de deslocações para trabalhar ou investir no nosso país. O XXIII Governo Constitucional reiterando o seu compromisso por uma integração dos migrantes, que passe pelas melhorias da sua qualidade de vida, entende ser essencial simplificar a habilitação para a condução de veículos a motor, elemento fundamental para uma garantia de mobilidade em todo o território nacional. Face ao exposto e com vista a reforçar e a melhorar a mobilidade entre cidadãos de Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e de Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, procede-se a uma alteração ao Código da Estrada. Em consequência promove-se a dispensa das trocas de cartas de condução, habilitando-se a condução no território nacional com títulos emitidos naqueles Estados, através do reconhecimento dos títulos de condução estrangeiros.» Mas a extensão das alterações introduzidas não se limitou ao alargamento da dispensa da obrigação de troca do título estrangeiro por título nacional, agora, também, aplicada aos cidadãos que beneficiaram da emissão de títulos por Estados-membros da CPLP e Estados-membros da OCDE desde que observadas as condições previstas nas alíneas i, ii e iii), tal como já antes sucedia com os cidadãos “encartados” pelos serviços competentes da administração portuguesa do território de Macau, dos outros Estados-membros da União Europeia ou do espaço económico europeu. O legislador foi mais longe, introduzindo no artigo 125.º do Código da Estrada modificações que não se limitam ao regime dos títulos emitidos pelos países da CPLP e da OCDE, não podendo deixar de concluir-se que tomou posição na querela jurisprudencial impondo a nova opção do Legislador o afastamento da tipicidade de condutas com os contornos da praticada pelo arguido. Em face da nova redação do artigo 125.º do Código da Estrada, tais condutas deixaram de poder subsumir-se na previsão do artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, subsumindo-se antes na contraordenação prevista no nº 8 do artigo 125º do Código da Estrada. Esse foi, aliás, o entendimento seguido no douto Acórdão da Relação de Évora de 15 de novembro de 2022, único aresto dos nossos Tribunais Superiores que encontramos com expressa referência à alteração legislativa em questão. [Margarida Bacelar, Acórdão do TRÉvora, de 15novembro2022, NUIPC 1718/21.0GBABF.E1, acessível inwww.dgsi.pt/jtre] Nessa decisão, depois de se referir a existência de prévias decisões em sentidos divergentes, argumentou-se que: “(…) com a entrada em vigor do DL n.º 46/2022, de 12/07 que alterou a redacção do artº Artigo 125º do Cód. da Estrada condutas que, segundo uma corrente jurisprudencial, antes eram punidas criminalmente (como crime de condução de veículo sem habilitação legal), configuram agora uma mera contraordenação sancionada com coima de (euro) 300 a (euro)1500, assim, acreditamos nós, solucionando a referida divergência jurisprudencial”.
(…) Na construção legislativa do regime aplicável aos títulos de condução estrangeiros, o legislador optou pelo acolhimento da possibilidade de se reconhecer a revalidação de títulos cuja data de caducidade tenha sido já atingida, tal como sucede com os títulos de condução emitidos pelo Estado português. E essa possibilidade constitui fundamento para se diferenciar o tratamento das infracções criminais e contra-ordenacionais.” Como se decidiu no Acórdão desta Relação de Lisboa de 22 de março de 2022: [Sandra Oliveira Pinto, Acórdão desta 5.ª Secção do TRLisboa, de 22março2022, NUIPC 533/21.5PCLRS.L1-e, acessível inwww.dgsi.pt/jtrl] «Não obstante, muito embora a lei tenha deixado de se referir ao «cancelamento» dos títulos de condução, designando todas as situações previstas quanto à perda de validade desses títulos como «caducidade», a verdade é que não deixou de prever dois momentos distintos: quando é atingido o limite da validade previsto no título – designadamente, no que agora importa, por ter o respetivo titular completado 50 anos de idade – este caduca, nos termos previstos no artigo 130º, nº 1, alínea a) do Código da Estrada. Porém, a partir dessa data e durante os 10 anos subsequentes, é ainda possível a respetiva revalidação, nos termos do disposto no artigo 130º, nº 2, alínea a) do Código da Estrada. Tal revalidação deixa, no entanto, de ser possível decorridos 10 anos sobre aquela caducidade inicial – ficando então o título de condução caducado definitivamente (é o que decorre do já citado nº 3 do artigo 130º) – efeito que se produz apenas pelo decurso do tempo (conjugado com a inação do titular da carta de condução). Esta modelação legal tem reflexos na responsabilidade penal/contraordenacional do titular de título de condução caducado, posto que o nº 7 do artigo 130º se reporta expressamente aos títulos caducados nos termos previstos no nº 1 – ou seja, aqueles cujo limite de validade se mostra ultrapassado, mas que ainda são passíveis de revalidação. Para os titulares de carta de condução caducada definitivamente (relativamente à qual já não é possível a revalidação), rege o nº 5 do mesmo artigo 130º, isto é, consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido – incorrendo em ilícito criminal se exercerem a condução de veículos motorizados nessas circunstâncias, nos termos previstos no artigo 3º, nos 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de janeiro.» Como não pode deixar de ser, ao alterar o disposto no artigo 125.º do Código da Estrada (e designadamente o respetivo nº 5), o Legislador estava, não só bem ciente da modelação legal a que supra se alude quanto aos títulos nacionais, como inevitavelmente não pode ter desprezado a possibilidade de idênticas ou diversas modelações resultarem dos ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados emissores de títulos. E na verdade também a legislação brasileira prevê que os títulos caducados – designadamente a carteira nacional de habilitação – possam ser revalidados. O que não existe na lei brasileira é um prazo máximo para revalidação, decorrido o qual, em caso de inação do titular da CNH, esta caduque definitivamente. A revalidação é, ali, possível a todo o tempo (embora com exigências diferentes consoante o tempo já decorrido sobre a data em que “expirou a validade”). A carteira nacional de habilitação é, pois, sempre passível de revalidação.”
Seguindo esta linha de raciocínio, ainda que com nuances decorrentes do momento do facto e necessárias diferenciadas soluções:
Acórdãos do TRPorto – acessíveis inwww.dgsi.pt/jtrp
-Eduarda Lobo, 5julho2023, NUIPC 15/21.5PGGDM.P1
-Maria Luísa Arantes, 8novembro2023, NUIPC 81/21.3PFMTS.P1
Acórdão do TRGuimarães – acessível inwww.dgsi.pt/jtrg
-Carlos Cunha Coutinho, 31outubro2023, NUIPC 3403/22.6T9BRG.G1
Acórdãos do TRÉvora – acessível inwww.dgsi.pt/jtre
-Margarida Bacelar, 15dezembro2022, NUIPC 1718/21.0GBABF.E1
-Laura Goulart Maurício, 7fevereiro2023, NUIPC 350/22.5GABNV.E1
-Ana Bacelar, 12setembro2023, NUIPC 1184/19.0GBABF.E1
Acórdão do TRLisboa – de momento inédito (em que o ora Relator foi 2.º Adjunto)
-Alda Tomé Casimiro, 14novembro2023, NUIPC 1453/21.9PBOER.L1-5
No fundo, optou o legislador por nesta nova previsão do n.º 5 do art. 125.ºCE tratar de forma semelhante os títulos estrangeiros e os títulos nacionais cuja validade esteja expirada.
Como se diz neste último Acórdão desta 5.ª Secção, “[e]fectivamente, os títulos de condução emitidos pelo Estado português, que estejam caducados podem ser revalidados durante um período de 10 anos – veja-se, a propósito, os acórdãos da Relação de Lisboa de 7.12.2021 (Proc. 340/19.5PTLRS.L1-5)” [Manuel Advínculo Sequeira, acessível inwww.dgsi.pt/jtrl] “e de 22.03.2022 (Proc. 533/21.5PCLRS.L1-5)” [Sandra Oliveira Pinto, cfr. supra], “que defendem que há dois tipos de “caducidade” (…). Ora também a legislação brasileira prevê que uma carteira nacional de habilitação caducada possa ser revalidada, permitindo-se, até, que a revalidação possa ocorrer a todo o tempo.”
Vejamos, então, a aplicação ao caso concreto da norma do n.º 5 do art. 125.ºCE, na redação introduzida pelo DL46/2022-12julho.
Desta norma entendemos que se pode concluir que constituem pressupostos necessários e cumulativos do carácter habilitante para a condução de veículos em território nacional, de aplicação aos títulos emitidos pelos Estados membros da OCDE ou da CPLP (de que o Brasil faz parte, como vimos):
- que o titular tenha mais de 18 de idade – in casu o Arguido contava 30 anos de idade à data dos factos;
- que o título se encontre válido e não apreendido, suspenso, caducado ou cassado por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor - in casu o Arguido era titular da CNH com o n.º ..., emitida pelo ... – Brasil, que foi válida até 6abril2022.
Tal título não se mostrava à data dos factos apreendido por força de disposição legal (apreensão válida), decisão administrativa ou sentença judicial aplicada ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor.
O Arguido esteve habilitado a conduzir no Brasil até 31dezembro2022 e por consequência também em Portugal até essa data, data a partir da qual, necessariamente e por expirada na validade, deveria ter procedido à renovação da CNH ou mesmo – preferencialmente com procedimento encetado antes dessa data - à troca da mesma por carta de condução portuguesa.
Não está, pois, verificado o 2.º pressuposto em referência, não podendo o Arguido conduzir em território nacional, já que o título que o habilita para o exercício da condução, embora revalidável a todo o tempo à luz da legislação Brasileira, está já expirado na validade.
É dizer, como tinha a CNH já expirada na validade desde 31dezembro2022, o Arguido não podia conduzir um veículo automóvel na via pública por não cumprir o pressuposto previsto no art. 125.º/5CE, sendo que a consequência para tal conduta é a imposta no n.º 8 deste art. 125.ºCE.
Não se mostram, deste modo, preenchidos os elementos típicos do crime de condução sem habilitação legal, p.p. pelo art. 3.º/1/2-DL2/98-3janeiro, por antes a situação se poder enquadrar no campo do ilícito de mera ordenação social, sancionado pelo art. 125.º/8CE, o que nesta sede impõe a absolvição do arguido com relação ao ilícito pelo qual foi condenado em 1.ª instância.
Inexistem, de momento, factos que permitam a este Tribunal ad quem conhecer com segurança, à luz do art. 77.º RGCO (DL 433/82-27outubro) do dito ilícito contraordenacional, pelo que resta, quanto a tal matéria, ordenar que o Tribunal a quo leve ao conhecimento da entidade administrativa o presente acórdão a fim de ser dado o devido cumprimento ao estatuído no quadro processual legal do RGCO em termos de processamento, prolação de decisão e subsequente notificação.
Acresce que, sem prejuízo da problemática inerente ao garante de duplo grau de recurso (neste sentido, Elisa Sales, Acórdão do TRCoimbra, de 19fevereiro2014, NUIPC 40/13.0PANZE.C1 acessível inwww.dgsi.pt/jtrc), dir-se-á que sendo a tramitação dos autos em 1.ª Instância encetada na forma especial sumária - pensada para quadros de imediação após a detenção, com requisitos especiais (art. 381.ºCPP), sendo que a falta desses requisitos configura uma nulidade insanável que pode ser conhecida oficiosamente a todo o tempo (art. 119.ºf)CPP), com natureza urgente até prolação da sentença (art. 103.º/1/2d)CPP) e com “os actos e termos do julgamento (…) reduzidos ao mínimo indispensável ao conhecimento e boa decisão da causa” (art. 386.º/2CPP) -, não se compadece com as garantias concedidas ao Arguido em processo contraordenacional [de apresentação de defesa (art. 175.ºCE), notificação do infrator para liquidação da coima pelo mínimo legalmente previsto (art. 172.ºCE)], sendo que não se julga razoável determinar a remessa dos autos para outra forma processual apenas para conhecimento da contraordenação (art. 390.º/1CPP).
III–DECISÃO
Nestes termos, em conferência, acordam os Juízes que integram a 5.ª Secção Penal deste Tribunal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência: A.–determinar que os factos praticados pelos Arguido AA, nos moldes dados como provados na Sentença de 17agosto2023(ref. ...), não integram os elementos objetivos do tipo legal de crime de condução sem habilitação legal, por que vinha acusado, 3.º/1/2-DL2/98-3janeiro, pelo que o absolvem; B.–determinar que o Tribunal a quo leve ao conhecimento da entidade administrativa o presente acórdão a fim de ser dado o devido cumprimento ao estatuído no quadro processual legal do RGCO em termos de processamento, prolação de decisão e subsequente notificação; C.–declarar a imediata extinção da medida de coação vigente – art. 376.º/1CPP; D.– sem Custas.
Notifique (art. 425.º/6CPP).
D.N.
Lisboa, data eletrónica supra.
•o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários; com datação eletrónica – art. 153.º/1CPC – e com aposição de assinatura eletrónica - art. 94.º/2CPP e Portaria 593/2007-14maio.
Relator: Juiz Desembargador Manuel José Ramos da Fonseca
1.ª Adjunta: Juíza Desembargadora Sandra Ferreira
2.ª Adjunta: Juíza Desembargadora Carla Francisco