CONTRATO DE ARRENDAMENTO
TRANSIÇÃO PARA O NRAU
REQUISITOS DA COMUNICAÇÃO DO SENHORIO
EFICÁCIA DA COMUNICAÇÃO
CADUCIDADE DO CONTRATO
Sumário

1.- Considerando a rutura com o regime vinculístico de pretérito, potenciadora da fragilização da posição do arrendatário, que o NRAU trouxe, previu o legislador, neste último diploma legal, um conjunto de disposições transitórias destinadas a assegurar como que uma transição pacífica dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor ao RAU para o novo modelo de arrendamento.
2.- Entre tais disposições transitórias contam-se os art. ºs 30.º e seguintes do NRAU, com os quais estabeleceu o legislador um específico mecanismo destinado a operar, além do mais, a conversão daqueles contratos ‘antigos’ em contratos a termo certo.
3.- Tal mecanismo, de acordo com o art.º 30.º do NRAU, depende da iniciativa do senhorio, que, para tanto, deve comunicar a sua intenção ao arrendatário através de comunicação que contenha os elementos previstos nas diversas alíneas que integram tal preceito.
4.- Considerando os efeitos gravosos que da comunicação poderão advir para a posição do arrendatário, no quadro da “nova” relação contratual que dela resultará, são especialmente exigentes os termos em que, de acordo com o previsto pelo legislador, deve ser redigida a comunicação pelo senhorio.
5.- Assim, no que tange, particularmente, aos elementos exigidos nas alíneas e), f) e g), deve o senhorio proceder à enunciação concreta e detalhada desses elementos, em termos tais que garantam que o seu arrendatário, enquanto seu destinatário, se possa inteirar do seu conteúdo pela simples leitura da comunicação.
6.- A carta que, para efeitos do art.º 30.º do NRAU, foi remetida pelo senhorio ao arrendatário, em que aquele, relativamente aos elementos previstos naquelas alíneas, não procede à sua enunciação e se limita a remeter genericamente para os “meios previstos no artigo 31.º do NRAU”, está a impedir o destinatário de, pela simples leitura da carta, apreender o sentido e o alcance do que nela estava a ser comunicado e do que, com a sua receção, era suposto fazer.
7.- Uma tal carta não satisfaz as exigências de comunicação contidas no preceito em causa, não produzindo, por conseguinte, nos termos do corpo do art.º 30.º do NRAU, quaisquer efeitos, mormente o de operar a conversão do contrato de arrendamento de duração indeterminada em contrato de arrendamento com prazo certo.
8.- Uma tal conclusão decorre, também, do próprio princípio da boa fé que deve pautar o cumprimento das obrigações (art.º 762.º, n.º 2 do CC), na certeza de que, de outro modo, ficaria em aberto a possibilidade de o senhorio, a coberto de uma redação dúbia da comunicação, poder ver alterada a relação contratual a seu favor, por mero efeito da incompreensão ou do silêncio do inquilino, muitas vezes em situação de especial vulnerabilidade.
9.- A ausência de resposta do inquilino à comunicação do senhorio e a invocação da sua ineficácia depois de o senhorio, julgando o arrendamento convertido em prazo certo, se ter oposto à sua renovação, não constitui abuso de direito do primeiro quando se não demonstrou que este, recebida a comunicação, tenha dito algo ou adotado alguma conduta ativa que revelasse aceitação da transição do contrato para o NRAU e quando se apurou que, pelo contrário, o inquilino, em face da missiva, nada disse ou fez.
10.- Acresce que, subjacente ao envio de uma tal missiva, está a pretensão do senhorio de operar a conversão de um contrato de arrendamento sujeito ao regime vinculístico em contrato com prazo certo em vista da sua cessação futura, com a consequente obrigação do inquilino de restituir o locado e de abandonar aquela que foi a sua residência.
11.- Ver-se na conduta passiva deste perante a comunicação do senhorio - que enviou missiva que padece de vicissitudes consubstanciadas no facto de dela não constarem os elementos que, nos termos da lei, eram essenciais a que o destinatário pudesse apreender o seu sentido e alcance decisivos - aceitação automática da transição do contrato para o NRAU contrariaria todo e qualquer juízo de normalidade que pudesse ser formulado, para mais tratando-se de arrendamento para habitação de inquilino com idade superior a 65 anos e residente no locado desde 1986, não havendo, também por isso, abuso de direito atendível.

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados,

I.- Relatório
XX, S.A. instaurou a presente ação declarativa comum contra MS, pedindo que, pela sua procedência, fosse:
a) julgado caducado o contrato de arrendamento;
b) condenada a Ré a despejar de imediato a fração autónoma arrendada, deixando-a livre e devoluta de pessoas e bens;
c) condenada a Ré a pagar-lhe uma indemnização devida pelo atraso na restituição da fração, correspondente a uma renda por cada mês de atraso, a liquidar em execução de sentença e até ao momento da efetiva restituição da fração livre de pessoas e bens.
Para tanto, e em síntese, alegou o seguinte.
É proprietária da fração autónoma designada pela letra E, do edifício sito na Rua …, n.º …, … esquerdo, da freguesia de Venteira, concelho da Amadora, descrito na CRP sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana sobre o art.º ….º E, por tê-la adquirido por escritura pública de compra e venda outorgada em 15-11-2013 a AS e esposa MO.
O anterior proprietário da fração celebrou com JS, marido da Ré, um contrato de arrendamento para fins habitacionais tendo por objeto a referida fração.
A Ré, por carta registada de 10-05-2011, comunicou ao anterior proprietário da fração o falecimento do seu marido, o arrendatário JS.
A renda devida pelo arrendamento é atualmente a de € 342,90.
Por carta registada com aviso de receção datada de 23 de novembro de 2018, (ela Autora) comunicou à Ré que o contrato de arrendamento ficaria submetido ao Novo Regime do Arrendamento Urbano e que, por isso, passaria a ter a duração certa de dois anos a contar daquela data, terminando, consequentemente, a 23 de novembro de 2020 e que a Ré dispunha do prazo de 30 dias para se opor à referida transição, bem como ao tipo e duração do contrato proposto.
A Ré, apesar de ter recebido a carta, não respondeu, pelo que, nos termos do n.º 6 do art.º 31.º do NRAU, a falta de resposta equivale à aceitação do teor da comunicação efetuada.
Assim, e porque à Ré também foi comunicada a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento, verificou-se, atento o estatuído no art.º 1051.º, alínea a) do Código Civil, a caducidade deste no dia 23 de novembro de 2020.
A Ré, contudo, não só não entregou a fração livre de pessoas e bens, como recusa-se a fazê-lo, justificando-se o recurso a esta ação para obter a restituição do locado e a indemnização devida pelo atraso na restituição, nos termos previstos no art.º 1045.º do Código Civil.
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Válida e regularmente citada, apresentou a Ré a sua contestação, defendendo-se por exceção e batendo-se pela improcedência da ação.
Para tanto, depois de aceitar a vigência do arrendamento entre a mesma e a Autora nos termos expostos por esta e de explicitar que reside no locado desde 1986 com base no contrato correspondente, começou por invocar a ineficácia da comunicação que lhe foi dirigida pela Autora em 23-11-2018, pelo facto de esta não respeitar as imposições previstas nas alíneas e), f) e g) do art.º 30.º do NRAU.
Acrescentou que, depois de a Autora, por carta de 14-09-2020, lhe ter comunicado que se opunha à renovação do contrato e que este terminaria em 30-11-2020, (ela Ré) respondeu-lhe, por carta de 30-09-2020, que se encontrava em situação contemplada no n.º 10 do art.º 36.º do NRAU - isto é, ter mais de 65 anos, residir no locado há mais de 15 anos e não ter, na aludida data, exercido o direito à aplicação do disposto nos n.ºs 1 a 7 do art.º 36.º do NRAU -, comprovando-o através de pertinente documentação.
Finalmente, invocou que a oposição à renovação do contrato comunicada pela Autora não respeitou a antecedência legalmente prevista, já que, tendo sido comunicada em 14-09-2020 para produzir efeitos em 30-11-2020, ficou aquém da antecedência mínima de 120 dias prevista no art.º 1097.º, n.º 1, al. b) do Código Civil, em se tratando, como se tratava, de contrato de duração ou renovação superior a 1 ano e inferior a 6 anos.
Conclui, assim, pela ineficácia das comunicações efetuadas pela Autora e, consequentemente, que não houve extinção do contrato de arrendamento dos autos.
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Convidada para o efeito, respondeu a Autora às exceções invocadas pela Ré, batendo-se pela sua improcedência.
Assim, e em síntese, invocou que a sua comunicação de 23-11-2018 obedeceu ao disposto no art.º 30.º do NRAU e que a Ré só respondeu à mesma em 14-09-2020, isto é, depois de decorridos os 30 dias de que legalmente dispunha para o efeito.
A falta de resposta da Ré teve, por isso, a consequência prevista no n.º 9 do art.º 31.º daquele diploma legal, constituindo abuso de direito da mesma a invocação da ineficácia da comunicação nos termos em que o faz na contestação.
A comunicação da Ré de 14-09-2020 é, pois, ineficaz, tendo o contrato de arrendamento passado a estar submetido ao regime do NRAU e a ter o prazo certo de dois anos, pelo que, não tendo sido convencionado qualquer prazo de renovação, caducou em 23-11-2020.
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Realizada a audiência prévia, nela foi proferido despacho a fixar em € 10.287,00 o valor da ação, bem como despacho saneador tabelar e despacho a identificar o objeto do litígio e a selecionar os temas da prova.
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Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal.
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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando improcedente a ação e absolvendo a Ré do pedido, com condenação da Autora no pagamento integral das custas do processo.
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Inconformada com esta decisão, dela veio a Autora interpor o presente recurso, pugnando pela revogação da sentença e pela sua substituição por outra que julgue a ação procedente e condene a Ré nos pedidos que lhe dirigiu.
Para o efeito, formulou as seguintes conclusões, que assim se transcrevem:
“1. A Autora impugna a decisão da matéria de facto, considerando que deverá ser aditada ao elenco dos factos provados a seguinte factualidade: A Ré, apesar de ter recebido a carta a que se refere o nº 5 dos factos provados, não respondeu.
2. O Tribunal deveria ter dado como provado, por constituir matéria de facto com manifesto interesse para a decisão da causa, tanto mais que a não resposta à referida carta tem os efeitos previstos no artigo 31º, nº 6, do NRAU;
3. Por outro lado, a Autora não juntou aos autos o AR assinado pela Ré referente à carta que lhe enviou datada de 23 de novembro de 2018, por não ter tal documento na sua posse, por eventualmente se ter extraviado.
4. De qualquer dos modos, tal como muito bem decidiu o Tribunal recorrido, a Ré confessou ter recebido tal carta, o que expressamente admite na carta que remeteu à Autora em 30 de setembro de 2020, conforme se constata do nº 8 dos factos assentes.
5. Sucedeu que a Autora, cujo gerente se encontra emigrado em França, encontrou na sua residência em França fotocópia do AR relativo a essa carta, assinado pela Ré.
6. Nos termos do disposto nos artigos 651º, nº 1, e artigos 423º e 425º, todos do Código de Processo Civil, a Autora vem requerer a junção aos autos de tal documento, que se mostra necessário face à factualidade dada por não provada e, principalmente, porque a Autora não dispunha de tal documento para o juntar em tempo.
7. Sendo admitida a junção aos autos de tal documento, tal como se espera, deverá ser dada como provada a factualidade constante dos factos não provados, pelo que deverá ser aditada à matéria de facto assente um novo ponto com o seguinte teor: A comunicação datada de 23 de novembro de 2018 foi remetida por carta registada com aviso de receção.
8. Ao contrário do entendido pelo Tribunal recorrido, a Autora cumpriu o ónus previsto no art.º 30.º, alíneas e), f) e g), 2.ª parte, do NRAU, na comunicação de 23 de novembro de 2018 que enviou à Ré, sendo a mesma válida e eficaz.
9. Face ao teor da carta de 30 de setembro de 2020, enviada pela Ré à Autora, esta confessadamente aceita como válida e eficaz aquela comunicação e a consequente transmissão do contrato para o NRAU, ao referir «em resposta à mesma, venho, nos termos e para os efeitos do nº 10 do artº 36º do NRAU…».
10. É que o disposto no 36º, nº 10 do NRAU aplica-se «Em caso de transição de contrato para o NRAU nos termos do artigo 30.º e seguintes…».
11. Ou seja, a Ré revelou conhecimento das opções ao seu dispor na sequência da comunicação que recebeu da Autora de 23 de novembro de 2018, não tendo respondido por não ter pretendido fazê-lo e assumindo como consequência da sua opção a transmissão para o NRAU.
12. Daí que a comunicação efetuada através do escrito de 23 de novembro de 2018 é eficaz, sendo certo que demonstrou ainda a Ré ser conhecedora dos direitos que lhe assistia, tal como facilmente se constata do teor da carta de 30 de setembro que remeteu à Autora.
13. Por tudo isto, a comunicação de 23 de novembro de 2018 é válida e eficaz, tendo a sentença recorrida violado o disposto no artigo 30º do NRAU, decisão essa que é, ainda, nula por estar em contradição com a matéria de facto dada como provada, mormente com o nº 5 dos factos provados.
14. A Ré recebeu a comunicação da Autora para a transição do contrato para o NRAU, consciencializou-se dos termos de tal comunicação, bem como dos efeitos relativamente à falta de resposta e decidiu não responder.
15. Com tal atitude, a Ré fez crer na Autora a sua não oposição à transição para o NRAU, como efetivamente sucedeu, tanto mais que resulta da lei tal efeito em caso de não resposta, conforme foi aquela advertida.
16. Acresce ainda que veio, no âmbito dos presentes autos, invocar a ineficácia daquela comunicação, quando expressamente reconheceu na carta de setembro de 2020 a efetiva transição do contrato para o NRAU.
17. É, pois, manifesto ter a Ré agido com abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium».
18. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 334º do Código Civil.
19. Sendo procedentes os fundamentos invocados e o presente recurso procedente, a consequente decisão deverá ser a da integral procedência da ação e na condenação da Ré nos pedidos formulados pela Autora.”
*
A Ré respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da sentença proferida.
Para o efeito, formulou as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1ª Nunca na Sentença recorrida há negação de que a Ré não respondeu à carta da Recorrente de 23 de novembro de 2018. A Sentença ora em análise, dá como provado o envio da missiva pela Recorrente, bem como que a Recorrida a recebeu, não sendo feita nunca a indicação de ter sequer existido uma resposta da Recorrida a essa comunicação;
2ª Não há assim qualquer erro notório pelo facto de não existir um facto assente onde explicitamente se indique que não houve resposta, aliás, decorre claramente do conjunto de todos os factos dados como provados;
3ª Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando, no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.;
4ª A Recorrente, bem sabe que a fundamentação da Sentença tem a indicação clara do exame critico que o Tribunal “a quo” fez das provas, predominantemente documentais, contudo, para fazer crer na sua versão, apenas indica partes da Sentença ora recorrida, não tendo em conta todos os factos dados como provados, que serviram de base para a convicção do Tribunal e, onde, nem residem duvidas sobre a resposta ou não resposta, por parte da Recorrida, à missiva da Recorrente de 23 de Novembro de 2018.
5ª No que concerne à junção do documento, pretendida pela Recorrente, sempre se dirá que, prescreve o artigo 651º do CPC que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º.”. Por seu turno, o artigo 425º do CPC estipula que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”;
6ª Esta não é claramente uma situação excecional, até porque, o documento estava na sua posse. Diga-se, em abono da verdade que, este processo, desde a entrega da PI até à prolação da sentença, durou 1 ano. Se o documento se encontrava na casa do gerente da Recorrente, em França, onde até reside por lá estar emigrado, não se pode dizer que o mesmo estivesse extraviado. Logo, bastaria um trabalho de procura da documentação mais atenta, para permitir à Recorrente a entrega atempada do documento.
7ª Entende-se ser extemporânea a entrega do documento pretendido, o qual não deverá ser admitido. Na verdade, o artigo 651º do CPC, permitindo apenas um carácter excecional desta junção, só poderão ser atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, tivesse impossibilidade de aceder ao documento. O que claramente não acontece na presente situação!
8ª Neste mesmo sentido, foi proferido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Abril de 2019, no âmbito do processo 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2.
9ª Em consequência, não devendo ser permitida a junção pretendida pela Recorrente, deverá também ser mantido nos factos não provados: “A comunicação datada de 23 de novembro de 2018 foi remetida por carta registada com aviso de receção”.
10ª Quanto à eficácia da comunicação efetuada pela Recorrente à Recorrida, para a transição do contrato de arrendamento para o NRAU, doutamente, o Tribunal “a quo”, entendeu que a Recorrente não cumpriu o ónus previsto no artigo 30º alíneas e), f) e g) do NRAU, razão pela qual, tal comunicação nunca poderia produzir quaisquer efeitos.
11ª Desde a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei 79/2014, de 19 de Dezembro, o senhorio passou a ter que informar, na comunicação, o arrendatário, da resposta que pode apresentar, indicando-lhe que o prazo de resposta é de 30 dias e qual o conteúdo que pode apresentar a resposta, nos termos do no 3 do art.º 31º NRAU. O arrendatário deve ainda ser informado das circunstâncias que pode invocar, isolada ou conjuntamente com essa resposta e no mesmo prazo, conforme previsto no nº 4 do art.º 31º NRAU, e a necessidade de serem apresentados os respetivos documentos comprovativos, nos termos do disposto no artigo 32º NRAU. Finalmente, o arrendatário deve ainda ser informado das consequências da falta de resposta, bem como da não invocação de qualquer das circunstâncias previstas no nº 4 do art.º 31º NRAU (art.º 30 d) e) f) e g).
12ª Ao analisarmos a comunicação enviada pela Recorrente à Recorrida, em 23 de novembro de 2018, a mesma não informa a Recorrida que poderia na sua resposta:
a) Aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio;
b) Opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 33.º;
c) Em qualquer dos casos previstos nas alíneas anteriores, pronunciar-se quanto ao tipo e à duração do contrato propostos pelo senhorio;
d) Denunciar o contrato de arrendamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 34.º;
4 - Se for caso disso, o arrendatário deve ainda, na sua resposta, invocar, isolada ou cumulativamente, as seguintes circunstâncias:
a) Rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 35.º e 36.º;
b) Idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct., nos termos e para os efeitos previstos no artigo 36.º.”.
13ª Assim sendo, da missiva da Recorrente de 23 de Novembro de 2018, não se depreende que, a Recorrida, pode defender-se, por exemplo, com o facto do seu Rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), ou também pela situação de ter idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct.
14ª Aliás, não deixa de passar despercebido o facto de, na missiva de 23 de Novembro de 2018, sendo este até denominado um processo de atualização extraordinário de renda, que, sorrateiramente, não altere a Recorrente o valor da renda, com o intuito claramente propositado de, para a inquilina não entender o alcance e gravidade desta comunicação na sua relação de arrendamento, não se defender com os meios que tinha na sua disponibilidade.
15ª Razão pela qual, sabiamente, o Tribunal “a quo”, considerou a falta de eficácia da comunicação da Recorrida de dia 23 de novembro de 2018.
16ª Não pode ainda, vir invocar a Recorrente que, na missiva da Recorrida de 30 e setembro de 2020, a mesma aceita a transição do contrato. Pois o que ocorreu, na verdade, foi a Recorrida ver-se confrontada com uma oposição à renovação do contrato, com a interpelação para a desocupação do locado no prazo de 1 mês, razão pela qual, desde logo invocou a possibilidade que está concedida pelo exposto no artigo 36º nº10 do NRAU. Não há qualquer admissão expressa na transição do seu contrato para o NRAU.
17ª Igualmente não é nula a Sentença, pois não está em contradição com a matéria de facto dada como provada, nomeadamente o nº5 dos factos provados. O nº5 dos factos dados como provados, indica claramente que a A. remeteu um escrito assinado à R., datado de 23 de novembro de 2018, e que foi recebido pela R., indicando os precisos termos dessa carta, onde sem sombra de dúvida, verificasse que não preenche todos os requisitos exigidos pelo dispositivo legal.
18ª Nas suas alegações, a Recorrente, invoca o abuso de direito por parte da Recorrida, sem qualquer suporte factual ou legal.
19ª Nunca a Recorrida se consciencializou dos termos da comunicação de 23 de Novembro de 2018, desde logo, porque a comunicação não tinha todos os elementos para que se pudesse proteger, nomeadamente o facto de ter mais de 65 anos, que, caso se tivesse consciencializado, teria desde logo invocado, pois preenchia essas circunstâncias.
20ª Não foi uma opção da Recorrida não responder, foi antes sim a falta de informação dessa missiva, conjugada até com a manobra ardilosa da Recorrente em não alterar sequer um cêntimo da renda, que não deram a Recorrida sequer a hipótese de ter noção de poder invocar a sua idade, nomeadamente o facto de ter mais de 65 anos em novembro de 2018.
21ª Acresce que, a Recorrida nunca fez crer à Recorrente na sua não oposição à transição do contrato de arrendamento para o NRAU.
22ª De acordo com o disposto no artigo 334.º do CC, a existência ou não de abuso do direito afere-se a partir de três conceitos: (i) a boa fé; (ii) os bons costumes; e (iii) o fim social ou económico do direito; porém, o exercício do direito só é abusivo quando o excesso cometido for manifesto.
23ª Se alguém ultrapassou os limites impostos pela boa fé, foi a Recorrente, com a utilização de um esquema ardiloso, enviando uma comunicação em que (sendo um procedimento extraordinário de aumento de renda) informa não ir ocorrer qualquer alteração à renda da inquilina!
24ª O facto de a Recorrida invocar a ineficácia da comunicação efetuada ao abrigo do artigo 30º do NRAU pela Recorrente, não configura qualquer excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do respetivo direito.
25ª Em face do exposto é óbvio que a douta Sentença em Recurso, não violou qualquer norma legal, nem enferma de erro notório na apreciação da prova e insuficiência da matéria de facto.”
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O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes:
1.- Como questão prévia, saber se deve ser admitido o documento cuja junção é requerida pela Recorrente no recurso;
2.- saber se deve ser alterada a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, no sentido: (i) do aditamento ao elenco de factos provados do facto “A Ré, apesar de ter recebido a carta a que se refere o nº 5 dos factos provados, não respondeu”; (ii) da consideração como provado do (único) facto constante da sentença recorrida como não provado;
3.- saber se a sentença é nula porque contraditória entre os seus fundamentos e a decisão que encerra;
4.- saber se a comunicação dirigida pela Recorrente à Recorrida, visando a transição do contrato de arrendamento dos autos para o NRAU, obedeceu aos requisitos legalmente exigidos para a mesma e se, por conseguinte, é ou não eficaz;
5.- na negativa, saber se a invocação, pela Recorrida, da ineficácia da referida comunicação integra abuso de direito;
6.- na afirmativa a alguma das questões enunciadas em 3 e 4, saber se a Recorrente se opôs válida e eficazmente à renovação do contrato de arrendamento e se, por conseguinte, este cessou;
7.- na afirmativa a esta questão, saber se à Recorrente assiste o direito de ser ressarcida pelo atraso na restituição da fração autónoma arrendada, em que termos e por que valor pecuniário.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1.- No ano de 1986, AS celebrou com JS, marido da R., um contrato de arrendamento para fins habitacionais da fração autónoma referida em 3.
2. Na sequência do falecimento do marido da R., que ocorreu a 7 de março de 2011, a R. enviou uma missiva a AS, nos termos da qual lhe comunicou, de entre o mais, o seguinte:
«Venho por este meio comunicar-lhe o falecimento do Sr. JS, arrendatário do 2º andar esquerdo do prédio situado na Rua …, nº …, …º Esq., na Reboleira, Amadora (…) Sendo eu o cônjuge com residência no locado, o arrendamento transmitiu-se para mim nos termos do artigo 57º, nº 1, alínea a) da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro».
3.- Mediante escritura pública de compra e venda, outorgada em 15 de novembro de 2013, a A. declarou comprar e AS e mulher MO declararam vender a fração autónoma descrita pela letra E, do prédio urbano descrito na Conservatória dos Registos Predial e Comercial da Amadora sob o n.º …, da freguesia da Reboleira, e inscrita na matriz predial urbana sob o art.º …, da freguesia de Venteira.
4.- A A. tem inscrita no Registo Predial e a seu favor, mediante a AP n.º … de 10-01-2014, a propriedade do prédio descrito no ponto anterior.
5.- A A. remeteu um escrito assinado à R., datado de 23 de novembro de 2018, e que foi recebido pela R., nos termos da qual lhe comunicou, de entre o mais, o seguinte:
«Vem na qualidade de proprietária/senhoria, do prédio urbano supra identificado, ocupado por v. Exª, comunicar-lhe, nos termos e para os efeitos do artigo 30º do NRAU, na redação constante da Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, de que o contrato de arrendamento fica submetido ao NRAU, bem como que:
- O valor do locado (…) é de 56.270,00, conforme caderneta predial que se junta;
- O valor da renda mantém-se o atualmente em vigor;
- O contrato de arrendamento para fins habitacionais passa a ter a duração certa de dois anos a contar da presente data.
Mais informo V. Exª., de que dispõem de trinta dias, a contar da recepção da presente carta, para se opor à presente comunicação, através dos meios previstos no artigo 31º do NRAU, sendo que a falta de resposta por parte de V. Exª no referido prazo vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato constante da presente comunicação, ficando o mesmo submetido ao NRAU».
6.- No dia 15 de setembro de 2020, a A. enviou à R. outro escrito assinado, mediante carta registada com aviso de receção, da qual consta, entre o mais, o seguinte:
«Comunica-se a V. Exa., nos termos e para os efeitos nos artigos 1096º, nº 3, e 1097º do Código Civil, de que se opõe à renovação do contrato de arrendamento (…) Assim, o contrato de arrendamento terminará no próximo dia 30 de novembro de 2020, data em que deverá proceder à entrega do prédio livre de pessoas e bens».
7.- No dia 16 de setembro de 2020, a R. assinou o respetivo aviso de receção.
8.- No dia 30 de setembro de 2020, a R. enviou à A. um escrito assinado, mediante carta registada com aviso de receção, acompanhada de fotocópia do seu cartão de cidadão e de um atestado de residência emitido pela Junta de Freguesia da Ventura, da qual consta, entre o mais, o seguinte:
«Acuso a receção da v/ carta datada do dia 14-09-2020, em que me é comunicada a oposição à renovação do meu contrato de arrendamento.
Em resposta à mesma, venho, nos termos e para os efeitos do nº 10 do artº 26º do NRAU (Lei 6/2006 de 27 de fevereiro) com as alterações introduzidas pela Lei nº 13/2019 de 12 de fevereiro, opor-me à v/pretensão.
Efetivamente, encontro-me nas circunstâncias previstas no mencionado dispositivo legal, uma vez que à data da transição do contrato de arrendamento para o NRAU, consubstanciada pela v/ carta datada de 23-11-2018, tinha mais de 65 anos, residindo no locado desde 1986, portanto há mais de 15 anos, não tendo naquela altura exercido o direito à aplicação do disposto nos nºs 1 e 7 do artº 36º do NRAU.»
9.- No dia 1 de outubro de 2020, a A. assinou o respetivo aviso de receção.
10.- A R. mantém-se no locado.
11.- A R. reside no locado desde 1986.
12.- A R. nasceu em 3 de janeiro de 1947.
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Na mesma sentença não foi considerado provado que:
a.- A comunicação datada de 23 de novembro de 2018 foi remetida por carta registada com aviso de receção.
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III.II.- Do objeto do recurso
III.II.I.- Questão prévia: da admissibilidade da junção de documento pela Recorrente
A Recorrente, juntamente com o seu recurso, pretende a junção de um documento para prova do seguinte facto, que, na sentença recorrida, foi julgado não provado, em face da ausência de prova sobre ele:
.- “A comunicação datada de 23 de novembro de 2018 foi remetida por carta registada com aviso de receção”.
O documento em causa consiste em cópia do aviso de receção pressuposto no facto em apreço, justificando a Recorrente a sua apresentação apenas nesta fase processual pelo facto de o seu legal representante só agora o ter encontrado na sua residência, em França.
A apresentação de documentos no âmbito do recurso de apelação está disciplinada, fundamentalmente, nos artigos 425.º e 651.º, n.º 1, do CPC.
De acordo com o primeiro, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento; isto é, só são admissíveis os documentos objetiva ou subjetivamente supervenientes.
Por seu turno, de acordo com o segundo preceito, as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
A propósito deste normativo, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa que, além dos documentos supervenientes, “são admissíveis aqueles cuja necessidade se revelar em função da sentença proferida, o que pode justificar-se pela imprevisibilidade do resultado (v.g. quando a sentença  se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes ou quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam). Não é admissível a junção com a alegação de recurso de um documento que, ab initio, já era potencialmente útil à apreciação da causa” (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2019, p. 502).
Referem, também, que “[a] jurisprudência tem entendido, de modo uniforme, que não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” (ibidem, nota ao artigo 651, p. 786; no mesmo sentido, v. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Coimbra 2020, p. 286).
Para além destas situações, a junção de documentos na fase de recurso será admissível quando se revelar necessária para demonstrar a tempestividade da interposição do recurso (cfr. artigo 638.º do CPC) ou a legitimidade extraordinária do recorrente prevista no artigo 631.º, n.º 2, do CPC.
No caso em apreço, o documento cuja junção se pretende consiste numa cópia do ‘aviso de receção’ assinado pela Recorrida referente à carta que a Recorrente lhe enviou, datada de 23-11-2018, à qual se alude no facto provado n.º 5 da sentença recorrida.
Justifica a Recorrente tal pretensão, como se viu, por não ter na sua posse tal documento em momento anterior, mas por tê-lo recuperado entretanto, já que o seu legal representante, que se encontra emigrado em França, encontrou-o na sua residência naquele país.
Não há, contudo, fundamento para que a junção de tal documento seja admitida, por não estar verificado qualquer dos pressupostos legalmente previstos para o efeito, aos quais acima se fez referência.
Na verdade, em se tratando de documento datado de 2018, não consiste em documento objetivamente superveniente.
Por outro lado, independentemente de o documento ter sido encontrado na residência do gerente da Recorrente sita em país estrangeiro, o certo é que estava na sua posse e, portanto, sob a sua esfera de disponibilidade, pelo que o facto de não ter sido encontrado antes deveu-se, em último termo, a omissão do legal representante da Ré, que não cuidou de o procurar a tempo de proceder à sua junção tempestiva aos autos.
O documento também não pode, pois, ser considerado subjetivamente superveniente, pelo que a sua junção aos autos não pode fundar-se no disposto no art.º 425.º, n.º 1 do CPC.
Acresce que o facto que com ele se pretende provar (o envio da carta de 23-11-2028 com ‘aviso de receção’) foi alegado logo na petição inicial com que foi introduzida a ação em juízo (v. art.º 5.º da petição inicial) e foi impugnado pela Ré em sede de contestação (v. art.º 2.º deste articulado).
Foi, também, enunciado como ‘tema da prova’ em despacho proferido em sede de audiência prévia.
Desde a fase inicial da ação e, bem assim, ao longo do processo sempre houve elementos suficientes para que a Recorrente concluísse que se tratava de documento potencialmente relevante para a decisão da causa, mormente para prova de um facto que a própria alegara.
Com a junção do documento neste momento o que a Recorrente pretende é, pois, atestar um facto, não em função de algo que decorreu da sentença recorrida, mas em resultado de uma omissão da sua parte ao longo da tramitação do processo em 1.ª instância, consistente em não ter diligenciado pela sua junção em momento oportuno, apesar de ter todas as condições para inferir que o deveria fazer.
Finalmente, cumpre dizer que, como se referiu no Acórdão da Relação de Guimarães de 15-12-2016, “não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreço, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo um actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (art.ºs 2.º, n.º 1, 137.º e 138.º, todos do C.P.C.) (Acórdão proferido no processo 86/14.0T8AMR.G1, disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
Ora, como a própria Recorrente reconhece nas alegações e conclusões do seu recurso, o tribunal a quo, na sentença recorrida, considerou que a Ré, pelos elementos constantes dos autos, ‘confessara’ o facto de ter recebido a missiva em causa.
Outrossim, como se infere da sentença recorrida, o tribunal a quo também considerou que a exigência de envio da missiva com ‘aviso de receção’ constituía mera formalidade ad probationem, pelo que o facto de não ter resultado provado o envio da carta nessa modalidade não mereceu, em si mesmo, qualquer relevo negativo no que tange à pretensão da Recorrente.
Com o documento em causa esta pretende provar, assim, um facto cuja não demonstração em 1.ª instância não acarretou qualquer efeito negativo para a sua posição, concluindo-se, por isso, pela sua irrelevância jurídica nesta sede.
Em suma: não se verificam, de todo, os requisitos necessários para a junção do documento, em razão do que não se admite tal junção.
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III.II.II.- Da impugnação da matéria de facto
Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil.
De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante.
Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro dever de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas.
Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer oficiosamente, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova.
Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta.
Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334).
A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art. ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC.
O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172).
Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
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A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento.
Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
.- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a);
.- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada  diversa da recorrida (alínea b);
.- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c).
Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.  
Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida.
O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341).
Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de rejeição do próprio recurso.
Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
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Neste recurso, e como resulta das conclusões da Recorrente, esta pretende ver alterada a matéria de facto constante da sentença proferida no sentido: (i) do aditamento à mesma de um facto que dela não consta, cuja redação propõe; (ii) da consideração como provado do facto que dela consta como não provado.
Na sua ótica, tais factos são determinantes para a decisão da causa e se o primeiro resulta da forma como a Ré estruturou a defesa na sua contestação, o segundo resulta de documento de que não dispunha anteriormente, mas que, tendo-o, entretanto, recuperado pretende juntá-lo neste recurso.
Ora, do que acaba de ser dito resulta que a Recorrente individualizou os concretos pontos de facto que pretende ver introduzidos na matéria de facto julgada em 1.ª instância, indicou o mecanismo probatório que, na sua perspetiva, conduziria à consideração dos factos em apreço e enunciou o sentido em que tais factos deveriam ser considerados provados.
Concluímos, assim, que a mesma cumpriu os ónus que o acima citado art.º 640.º do CPC fazia recair sobre si, nada obstando, por conseguinte, ao conhecimento do recurso nesta parte.
Apreciemos, pois, a sua pretensão relativamente aos dois factos em causa.
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O facto que a Recorrente pretende ver aditado aos factos provados é o seguinte:
.- “A Ré, apesar de ter recebido a carta a que se refere o n.º 5 dos factos provados, não respondeu”.
Tal facto, na sua ótica, é determinante para a boa decisão da causa e resultaria da circunstância de a Recorrida não ter alegado e, consequentemente, não ter feito prova de que respondera à dita carta que lhe fora remetida pela Recorrente.
Ora, devidamente analisada a questão assim suscitada, entende-se que assiste razão à recorrente nesta parte da sua impugnação da matéria de facto; não propriamente pelo fundamento invocado pela mesma, mas em virtude de o facto em apreço dever ser considerado provado em razão do acordo das partes nesse sentido.
Com efeito, o facto em causa foi expressamente alegado pela Autora no art.º 8.º da petição inicial e mereceu uma impugnação genérica da parte Ré no art.º 2.º da sua contestação.
Ora, como decorre do disposto no n.º 1 do art.º 574.º do CPC, impugnação dos factos constantes da petição inicial juridicamente relevante é aquela em que o réu, na contestação, toma posição definida sobre aqueles factos.
Não foi isso, contudo, o que ocorreu quanto ao facto em apreço, já que a Ré, após confessar os factos expostos nos artigos 1.º a 4.º da petição inicial, limitou-se a impugnar genericamente a restante matéria.
O facto em causa não pode ser visto, como tal, como validamente impugnado, o que, nos termos do n.º 2 do citado art.º 574.º do CPC, implica a sua consideração como facto admitido por acordo.
Acresce que, da defesa da Ré considerada no seu conjunto, sempre se depreenderia que se tratava de facto aceite por esta.
Na verdade, a Ré impugnou o facto n.º 8 da petição inicial, não porque tenha respondido à carta da Autora, mas por tal carta não preencher os pressupostos legais, enquanto carta visando a transição de contrato de arrendamento para o NRAU.
A impugnação que a Ré fez do facto em apreço não recaiu, assim, sobre a circunstância de não ter respondido à carta da Autora, mas aos efeitos jurídicos desta.
Tanto assim foi, aliás, que a Ré, para a eventualidade de a sua posição não ser acolhida, esgrimiu outros argumentos de defesa, estribados na eventualidade da efetiva transição do contrato para o NRAU e, portanto, no facto de não ter respondido à carta da Autora (essa transição pressupunha ausência de resposta à carta).
Também por aqui, por conseguinte, se deverá ter o facto em apreço como admitido por acordo, nos termos referido preceito.
De resto, o não envio, pela Ré, de uma carta consiste em facto atinente a esta e, portanto, a facto “pessoal” ou de que mesma devia ter conhecimento.
A impugnação vaga e genérica do facto alegado pela Autora de que não enviou a carta sempre equivaleria, por isso, atento o estatuído no n.º 3 do art.º 574.º do CPC, a confissão do facto pela Ré.
Estamos, pois, perante facto provado.
Ora, o facto em apreço, no quadro das diversas soluções plausíveis da questão de direito, é relevante para a boa decisão da causa, considerando, nomeadamente, o disposto no n.º 9 do art.º 31.º do NRAU.
Procede, pois, a pretensão da Recorrente aqui em análise, devendo o facto em causa, com a redação proposta pela mesma, ser incluído no elenco de factos provados, no qual, por razões de precedência lógica, constará como facto provado com o n.º 5.1.
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O segundo ponto da matéria de facto constante da sentença recorrida que a Recorrente pretende ver alterado consiste na consideração como provado do facto que nela consta como não provado.
Tal facto é o seguinte:
.- “A comunicação datada de 23 de novembro de 2018 foi remetida por carta registada com aviso de receção”.
Como se infere das alegações da Recorrente, esta não põe em causa o juízo decisório do tribunal a quo no sentido da consideração como não provado do facto em questão, em face da prova produzida em julgamento.
O que pretende é que o mesmo seja agora considerado provado em razão de um documento de que não dispunha anteriormente e que pensava ter extraviado, mas que, entretanto, logrou encontrar, tendo requerido, por isso, a sua junção aos autos com o seu recurso.
Ora, do que acaba de ser dito, decorre que a procedência da pretensão da Recorrente está dependente da junção aos autos do dito documento.
Sucede que tal junção foi, como se viu, recusada, pelo que, inexistindo nos autos tal documento como meio de prova, não há como considerar provado o facto em apreço.
Improcede, por conseguinte, nesta parte, a pretensão da Recorrente.         
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III.II.III.- Da nulidade da sentença recorrida
Segundo a Recorrente, a sentença recorrida é nula porque contraditória nos seus fundamentos de facto e de direito.
A oposição entre os fundamentos e a decisão é causa, na verdade, de nulidade da sentença, nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC.
Verifica-se tal vício quando “existe incompatibilidade entre os fundamentos de direito e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado”, não se confundindo, por isso, “com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Artigos 1.º a 702.º, 2022, p. 793 e 794).
Na ótica da Recorrente, a sentença recorrida padece do vício em análise porque: (i) considerou que a mesma, na missiva que enviou à Recorrida a comunicar-lhe a transição do arrendamento dos autos para o NRAU, não fez as menções exigidas nas alíneas e), f) e g), 2.ª parte, do art.º 30.º daquele diploma legal, quando tal ocorreu; (ii) não considerou que a Recorrida, na carta que, por sua vez, esta remeteu àquela em 30-09-2020, aceitara como válida e eficaz aquela comunicação, assumindo como consequência da sua opção a transição do arrendamento para o NRAU.
Não há, contudo, qualquer contradição atendível da sentença recorrida.
Na verdade, independentemente da valia dos argumentos jurídicos expendidos pela Recorrente para suporte da sua pretensão, na sentença recorrida faz-se a análise dos factos provados, procede-se ao enquadramento jurídico tido por adequado e conclui-se em função da análise feita.
Acresce que o enquadramento jurídico levado a cabo pelo tribunal a quo e a decisão proferida não estão em relação de antagonismo entre si, mas, pelo contrário, seguem uma linha de coerência.
Ou seja, a conclusão a que se chegou na sentença está em perfeita sintonia com os fundamentos nela aduzidos em suporte da conclusão - estes fundamentos apontam precisamente para aquela conclusão -, pelo que, no quadro do silogismo que a sentença encerra, não há qualquer contradição que comprometa a sua lógica intrínseca.
Pode-se discordar do raciocínio seguido pelo tribunal a quo na sua prolação, o mesmo é dizer com o acerto, no plano do mérito, da decisão tomada; mas não há como duvidar do seu sentido e alcance decisivos, que, como se viu, é intrinsecamente lógico e coerente.
Não há, pois, contradição atendível da sentença proferida, pelo que improcede a nulidade invocada pela Recorrente.
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III.II.IV.- Do enquadramento jurídico dos factos
.- Da eficácia da comunicação da Recorrente à Recorrida, visando a transição do contrato de arrendamento dos autos para o NRAU
Entre a Recorrente e a Recorrida vigora, como não sofre contestação nos autos, um contrato de arrendamento para habitação, tendo por objeto uma fração autónoma de que a primeira é proprietária, no qual esta figura como senhoria e a Recorrida como inquilina.
Este contrato de arrendamento foi celebrado entre o anterior proprietário da fração autónoma e o marido da Recorrida, mas, pela aquisição do imóvel pela Recorrente ao primeiro em 15-11-2013 e pelo óbito do segundo em 07-03-2011, respetivamente, transmitiu-se para a Recorrente a posição de locadora (art.º 1057.º do CC) e sucedeu a Recorrida na posição de locatária (art.º 57.º, n.º 1, alínea a) do NRAU).
A celebração do contrato de arrendamento data de 1986, numa altura em que o regime do arrendamento habitacional constava, no essencial, do Código Civil e que se caracterizava pela sua natureza marcadamente vinculística, com fortes restrições da liberdade contratual das partes, em nome da tutela da posição do arrendatário (v., no sentido da presente exposição, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 393/2020, de 13/07, in DR n.º 192/2020, Série II, de 2020-10-01).
O sistema então implementado passava, em face do art.º 1095.º do CC, pela tendencial prorrogação automática dos contratos de arrendamento, impondo-se, nomeadamente, ao senhorio a renovação do contrato findo o prazo inicial de duração ou da sua renovação, o qual só em situações excecionais, previstas no art.º 1096, se poderia opor a tal renovação.
O contrato de arrendamento dos autos foi, pois, celebrado antes da entrada em vigor do RAU (aprovado pelo D.L. 321-B/90, de 15/10), ocorrida em 15 de outubro de 1990, diploma este que, por seu turno, mantendo, no essencial, o regime vinculístico anteriormente vigente, passou a prever a par dele, nos art.ºs 98.º a 106.º, a possibilidade de celebração de contratos de arrendamento a termo certo, pelo prazo mínimo de 5 anos, passíveis, nos termos do seu art.º 100.º, n.º 1, de livre denúncia por qualquer parte que não desejasse a renovação.
Atualmente, está sujeito ao NRAU (aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 17/02), cuja entrada em vigor ocorreu, quanto à generalidade dos preceitos nele previstos, em 28 de junho de 2006 (v. o seu art.º 65.º, n.ºs 1 e 2) e que revogou o regime anteriormente vigente (v. o seu art.º 60.º, n.ºs 1 e 2).
Subjacente a este último diploma legal esteve, no essencial, o desiderato de afastamento do regime vinculístico de pretérito, prevendo-se agora, inclusive, no art.º 1101.º do CC, a possibilidade de o senhorio, não só denunciar o contrato de duração indeterminada em situações excecionais, mas, também, de acordo com a alínea c) daquele preceito, a possibilidade de o fazer por simples comunicação ao arrendatário, desde que observada uma antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação do contrato.
Ora, nos termos do disposto no art.º 59.º, n.º 1 do NRAU, o regime nele previsto aplica-se, não só aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, como, também, às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, pelo que nele estão abrangidos contratos que, como o dos autos, foram celebrados anteriormente.
Considerando, porém, a rutura com o regime vinculístico de pretérito que o novo regime do arrendamento trouxe, potenciadora da fragilização da posição contratual do arrendatário, o próprio NRAU previu um conjunto de disposições transitórias destinadas a assegurar como que uma transição pacífica dos contratos ‘antigos’ para o novo modelo de arrendamento.
É esse o caso, no que diz respeito aos contratos de arrendamento habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, dos seus art. ºs 27.º a 58.º.
Tais normas, de acordo com o art.º 27.º, são, de facto, aplicáveis, além doutros, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor daquele diploma legal.
Tais contratos, celebrados, como se viu, a coberto do regime vinculístico, não estão sujeitos a prazo certo, o mesmo é dizer que são contratos de duração indeterminada.
Mantêm-se, inclusive, sujeitos a restrições semelhantes às decorrentes do regime de pretérito, como sejam as de impossibilidade de o senhorio denunciar livremente o contrato de arrendamento mediante simples comunicação ao arrendatário, nos termos da alínea c) do art.º 1101.º do CC (v. o n.º 2 do art.º 28.º).
Neste pressuposto, por forma a possibilitar a transição destes contratos para o NRAU, mormente, por forma a permitir, além do mais, a sua conversão em contratos a termo certo, previu o legislador, nos art. ºs 30.º e seguintes daquelas disposições transitórias, um específico mecanismo com esse fim.
Assim, de acordo com o art.º 30.º, a transição para o NRAU e a atualização da renda dependem da iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando, sob pena de ineficácia da sua comunicação:
a) o valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;
b) o valor do locado, avaliado nos termos dos art. ºs 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;
c) cópia da caderneta predial urbana;
d) que o prazo de resposta é de 30 dias;
e) o conteúdo que pode apresentar a resposta, nos termos do n.º 3 do art.º seguinte;
f) as circunstâncias que o arrendatário pode invocar, isolada ou conjuntamente com a resposta prevista na alínea anterior, e no mesmo prazo, conforme previsto no n.º 4 do artigo seguinte, e a necessidade de serem apresentados os respetivos documentos comprovativos, nos termos do disposto no art.º 32.º;
g) as consequências da falta de resposta, bem como da não invocação de qualquer das circunstâncias previstas no n.º 4 do artigo seguinte.
Por seu turno, de acordo com o art.º 31.º, o arrendatário dispõe, nos termos do n.º 1, do prazo de 30 dias a contar da receção da comunicação do senhorio para apresentar a sua resposta, resposta essa na qual pode, nos termos das alíneas a) a d) do n.º 3, pronunciar-se sobre a renda, aceitando-o ou opondo-se a ele, propondo um outro, bem como pronunciar-se quanto ao tipo e à duração do contrato propostos pelo senhorio e/ou denunciar o contrato de arrendamento, nos termos do art.º 34.º.
Nessa resposta, se for caso disso, deve o arrendatário, ainda, invocar, isolada ou cumulativamente, o rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), nos termos e para os efeitos dos art. ºs 35.º e 36.º (al. a) e a idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 36.º (al. b).
Invocando estas circunstâncias, deve o arrendatário, de acordo com o art.º 32.º, fazer acompanhar a sua resposta dos comprovativos das circunstâncias alegadas.
No caso de o arrendatário, recebida a comunicação do senhorio, não apresentar qualquer resposta, tal valerá, nos termos do n.º 9 do art.º 31.º, à aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato  propostos pelo senhorio, ficando o contrato, então, submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao do termo do prazo previsto nos n.ºs 1 e 2.
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Ora, é precisamente neste quadro que nos movemos no caso dos autos.
Vigorando entre Recorrente e Recorrida um contrato de arrendamento habitacional que, porque celebrado em data anterior à entrada em vigor do RAU, estava sujeito ao regime vinculístico, a Recorrente, como senhoria, pretendendo fazer transitar o contrato para o NRAU, despoletou o mecanismo que acaba de ser traçado, dirigindo à Recorrida, sua inquilina, a comunicação prevista no citado art.º 30.º do NRAU.
Considerando-a válida e eficazmente efetuada, reputou o contrato convertido em arrendamento com termo certo pelo prazo de dois anos e, não pretendendo a sua renovação, dirigiu à Recorrida, em 15-09-20, nova comunicação, dizendo-lhe que se opunha a essa renovação e que o contrato terminaria no dia 30 de novembro de 2020, data em que deveria entregar a fração livre de pessoas e bens.
O tribunal a quo, contudo, considerou que, da comunicação efetuada pela Recorrente ao abrigo do disposto no art.º 30.º do NRAU, não constavam todos os elementos exigidos nas alíneas que integram tal preceito e, consequentemente, reputou-a ineficaz, mantendo o contrato de arrendamento dos autos como de duração indeterminada.
Ora, é precisamente contra essa posição do tribunal a quo que a Recorrente se insurge neste recurso, batendo-se pela validade e eficácia da comunicação efetuada e, em consequência, pela caducidade do contrato de arrendamento.
Importa, pois, feito o excurso sobre o regime normativo a considerar no caso dos autos, que nos detenhamos sobre tal questão.
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Segundo o tribunal a quo a comunicação em causa continha as indicações exigidas nas alíneas a) a d), bem como na 1.ª parte da alínea g), do art.º 30.º do NRAU, mas não continha as previstas nas alíneas e) e f) e na 2.ª parte da alínea g).
As alíneas que, na ótica, do tribunal a quo não foram observadas pela Recorrente exigem, como se viu atrás, que, na comunicação efetuada, seja comunicado o seguinte:
.- o conteúdo que a resposta ao arrendatário pode apresentar, nos termos do n.º 3 do art.º 31.º - alínea e);
.- as circunstâncias que o arrendatário pode invocar, isolada ou conjuntamente, com a resposta prevista na alínea anterior, e no mesmo prazo, conforme previsto no n.º 4 do art.º 31.º, e a necessidade de serem apresentados os respetivos documentos comprovativos, nos termos do disposto no art.º 32.º - alínea f);
.- as consequências da não invocação de qualquer das circunstâncias previstas no n.º 4 do art.º 31.º - 2.ª parte da alínea g).
Na missiva que a Recorrente enviou à Recorrida aquela, no que diz respeito às indicações exigidas nas alíneas vindas de considerar, fez constar o seguinte:
.- “Mais informo V. Exª., de que dispõem de trinta dias, a contar da recepção da presente carta, para se opor à presente comunicação, através dos meios previstos no artigo 31º do NRAU, sendo que a falta de resposta por parte de V. Exª no referido prazo vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato constante da presente comunicação, ficando o mesmo submetido ao NRAU».
Ora, uma comunicação com este teor não satisfaz, na nossa ótica, aquilo que, nas referidas alíneas, é exigido, concordando-se com a posição assumida pelo tribunal a quo a esse respeito.
Na verdade, ao exigir-se, na alínea e), que seja indicado o conteúdo que a resposta do arrendatário pode apresentar, nos termos do n.º 3 do art.º 31.º do NRAU, está o legislador a exigir, claramente, a enunciação dos elementos previstos neste último preceito, particularmente, considerando a especificidade do caso dos autos, a possibilidade de pronúncia do arrendatário quanto ao tipo e à duração do contrato proposto pelo senhorio.
Outrossim, ao exigir, na alínea f), a indicação das circunstâncias que o arrendatário pode invocar com a resposta prevista no n.º 4, bem como de juntar os pertinentes documentos comprovativos das circunstâncias invocadas, está o legislador a exigir, claramente, a descrição concreta e detalhada dessas circunstâncias, mormente, e considerando o caso dos autos, o facto de o arrendatário ter idade igual ou superior a 65 anos ou padecer de incapacidade igual ou superior a 60%.
Finalmente, ao prescrever, na alínea g), o dever de indicação das consequências da não invocação de qualquer dessas circunstâncias, está o legislador, claramente, a exigir a formulação dessas consequências.
Ou seja, o legislador, atentos os efeitos gravosos que da comunicação podem advir para a correlação de forças entre as partes que resultará da nova relação contratual, estabeleceu um regime especialmente exigente, fixando um conjunto de regras para a sua elaboração com o fito de, em último termo, assegurar que o seu destinatário se possa inteirar do seu conteúdo pela simples leitura da mesma.
Não foi isso, contudo, o que a Recorrente fez.
Na verdade, como resulta da leitura do seu escrito, não detalhou o conteúdo que a resposta da Recorrida podia apresentar, nos termos do n.º 3 do art.º 31.º; não detalhou as circunstâncias que a Recorrida podia invocar, conforme previsto no n.º 4 daquele art.º 31.º, nem a necessidade de apresentação de documentos comprovativos das circunstâncias invocadas; e não frisou as consequências que a não invocação daquelas circunstâncias podia acarretar para a posição da arrendatária.
Pelo contrário, a Recorrente, na missiva em causa, limitou-se a remeter genericamente para os “meios previstos no artigo 31.º do NRAU” como sendo aqueles que estavam ao dispor da Recorrida para se opor à comunicação efetuada, com isso impedindo a sua destinatária de, pela simples leitura da carta, apreender o sentido e o alcance daquilo que nela estava a ser comunicado e daquilo que, ao ser recebida, era suposto fazer.
Note-se que, como se refere na sentença recorrida, o mecanismo previsto nos art. ºs 30.º e seguintes do NRAU constitui um “procedimento negocial complexo”, com o qual se pretende “constituir um novo vínculo contratual arrendatício”.
Tal procedimento negocial, por outro lado, emerge da iniciativa do senhorio, para quem a opção pela transição do contrato de arrendamento para o NRAU constitui um verdadeiro direito potestativo.
O despoletar do mecanismo pelo senhorio é, por conseguinte, como se referiu no supra referido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 393/2020, de 13/07, virtualmente apto a colocar o arrendatário numa posição tanto “mais gravosa (…) quanto menor for o nível da sua participação no âmbito do processo negocial iniciado”.           
Justifica-se, por isso, uma especial exigência na aferição dos requisitos de que depende a eficácia da comunicação em causa, tanto mais que esta, constituindo o início de um processo negocial, encerra em si mesma uma declaração de vontade cujo teor não poderá deixar de primar pela clareza e pela certeza, sob pena de, não o sendo, impedir o locatário de se inteirar da vontade real do senhorio e, com isso, de formar a sua própria vontade negocial de modo livre e esclarecido.
Acresce que, como resulta da análise do regime acima exposto, a extensão das alterações ao contrato de arrendamento habitacional celebrado antes da entrada em vigor do RAU está largamente dependente, como se referiu no referido Acórdão do Tribunal Constitucional, “dos termos em que o arrendatário reaja à comunicação endereçada pelo senhorio”, na certeza de que a ausência de resposta daquele acarretará a conversão imediata do contrato “num contrato com prazo certo sempre que tiver sido esse o tipo contratual proposto pelo senhorio” e a própria resposta terá a mesma consequência “sempre que inexistir acordo das partes acerca do tipo ou da duração do arrendamento”.
Esta realidade é especialmente premente nos casos em que, como o dos autos, o locatário se encontre em situação de especial fragilidade em razão de insuficiência económica, idade avançada ou incapacidade.
Nestes casos, o locatário que, apesar de se encontrar nalguma dessas circunstâncias, “a não invoque na resposta [à] comunicação, verá automaticamente precludida a faculdade de condicionar a transição do contrato para o NRAU”.
Justifica-se, por conseguinte, e também por aqui, um especial grau de exigência na aferição dos pressupostos de que depende a eficácia da comunicação do senhorio, sendo certo que, ainda de acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional, “apenas o cumprimento deste ónus de informação garante que o procedimento extrajudicial de transição para o NRAU consista numa definição negociada e paritária do estatuto do vínculo locatício, numa perspetiva dinâmica e dialética, em que senhorio e arrendatário possam intervir e influir nessa definição”.
De notar, ainda, que esta exigência surge refletida na própria evolução histórica do preceito em análise.
Na verdade, as indicações que a comunicação do senhorio deve conter às quais se alude nas alíneas e) a g) do art.º 30.º do NRAU não estavam previstas na redação originária do preceito, só passando a está-lo com a alteração do preceito introduzida pela Lei n.º 79/2014, de 19/12.
Ora, como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional que aqui se tem acompanhado, foi precisamente em função da perceção da “severidade das consequências que a ausência pura e simples de resposta à comunicação do senhorio, ou uma resposta deficitária ou incompleta a essa mesma comunicação, é suscetível de gerar para a situação habitacional do arrendatário [que, com o diploma em apreço, se pretendeu] assegurar que as mesmas se produzirão se e na medida em que este for previamente informado, quer das faculdades que lhe assistem e ónus que sobre si impendem, quer dos efeitos resultantes do seu não exercício ou observância”.
E isto, tanto mais que o mecanismo de transição dos contratos para o NRAU tem geralmente “como destinatários pessoas com idade relativamente avançada, o que exponencia os riscos associados à falta de esclarecimento do arrendatário relativamente às opções que tem ao seu dispor e condições em que pode fazer uso delas”.
O rigor e a precisão que, como acima se mencionou, devem estar presentes na redação da comunicação do senhorio a dirigir ao arrendatário, são, assim, exigências decorrentes, não só do espírito da lei, mas, também, do espírito da lei refletido ao longo da sua evolução histórica.
O mesmo é dizer, tal como bem se disse na sentença recorrida, que os critérios de interpretação da lei como sejam o “elemento literal”, o “elemento teleológico” e o “elemento histórico” não permitem outra conclusão que não a de que aquilo que o legislador pressupôs no preceito em análise foi uma comunicação clara e suficientemente detalhada na descrição e enunciação dos elementos previstos nas alíneas em causa.
Ora, como se viu, a missiva da Recorrente, ao remeter para o previsto num normativo legal como forma de completar a informação que nela se pretendia transmitir ao destinatário, não está, de todo, a cumprir este desiderato; o destinatário, ao lê-la, não fica suficientemente esclarecido daquilo que lhe é comunicado e daquilo que é suposto fazer perante o que lhe é comunicado.
E isso basta para que, em função do que acima foi dito, se conclua pela total ineficácia da missiva.
De resto, o próprio princípio da boa fé que deve pautar o cumprimento das obrigações (art.º 762.º, n.º 2) assim o dita, na certeza de que, de outro modo, ficaria em aberto a possibilidade de o senhorio, a coberto de uma redação dúbia da comunicação, poder ver alterada a relação contratual a seu favor, por mero efeito da incompreensão ou do silêncio do inquilino, aproveitando-se, mesmo, da especial vulnerabilidade deste.         
Para contrariar esta conclusão, invoca a Recorrente, na sua motivação de recurso, que a Recorrida, na carta que esta lhe enviou em 30 de setembro de 2020, aceitou expressamente que o contrato de arrendamento transitara para o NRAU através da comunicação em causa e que tal é revelador de que a mesma, não só compreendera integralmente o teor dessa comunicação e dos direitos e opções que lhe assistiam, como que entendeu não responder-lhe.
Tanto assim teria sido, segundo a Recorrente, que a Recorrida, na mesma carta, invocou o n.º 10 do art.º 36.º do NRAU, com o que estava ‘expressamente’ a admitir ter havido transição para o NRAU.
Discorda-se, contudo, desta argumentação da Recorrente.
Na verdade, a carta em questão surge em resposta a uma outra carta da Recorrente, datada de 15-09-2020, pela qual esta comunicara à Recorrida a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento dos autos.
Aquilo que, na carta a que a Recorrente aqui se refere, foi dito pela Recorrida só faz sentido, por conseguinte, no contexto de resposta a essa carta da Recorrente.
Assim, se esta comunicara a sua oposição à renovação do contrato, com a consequente extinção deste, a Recorrida retorquiu-lhe com a sua posição quanto à inviabilidade dessa oposição, com a consequente manutenção do contrato.
Pretender-se, como a Recorrente pretende, que a Recorrida, com a carta em apreço, revelou ter aceite a transição do contrato para o NRAU por força da comunicação de 23-11-2018 é, por conseguinte, uma extrapolação que o contexto em que se inseriu a referida troca de correspondência não permite retirar.
A Recorrente, com a carta de 30 de setembro de 2020, “defendeu-se” daquilo que a Recorrida lhe acabara de comunicar pela carta desta de 15 de setembro de 2020 e nada mais.
Acresce que ver-se na carta da Recorrida, datada de 30-09-2020, uma aceitação da transição do contrato de arrendamento dos autos para o NRAU, por força da carta da Recorrente de 23-11-2018, pressuporia que aquela tivesse, em face desta última carta, formado uma vontade livre e esclarecida quanto à efetiva transição do contrato para o novo regime locatício.
Ou seja, só faria sentido concluir-se que a Recorrente, em 2020, aceitara algo ocorrido em 2018, se aquilo que ocorrera em 2018 tivesse, no que a si diz respeito, resultado de vontade livre e esclarecida.
Tal, contudo, como acima se viu, não ocorreu, em face da insuficiência dos termos da missiva da Recorrente de 23-11-2018, pelo que, independentemente dos dizeres que a Recorrida tenha feito constar na sua carta de 30-09-2020, desta não se pode retirar que tenha aceite a transição do contrato para o NRAU.
De resto, a Recorrida surge na carta em causa, a de 30-09-2020, a invocar uma circunstância – o facto de ter mais de 65 anos – que, como decorre das disposições conjugadas dos art. ºs 31.º, n.º 4, alínea b) e 36.º do NRAU, poderia ter invocado em resposta à missiva da Recorrente de 23-11-2018, como forma de obstar ou, pelo menos, de condicionar os termos em que o contrato de arrendamento dos autos poderia transitar para o novo regime locatício.
Ora, se a Recorrida, em 2020, entendeu que se justificava a invocação da circunstância da sua idade para garantir a manutenção do contrato, nenhuma razão há que leve a concluir que, dois anos antes, não entendesse o mesmo e não quisesse obter o mesmo resultado.
Temos, pois, que, lendo e contextualizando a carta da Recorrida de 30-09-2020, dela se não pode extrair a conclusão de que aceitou a transição do contrato de arrendamento dos autos para o NRAU.
Em conclusão, a missiva da Recorrente de 23-11-2018, pela qual esta visou operar a transição do contrato de arrendamento dos autos para o NRAU, não produziu os efeitos a que tendia.
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- Do abuso de direito da Recorrida
Sustenta a Recorrente, nas suas conclusões de recurso, que a Recorrida, ao invocar a ineficácia da comunicação de transição do contrato de arrendamento dos autos para o NRAU, agiu em abuso de direito.
Isto porque, não só não respondeu à missiva correspondente, fazendo-lhe crer que não se opunha a que a transição ocorresse, como, na carta que (a Recorrida) lhe remeteu em 30-09-2020, reconheceu a efetiva transição do contrato para o NRAU.
Vejamos.
Dispõe o artigo 334º do Código Civil que há abuso de direito quando o titular deste exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Subjacente a tal instituto está a ideia de que, existindo um determinado direito na esfera jurídica do seu titular, o seu exercício é, contudo, abusivo, por redundar “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”, de tal forma que o seu reconhecimento “resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico” (v., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, Coimbra, 1987, p. 299).
A “concepção adoptada” é, por outro lado, de acordo com os mesmos Autores (ibidem, p. 298), “objectiva”, não sendo “necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites”.
Uma das formas de exercício abusivo de um direito reside, como se viu, no exceder dos limites do direito impostos pela boa fé, sendo uma das modalidades desse excesso o correntemente denominado "venire contra factum proprium".
Ou seja, o comportamento contraditório do titular do direito que o pretende exercer depois de ter agido de uma forma ou ao longo de um determinado período de tempo suscetível de criar na outra parte o convencimento ou a expectativa legítima de que jamais o exerceria.
O Professor Menezes Cordeiro (in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, julho 1998, pág. 964) refere que são quatro os pressupostos da proteção da confiança, no quadro da figura do “venire contra factum proprium”:
“1°- uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”
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Reportando-nos ao caso dos autos, não vemos como se possa imputar à Recorrida qualquer comportamento em abuso de direito.
Na verdade, e em primeiro lugar, não há nenhum facto provado que demonstre que a Recorrida, depois de ter recebido a carta pela qual a Recorrente lhe comunicara a sua vontade de fazer transitar o contrato para o NRAU, tenha dito algo ou adotado uma conduta ativa que, em si mesma, revelasse a sua aceitação – expressa – à efetiva transição do contrato.
O que temos é, apenas, uma conduta passiva da Recorrida, em que esta nada diz e faz, perante a missiva que recebera da Recorrente.
Não há, pois, atos, palavras ou comportamentos da Recorrida que, objetivamente considerados, permitissem à Recorrente criar a expectativa de que aquela aceitara que a missiva que lhe fora enviada produzira todos os efeitos a que tendia.
Acresce que, do que se trata aqui, é de uma missiva com a qual se pretendeu converter um contrato de arrendamento sujeito ao regime vinculístico em contrato com prazo certo, por forma a que depois se viesse a fazer operar a sua cessação, com a consequente obrigação da Recorrida de despejar o locado.
Ver-se na conduta passiva desta uma aceitação de um tal estado de coisas, contrariaria, assim, todo e qualquer juízo de normalidade que pudesse ser formulado, tanto mais que, como se extrai dos autos, estava em causa a habitação de uma pessoa de idade avançada e que residia no locado desde 1986.
Acresce que a conduta passiva da Recorrida tem a precedê-la o envio de uma missiva pela Recorrente que padece de vicissitudes consubstanciadas no facto de dela não constarem os elementos que, nos termos da lei, eram essenciais a que o seu destinatário, a Recorrida, pudesse apreender o seu sentido e alcance decisivos.
Carece, pois, de sentido ver-se na postura da Recorrida qualquer sinal de aceitação da transição do contrato para o novo regime de arrendamento, já que, se não é possível concluir-se que aquela percebeu os contornos da pretensão desta, também não é possível concluir-se que tal aceitação tenha ocorrido.
Finalmente, a carta que a Recorrida remeteu à Recorrente em 30-09-2020 não pode valer como aceitação da transição do contrato para o NRAU, valendo aqui tudo quanto acima já foi dito a esse propósito.
Não há, pois, quaisquer elementos que justifiquem a confiança da Recorrente num qualquer comportamento da Recorrida, a ponto de concluir que esta, com a sua conduta, tenha violado a boa fé daquela, agindo, com isso, em abuso de direito.
Nunca o comportamento da Recorrida revelado pelos factos apurados seria suscetível de evidenciar o comportamento “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”, que “resultaria intoleravelmente ofensivo do nosso sentido ético-jurídico”, pressuposto no instituto jurídico do abuso de direito.
Improcede, pois, a pretensão da Recorrente nesse sentido.
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Em conclusão: não se operou a transição do contrato de arrendamento dos autos para o NRAU, mormente no que diz respeito à sua conversão em contrato com prazo certo, in casu pelo período de dois anos.
Não se tendo convertido em contrato de arrendamento com prazo certo, estava vedado à Recorrente opor-se à sua renovação nos termos do disposto nos art.ºs 1096.º, n.º 3 e 1097.º do CC, sendo irrelevante, por conseguinte, a comunicação que, com esse fim, dirigiu à Recorrida, mencionada no facto provado n.º 6.
Assim, mantendo-se o contrato dos autos como de duração indeterminada e não sendo, por isso, caso de aplicação da possibilidade de oposição pela Recorrente, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 1097.º e 1098.º do CC - cfr. art.ºs 27.º e 26.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, forçoso é concluir pela improcedência da pretensão da Recorrente, não merecendo censura a sentença recorrida.
Impõe-se, pois, negar provimento ao recurso, sendo que, em face do assim decidido, fica prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pela Recorrente nas suas conclusões, acima enunciadas no elenco de ‘questões a decidir’ sob os n.ºs 6 e 7.
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IV.- Decisão
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.

Lisboa, 11 de janeiro de 2024
José Manuel Monteiro Correia
Carlos Gabriel Castelo Branco
Laurinda Gemas