ALTERAÇÃO DA REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PRINCÍPIO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
NULIDADE DE SENTENÇA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
COMPETÊNCIA MATERIAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
Sumário


.1- Nos processos de jurisdição voluntária o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita e o princípio do dispositivo tem uma aplicação mais limitada, mas ainda assim o processo não pode ser objeto de tramitação e decisão arbitrárias.
.2- O uso do processo e as suas decisões estão sujeitos à sua finalidade, que se traduz o apuramento da verdade e a justa composição do litígio: a instrumentalidade é guia na utilização dos poderes alargados que neste tipo de processos são concedidos ao tribunal.
.3- Assim, em regra, nos processos de alteração da regulação das responsabilidades parentais o objeto da decisão não deve extravasar o objeto tipificado do processo, relativo às responsabilidades parentais: se se verificam os pressupostos para a sua alteração e qual a regulação que melhor protege os interesses que se pretendem tutelar.
.4- Também nestes processos há limites aos poderes instrutórios que a lei confere ao juiz, fundados no princípio da instrumentalidade, pelo que as decisões têm que estar contidas no objeto próprio do processo, não podendo extravasar a relação jurídica em discussão, embora sem a típica vinculação ao pedido.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - Relatório

Requerente e Apelante: AA
Requerido e Apelado: BB

Apelação em ação para alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais, relativamente a
CC e DD

O Requerente pediu, no requerimento inicial, que os jovens lhe fossem entregues e que o progenitor fosse obrigado a comparticipar nas despesas daqueles.
Para tanto alegou, em síntese, que a mãe dos menores, a cuja guarda e cuidados os menores foram confiados na sequência do divórcio do casamento que havia celebrado com o Requerido, progenitor daqueles, faleceu quando vivia em união de facto com o Requerente e constituiu-o tutor dos mesmos e administrador dos respetivos bens, por via de disposição testamentária. Tem uma relação de afeto com os menores.
Já em sede de alegações referiu, também em síntese, que os menores foram “arrancados da sua casa e ambiente no momento mais difícil das suas vidas, dois meses apenas após a morte da mãe. Antes de serem forçados a sair de casa estavam a ter acompanhamento psicológico com um especialista com quem já tinham estabelecido um vínculo de confiança, apoio esse que era fundamental para o seu restabelecimento psíquico e emocional. Com o corte abrupto do seu status quo, estão também impedidos de manter esse apoio, de que tanto precisam.”
O pai também alegou, afirmando, em síntese, que o Requerente se move apenas com motivação patrimonial e que o Requerentes, independentemente da situação patrimonial dos menores, os acolherá.
Correm em paralelo autos de promoção e proteção.
Em 1-3-2022, foi proferido despacho, transitado, que explicou que “A reforma do Código de 1977 e o espírito que a enformou, a igualdade de progenitores no que concerne à titularidade e exercício do, então poder paternal, afastou a existência do poder singular e isolado de nomeação de tutor, por parte de qualquer dos progenitores, excepto se só um deles exerce-se o, então poder paternal (hoje, questões de particular importância quanto ao exercício das responsabilidades parentais)” e decidiu que “Em consequência verifica-se que o requerente não é tutor.”
Em 2-11-2022, o Ministério Público veio formular requerimento em que defende que deve a “disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens que compõem a herança da falecida mãe dos jovens ser declarada anulada nos termos do disposto no art.º 2199.º do Código Civil”.
Em 3-11-2022, o Requerente veio desistir dos pedidos formulados nos autos, afirmando não estar em condições físicas e psicológicas para garantir o interesse dos jovens.
Em 4-11-2022, foi proferido o seguinte despacho: “Considerando o requerido pelo Ministério Público, atinente à questão da administração de bens dos menores e considerando o objeto dos presentes autos - o exercício das responsabilidades parentais em todo o seu espectro - julga-se ser de admitir o requerimento deduzido - cfr. artigos 3.º, al. c) e al. a), 12.º e 27.º do RGPTC.
Tendo em conta a proficuidade de produção conjunta de prova e concatenando com a necessidade de fazer actuar o princípio do contraditório determina-se que seja o requerente e o requerido notificados para, querendo, se pronunciar quanto ao requerido e, na mesma oportunidade, deduzirem requerimento probatório.
Considerando o supra, sem efeito o julgamento para o próximo dia 7 agendado.”
Em 15-11-2022, o Requerente apresentou requerimento na sequência deste convite, em que defendeu que a testadora dispunha de todas as suas faculdades, encontrava-se capaz de entender o sentido das suas declarações e detinha o exercício da sua vontade aquando da feitura do testamento, concluindo que “deve a referida disposição testamentária ser considerada válida, com todos os demais e legais efeitos.”
 Após a produção e prova, foi prolatada sentença na qual de decidiu:
“--- homologar a desistência do pedido, nos termos do artigo 285.º, n.º 2, 286.º, n.º 1 e 290.º todos do C.P.Civil, com custas a cargo do desistente e
 --- .1- Declarar anulado o testamento datado de 24.8.2021 onde consta que EE declarou:
Nomear tutor aos filhos CC e DD, AA;
Excluir da administração de todos os bens dos menores o pai, BB destes e a irmã mais velha daqueles, FF.
Atribuir a administração dos bens dos menores a AA.
Constituir, a favor de AA o usufruto da sua casa de morada de família, sita na travessa ....
Excluir do direito de visita na referida casa, o pai dos menores e a sua irmã mais velha e o companheiro desta.
--- Ordenar que AA apresente, no prazo de 10 dias: Relação completa dos bens dos menores (bens imóveis, bens móveis sujeitos a registo, bens móveis, aplicações financeiras, contas bancárias, seguros financeiros, etc). Especifique todos os actos de gestão ordinária ou extraordinária que fez em relação a cada um dos bens que constituem o património; Apresente extractos bancários de todas as contas e aplicações financeiras, relativamente a todo o período de administração; Apresente relação de rendas que haja recebido, ainda que as mesmas não sejam tituladas por contrato formal“.

É desta decisão que o Requerente recorre, pedindo a revogação da sentença recorrida e que os autos sigam, depois, os seus regulares termos.

Terminou, para tanto, as suas alegações com as seguintes
conclusões:

“1. É contra a bondade do decidido pelo Tribunal a quo que se insurge o ora Recorrente, por considerar, entre outros que a Sentença recorrida dá como provados factos que não podiam ter sido dados como provados.
2. Entende o Recorrente que os factos dados como provados não assumiram, objetivamente, contornos apresentados na motivação do Tribunal a quo, uma vez que não procedeu a uma verdadeira análise critica da prova produzida.
3. A Sentença in crise, na sua fundamentação dá como provado, nos pontos 9 e 43 que a Sra. Notária não explicitou à falecida EE “o alcance e as consequências da constituição do usufruto”, bem como que esta “não entendeu o sentido da sua declaração e não tinha o exercício da sua vontade”.
4. Ora, tal não resulta do depoimento por essa testemunha.
5. Resultou claro que o usufruto foi explicado à falecida EE, tendo inclusive a testemunha feito o paralelo com outra figura jurídica “o direito do uso e habitação”.
6. Atente-se, ainda, que a falecida sempre teve o necessário entendimento sobre o que era o usufruto, uma vez que a falecida já em .../.../2018 deixou em testamento o usufruto da sua casa e legou o direito de uso e habitação da mesma aos seus pais, distinguindo as duas figuras.
7. Acresce ainda que, a Sentença in crise, na sua fundamentação dá como provado, na factualidade dos pontos 32, 33, 34, 35, 38, 39, 40, 41, 42, 43 e 44, um quadro clínico incompleto e descontextualizado da Falecida EE.
8. A Sentença in crise ignorou, por completo, outros elementos de diagnóstico constantes nos relatórios médicos.
9. Atente-se que são vários os relatórios clínicos do mês de agosto, último mês de vida da falecida EE e de feitura do testamento, em que é referido por diversas vezes, que a paciente se encontrava consciente, colaborante e orientada.
10. Sempre se dirá que, para além do tribunal a quo” ter “esquecido” ou “ignorado” essa matéria constante da prova documental, não realizou um exame crítico da prova efetuada em Audiência de Julgamento sobre esses mesmos pontos.
11. No modesto entendimento do Recorrente, impunha-se ao Tribunal a quo uma verdadeira análise crítica de toda a prova documental junta aos autos e da realizada em audiência de julgamento que implicaria não ter sido dado como provado os factos assentes da matéria de facto nos pontos 9, 32, 33, 34, 35, 38, 39, 40, 41, 42, 43 e 44.
12. Uma vez que da análise crítica da prova produzida, o Tribunal a quo deveria ter concluído que desde o início do seu último internamento a doente terminal EE se encontrava perfeitamente consciente e orientada, não havendo qualquer outra referência a amnésia ou estabilidade ou agravamento da desorientação, muito pelo contrário existiram sim melhorias progressivas!
13. Importando referir que a falecida EE foi observada no hospital no dia anterior e no dia seguinte ao da realização do testamento referindo-se nos respetivos relatórios clínicos que esta se encontrava consciente, colaborante e orientada.
14. Não tendo sido feita nenhuma prova em concreto em sentido contrário.
15. Acresce que, na condução da Audiência de Julgamento, o Tribunal a quo mais do que procurar a verdade material para uma boa decisão da causa mais parecia estar a tentar “conduzir” as testemunhas através de uma inquirição “massacrante” e confusa.
16. Pretendendo o Tribunal a quo levar essas testemunhas a prestar depoimentos num qualquer sentido “pré-determinado”.
17. Aliás, foram feitas algumas observações fora do contexto, pelo Meritíssimo Julgador, inclusive quanto à sua superioridade física, entre outras.
18. Acrescente-se ainda que o Tribunal “a quo” várias vezes invocou na inquirição das testemunhas médicas e da Sra. Notária a atuação da falecida como estando a prejudicar os seus dois filhos (com a feitura do último testamento – ignorando o anterior!) como sendo incompatível com um perfeito estado de consciência!
19. Não sendo normal este tipo de procedimento por parte dos nossos Tribunais, só entende o Recorrente a “elástica” atuação do Tribunal a quo in casu como uma “procura de prova” para sustentar um qualquer juízo prévio, potenciando a consequente “decisão-surpresa”!
20. O Recorrente deu entrada contra o Recorrido de uma ação de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais relativa aos menores CC e DD, peticionando que os jovens fossem a si entregues e o progenitor destes obrigado a prestar alimentos, alegando para tal que a falecida mãe destes, por via de testamento, o constituiu tutor de ambos os menores e administrador dos bens.
21. Face ao peticionado pelo Requerente, a 23-12-2021, o Requerido comunicou aos autos a declaração notarial de revogação da disposição testamentária da falecida progenitora que nomeava o aqui Recorrente tutor dos menores.
22. A 02-11-2022, o Ministério Público deduziu um requerimento em que peticionando que a disposição a instituir o ora Requerente administrador dos bens dos menores fosse declarada anulada.
23. A 03-11-2022, o Requerente, após vários episódios clínicos que afetaram gravemente o seu estado de saúde, veio desistir dos pedidos formulados nos presentes autos.
24. A 04-11-2022, foi o aqui Recorrente, considerando o supra requerido pelo Ministério Público, “atinente à questão da administração dos bens dos menores”, notificado para, e em respeito do contraditório, se pronunciar.
25. O que o aqui Recorrente veio a realizar, em 15-11-2022, frisando que face aos relatórios médicos juntos aos autos, não se encontrava comprovado que a falecida EE estivesse num estado incapacitante que não permitisse entender o alcance das suas declarações ou que não detinha o exercício da sua vontade.
26. Em 23-06-2023, o Tribunal a quo, proferiu sentença onde declara anulado o testamento de EE, datado de .../.../2021.
27. Ora, in casu, estamos perante um incidente de alteração das responsabilidades parentais que corre os seus termos no Juízo de Família e Menores de acordo com o artigo 6.º, n.º 1, al. c) do RGPTC e 123.º, n.º 1, al. d). da LOSJ.
28. Sendo que o Tribunal a quo decidiu prosseguir para julgamento e apreciar a “validade” da disposição testamentária relativa à nomeação do Recorrente como administrador dos bens dos jovens.
29. Nunca esteve em causa nos presentes autos, a anulação do testamento efetuado por EE.
30. Nunca houve oportunidade processual para o aqui Recorrente arguir a incompetência absoluta do Tribunal a quo em razão da matéria, bem como de exercer o seu pleno direito de contraditório.
31. O testamento é um ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da sua morte, todos os seus bens ou parte deles. Sendo nulo o testamento em que o testador não tenha exprimido cumprida e claramente a sua vontade.
32. O ato de testar dirá respeito única e exclusivamente à pessoa do testador não estando em causa em qualquer caso os beneficiários das disposições testamentárias.
33. O testamento é um ato pessoal, insuscetível de ser feito por meio de representante ou de ficar dependente do arbítrio de outrem. 34. O que está em causa é efetivamente a capacidade e o livre exercício da vontade pelo testador.
35. Existindo falta ou vícios da vontade, o testamento será anulado nos termos dos artigos 2199.º e seguintes do Código Civil numa ação própria para esse efeito em Tribunal competente para julgar essa mesma matéria.
36. O Juízo de Família e Menores é um juízo de competência especializada nos termos do artigo 65.º do Código do Processo Civil e da alínea g) do n.º 3 do artigo 81.º da LOSJ, estando a sua competência fixada nos artigos 122.º, 123.º e 124.º da LOSJ.
37. Ora, a anulação de testamento não se encontra previsto em nenhum dos artigos acima mencionados relativos à competência dos juízos de família e menores.
38. A decisão de anulabilidade do testamento nos presentes autos não tem qualquer razão de ser.
39. O Recorrente considera que esta anulação do testamento não é da competência dos juízos de família e menores, sendo antes competência dos juízos cíveis, configurando assim a violação da competência absoluta material, sendo esta de conhecimento oficioso!
40. Sempre se dirá que o Tribunal a quo era materialmente incompetente para julgar a capacidade ou incapacidade da falecida EE no ato de testar e bem assim declarar anulado o testamento celebrado a .../.../2021.
Sem prescindir,
41. Caso assim não se entenda o que só por mera hipótese de raciocínio se aceita, sempre se dirá que a sentença é nula por o julgador conhecer de questões de que não poderia tomar conhecimento.
42. Tanto pelo teor do requerimento apresentado pelo aqui Recorrente de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais, como pelo promovido em 02-11-2022 pelo Ministério Público, sempre se diria que as questões submetidas à apreciação do Tribunal a quo diriam respeito única e exclusivamente ao exercício das responsabilidades parentais dos jovens CC e DD e à administração dos seus bens.
43. Após a desistência dos pedidos formulada pelo aqui Recorrente, os autos prosseguiram para Audiência de Julgamento para apreciação da promoção do Ministério Público em ver julgada a validade da disposição testamentária que nomeava o aqui Recorrente administrador dos bens dos jovens DD e CC.
44. Acontece que, a 23-06-2023, o Tribunal a quo, proferiu sentença onde declara anulado o testamento, datado de .../.../2021.
45. Ora, nunca esteve em causa nos presentes autos a anulação do testamento efetuado por EE a .../.../2021.
46. O excesso de pronúncia implica, por parte do Juiz, uma violação do poder/dever prescrito no art.º 608.º , nº.2 do Código de Processo Civil.
47. Poder/dever esse que consiste, por um lado, no resolver todas as questões submetidas à sua apreciação e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes (salvo aquelas de que a lei lhe permite conhecer oficiosamente – o que in casu não se verifica).
48. Pressupõe então o excesso de pronúncia que o Tribunal a quo vai além do conhecimento que lhe foi pedido pelas partes, in casu, pelo Recorrente e pelo Ministério Público.
49. Em face do que acima se expôs, o Tribunal a quo ao julgar anulado o testamento, quando o pedido inicial se baseava e consistia no exercício das responsabilidades parentais dos jovens CC e DD, conheceu de questões que não tinham sido suscitadas pelas partes.
50. A possibilidade de anulação de todo o testamento é uma questão estranha aos autos, à matéria submetida à apreciação do Tribunal a quo.
51. Sendo uma matéria que não foi alegada nem debatida e sobre a qual não foi dada às partes a possibilidade de exercerem um verdadeiro contraditório.
52. Assim, no modesto entendimento do Recorrente, a Sentença em crise excedeu os limites de cognição do Tribunal a quo.
53. A validade do testamento não pode ser por si apreciada.
54. Pelo que a sentença deve ser considerada nula, nos termos do disposto no art.º 615, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil, nulidade essa que expressamente se invoca.

Sem prescindir,
55. E caso se entenda pela improcedência da nulidade supra invocada, o que só por mera hipótese de raciocínio se aceita, sempre se dirá que a sentença será nula por condenar em objeto diverso do pedido.
56. O Recorrente deu entrada de um incidente de alteração das responsabilidades parentais com base em duas disposições testamentárias que o nomeavam tutor e administrador dos bens dos jovens CC e DD.
57. As questões submetidas à apreciação do Tribunal diriam respeito única e exclusivamente ao exercício da tutoria dos jovens CC e DD e à administração dos seus bens.
58. Sobre o exercício da tutoria essa questão ficou sanada pela revogação notarial da disposição testamentária pelo Requerido.
59. Quanto à questão da administração de bens, o processo prosseguiu para Audiência de Julgamento apenas pelo objeto da promoção do Ministério Público em ver julgada a validade da disposição testamentária que nomeava o aqui Recorrente administrador dos bens dos jovens DD e CC.
60. Assim, 23-06-2023 o Tribunal a quo, para grande surpresa do aqui Recorrente, proferiu sentença onde declara anulado o testamento, datado de .../.../2021, onde a falecida EE declarou, para além de nomear para tutor dos seus filhos e administrador dos bens daqueles o aqui Recorrente, excluir da administração de todos os bens dos jovens o pai daqueles. BB e a irmã mais velha daqueles, FF, constituir a favor do Requerente o usufruto da sua casa de morada de família e, por fim, excluir do direito de visita na referida casa, o pai dos jovens, a sua irmã mais velha e o companheiro desta.
61. Se tanto o Requerente como o Ministério Público não formularam qualquer pedido quanto à validade do testamento, não pode o Tribunal a quo declarar anulado o mesmo.
62. Aliás afigura-se que tal decisão padece de outra nulidade.
63. No caso em apreço, o Tribunal a quo estava vinculado ao pedido do Requerente, que mais tarde veio a desistir do mesmo.
64. E vinculado ao requerido pelo Ministério Público que vinculou o Tribunal apenas quanto à validade da disposição testamentária que nomeava o aqui Recorrente administrador dos bens dos jovens CC e DD.
65. Ao decidir nos termos em que decidiu, num manifesto “excesso de zelo”, sempre se dirá que tal Sentença constituiu uma verdadeira decisãosurpresa, com violação do princípio do pedido, consequentemente, com violação do princípio do contraditório e, ainda, com violação da competência material
66. Assim, e no modesto entendimento do Recorrente, o Tribunal a quo não poderia declarar anulado o testamento, pois tal nunca foi peticionado, além de que tal constitui matéria reservada aos Juízos Cíveis.
67. Fazendo-o, o Tribunal a quo fere de nulidade a Sentença, nos termos e para os efeitos do art.º 615.º, n.º 1, al. e) do Código de Processo Civil, a qual expressamente se invoca.
Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente e em consequência ser revogada a sentença recorrida, seguindo, depois, os autos os seus regulares termos.”

Os jovens responderam, terminando as suas alegações com as seguintes
 conclusões:
“1 – Não assiste, salvo o devido respeito, o menor fundamento ao presente recurso.
2 - No que concerne à maioridade dos Recorridos e à invocada cessação da competência deste tribunal para a tramitação do processo principal de promoção e protecção, à luz do disposto no artigo 5º-a) da Lei nº 147/99 de 1 de Setembro e ao facto dos Recorridos terem oportunamente solicitado a continuação da aplicação das medidas de protecção antes da sua maioridade e faltando-lhe 3 anos para atingir os 21 anos de idade, é este tribunal plenamente competente para a subsequente tramitação do referido processo principal.
3 – Como fundamento da sua discordância com a douta decisão sobre a matéria de facto, o Recorrente retira umas quantas frases dos depoimentos das testemunhas, frases estas desinseridas do contexto dos respectivos depoimentos e desacompanhadas das restantes respostas dadas e omite todo o resto, com o que pretende alicerçar a sua tese, o que contraria o que vem sendo entendimento sobre o mérito deste tipo de impugnação recursória.
4 - O Recorrente coloca particular enfoque sobre os depoimentos das testemunhas, a Notária Dr.ª GG e a médica oncologista Dr.ª HH.
5 - Começando por esta última, o seu depoimento teve várias vicissitudes que, do nosso ponto de vista, espelharam um condicionamento prévio, claro, da testemunha, no sentido da “tese” do Recorrente.
6 – Com efeito, desde a afirmação perante o Meritíssimo Julgador “a quo”, de que sabia o que o tribunal queria que ela dissesse, o que motivou uma reação de indignação do senhor magistrado, ao facto de se referir ao Recorrente como “companheiro” da falecida mãe dos Recorridos, algo que não soube explicar em que factos se baseava para o dizer, até à revelação de que a D.II a procurara depois da morte da mãe dos Recorridos, para a prevenir de que seria chamada a tribunal por causa do assunto dos menores, todo o depoimento desta testemunha acabou por se ver envolvido num manto de dispensável parcialidade e, até, alguma imprecisão e queda em contradições, do ponto de vista da ciência médica.
7 - Não obstante e graças à persistência desenvolvida pelo tribunal recorrido na apreciação de toda a prova, inclusive na inquirição desta testemunha, esta acabou por reconhecer que a desidratação e a dor afectaram a consciência da falecida mãe dos Recorridos, bem como os efeitos secundários da poderosíssima medicação analgésica que lhe era ministrada, não lhe permitiriam, poucas horas antes de morrer, tomar decisões com a complexidade e alcance de um testamento como o dos autos.
8 - A respeito do depoimento da senhora Notária que elaborou o testamento, parece-nos ser de relevar, no que concerne à sua competência na avaliação da capacidade cognitiva dos testadores em geral, o conteúdo do seu depoimento, designadamente o conteúdo das respostas dadas às perguntas do Meritíssimo Julgador “a quo” e da Digna Agente do Ministério Público, para se perceber, salvo o devido respeito, a noção “aligeirada” que tem da sua competência na avaliação do estado de saúde mental alheio, que lhe permitiu admitir que uma pessoa no estado de saúde em que se encontrava a falecida mãe dos Recorridos, fizesse um testamento desta complexidade e responsabilidade.
9 – Mais grave ainda, aconselhou e permitiu que a mãe dos Recorridos fizesse tal testamento, sem a própria testemunha saber e, como tal, disso não informou a testadora, que a nomeação do Recorrente como tutor, podia ser revogada pelo progenitor dos Recorridos, como o foi, nos termos do disposto no artigo 1928º-1 do Código Civil.
10 – O mesmo se diga quanto à alegada explicação do âmbito e natureza do usufruto, em que a senhora Notária se multiplicou em redundâncias sobre a definição do direito, sem que em momento algum tivesse declarado ter advertido a testadora do alcance do direito, no que concerne às limitações a que ficam sujeitos os radiciários relativamente à fruição futura do bem o que, conjugado com a referida ignorância legal, equivale a dizer que a testadora nem sequer sabia no que se estava a meter e aos seus filhos, pessoa esta por si só já gravemente abalada na sua condição física e mental e que faleceria dali a umas horas.
11 - Deste modo, na douta decisão recorrida, com insuperável esforço de compreensão da verdade material e louvável prossecução do objectivo máximo exigido a estes tribunais da defesa dos interesses dos menores, o Meritíssimo Julgador “a quo” conseguiu aperceber-se de tudo o que estava para além da teia urdida pelo Recorrente e pela sua referida parceira, bem patente nos autos e seus apensos, na tentativa, ainda em vida da falecida mãe dos Recorridos, de se tentarem apoderar do património que esta lhes viria a deixar.
12 - Do nosso ponto de vista, a única “decisão surpresa” destes autos, foi a da interposição do presente recurso, último bastião a que o Recorrente se tenta agarrar para não deixar fugir o que tanto lhe custou a granjear, porquanto em última sede do seu objectivo de proteger os Recorridos, a sua falecida mãe, fruto da sucessiva incompetência das entidades a que recorreu para o efeito, fez um testamento em que a deixa do usufruto ao Recorrente, perfeitamente dispensável, de resto, para o efeito pretendido, foi-lhe apresentado com “ultima ratio” da estratégia, sendo as demais a instituição da tutoria e a entrega da administração dos bens dos Recorridos ao Recorrente.
13 - A primeira foi revogada pelo progenitor.
14 - O Recorrente desistiu no processo de que lhe fosse entregue o exercício das responsabilidades parentais em relação aos Recorridos.
15 - Declarou em tribunal que, não obstante tal desistência, se achava em condições de tratar da administração dos bens dos Recorridos.
16 - O Recorrente, secundado pela sua parceira II, sugeriu despudoradamente que era o companheiro da mãe dos Recorridos, o que foi completamente desmentido pelos próprios Recorridos e muitas das testemunhas ouvidas na audiência de julgamento.
17 - O próprio relatório de avaliação psicológica, no que concerne ao Recorrente, levantou, do nosso ponto de vista, sérias suspeitas acerca da credibilidade e intenções do Recorrente.
18 - Quedava, por isso, a deixa do usufruto que, como se disse era, embora com a ressalva já feita, completamente acessória em relação à única pretensão da testadora e que era a de proteger os seus filhos, sabendo que morreria brevemente, sendo por causa por causa disso que o Recorrente está agora a recorrer, pois todo o demais testado já tinha sido invalidado e a própria maioridade dos Recorridos, que o Recorrente não se coibiu de invocar neste recurso, arrumou com o resto.
19 - Nestas circunstâncias, essa deixa testamentária teria de ser anulada, por a persistência da mesma, em face das demonstradas intenções da falecida mãe dos Recorridos e do que quedava das disposições testamentárias, ser completamente ilegal, pois se limitava a conferir ao Recorrente um injustificado e ilegal benefício, em detrimento dos Recorridos e completamente em violação da vontade última da testadora ao fazer o testamento e que era a de proteger os seus filhos.
20 - Tal disposição testamentária da deixa do usufruto da casa de morada de família dos Recorridos ao Recorrente, conforme dispõe o artigo 2186º, trata-se de uma disposição nula, pois da interpretação do testamento resulta que foi essencialmente determinada por um fim contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, ou seja, todas as aludidas circunstâncias em que tal testamento foi feito, tiveram como único objectivo o de favorecer patrimonialmente o Recorrente.
21 – Igualmente carecem de qualquer fundamento, do nosso ponto de vista, a alegada incompetência do tribunal para proferir tal decisão e supostas nulidades da mesma.
22 - Efectivamente, tal competência resulta para nós clara do disposto nos artigos 122º e 123º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto), bem como do artigo 7º da Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro, que aprova o Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
23 – Assim e designadamente, tendo as medidas de promoção e protecção aplicadas aos Requerentes sido renovadas, a questão da validade e subsistência do testamento em causa, no âmbito de todo o processado com vista à regulação das responsabilidades parentais em relação aos Recorridos, nas suas diferentes vertentes, cabe inteiramente no âmbito da competência deste tribunal.
24 - Seria, de resto, algo singular que se, por exemplo, a falecida mãe dos Recorridos tivesse apenas instituído a tutoria em relação a estes, a mesma pudesse ser anulada, como o foi, por acto unilateral do progenitor sobrevivo e este tribunal não se pudesse pronunciar sobre uma disposição testamentária completamente dependente daquela.
25 - De resto, afigura-se-nos o descrito contexto em que a mãe dos Recorridos outorgou tal testamento, reconhecível no tipo de factos que motivaram a douta decisão Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 23-06-2016, Processo 1579/14.5TBVNG.P1.S1, in ITIJ 26 - Em todo o caso e o que nos parece decisivo para que o tribunal “a quo” tenha proferido a decisão ora impugnada, é que o vício que inquinou a vontade da testadora, profusa e detalhadamente exposto na mesma douta decisão em crise, traduzido na sua incapacidade para se aperceber da natureza e conteúdo do acto que estava a praticar é, em si, determinante da invalidade do próprio testamento e não de qualquer disposição em concreto.
27 - A este respeito, sempre se poderá dizer que a revogação de todo o testamento era a única decisão lógica, sobretudo se se tiver em consideração ter sido a deixa do usufruto meramente instrumental das demais disposições, principalmente da tutoria e da administração dos bens dos Recorridos pelo Recorrente.
28 – A decisão do tribunal recorrido estriba-se ainda no disposto no artigo 986º2 do Código de Processo Civil, bem como no disposto no 987.º do mesmo diploma, sendo certo que, conforme se decidiu no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-02-2015, Processo 607/06.2TBCNT.C1.S1, in ITIJ: “(..) Não constitui violação do princípio do dispositivo nem excesso de pronúncia, o facto de, tendo os autores pedido apenas o reconhecimento do direito (…), não podendo o juiz condenar nem em quantidade superior, nem em objeto diverso do mesmo, tal não dispensa um esforço suplementar que permita apreender, materialmente, o âmbito objetivo do pedido que foi formulado na ação (…)”..
29 – Ainda será de convocar, a este respeito, o disposto no artigo 292º do Código Civil (“A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.”), por ser certo, conforme repetidamente acima se afirmou e igualmente se faz profusa menção na douta decisão em crise, que a falecida mãe dos Recorridos, com tal disposição de última vontade, pretendeu apenas acautelar o futuro dos Recorridos e não beneficiar quem quer que fosse, designadamente o Recorrente.
30 - Aliás, a própria possibilidade da revogação da tutoria pelo progenitor de que, como se disse, a falecida mãe dos Recorridos não foi informada, tornava as demais disposições testamentárias completamente irrelevantes à luz da mencionada vontade da testadora, principalmente a deixa do usufruto, do que se a testadora tivesse sido informada, a levaria a procurar outro veículo legal de expressão dessa sua vontade última, não se deixando enredar na citada teia que lhe montaram. “

O Ministério Público também respondeu, defendendo a decisão recorrida, contra-alegando e formulando as seguintes:
conclusões:
“1. Os contornos dos presentes autos vão muito além da validade ou não do testamento que, muito acertadamente, e a requerimento do MP, o Tribunal a quo declarou anulado.
2. Após o decesso da progenitora dos jovens (26.08.2021) foi o Processo de Promoção e Proteção (apenso D) reaberto (07.09.2021) e foram instaurados:
I. - o presente processo de Alteração da RERP, no dia 06.10.2021, pelo recorrente (apenso G), II. - procedimento cautelar pelo progenitor dos jovens em 05.11.2021 (apenso H); III. - habeas corpus, em 02.12.2021, requerido por Dr.ª JJ, Advogada, em patrocínio Pro Bono, sendo que, então, tinham cada um dos jovens patronos nomeados, tendo, no final, o STJ indeferido o pedido por falta de fundamento bastante e condenado a peticionante (Dr.ª JJ) nas custas e na sanção processual no montante total de 918,00 €; IV. - procedimento cautelar pelos jovens, no dia 13.07.2023 (apenso K); V- incidente de quebra de sigilo bancário, pelo progenitor, em 28.08.2023 (apenso L).
3. Estão pendentes no DIAP inquéritos com vista averiguar da relevância criminal de condutas do aqui recorrente.
4. Após o decesso da progenitora e abertura do processo de promoção e proteção foram instaurados inquéritos no DIAP ..., por terceiros, arrogando-se fazê-lo em nome dos jovens, que até onde temos conhecimento, foram já arquivados.
5. Os presentes autos reportam-se aos jovens DD e CC, ambos nascidos a .../.../2005, filhos de BB e de EE.
6. No âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais as questões de particular importância foram atribuídas a ambos os progenitores, foi fixado um regime de contactos e prevista a pensão de alimentos.
7. O PPP foi arquivado em 11.06.2021, em virtude de se terem alcançado “ganhos significativos, nomeadamente com contacto diário (telefónico e/ou pessoal), refeições em conjunto em datas festivas, convívios em casa do pai, acompanhamento do CC aos treinos de futebol e mesmo no aumento da capacidade de diálogo e comunicação entre os progenitores.”
8. A progenitora, na altura, assumia a sensibilização dos jovens para comunicarem e conviverem mais regularmente com o pai.
9. O conhecimento da Senhora Técnica da SS da vida e envolvência das crianças e progenitores era e é extenso tendo sido sempre a mesma técnica que acompanhou o caso.
10. Decorridos tão só dois meses e quinze dias da data do arquivamento do PPP a progenitora dos jovens DD e CC faleceu (em .../.../2021).
11. A Segurança Social, através da Senhora Técnica gestora do caso, no dia .../.../2021, informou os autos de promoção proteção, deste falecimento da progenitora dos jovens e que o progenitor foi impedido de estar com eles por II e um indivíduo cuja identificação era desconhecida.
12. Procedeu a SS avaliação da situação, tendo sido constatado que os jovens estavam a viver na casa onde sempre moraram e estavam acompanhados de II e de AA, individuo este nunca mencionado naqueles autos de promoção e proteção, nunca mencionado pela progenitora dos jovens à Senhora Técnica ou ao Tribunal e desconhecido da Senhora Técnica gestora do caso e do Tribunal.
13. Alegaram, a referida II e AA, que este mantinha uma relação de união de facto ou de namoro com EE, progenitora dos jovens.
14. Exibiram documento intitulado de testamento, datado de 24.8.2021 (No dia anterior, 23.08.2021 a progenitora dos jovens tinha sido conduzida ao hospital e, já com diagnóstico de morte, a médica assistente queria interná-la e no dia seguinte, 25.08.2021, dá entrada novamente no hospital onde veio a falecer, no dia 26.08.2021).
15. Naquele documento consta que EE declarou:
a. Nomear tutor aos filhos CC e DD, AA;
b. Excluir da administração de todos os bens dos menores o pai, BB destes e a irmã mais velha daqueles, FF.
c. Atribuir a administração dos bens dos menores a AA.
d. Constituir, a favor de AA o usufruto da sua casa de morada de família, sita na travessa ....
e. Excluir do direito de visita na referida casa, o pai dos menores e a sua irmã mais velha e o companheiro desta.
16. Vinte e dois (22) dias antes de falecer, no dia 4.8.2021, e com ocorrência de internamentos hospitalares, a progenitora dos jovens permutou com o recorrente um prédio urbano destinado a armazém e atividade industrial por uma fração autónoma destinada a habitação, sendo que, a 30.9.2021 estes imóveis foram avaliados em € 295.000,00 e € 50.000,00, respetivamente.
17. Neste negócio refere-se a entrega pelo recorrente do cheque nº ...42 no valor de 17.500,00€ e data de emissão de 04.08.2021, conta DO nº ...01, por ele titulada, para pagamento do diferencial, mas como resulta do apenso H, informação do Banco 1..., SA do dia 03.11.2023, consta o mesmo como "cheque ativo", já que nunca foi apresentado a pagamento e, assim, nunca entrou na conta da falecida mãe dos jovens.
18. No âmbito do referido processo de promoção e proteção, por acordo datado de .../.../2021, foram aplicadas, as medidas de proteção de apoio junto dos pais, na pessoa do pai e de confiança a pessoa idónea a executar na pessoa de II, considerando que os jovens se manteriam na casa em que sempre viveram, mas que o usufruto foi constituído, por morte da progenitora a favor de AA.
19. Nesse mesmo acordo, AA comprometeu-se a deixar de residir na casa onde os jovens moravam com a mãe.
20. Decorridos tão só sete dias em que assumiu este compromisso, no dia 06.10.2021, o recorrente AA intentou a presente ação para alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais relativamente aos jovens CC e DD, alegando para tanto que a falecida mãe dos menores o constituiu tutor dos mesmos e administrador dos respetivos bens por via de disposição testamentária e bem assim que vivia, desde 2017, em união de facto com a referida mãe dos menores; menores com os quais “tem uma relação de afeto”, terminando peticionando que sejam os jovens a si entregues e o progenitor obrigado a comparticipar nas despesas daqueles.
21. Logo em seguida II e AA retiraram o seu acordo à aplicação da medida de confiança a pessoa idónea.
22. Foi realizada perícia com vista a ouvir os jovens quanto à pretensão do requerente e aquilatar das competências e motivações do recorrente, de onde resulta que nunca o recorrente foi unido de facto ou namorado da falecida mãe dos jovens.
23. O Tribunal a quo proferiu decisão a declarar que o recorrente não é, nem nunca foi, tutor dos menores.
24. Ministério Público requereu que a referida disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens que compõem a herança da falecida mãe dos jovens fosse declarada anulada nos termos do disposto no art.º 2199.º do Código Civil.
25. Foi ordenado o contraditório e determinado que o requerente e o requerido fossem notificados para, querendo, se pronunciar quanto ao requerido pelo MP e, na mesma oportunidade, deduzirem requerimento probatório.
26. O recorrente veio desistir dos pedidos por si deduzidos alegando ter atrofia óptica e que “…atualmente não está em condições físicas e psicológicas de garantir o superior interesse de CC e DD…”.
27. Foi notificado - por duas vezes - para dizer se renunciava à função de administrador de bens, nada disse.
28. Por requerimento datado de 15.11.2022 pronunciou-se quanto à questão da anulabilidade do testamento requerida pelo MP.
29. Durante as últimas semanas de vida da progenitora dos jovens esta foi acompanhada por AA e II, sendo esta quem a levava ao médico e o transporte era feito por AA.
30. Desde pelo menos dezembro de 2015, que a falecida mãe do CC e da DD sofria de carcinoma da mama direita com mestatização óssea e hepática, tendo sido sujeita a diversos tratamentos, sendo que em junho de 2021 é internada em virtude da progressão de metastização óssea e hepática e à data do falecimento padecia de, para além do problema oncológico ansiedade; nervosismo; tensão; depressão; distúrbio do sono; estado de ansiedade; cefaleia; perturbação depressiva; prurido.
31. Quando foi internada, no dia 25 de agosto de 2021, no Hospital ... foi diagnosticado que estava “…em últimas horas de vida”.
32. A progenitora dos jovens era doente terminal, vinha de sucessivos internamentos com diagnósticos de desorientação, amnésia e toma de medicação ansiolítica e para as dores, incluindo morfina.
33. Como tal, face ao estado de saúde de EE e as poucas horas que distam entre a feitura do testamento e a morte, a mesma estava em estado tal que não entendeu o sentido da sua declaração e não tinha o exercício da sua vontade.
34. No âmbito do PPP foi, no dia 03.10.2023, proferido o seguinte despacho:
“…Resulta do relatório da ATT e da posição da Digna Procuradora da República que continuam a manter-se os pressupostos de intervenção estadual.
Tal é apodítico.
Desde logo os jovens pugnam pela manutenção da intervenção estadual.
Ademais, tal como este Tribunal desde sempre vinha afirmando, DD e CC, não fora o pai, estariam absolutamente desamparados e votados a sabe-se lá o quê.
Repare-se que a casa que sempre foi onde viveram está absolutamente inabitável sendo que quando a progenitora dos jovens faleceu tal assim não era.
Ademais, aquilo que ao longo destes anos seria a estrutura de suporte dos jovens esfumou-se com a mesma rapidez e volatilidade que foram obstadas a todas as tentativas de terceiros ficarem com o património que é dos mesmos.
Numa palavra: sem património para dele usufruir, não há ajuda que se preste a CC e DD.
Resta-lhes o pai e o Estado Português.
Mercê de tudo isto DD e CC vêem-se numa situação de, claro e apodítico perigo, que importa continuar a tentar debelar - cfr. art.º 3.º da LPCJP.
Termos em que e sem mais decide-se:
1.Em relação a CC, ordenar a prorrogação da execução da medida, nos termos dos art.ºs 35.º, n.º 1, al.s a) e b), 39.º e 62.º, n.ºs 1 e 3, al. c), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, mantendo-se todas as obrigações constantes do acordo de promoção e proteção e do plano de intervenção para a execução da medida.
2. Em relação a DD, alterar a medida de promoção e protecção, aplicando a medida de apoio junto dos pais, a ser executada na pessoa do pai - cfr. art.º 35.º, n.º 1, al. a) da LPCJP, pelo período de 3 meses…
3. Atribuir apoio económico, no valor mensal de 240.00€, a cada um, pelo mesmo período de três meses.”
35. Um facto é inegável em toda esta situação e resulta à saciedade da longa intervenção protetiva no âmbito do apenso D e da inquirição das testemunhas durante o julgamento dos presentes autos, a mãe da DD e do CC lutou anos para engravidar destes filhos, adorava-os, sabedora desde 2015 que tinha uma doença muito grave, tudo fez e fazia para os deixar bem, e era incapaz de os prejudicar fosse de que maneira fosse.
36. A própria Senhora Notária o disse, a médica Assistente o disse, e as demais testemunhas inquiridas.
Vejamos:
Ao minuto 87 da gravação questionada a médica assistente pelo MP “ qual era a maior preocupação da Dona EE?” esta respondeu perentoriamente “ Era os filhos.”
 “Quem é que ela queria proteger mais?”
“Dr.ª HH (Médica) - Os filhos.
Questionada pelo MP se “Alguma vez a Dona EE, em consciência, se tivesse com a lucidez toda, cem por cento cometeria algum ato que lesasse os filhos?” Minuto 88
A resposta da Dr.ª HH (Médica) foi “ Não.”
“Dr.ª HH (Médica) - Não, não... Era a preocupação dela sempre, era os filhos...
Dr.ª Procuradora - Desde que a conhece, desde dois mil e quinze... Dr.ª HH (Médica) - Sim, sim... Nem tinha ideia que já era tantos anos... Sempre, os filhos...
Dr.ª Procuradora - Era sempre os filhos?
Dr.ª HH (Médica) - Sempre.
Dr.ª Procuradora - E quando ela lhe aparece com esta... Com a doença, o objetivo dela foi sempre deixar aos filhos...
Dr.ª HH (Médica) - O melhor, ela contou-me que fez a piscina para os filhos, não sei se fez, se não, ela...
Dr.ª Procuradora - Na casa?
Dr.ª HH (Médica) - Na casa...
Dr.ª Procuradora - Na casa que era para os filhos?
Dr.ª HH (Médica) - Sim.
Dr.ª Procuradora - E agora a Senhora Doutora acabou de saber que os filhos não estão lá, tiveram de sair de lá...
Dr.ª HH (Médica) - Pois.

Dr.ª HH (Médica) - Não, não, a preocupação dela era os filhos sempre.
Dr.ª Procuradora - E acha que ela se tivesse cem por cento capaz, alguma vez praticava esse ato de lesá-los?
Dr.ª HH (Médica) - De lesar os filhos nunca...”
37. E o depoimento da senhora Notária, ao minuto 44, quando interpelada pelo MP que se estivesse no lugar dela (Notária) diria à mãe dos jovens:
"mas a Senhora quer prejudicar os seus filhos? é que com isto está a prejudicálos.”… “ se lhe dissesse isto ela parava. Porque se dissesse que com isto ia prejudicar os filhos ela não faria isto. Porque ela sempre quis proteger os filhos… Ela lutou para ter estes filhos...
GG - Isso é verdade, é verdade.”
38. Como tal, bem andou o Tribunal a quo quando concluiu que face ao estado de saúde de EE e as poucas horas que distam entre a feitura do testamento e a morte, a mesma estava em estado tal que não entendeu o sentido da sua declaração e não tinha o exercício da sua vontade.
39. A sentença recorrida aplica devidamente o direito aos factos e faz uma apreciação correta da prova produzida nos autos e em julgamento, tendo por isso concluído, como não poderia deixar de o fazer, por declarar anulado o testamento datado de 24.8.2021.
40. O Juízo de Família e Menores é competente em razão da matéria para a decisão proferida sendo que esta questão foi já decidida por acórdão desse douto Tribunal de 3.3.2022 proferido no apenso H.
41. Nesse mesmo aresto, a propósito da decretada providência cautelar de arrolamento, decidiu-se que :
“A competência material dos Juízos de família e menores está definida nos arts 122º, 123º e 124º da Lei 62/2013 de 26.8.
O art.124º, nº1, al.a) atribui-lhes competência para a preparação, apreciação e decisão dos processos de promoção e proteção.
E o art. 123º que se reporta às providências cíveis respeitantes a menores e filhos maiores, atribui-lhes competência, além do mais, para a instauração da tutela e administração de bens e para a regulação do exercício das responsabilidades parentais e questões a este respeitantes e também para quaisquer incidentes desses mesmos processos-cfr. alíneas a) e d) do nº1.
Por conseguinte, é inquestionável que os tribunais de família e menores são materialmente competentes para conhecerem das questões relativas à administração de bens dos menores através dos referidos processos e respetivos incidentes.
Acresce que, a Lei 147/99 de 1.9, Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, (doravante LPCJP), prevê no art. 81º, n º1 que “ Quando relativamente à mesma criança ou jovem, foram instaurados, sucessivamente ou em separado, processos de promoção e proteção, inclusive na comissão de proteção, tutelar educativo ou relativo a providências tutelares cíveis, devem os mesmos correr por apenso, independentemente do respetivo estado, sendo competente para deles conhecer o juiz do processo instaurado em primeiro lugar.
E norma de teor idêntico consta do art.11º, nº1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei 141/2015 de 8.9( doravante designado como RGPTC).
Ora, face a estes dois últimos normativos, é patente que o legislador determinou a apensação de todos os processos relativos à mesma criança ou jovem, sejam de promoção e proteção, sejam de natureza tutelar cível, certamente com o objetivo de assegurar a uniformidade de julgamento e a adoção de medidas ou a tomada de decisões harmoniosas e compatíveis entre si, independentemente das diferentes vertentes em que a situação da vida da criança ou jovem haja de ser decidida, com as vantagens que daí resultam para a efetiva garantia do seu superior interesse e também para o crédito da justiça.
Assim, a presente providência de arrolamento destinada a identificar e assegurar a conservação dos bens deixados pela mãe aos menores até que o tribunal tome uma decisão definitiva sobre a administração dos mesmos tinha obrigatoriamente de ser apensada, como foi, aos processos tutelares cíveis e de promoção já pendentes em relação aos mesmos, improcedendo a exceção de incompetência material do tribunal invocada pelo requerido.”.
42. Esta argumentação é perfeitamente válida para o presente caso.
43. Na verdade, o processo de promoção e proteção continua pendente pois que os jovens tal peticionaram - cfr. art.º 5.º, al. a) da LPCJP.
44. Ademais está pendente o presente processo onde foi declarado anulado o testamento da falecida mãe dos jovens (feito horas antes de morrer) e por via de tal as respetivas disposições testamentárias onde se incluem a nomeação do requerido como tutor e administrador dos bens dos jovens e a constituição de usufruto a favor do requerido relativamente à casa que sempre foi de morada dos jovens (a qual, decorre do processo de promoção e proteção, está agora absolutamente inabitável…).
45. Sendo que por via dessa anulação foi dado início ao procedimento de prestação de contas.
46. O decidido nos presentes autos em tudo está, genética e funcionalmente, ligado ao processo de promoção e proteção bem como todos os outros processos - mormente as duas providências cautelares decretadas, de arrolamento e para entrega da casa que sempre foi de morada dos jovens.
47. Como se refere no supra referido acórdão desse Tribunal da Relação de Guimarães só este Tribunal pode assegurar a uniformidade de julgamento e a adoção de medidas ou a tomada de decisões harmoniosas e compatíveis entre si, independentemente das diferentes vertentes em que a situação da vida da criança ou jovem haja de ser decidida, com as vantagens que daí resultam para a efetiva garantia do seu superior interesse e também para o crédito da justiça.
48. O MP pediu a anulação do testamento com base no disposto no art.º 2199.º do C. Civil que estipula que “ É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória (negrito e sublinhado nossos).”
49. Notificado de tal, isto é, cumprido o contraditório, o requerido pronunciou-se, não suscitando nesse requerimento - de 15.11.2022 - qualquer questão de competência apenas contrapondo, faticamente, o alegado.
50. Desde esse momento que o requerido sabia que o fundamento de direito em que o Ministério Público alicerçava a sua pretensão era o disposto no art.º 2199.º do C.Civil e, como tal, a ter provimento, o que seria anulado era, como foi, o testamento.
51. Na verdade, a causa de pedir consubstanciou-se numa causa geral de anulabilidade, a incapacidade acidental da testadora.
52. Como é bom de ver, verificada essa causa, geneticamente ligada à vontade da testadora, o tribunal não podia deixar de, aplicando o disposto no art.º 2199.º do CC, declarar anulado todo o testamento.
53. Numa palavra, o requerido sabia, desde o primeiro momento que o que se discutia eram factos que a serem dados como provados, como foram, implicavam a anulação de todo o testamento.
54. Até porque o que o requerido parece defender é que é possível, por via da capacidade acidental, poder cindir o efeito da anulação.
55. Ora, nos termos do disposto no art.º 289.º, uma vez operada a anulação ela tem efeitos retroativos, devendo ser restituído tudo o que foi prestado.
56. Ou seja, a declaração de anulação, afeta o conteúdo de todo o negócio jurídico não sendo possível cindir uma parte…ainda que a causa de anulação seja referente a todo o testamento.
57. A não ser assim, parece o requerido defender que teria de ser intentada nova ação, para discutir, material e substancialmente, aquilo que foi já conhecido - o estado de incapacidade da testadora - e dessa forma conseguir obter decisões judiciais distintas sobre uma mesma realidade de facto, fazendo entrar pela janela aquilo que não logrou fazer conseguir entrar pela porta.
58. Sempre, mas sempre, esteve em causa a anulação do testamento, de todo o testamento, pois foi e é essa a causa de pedir.
59. E bem assim, nos termos do art.º 2199.º do CC, o que se anula é o testamento e não parte dele.
60. Realidade de facto e de direito que o requerido sabia e sempre soube.
61. Por conseguinte não há condenação ultra petitium - cfr, art.º 608.º, n.º 2 do C.P.Civil - pois que o Tribunal foi chamado, desde o primeiro momento, a conhecer da incapacidade da falecida mãe dos jovens para testar e a consequente anulação do testamento.
62. O tribunal a quo confrontou-se com duas situações paradigmáticas durante a Audiência de Julgamento.
63. Uma o depoimento da Senhora Médica oncologista, médica assistente da mãe dos jovens que, e parafraseando o Mº Juiz “ Este depoimento poderia ser caracterizado de caricato se o ocorrido não fosse de extrema gravidade” que, a instâncias do Senhor
Juiz, responde: “ Eu sei que quer que eu diga que não”!!!! (Sic)
Minuto 21
Dr.ª HH (Médica) - Sim, morreu no dia seguinte, portanto obviamente que ela tava muito doente, não é...
Dr. Juiz - E agora eu pergunto, com oitenta e seis por cento, a Dona EE nesta situação em concreto, às vésperas da morte, como é que era a capacidade mental dela, explica-me... Se era capaz de discernir, de fazer raciocínios complexos?
Dr.ª HH (Médica) - É muito... Eu sei que quer que eu diga que não, mas eu não consigo dizer... Dr. Juiz - Eu não quero que diga que não, quem é que lhe disse que eu quero que diga que não?”
64. Esta mesma testemunha, médica de oncologia no Hospital ... que seguia a falecida mãe dos jovens desde 2015, referiu que a testemunha II, amiga do requerente/recorrente há cerca de 14 anos e que está de relações cortadas com o pai de DD e CC e que foi quem levou o recorrente para casa da falecida mãe de DD e CC, já depois do óbito, deslocou-se ao hospital e falou com ela a “informála” do processo e do que é que se tratava, industriando-a sob o pretexto de estarem a tirar a casa aos meninos…
65. Outra o depoimento da Senhora Notária que à pergunta se faria à mesma o testamento ainda que tivesse um médico a afirmar que a declarante não tinha capacidade de entender o que estava a fazer ou as suas consequências, respondeu que fazia!!!
66. Obviamente, como não poderia deixar de ser, considerou-se na douta sentença que o depoimento desta testemunha “sai, absolutamente, inquinado pois se um jurista afirma que por fazer umas perguntas ao declarante tem certeza tal que contraria uma decisão médica…nada mais há a dizer”.
67. No Estatuto do Notariado, Capítulo I, Seção II, com a epígrafe “Princípios da atividade notarial”, artigo 11.º, “Princípio da legalidade” lê-se:
“ 1 - O notário deve apreciar a viabilidade de todos os atos cuja prática lhe é requerida, em face das disposições legais aplicáveis e dos documentos apresentados ou exibidos, verificando especialmente a legitimidade dos interessados, a regularidade formal e substancial dos referidos documentos e a legalidade substancial do ato solicitado.
2 - O notário deve recusar a prática de atos:
-Que forem nulos, não couberem na sua competência ou pessoalmente estiver impedido de praticar; -Sempre que tenha dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos participantes, salvo se no ato intervierem, a seu pedido ou a instância dos outorgantes, dois peritos médicos que, sob juramento ou compromisso de honra, abonem a sanidade mental daqueles.
3 - O notário não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita.” (negrito e sublinhado nosso)
68. Como bem se concluiu na douta sentença a Senhora Notária não só não cuidou de explicar os efeitos jurídicos da declaração de vontade expressa no testamento como de igual forma não se preocupou em saber se o que ficou expresso era o que a mãe dos jovens pretendia, o melhor interesse destes, assegurar o seu futuro, cuidar que, na sua morte eles teriam uma casa, o dinheiro e os bens que ela durante toda uma vida juntou para os filhos.
69. A senhora notária não cuidou de saber o regime do exercício das responsabilidades parentais no que às questões de particular importância se refere, bastando-se, segundo disse, mas sem possibilidade de comprovação face ao decesso da declarante, que esta lhe garantiu que era ela a titular (tal facto não admite prova testemunhal ou por confissão - cfr. art.º 354.º al. b) do C.Civil).
70. A senhora Notária, durante Audiência de julgamento, ficou muito surpresa quando foi confrontada com a norma do art.º 1928.º, n.º 2 do C.Civil onde se prevê que pode ser revogada a designação de tutor feita pelo progenitor falecido.
71. Não obstante o desconhecimento da norma questionou-a.
72. Várias vezes questionada pelo MP se explicou, expressamente, à falecida mãe de CC e DD que o usufruto prejudicava os filhos pelo facto de valer enquanto o usufrutuário fosse vivo, disse que não!
73. Ou seja, a Senhora Notária, perante a declarante que estava numa situação debilitada (no dia anterior a médica assistente queria interná-la no hospital para aí falecer), de cadeira de rodas, muito debilitada fisicamente ( ela própria o disse), que já conhecia há anos, que sabia que o objetivo desta declarante foi sempre, mas sempre, proteger os filhos ainda menores, preocupação que lhe foi transmitida ao longo dos anos pois como ela própria disse aquela foi algumas vezes ao seu Cartório Notarial, não curou de saber e se certificar da validade da pretensão que era verbalizada, se esta tinha, no momento capacidade de entendimento do ato e das suas consequências bem como não lhe explicou as consequências do que era feito.
74. Como acima se disse resulta à saciedade da longa intervenção protetiva no âmbito do apenso D e da inquirição das testemunhas durante o julgamento dos presentes autos, que a mãe da DD e do CC lutou anos para engravidar destes filhos, adoravaos, sabedora desde 2015 que tinha uma doença muito grave, tudo fez e fazia para os deixar bem, e era incapaz de os prejudicar fosse de que maneira fosse.
75. O que é certo é que atualmente:
- não se sabe onde param 50.000,00€ da conta da falecida progenitora dos jovens;
- o cheque no montante de 17.500€, da conta do recorrente, que deveria ter sido depositado na conta da falecida nunca foi apresentado a desconto;
- a casa onde os jovens habitavam e que todas as testemunhas inquiridas, inclusive a médica oncologista e a Senhora Notária, foram unânimes em afirmar que a progenitora queria deixar aos filhos e que estes usufruíssem está numa situação absolutamente inabitável sendo que quando a progenitora dos jovens faleceu tal assim não era.
- os objetos pessoais da progenitora desapareceram da referida casa.
76. A sentença recorrida aplica devidamente o direito aos factos e faz uma apreciação correta da prova produzida nos autos e em julgamento, tendo por isso concluído, como não poderia deixar de o fazer, por declarar anulado o testamento datado de 24.8.2021. 76. Como tal, bem andou o Tribunal a quo quando concluiu que face ao estado de saúde de EE e as poucas horas que distam entre a feitura do testamento e a morte, a mesma estava em estado tal que não entendeu o sentido da sua declaração e não tinha o exercício da sua vontade e, como tal, declarou anulado o testamento datado de 24.8.2021.
 
Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto e confirmada a douta decisão recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA.”

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Face ao teor das conclusões do recurso, são as seguintes, por ordem lógica, as questões que cumpre apreciar:
.1 - se a sentença é nula, por violação do disposto no art.º 615, n.º 1, alíneas d) e e) do Código de Processo Civil;
.2 -se ocorreu violação do princípio do contraditório;
.3 - se ocorreu a incompetência material do Juízo de Família e Menores e suas consequências;
.4 -Se deve ser alterada a matéria de facto no sentido pugnado pelo Recorrente, verificando do cumprimento dos requisitos necessários para a impugnação da matéria de facto para e se cumpridos, se foi feita correta avaliação da prova e em caso afirmativo as suas consequências na decisão.

III- Fundamentação de Facto
São os seguintes os factos provados e não provados a atender (anotando-se na sua enunciação as alterações que sofreram em sede de apreciação nesta instância)

Factos provados:

1. DD e CC, ambos nascidos a .../.../2005, são filhos de BB e de EE.
 2. Por decisão de 12.7.2017 e de 3.5.2016 foi fixado o regime do exercício das responsabilidades parentais relativamente a CC e a DD, tendo estes ficado a residir com a progenitora, as questões de particular importância sido atribuídos a ambos os progenitores; mais foi fixado um regime de contactos e prevista a pensão de alimentos.
3. EE faleceu a .../.../2021.
4. Em setembro de 2021 é dada notícia nos autos de promoção proteção, pela Segurança Social, do falecimento da progenitora e que foi o progenitor impedido de estar com os jovens por II e um indivíduo, de identidade desconhecida, à data.
5. Avaliada a situação, foi constatado que os jovens estavam a viver na casa onde sempre moraram e estavam acompanhados de II e de AA.
6. EE, através de testamento datado de 4.7.2016 declarou:
a. Nomear tutora dos jovens CC e DD, KK.
b. Excluir da administração de todos os bens dos menores o pai, BB destes.
c. Atribuir a administração dos bens dos menores a KK.
7. EE, através de testamento datado de 8.2.2018 declarou:
a. Nomear tutores aos filhos CC e DD, LL e MM;
b. Excluir da administração de todos os bens dos menores o pai, BB destes e a irmã mais velha daqueles, FF.
c. Atribuir a administração dos bens dos menores a LL e MM.
d. Constituir, a favor de LL e MM o usufruto da sua casa de morada de família, sita na travessa ....
e. Legar a seus pais NN e OO o direito de uso e habitação daquela casa de morada de família, devendo os cuidados ser prestados por II.
f. Excluir do direito de visita na referida casa, o pai dos menores e a sua irmã mais velha e o companheiro desta.
8. Existe documento intitulado de testamento datado de 24.8.2021 onde consta que EE declarou:
a. Nomear tutor aos filhos CC e DD, AA;
b. Excluir da administração de todos os bens deixados ou doados aos seus filhos pela testadora ou pelos seus pais, avós maternos, o pai, BB destes e a irmã mais velha daqueles, FF. (a sentença escreveu da seguinte forma o teor desta alínea: ”Excluir da administração de todos os bens dos menores o pai, BB destes e a irmã mais velha daqueles, FF.”)
c. Atribuir a administração de todos os bens deixados ou doados aos seus filhos pela testadora ou pelos seus pais, avós maternos a AA. (a sentença escreveu da seguinte forma o teor desta alínea:” Atribuir a administração dos bens dos menores a AA”)
d. Constituir, a favor de AA o usufruto da sua casa de morada de família, sita na travessa ....
e. Excluir do direito de visita na referida casa, o pai dos menores e a sua irmã mais velha e o companheiro desta.
9. Por referência ao documento intitulado de testamento datado de 24.8.2021 não foi explicitado, a EE, pela Sr.ª Notária, o alcance e consequências de constituição do usufruto.
10. No dia 4.8.2021(22 dias antes de falecer) EE permutou com AA um prédio urbano destinado a armazém e atividade industrial por uma fração autónoma destinada a habitação.
11. A 30.9.2021 os imóveis referidos em 10. foram avaliados em € 295.000,00 e € 50.000,00, respetivamente.
12. Por acordo datado de .../.../2021, em virtude do falecimento da progenitora dos jovens, foram aplicadas, as medidas de proteção de apoio junto dos pais, na pessoa do pai e de confiança a pessoa idónea a executar na pessoa de II, considerando que os jovens se manteriam na casa em que sempre viveram, mas que o usufruto foi constituído, por morte da progenitora a favor de AA.
13. Nesse mesmo acordo, AA comprometeu-se a deixar de residir na casa onde os jovens moravam com a mãe.
14. II e AA retiraram o seu acordo à aplicação da medida de confiança a pessoa idónea.
15. Nas últimas semanas de vida de EE eram AA e II quem acompanhavam a falecida mãe dos jovens.
16. Sendo II quem levava a EE ao médico e o transporte feito por AA.
17. Desde pelo menos dezembro de 2015, que a falecida mãe do CC e da DD sofria de carcinoma da mama direita com mestatização óssea e hepática.
18. Foi sujeita a quimioterapia.
19. Foi sujeita mastectomia a 5.7.2016.
20. Fez radioterapia a 4.10.2016.
21. Em novembro de 2017 foi-lhe diagnosticada uma metastização óssea disseminada.
22. Em agosto de 2018 foi diagnosticada a progressão da metastização óssea.
23. Fez radioterapia paliativa.
24. Em janeiro de 2020 voltam a ser evidentes inúmeros focos a nível ósseo, no esqueleto axial e apendicular.
25. Fez quimioterapia.
26. Em outubro de 2020 foi diagnosticada a progressão da metastização óssea e hepática.
27. Fez quimioterapia.
28. Em junho de 2021 a falecida progenitora dos jovens é internada em virtude da progressão de metastização óssea e hepática.
29. Fez quimioterapia.
30. Nesta data, em Junho de 2021, diagnosticam lesões cervicais em decorrência das metástases.
31. Fez radioterapia paliativa.
32. Em .../.../2021 é diagnosticada amnésia à falecida progenitora.
33. Em .../.../2021 a EE é internada de urgência com diarreia, quadro de desorientação e agravamento do estado geral desde há 4 dias àquela data.
34. Muito confusa.
35. Teve alta a 18 de agosto de 2021 com “…discreta melhoria do quadro de desorientação” mas com “…agravamento da disfunção hepática e renal”.
36. Veio a falecer a 26 de agosto de 2021, no Hospital ....
37. À data do falecimento padecia de, para além do problema oncológico:
a. - Ansiedade;
b. - Nervosismo;
c. - Tensão;
d. - Depressão;
e. - Distúrbio do sono;
f. - Estado de ansiedade;
g. - Cefaleia;
h. - Perturbação depressiva;
i. - Prurido.
38. Desde 14 de fevereiro de 2012 que padecia de alterações de memória.
39. Já em 29 de maio de 2014 foi-lhe diagnosticada desorientação temporal e lentificação, ficando baralhada em locais públicos.
40. tomava medicação específica para dormir e para as dores.
41. Em 25 de agosto de 2021 foi internada no Hospital ... tendo sido diagnosticado que estava “…em últimas horas de vida”.
42. Tendo sido medicada com morfina.
43. Conjugando o estado de saúde de EE e as poucas horas que distam entre a feitura do testamento e a morte, a mesma estava em estado tal que não entendeu o sentido da sua declaração e não tinha o exercício da sua vontade.
44. EE era doente terminal, vinha de sucessivos internamentos com diagnósticos de desorientação, amnésia e toma de medicação ansiolítica e para as dores, incluindo morfina.
Os factos não provados.
 Não se provou que:
45. AA mantivesse uma relação de união de facto ou de namoro com EE.

IV- Fundamentação de Direito

.1- Se a sentença padece de nulidade por ter conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento ou por ter condenado em objeto diverso do pedido (por violação do disposto no artigo 651º alínea d) ou e) do Código de Processo Civil)
.a) a vinculação do tribunal ao pedido no âmbito da ação de alteração da regulação do poder paternal e a margem de discricionariedade na decisão
Tal como apresentado pelo Requerente e assim tramitado, estamos perante um processo tutelar cível, regulado pelo Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro, a que se reporta o seu artigo 42º: 1 - Quando o acordo ou a decisão final não sejam cumpridos por ambos os pais, ou por terceira pessoa a quem a criança haja sido confiada, ou quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que estiver estabelecido, qualquer um daqueles ou o Ministério Público podem requerer ao tribunal, que no momento for territorialmente competente, nova regulação do exercício das responsabilidades parentais.
Vejamos as normas que dão conta dos conteúdos dos processos tutelares cíveis e os princípios que o regem, elementos necessários para se compreender em que termos se aplica neste caso o princípio do dispositivo que está subjacente às nulidades da sentença enunciadas nas alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil: até que ponto, nas matérias reguladas neste diploma as partes dispõem do processo e da relação jurídica material.
No artigo 3º deste diploma estatuem-se as providências tutelares cíveis que se regem por aquele regime: “a) A instauração da tutela e da administração de bens; b) A nomeação de pessoa que celebre negócio em nome da criança e, bem assim, a nomeação de curador geral que represente, extrajudicialmente, a criança sujeita às responsabilidades parentais; c) A regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitantes; d) A fixação dos alimentos devidos à criança e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil e a execução por alimentos; e) A entrega judicial de criança; f) A autorização do representante legal da criança à prática de certos atos, a confirmação dos que tenham sido praticados sem autorização e as providências acerca da aceitação de liberalidades; g) A determinação da caução que os pais devam prestar a favor dos seus filhos ainda crianças; h) A inibição, total ou parcial, e o estabelecimento de limitações ao exercício das responsabilidades parentais; i) A averiguação oficiosa da maternidade e da paternidade; j) A determinação, em caso de desacordo dos pais, do nome e apelidos da criança; k) A constituição da relação de apadrinhamento civil e a sua revogação; l) A regulação dos convívios da criança com os irmãos e ascendentes.”
Estas providências regulam-se, entre o mais, pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo (artigo 4º do RGPTC).
Concretizando o tipo de decisões e providências reguladas neste diploma que compete decidir às secções de família e menores da instância central do tribunal de comarca em matéria tutelar cível, os artigos 6º e 7º especificam: a) Instaurar a tutela e a administração de bens; b) Nomear pessoa que celebre negócios em nome da criança e, bem assim, nomear curador geral que represente, extrajudicialmente, a criança sujeita às responsabilidades parentais; c) Regular o exercício das responsabilidades parentais e conhecer das questões a este respeitantes; d) Fixar os alimentos devidos à criança e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil e preparar e julgar as execuções por alimentos; e) Ordenar a entrega judicial de criança; f) Autorizar o representante legal da criança a praticar certos atos, confirmar os que tenham sido praticados sem autorização e providenciar acerca da aceitação de liberalidades; g) Decidir acerca da caução que os pais devam prestar a favor dos seus filhos ainda crianças; h) Decretar a inibição, total ou parcial, e estabelecer limitações ao exercício das responsabilidades parentais; i) Proceder à averiguação oficiosa da maternidade e da paternidade; j) Decidir, em caso de desacordo dos pais, sobre o nome e apelidos da criança; k) Constituir a relação de apadrinhamento civil e decretar a sua revogação; l) Regular os convívios da criança com os irmãos e ascendentes. Compete ainda às secções de família e menores: a) Havendo tutela ou administração de bens, determinar a remuneração do tutor ou administrador, conhecer da escusa, exoneração ou remoção do tutor, administrador ou vogal do conselho de família, exigir e julgar as contas, autorizar a substituição da hipoteca legal e determinar o reforço e substituição da caução prestada, e nomear curador especial que represente a criança extrajudicialmente; b) Nomear curador especial que represente a criança em qualquer processo tutelar; c) Decidir acerca do reforço e substituição da caução prestada a favor dos filhos ainda crianças; d) Exigir e julgar as contas que os pais devam prestar; e) Conhecer de quaisquer outros incidentes dos processos referidos no artigo anterior.
Os processos tutelares cíveis têm a natureza de jurisdição voluntária (Artigo 12.º do RGPTC).
Assim, estão sujeitos aos princípios e às regras gerais dos processos de jurisdição voluntária, assentes nos artigos 986º a 988º do Código de Processo Civil, dos quais se salientam:
– a prevalência do princípio inquisitório sobre o princípio dispositivo (artigo 986.º, n.º 2), permitindo que o tribunal investigue livremente os factos e determine os meios de prova (artigo 986º nº 2 do Código de Processo Civil), afastando-se o principio da alegação e prova, pelo que o tribunal pode conhecer de todos os factos que apure, mesmo dos que não tenham sido alegados pelas “partes”) cfr Regime do Processo Tutelar Cível Anotado, Rossana Martins Cruz, julho 2021, pag 24.
– o predomínio da equidade sobre a legalidade (artigo 987º do Código de Processo Civil): a decisão a proferir está sujeita a critérios de conveniência e oportunidade e não a critérios de legalidade estrita, devendo ser adotada em cada caso a solução que se apresente mais conveniente e oportuna na prossecução dos interesses que se visa salvaguardar com o processo.
- A revogabilidade das decisões se surgirem circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração (artigo 988º do Código de Processo Civil).
Desta forma, nos processos de jurisdição voluntária o princípio do dispositivo cede perante o princípio do inquisitório (cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto em 09/30/2014, no processo 191/08.2TMMTS-D.P1).
Tem sido afirmado que nos processos de jurisdição voluntária, que são processos especiais (artigo 546.º, n.º 2) o “julgamento não pede a decisão da lei, porque apela antes para o bom senso do julgador, para os critérios de razoabilidade das pessoas, para a capacidade inventiva ou o talento improvisador do homem, sendo questões a cuja decisão se não adapta a rigidez da justiça, mas antes a flexibilidade própria da equidade”.
 Não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo adotar a solução que julgar mais conveniente (cf a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa no processo 3263/14.0T8LSB-B.L1-2, de 14-01-2021 ): a necessidade de alteração da regulação é aferida na perspetiva da criança e, não na do requerente, pelo que sempre o Tribunal poderá apreciar, legitimamente, qualquer questão relevante para a regulação do exercício das responsabilidades parentais que considere não satisfazerem integralmente os superiores interesses da criança. Porque estes interesses têm primazia face aos interesses próprios de cada um dos progenitores, a solução encontrada pelo julgador poderá não coincidir com aquela que foi proposta pelos progenitores, como salienta Rosa Andreia Simões Cândido Martins, Processos de jurisdição voluntária, in Acções de regulação do poder paternal,  Audição do menor, BFDUC, 2001, pág. 736
 É certo que a alteração da regulação das responsabilidades parentais não é oficiosa, devendo ser requerida e que “Pressupõe um pedido de quem tem legitimidade processual, a que se segue uma avaliação dos factos e circunstâncias, apurados através do incidente próprio”, mas por ser um processo de jurisdição voluntária entende-se que todas as partes têm o mesmo fito, não sendo um típico conflito de interesses: a regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente aos menores ou jovens em formação, tendo em conta o interesse destes (e também, mas só secundariamente, o interesse dos progenitores).
“O objeto do processo é a necessidade da alteração da regulação, na perspetiva do interesse (principal) que está em causa, que é o da menor, e não no do interesse de um ou de outro dos progenitores, pelo que o que se trata é de saber se se demonstra a necessidade da alteração da regulação e não se se demonstra a necessidade da alteração proposta pelo requerente ou pela requerida e, no caso de se demonstrar a necessidade, qual é a melhor forma da nova regulação, independentemente do que tiver sido proposto por um ou por outro dos progenitores”. cf acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01/14/2021, no processo 3263/14.0T8LSB-B.L1-2.
Por tal motivo tem sido admitido – com o que se concorda completamente, - que neste tipo de processos o tribunal tem a total liberdade de conformar o regime de guarda e residência da menor, bem como os direitos de visita, e da fixação da prestação de alimentos foram os da solução mais conveniente à prossecução do interesse da criança, não ficando adstrito aos limites impostos pela pretensão traduzida no requerimento que despoleta o processo: nomeadamente quanto ao valor da prestação mensal, ou a manutenção de outros aspetos da regulação que não tinham sido objeto do pedido, desde que observado o princípio do contraditório.
 “O objecto do processo é a necessidade da alteração da regulação, na perspetiva do interesse (principal) que está em causa, que é o da menor, e não no do interesse de um ou de outro dos progenitores, pelo que o que se trata é de saber se se demonstra a necessidade da alteração da regulação e não se se demonstra a necessidade da alteração proposta pelo requerente ou pela requerida e, no caso de se demonstrar a necessidade, qual é a melhor forma da nova regulação, independentemente do que tiver sido proposto por um ou por outro dos progenitores”. cf acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/02/2020 no processo 10849/15.4T8SNT-L.L1.L1-2.
Assim, nesta sede, o princípio do dispositivo tem uma aplicação mais limitada, mas ainda assim o processo não pode ser objeto de tramitação e decisão arbitrárias. O seu uso está sujeito à sua finalidade: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio. Enfim, a instrumentalidade é guia na utilização dos poderes alargados que são concedidos ao tribunal neste tipo de processos.
Tal não significa, claro, que se esteja perante uma jurisdição arbitrária, sem a observância de um processo justo e equitativo, como se explanou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-02-2020, no processo 497/17.0T8OBR.P1: “I - O processo judicial de promoção e proteção ao assumir a natureza de jurisdição voluntária (livre investigação dos factos e da prova; critério de julgamento de conveniência e oportunidade; alteração superveniente das resoluções judiciais) visa uma preponderância de tramitação e de decisão que não é de natureza estritamente legal, conferindo uma ampla margem de iniciativa jurisdicional ao tribunal, mas que continua a ter princípios e regras específicas, nomeadamente a observância de um processo justo e equitativo, afastando-se de uma jurisdição arbitrária.
Na jurisdição voluntária, não se deve nem pode negar totalmente a juricidade da decisão já que “a prevalência da equidade sobre a legalidade estreita, nas providências que o tribunal tome, não vai obviamente ao ponto de se permitir a postergação de normas imperativas aplicáveis à situação.
Assim, estão excluídas do âmbito da conveniência ou da oportunidade as decisões sobre os pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolha da medida a adotar fora do leque das opções legislativas facultadas, a idoneidade do meio processual escolhido, bem como as decisões sobre a tramitação ou sobre as formalidades dos atos a praticar no processo.
… A tramitação do processo implica a existência de alguns limites legais que não estão no âmbito do poder discricionário do tribunal, constituindo uma linha inultrapassável e um fio condutor não apenas para o tribunal mas também para as partes e demais intervenientes. O predomínio da conveniência e oportunidade sobre a legalidade estrita não faculta ao juiz a possibilidade de violar norma expressa, mas apenas a faculdade de efetuar mais do que uma escolha ou graduar essa escolha…
Ao exercer os poderes instrutórios que a lei lhe confere, o juiz não poderá deixar de ter em conta a definição precisa e concreta da questão submetida a juízo, ou seja, embora possa investigar factos não articulados, esta liberdade e iniciativa probatória não poderão dar cobertura a resoluções ou decisões que não tenham minimamente em conta o que foi requerido. Apesar da prevalência do princípio inquisitório sobre o princípio dispositivo e da prevalência da discricionariedade sobre os critérios de legalidade estrita, a tramitação do processo implica a existência de alguns limites legais que não estão no âmbito da discricionariedade do tribunal, constituindo uma linha inultrapassável e um fio condutor não apenas para o tribunal mas também para as partes.” cfr Conteúdo e Limites do Princípio Inquisitório na Jurisdição Voluntária, de António José Fialho.
Assim, tem-se como claro que em regra o objeto da decisão neste processo não pode extravasar o objeto tipificado do processo, relativo às responsabilidades parentais: se se verificam os pressupostos para a sua alteração e qual a regulação que melhor protege os interesses que se pretendem tutelar.
Mas na investigação dos factos que lhe estão na base o tribunal é livre de apreciar a realidade, sem estar limitado ao invocado pelas partes.
.b) Das invocadas nulidades
Por força das alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento e quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
A nulidade a que se reporta a alínea d) deste preceito está diretamente relacionada com o artigo 608° n° 2 do Código de Processo Civil, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Por outro lado, “a decisão que ultrapassa o pedido formulado, sem modificação objectiva da instância, passando a abranger matéria distinta, está eivada de nulidade prevista na consignada alínea e) do art.º 615º do Código de Processo Civil. A nulidade do acórdão quando o Tribunal condene em objecto diverso do pedido colhe o seu fundamento no princípio dispositivo que atribui às partes, a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório, segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses, que a demanda pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor”- cfr Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019 no processo 2827/14.7T8LSB.L1.S1.
No entanto, como vimos, a limitação dos poderes do tribunal na averiguação e apuramento dos factos e na determinação das medidas a tomar, bem assim como na observância da legalidade estrita, é menor no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, por força da predominância que o princípio do inquisitório assume neste tipo de processo especial, permitindo que o tribunal conheça de todas as questões de facto e direito que relevam para a decisão dos autos e concedendo mais ampla margem de atuação do tribunal na definição da solução justa para o objeto da causa, sem estar sujeito à concreta pretensão das partes.
 A maior flexibilização no processo é ainda potenciada pela natureza dos interesses em jogo – o (superior) interesse das crianças, não havendo necessidade de salientar como a natureza da matéria em causa exige especiais atenções e cuidados de todas as instâncias que com ela lidam, imperando de forma particularmente aguda a já atual tendência que se verifica em todos os campos do Direito do predomínio da justiça material sobre a justiça formal.
No entanto, também nestes processos há limites aos poderes instrutórios que a lei confere ao juiz, fundados no princípio da instrumentalidade, pelo que as decisões têm que estar contidas no objeto próprio do processo, não podendo extravasar a relação jurídica em discussão, embora sem a típica vinculação ao pedido.
“I. É admissível nos processos de jurisdição voluntária a decisão mais conveniente e oportuna que o Tribunal entenda dever proferir ainda que não seja aquela decisão que foi pedida, importando, no entanto, que haja uma conexão ao nível da decisão entre o que se decidiu e o que se pediu.
II. Nos processos de jurisdição voluntária não é absoluta a regra do artigo 609º nº 1 do CPC tendo sido já admitida (desde há muito) a condenação ultra petitum designadamente no âmbito de processo tutelares cíveis embora essa possibilidade de não restrinja aos que tenham esse objeto.
III. Porque o tribunal nos processos de jurisdição voluntária não está sujeito a critérios de legalidade estrita tal liberdade de ação pode implicar uma condenação qualitativamente diversa justificada por a latitude na indagação e fixação dos factos e a obrigação de uma solução equitativa não pode estar limitada pelo pedido, o qual deve entender-se ser uma indicação….” sumariou-se acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2023, no processo 1281/19.1T8VCD.P1.S1, o qual continua: “Mesmo que se tenha por referência ôntica que a ultrapassagem dos limites no plano quantitativo será sempre portadora de alguma reserva por se apresentar desvantajosa para a parte vencida, uma alteração qualitativa poderá ter diferentes leituras porque não será aceitável uma alteração qualitativa que não tenha uma conexão mínima com a pretensão do requerente da providência, “pois isso se traduziria numa injusta, porque inesperada, decisão-surpresa. Mas não choca, bem pelo contrário, parece até razoável aceitar-se condenação em objeto diverso desde que haja entre esta e a mais ampla pretensão formulada relevante elemento de conexão tratando-se de processos de jurisdição voluntária. …Nos processos de jurisdição voluntária pode o tribunal condenar em objeto diverso do pedido quando entre a condenação e a pretensão exista uma efetiva conexão e quando, assim procedendo, se tenha como objetivo realizado uma solução mais adequada para o litígio.”
Concretização
No caso em apreço, mostra-se evidente o objeto da ação tal como foi apresentada pelo Requerido – a alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais.
 Desta forma, o âmbito das decisões a tomar no processo em apreço – a alteração da regulação das responsabilidades parentais - deviam restringir-se à regulação das responsabilidades parentais, vistas estas como a obrigação de alimentar e prover à segurança e saúde, educação, sustento, representação e administração dos bens dos menores pelos pais ou de quem tinha as crianças a seu cargo, não podendo assumir contornos que extravasassem esta matéria.
Assim, caso não tivesse ocorrido no processo requerimento do Ministério Público em que pede o alargamento do âmbito do processo para a análise testamentária, dúvidas não teríamos que a decisão do tribunal a anular o testamento por incapacidade acidental extravasava completamente o âmbito do litígio – a regulação das responsabilidades parentais.
É certo que o tribunal teria que averiguar qual a influência do testamento na decisão da causa e por isso poderia ter que averiguar da sua validade, porque parte do seu teor contende efetivamente com os poderes-deveres que aqui se discutem. Mas, nada tendo sido requerido, a decisão da questão e incidente não constituiria caso julgado fora do processo respetivo, nos termos do artigo 92º do Código de Processo Civil.
No entanto, ocorreu no decurso dos autos facto processual que desvirtuou o objeto dos autos: o Ministério Público, em 2-11-2022, pediu que se declarasse anulada “a disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens, nos termos do disposto no art.º 2199.º do Código Civil”, o que foi admitido em 4-11-2022, com a concessão de prazo ao Requerente para se pronunciar sobre esta matéria e apresentar provas.
Este aceitou tal alargamento do âmbito do processo, visto que não se opôs ao conhecimento desse pedido e à apreciação dessa causa de pedir.
Do exposto, conclui-se que o tribunal para decidir da alteração da regulação das responsabilidades parentais podia apreciar da validade do testamento e que que face á ampliação do âmbito da ação admitido pelo Tribunal sem oposição do Recorrente, podia conhecer da anulabilidade da cláusula relativamente à administração dos bens e que por isso não foi apreciada qualquer questão que o juiz não podia examinar.
Improcede a arguida nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil: não se conheceu de questão que não pudesse ser conhecida.
Importa, ainda, verificar se a sentença incorreu na nulidade prevista na alínea e) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, por ter ido além do pedido, embora sempre sem esquecer que estamos perante processo de jurisdição voluntária.
No que toca à cláusula relativa à administração dos bens (como vimos supra, não de todos os bens, mas dos deixados e doados pela testadora e seu antecessores), visto que esta foi objeto de pedido especifico, admitido sem oposição, não temos dúvida que passou a enformar o objeto do processo, tendo, o tribunal que pronunciar-se sobre o mesmo depois de tal admissão.
Já quanto às demais cláusulas é certo que impressiona o argumentário trazido aos autos pelo Ministério Público, salientando que o Tribunal foi chamado, desde o primeiro momento, a conhecer da incapacidade da falecida mãe dos jovens para testar e a consequente anulabilidade do testamento.
Como vimos, tal carregou para os autos o dever ao tribunal de apreciar a incapacidade da testadora no momento em que fez o seu último testamento, passando a ser questão sobre a qual o tribunal se deveria pronunciar, exceto se outra questão tornasse desnecessária essa apreciação. Mas uma coisa é apreciar uma questão, outra coisa são as conclusões dessa apreciação que se levam ao decisório.
Será que a anulação de todo o testamento não extravasa o pedido de anulação de uma das suas disposições testamentárias?
Nas suas doutíssimas alegações, o Ministério Público explica que o requerido sabia que o fundamento de direito em que o Ministério Público alicerçava a sua pretensão era o disposto no art.º 2199.º do C.Civil e, como tal, a ter provimento levaria à anulação do testamento.
E por essa via concluiu que no âmbito deste processo a anulação de uma cláusula testamentaria por incapacidade acidental do testador implica lógica e racionalmente que todas as demais cláusulas também fosse anuladas, o que o Recorrente bem sabia.
Razões de justiça puramente material, sem atender à legalidade estrita podiam conduzir-nos a essa conclusão, por de facto, implicar a imediata aplicação de uma solução consentânea com a prova produzida (infra analisada) e da maior racionalidade: se uma cláusula do testamento é nula por o testador padecer de incapacidade acidental no momento em que foi produzida, o mesmo ocorre com as demais cláusulas do mesmo testamento, produzidas na mesma altura.
No entanto, não podemos, em consciência, alargar o âmbito do decisório para as demais cláusulas.
A matéria em discussão não está materialmente sujeita à livre conformação do juiz, valendo em sede de anulação de testamento a obediência do juiz à legalidade estrita (mas não cega). Com efeito, os interesses em jogo, quanto à validade das cláusulas testamentárias face á capacidade de querer e perceber do testador, são já os típicos interesses de um litígio judicial, de natureza essencialmente patrimonial (os interesses dos herdeiros) e em que se atende à necessidade de defesa da legalidade que a previsão da anulabilidade visou proteger: a observância da efetiva vontade do testador, a correspondência dos negócios jurídicos à realidade.
A anulabilidade, como sabemos, não pode, em regra, salvo disposição especial, ser conhecida oficiosamente e está sujeita a um prazo de arguição, tendo que ser arguida pelas pessoas em cujo interesse a lei estabelece (artigo 287º do Código Civil). É certo que o regime da nulidade e anulabilidade do testamento é especial, não só pela diferença dos prazos, mas essencialmente porque também a nulidade está sujeita a prazo de arguição (artigo 2308.º do Código Civil).
Logo, sem que a anulabilidade das demais cláusulas fosse arguida o juiz não as podia, face ao direito substantivo, conhecer dela oficiosamente. O que desde logo demonstra que a sua decretação sem pedido implica que a sentença se espraiou para objeto diverso do pedido (se bem que paralelo).
Deste modo, não obstante a causa de pedir se ter consubstanciado numa causa geral de anulabilidade - a incapacidade acidental da testadora, o que importa para definir o âmbito das questões a apreciar- porque só foi pedida a anulação de uma cláusula testamentária o juiz não podia oficiosamente anular as demais, condenando, pois, em objeto diferente do pedido.
Embora como bem salienta o Ministério Público a causa da anulação apurada ponha logicamente em causa todo o testamento, entendemos que o Tribunal não podia conhecer dessas consequências para além do que foi pedido sem violar frontalmente o princípio do dispositivo em matérias em que as partes interessadas são soberanas, como é a anulação ou não de um testamento.
Caso se entendesse que não era possível anular apenas uma parte do testamento, como também mencionam o Ministério Público nas suas marcantes alegações, a ação improcederia por a causa de pedir não conduzir ao efeito pedido: a anulação de uma só cláusula, mas essa é agora questão que não nos pode ocupar, saindo do âmbito das questões que cumpre efetivamente decidir.
Daqui se conclui que a sentença é nula na parte em que decidiu sobre a anulabilidade da totalidade do testamento, pronunciando-se sobre cláusulas que não foram objeto do pedido formulado pelo Ministério Público (constantes das alíneas a), d) e e) do ponto 1 do decisório).
.2—se a sentença violou o princípio do contraditório
Anulada que está a decisão sobre cláusulas que não foram objeto do pedido formulado pelo Ministério Público, apenas há que verificar se a decisão sobre a sua anulabilidade violou o princípio do contraditório.
Como supra se relatou, o Tribunal ao notificar o Requerido da admissão do pedido, deu-lhe prazo razoável para este se pronunciar e para apresentar prova, por despacho de 4-11-2022, transcrito no relatório. O Requerido utilizou tal faculdade e pronunciou-se expressamente sobre este pedido e bem assim apresentou provas. Assim, o direito de defesa do ora Recorrente foi acautelado quanto a este pedido de forma suficiente.
 É certo que se a causa de anulação do testamento que se averiguou afeta toda a vontade da testadora, a qual devia sustentar todo o ato jurídico, colocando logicamente em causa a eficácia do declarado no documento viciado, não só uma cláusula do mesmo. Mas não há razões para não se poder manter a parte do testamento que não foi objeto de anulação, porquanto as cláusulas são entre si independentes (e no presente caso até repetitivas, como a contida na nomeação do Recorrente como tutor, à qual, por decisão transitada nestes autos, não foi atribuída força suficiente para vigorar, por contender com o regime legal das responsabilidades parentais).
Assim, a decisão na parte em que se decidiu da qualidade do Requerente como administrador dos bens (doados e deixados pela testadora e seus pais) subsiste incólume, o que não ocorreria com a restante parte da decisão.
.3- Da incompetência em razão da matéria
Como decorre dos artigos 122º e 123º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, nº 62/2013 são três os grandes grupos de assuntos abrangidos pela competência dos juízos de família e menores: as ações relativas ao estado civil das pessoas e família, as ações relativas a menores e filhos maiores e em matéria tutelar educativa e de proteção.
No primeiro grupo atribui-se aos tribunais de família jurisdição para preparar e julgar: a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges; b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum; c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio; d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil; e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil (efeitos do casamento nulo e anulado e da boa-fé nesses casamentos) ; f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges; g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família. 2 - Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.
A ação sobre a anulação de um testamento não cabe em nenhuma destas alíneas, sendo que não está em causa um inventário para partilha de meações, pelo que também não pode ser contemplada no nº 2 do artigo 122º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
No que toca à competência relativa a menores e filhos maiores (artigo 123.º deste diploma), esta abrange: Instaurar a tutela e a administração de bens; b) Nomear pessoa que haja de celebrar negócios em nome do menor e, bem assim, nomear curador-geral que represente extrajudicialmente o menor sujeito a responsabilidades parentais; c) Constituir o vínculo da adoção; d) Regular o exercício das responsabilidades parentais e conhecer das questões a este respeitantes; e) Fixar os alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966, e preparar e julgar as execuções por alimentos; f) Ordenar a confiança judicial de menores; g) Decretar a medida de promoção e proteção de confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção; h) Constituir a relação de apadrinhamento civil e decretar a sua revogação; i) Autorizar o representante legal dos menores a praticar certos atos, confirmar os que tenham sido praticados sem autorização e providenciar acerca da aceitação de liberalidades; j) Decidir acerca da caução que os pais devam prestar a favor dos filhos menores; k) Decretar a inibição, total ou parcial, e estabelecer limitações ao exercício de responsabilidades parentais, previstas no artigo 1920.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966; l) Proceder à averiguação oficiosa da maternidade e da paternidade e preparar e julgar as ações de impugnação e de investigação da maternidade e da paternidade; m) Decidir, em caso de desacordo dos pais, sobre o nome e apelidos do menor. 2 a) determinar a remuneração do tutor ou do administrador, conhecer da escusa, da exoneração ou da remoção do tutor, do administrador ou do vogal do conselho de família, exigir e julgar as contas, autorizar a substituição da hipoteca legal e determinar o reforço e a substituição da caução prestada e nomear curador especial que represente o menor extrajudicialmente; b) Nomear curador especial que represente o menor em qualquer processo tutelar; c) Converter, revogar e rever a adoção, exigir e julgar as contas do adotante e fixar o montante dos rendimentos destinados a alimentos do adotado; d) Decidir acerca do reforço e da substituição da caução prestada a favor dos filhos menores; e) Exigir e julgar as contas que os pais devam prestar; f) Conhecer de quaisquer outros incidentes nos processos referidos no número anterior.
Dúvidas não há que não está em causa matéria tutelar educativa e proteção relativa a processos e medidas de promoção e proteção, inquérito tutelar educativo, medidas disciplinares matéria relacionadas com factos praticados por menor qualificados pela lei como crime.
Assim, o tribunal de menores era necessariamente incompetente em razão da matéria para a decretação da anulação do testamento ou de uma das suas cláusulas.
Se ocorrer a violação da repartição de competência em razão da matéria, ter-se-á que reconhecer que o tribunal onde a ação foi proposta é absolutamente incompetente para dela conhecer, o que constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que se disser respeito apenas a tribunais judiciais só pode ser conhecida até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final.
 Sendo tempestivamente arguida e julgada procedente, obsta a que se conheça do mérito e dará lugar à absolvição do réu da instância (artigos 60º, nº 2, 96º, 97º nº 1 e 2, 99º, nº 1, 278º, nº 1, al. a), 576º, nºs 1 e 2 e 577º, al. a), todos do Código de Processo Civil.
O legislador, com a limitação temporal que impôs no nº 2 do artigo 97º do Código de Processo Civil para o conhecimento da incompetência material que apenas respeitem a tribunais judiciais, optou por evitar o seu conhecimento em fases tardias do processo, por estar em causa a propositura de uma ação num tribunal judicial quando devia ter sido instaurada noutro tribunal judicial, atribuindo-lhe menor gravidade.
Pressupõe-se que ultrapassando o processo aquelas duas fases, não se justifica retirar eficácia a todo o labor exercido para o conhecimento do objeto do litigio, apenas por ter sido um em vez de outro o tribunal judicial a proferir a decisão.
Quanto à parte da decisão que ainda se mantém, relativa a um pedido formulado antes da produção de prova e sobre o qual o Recorrente exerceu o contraditório na sua plenitude, mostra-se agora nitidamente intempestivamente arguida esta exceção, pelo que a mesma não pode ser apreciada, nem oficiosamente conhecida.
(Embora seja uma questão já prejudicada, sempre se diz que quanto ao restantes segmentos decisórios, mantendo-se claro que o tribunal não tinha competência para a sua decisão, parece-nos que esta norma limitativa da apreciação deve manter a sua aplicação, por a mesma não se basear no principio da preclusão, mas na aplicação do princípio do aproveitamento dos atos processuais: veja-se que a questão é de conhecimento oficioso e que também o tribunal fica impedido passado essas fase de a apreciar. Assim, sendo certo que a parte não teve a possibilidade de se pronunciar sobre a mesma por a questão só se ter posto com a prolação da sentença, certo é que proferida esta tal questão já não pode ser apreciada).
Termos em que improcede esta exceção.
.4—Da alteração da matéria de facto
.a) Da alteração oficiosa da matéria de facto provada
Antes de efetuar a apreciação da impugnação da matéria de facto efetuada pelo Recorrente, importa oficiosamente corrigir o erro da matéria de facto provada na transcrição do teor do testamento objeto da decisão.
Na enunciação dos factos que se consideram provados devem-se colher dos autos todos os factos relevantes para a decisão da causa. E tal impõe-se não só ao juiz de primeira instância como também ao juiz de segunda instância.
Esta operação torna-se ainda mais premente no que toca aos factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, nos termos do artigo 607º nº 2 do Código de Processo Civil, aplicável ao Tribunal da Relação por via do artigo 663º nº 2 do mesmo diploma.
Assim, nos casos em que são violadas as normas imperativas relativas à força probatória dos documentos autênticos, mesmo oficiosamente, devem as instâncias de recurso “interferir na matéria de facto provada e não provada quando, no âmbito da apelação ou da revista, respetivamente, se verificar que a mesma está afetada por erro de direito probatório material, quer na vertente da atribuição de força probatória plena a meios que dela destituídas, quer na vertente do desrespeito dessa força probatória” Cf António Geraldes, Recursos o Novo Código de Processo Civil, 2017, Almedina, p.307.
Compulsados os autos verifica-se que não foi efetuada a correta reprodução do teor do testamento de 24 de agosto de 2021, objeto da decisão recorrida, no que toca á sua cláusula 2ª, com os seguintes dizeres “Nos termos do numero um, alínea com) do artigo mil oitocentos e oitenta e oito, do mesmo Código Civil, exclui da administração de todos os bens, móveis, imóveis, dinheiro, depósitos bancários, aplicações financeiras e certificados de aforro, deixados ou doados aos seus identificados filhos pela testadora ou pelos seus pais, avós maternos, o pai dos menores, BB e a irmã mais velha deles, FF, cabendo essa administração ao tutor nomeado, AA…”.
Com efeito, no ponto 8, alínea b) da matéria de facto provada que se refere a esta cláusula escreveu-se que nela a testadora declarou “Excluir da administração de todos os bens dos menores o pai, BB destes e a irmã mais velha daqueles, FF”, sem especificar que a testadora os restringiu aos deixados e doados pela testadora e pelos seus pais, avós maternos. O mesmo ocorreu na alínea c) desse mesmo ponto, quanto á atribuição da administração dos ditos bens aos Recorrente.
Destarte, oficiosamente, por força do disposto no artigo 662º nº 1 e 607º nº 4 do Código de Processo Civil, proceder-se-á à correção dessas alíneas do ponto 8 da matéria de facto provada, no que refere á transcrição do testamento, objeto da decisão, anotando-a supra.
 .b) Dos critérios para a apreciação da impugnação da matéria de facto
Na reapreciação dos meios de prova deve-se assegurar o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância -, efetuando-se uma análise crítica das provas produzidas.
É à luz desta ideia que deve ser lido o disposto no artigo 662º nº 1 do Código de Processo Civil, o qual exige que a Relação faça nova apreciação da matéria de facto impugnada.
Visto que vigora também neste tribunal o princípio da livre apreciação da prova, há que mencionar que esta não se confunde com a íntima convicção do julgador.
A mesma impõe uma análise racional e fundamentada dos elementos probatórios produzidos, que estes sejam valorados tendo em conta critérios de bom senso, razoabilidade e sensatez, recorrendo às regras da experiência e aos parâmetros do homem médio.
A formação da convicção não se funda na certeza absoluta quanto à ocorrência ou não ocorrência de um facto, em regra impossível de alcançar, por ser sempre possível equacionar acontecimento, mesmo que muito improvável, que ponha em causa tal asserção, havendo sempre a possibilidade de duvidar de qualquer facto.
É obvio que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”, como explica Vaz Serra in Provas – Direito Probatório Material”, in BMJ 110/82 e 171.
“Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz – meio da apreensão e não critério da apreensão – a ideia de que mais do que ser possível (pois não é por haver a possibilidade de um facto ter ocorrido que se segue que ele ocorreu necessariamente) e verosímil (porque podem sempre ocorrer factos inverosímeis), o facto possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.” cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2014 no processo 1040/12.2TBLSD-C.P1.
A convicção do julgador é obtida em concreto, face a toda a prova produzida, com recurso ao bom senso, às regras da experiência, quer da vida real, quer da vida judiciária, à diferente credibilidade de cada elemento de prova, à procura das razões que conduziram à omissão de apresentação de determinados elementos que a parte poderia apresentar com facilidade, a dificuldade na apreciação da prova por declarações e a fragilidade deste meio de prova.
Igualmente importa a “acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.” (mesmo Acórdão).
Concretização
Tudo isto dito, podemos apreciar em concreto a impugnação da matéria de facto objeto destes autos.
Ouvimos os depoimentos prestados e revisitámos todos os meios de prova que foram produzidos nos autos, o que permitiu fazer o enquadramento dos trechos dos depoimentos e declarações salientados no recurso. Com efeito, há que salientar que todos os depoimentos têm que ser ouvidos na sua integralidade, visto que o contexto é determinante para a interpretação das declarações, as quais, ainda, têm que ser conjugadas com toda a prova produzida.
 Vejamos, ponto a ponto, se, como pretende o Recorrente, foram incorretamente julgada a matéria de facto provada:
- ponto 9 da matéria de facto provada:
Neste lê-se: “Por referência ao documento intitulado de testamento datado de 24.8.2021 não foi explicitado, a EE, pela Sr.ª Notária, o alcance e consequências de constituição do usufruto.”
O Recurso funda a sua posição em primeiro lugar no depoimento da testemunha GG, Notária, a qual efetivamente não afirmou diretamente que não explicou a testadora as consequências do usufruto, nem confessou que lhe pareceu que esta não entendeu o sentido da sua declaração e não tinha o exercício da sua vontade e apesar disso tinha lavrado o testamento.
No entanto, para a fixação dos factos provados não se atenta unicamente ao que as testemunhas dizem diretamente, por um lado, e por outro consideram-se todos os elementos probatórios que permitem, concatenados, perceber o que ocorreu.
Desta forma, mesmo que estes factos não resultassem indiciados do depoimento da testemunha GG e se considerasse que esta os negou de forma lógica e coerente (e não se entende), nada impediria que, face aos demais elementos de prova, este facto fosse dado como provado.
O facto de sob o efeito da mesma doença, poucos anos depois de ter feito um testamento em que instituiu um usufruto sobre a sua residência, simultaneamente com a constituição de um direito de uso e habitação,a favor de diferentes pessoas, não faz só por si presumir que a mesma conhecia devidamente as consequências destas figuras jurídicas (mormente que os seus filhos seriam privados de património de valor e do direito próprio de viver na casa onde sempre habitaram e ficariam dependentes e devedores da boa vontade de terceiros, que livremente poderiam deixar de os apoiar) e muito menos que lhe tenham sido explicadas pela Senhora Notária que prestou testemunho.
Ouvido o depoimento tornou-se patente a sua preocupação em, acima de tudo, defender a validade do ato praticado, independentemente de todo o resto. “A testemunha, perguntada, afirmou sem qualquer hesitação que apenas relevava a vontade do declarante não curando a Sr.ª Notária de, v.g., saber se a declaração de vontade daquele declarante podia produzir os efeitos jurídicos por si pretendidos - conforme, desde logo, quanto á questão de instituição da tutela e da administração de bens.
Para o Tribunal fica claro que a testemunha não só não cuidou de explicar os efeitos jurídicos da declaração de vontade expressa no testamento como de igual forma se preocupou em saber se o que a declarante pretendia era possível”, explana-se na sentença em raciocínio que também efetuámos quando ouvimos a prova.
- pontos 32, 33, 34, 35, 38, 39, 40, 41, 42, 43 e 44:
Estes pontos dizem-nos o seguinte: “Em .../.../2021 é diagnosticada amnésia à falecida progenitora. Em .../.../2021 a EE é internada de urgência com diarreia, quadro de desorientação e agravamento do estado geral desde há 4 dias àquela data. Muito confusa. Teve alta a 18 de Agosto de 2021 com “…discreta melhoria do quadro de desorientação.. ” mas com “…agravamento da disfunção hepática e renal”. Desde 14 de Fevereiro de 2012 que padecia de alterações de memória. Já em 29 de Maio de 2014 foi-lhe diagnosticada desorientação temporal e lentificação, ficando baralhada em locais públicos.Tomava medicação específica para dormir e para as dores. Em 25 de Agosto de 2021 foi internada no Hospital ... tendo sido diagnosticado que estava “…em últimas horas de vida. Tendo sido medicada com morfina. Conjugando o estado de saúde de EE e as poucas horas que distam entre a feitura do testamento e a morte, a mesma estava em estado tal que não entendeu o sentido da sua declaração e não tinha o exercício da sua vontade. EE era doente terminal, vinha de sucessivos internamentos com diagnósticos de desorientação, amnésia e toma de medicação ansiolítica e para as dores, incluindo morfina.”
Afirma o Recorrente que a amnésia dizia apenas respeito a dificuldade em lembrar-se de palavras e que a sentença esqueceu todo o restante quadro descrito no processo médico da mesma.
No entanto, o próprio Recorrente nas partes dos relatórios que reproduz traz extratos que representam os problemas mentais de que padecia a testadora: “desorientada no tempo. Repete e nomeia, mas algo lentificada. Parcialmente orientada no tempo.”
Este estado de total fragilidade mental, mostra-se, aliás, natural, face à sua condição física, de uma fragilidade a toda a linha e à medicamentação a que estava sujeita.
Os relatórios clínicos do mês de agosto a que se refere o Recorrente, elaborados aquando dos seus internamentos em Hospital, afirmando que esta está consciente, colaborante e orientada, apenas significam que a mesma estava acordada, sabendo onde se encontrava (no hospital) e que respondia às instruções que lhe eram dadas naquele âmbito (tudo funções da maior simplicidade que uma criança pequena conhece e cumpre facilmente), nada mais se podendo retirar daí.
No depoimento de HH verifica-se que a mesma não responde diretamente às perguntas, mas também que afirmou perentoriamente que notou um declínio [cognitivo] da testadora relacionado com a progressão da doença, acabando, igualmente e tudo a muito custo, por assumir que estes doentes nestas fases facilmente variam o seu estado de consciência e ficam mais confusos.
Como se diz na sentença: “concretizou que EE tinha um cancro da mama metastisado - espalhado - há 3 ou 4 anos á data da morte. Referiu-se ao inegável, ou seja, ao que estava nos registos clínicos sendo que em todas a situações tentou sempre amenizar a situação de EE, desde a minorar a situação de falta de ar (razão do seu último internamento), minorar os efeitos secundários da medicação que era ministrada (opióides, ansiolíticos, cortisona). Mesmo depois de admitir, em concreto, os efeitos secundários enunciados nas respectivas bulas confusão, cansaço, etc…. EE saiu medicada com: Fluoxetina20mg 1 cp de manhã; Oxazepam 15mg à noite; Lepicortinolo 40mg de manhã; Pantoprazol 40mg; Transtec 35ug; Abstral 100ug em SOS; metoclopramida; lactulose; paracetamol 1g em SOS - antidepressivos, ansiolíticos, cortisona, opioide (derivado da morfina).
Perante isto, e perguntada, a testemunha lá conclui que conjugando os efeitos secundários da Fluoxetina, do Oxazepam (alteração de memória e confusão), dos opioides (confusão e astenia), com a (falta de) hidratação, a presença de dor tal afectou a consciência de EE e que ao longo do processo de doença - desde a alta, dia 23, até ao internamento, dia 25 - é possível a perda de consciência pois que os doentes como EE facilmente variam o estado de consciência.
Esta testemunha, no entanto, não deixou de acrescentar que o carácter físico debilitado se repercute no aspecto cognitivo, havendo um declínio cognitivo.”
Esta fragilidade é confirmada pelos depoimentos de  MM e  PP.
Assim, concluiu-se por uma menor objetividade e desinteresse dos depoimentos das testemunhas GG e HH, e que estes não põem em causa os factos dados como provados, visto que têm que ser interpretados tendo em atenção a forma como foram prestados e à luz de todas as circunstâncias da testadora no momento da outorga do testamento.
De toda a prova resulta patente que o objetivo da testadora sempre foi proteger os seus filhos (em todas as vertentes, incluindo a patrimonial), facto que não resulta do testamento elaborado, antes pelo contrário. Resulta, igualmente que o estado de saúde, físico e psicológico, era paupérrimo mercê da doença de que padecia e que apresentava, na parte que aqui mais nos releva, uma fortisima limitação da sua capacidade volitiva e cognitiva, mormente por força da medicação a que estava sujeita.
“EE estava - ao tempo em que fez o testamento - às portas da morte, tendo ido para casa apenas para lá morrer e contra a vontade da médica que lhe deu alta que declarou em Tribunal que por si a mãe de CC e DD ficava internada.
No ínterim, EE tinha estado internada, estava débil fisicamente, dependente de terceiros, era-lhe ministrada vária medicação (por estes terceiros…) entre a qual estavam opioides (morfina).
 E sem olvidar que horas após fazer o testamento EE foi internada com dispneia (falta de ar) em dimensão tal que, como resulta do próprio depoimento da médica da mãe de CC e DD, na concentração que estava e bem assim podendo ser um processo gradual, já estaria a afectar EE.

Em suma, temos:
Doença oncológica prolongada no tempo;
Metástases espalhadas pelo corpo;
Debilidade física, dependendo de terceiros;
Toma de medicação com afectação da capacidade de raciocínio;
Diagnóstico de estar nas últimas horas de vida;
Dispneia (falta de ar) que implica limitação do raciocínio. A muitíssimo próxima localização temporal entre a saída do hospital de EE no dia 23.8.2021 - em que estava às portas da morte, pois que foi morrer a casa, conforme resulta expresso do depoimento da testemunha HH - com a data da feitura do testamento - dia 24.8.2016.
São meras horas(!!!).
Sem olvidar que a 25.8.2021 EE volta a ser internada, com dispneia e falece a .../.../2021.
Conjugando os efeitos da falta de ar e da debilidade física, em conjugação com os efeitos da medicação que a EE era ministrada (e diga-se, nesta fase, tanto quanto se apurou, a medicação - v.g. derivados de morfina - e todos os outros cuidados tinham de ser e eram ministrados por terceiros…) dúvidas não nos quedam que a mãe de CC e DD não estava, física e psicologicamente, minimamente capaz de entender o alcance do que estava a fazer.
Não se pode olvidar o facto da doença metastisada ter, por regra, avanços para o cérebro (cfr. depoimento do médico de EE) o que implica a perda de capacidade mental.
E a isto acresce outra realidade que se apurou: é que a Sr.ª Notária, sabedora do intuito e da razão para EE fazer os testamentos - proteger o património para os filhos - não explicou à mãe de CC e DD que ao constituir-se o usufruto por morte e da forma que o foi, tal implicava que jamais com a maioridade de CC e DD tivessem estes a totalidade de gozo, uso e fruição da casa…a não ser que o usufrutuário a tal renunciasse, o que, como se viu, o requerente AA declarou expressamente que não o faz.
Daqui decorre, cristalinamente, a razão pela qual o Tribunal conclui que a falecida mãe de CC e DD não estava consciente das consequências do que estava a fazer.”
Assim, da análise crítica da prova produzida não se pode concluir que desde o início do seu último internamento a testadora se encontrava perfeitamente consciente e orientada e muito menos num estado de melhorias progressivas.
O tribunal fez um exame crítico da prova efetuada em audiência de julgamento e os documentos juntos, concatenando toda a prova documental e por declarações sobre a situação física e psicológica da testadora antes da realização do testamento e da sua morte (ambos tão próximos!), prestando atenção ao seu estado totalmente depauperado, o que a mesma pretendia e os seus objetivos de vida, atendendo à medicamentação a que estava sujeita e à forma como as testemunhas prestaram os seus depoimentos. Nada há a apontar aos raciocínios ora reproduzidos e que são, também, os que efetuámos.
Assim, mantém-se na integra a matéria de facto provada.
Aplicação do direito aos factos apurados
Porque o pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos, na parte que se mantém, nos termos em que foi apresentada pelo Recorrente, que definiu as questões de facto e de direito a apreciar, dependente da alteração da matéria de facto no sentido por si proposto, consubstanciado essencialmente na falta de prova da incapacidade de querer e entender no momento da feitura do testamento, que não se logrou demonstrar, não há que efetuar nova aplicação do direito a tais factos, considerando-se tal matéria prejudicada.
De qualquer forma impõe-se ainda explanar dois aspetos.
O primeiro relativo à alteração oficiosa da matéria de facto assente, fazendo-se corresponder a descrição do testamento ao seu teor: visto que a causa de anulabilidade desta cláusula diz respeito à falta capacidade de querer e entender o sentido de qualquer declaração, não releva, para a manutenção do decidido nessa parte, a diferença entre os dizeres constantes da cláusula, aliás de pormenor.
O segundo relativo à apurada anulação: o que se verificou é que o tribunal a quo não podia decidir sobre a totalidade de todo testamento, por tal não ter sido objeto do pedido e não poder ir para além do que os interessados afirmaram pretender, nesta matéria em que está em causa a anulabilidade do testamento. Não se decidiu, assim, que não se verificavam os demais pressupostos, nomeadamente de facto, relativamente a tais pedidos, pelo que o decidido nestes autos não impede que as partes venham, no tribunal competente, formulá-lo, sendo que a sua pendência pode influenciar a contagem dos respetivos prazos.
Termos em que procede parcialmente a apelação.
 
V- Decisão:

Por todo o exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e em consequência revoga-se a decisão recorrida na parte em que declarou anuladas as cláusulas do testamento outorgado por GG em 24 de agosto de 2021 que não diziam respeito à administração dos bens,
mantendo-se todo o demais decidido: a homologação da desistência do pedido, a anulação da cláusula 2ª do testamento relativa à administração dos bens e as determinações ao Recorrente apresentar e especificar os elementos ali enunciados, bem como a sua condenação nas custas da ação.
Custas da apelação pelo Recorrente, visto que o apelado não contra-alegou e foi o Requerente quem dos autos teve proveito (artigo 527º, nº 1, parte final, do Código de Processo Civil).

Guimarães, 19 de dezembro de 2023

Sandra Melo
 Paula Ribas
Raquel Rego