PLATAFORMAS DIGITAIS
CONTRATAÇÃO À DISTÂNCIA
PERIGOSIDADE DA ACTIVIDADE
DANOS A TERCEIROS
Sumário

I - A divulgação de produtos e serviços, comercializados à escala mundial mediante a utilização de plataformas digitais, numa economia globalizada, possibilitou o alargamento do mercado, proporcionando ao consumidor, de forma célere, cómoda e simples, o acesso a bens e serviços.
II - A contratação à distância, através de sites da internet, pese embora não ser isenta de riscos designadamente para o comprador consumidor, não é enquadrável na noção jurídica de actividade perigosa por ser exigível a perigosidade do meio, o que não sucede com a plataforma digital.
III - A perigosidade da actividade advém da susceptibilidade de causar, com acentuada probabilidade, em comparação com a contratação por outros meios, danos a terceiros, ressarcíveis com recurso ao instituto da responsabilidade extracontratual.
IV - O vendedor de produtos, divulgados através da internet, não pode ser responsabilizado por não ter cancelado a entrega das encomendas (obrigação assumida contratualmente à distância) no caso de ter sido informado que o comprador utilizou, nessas compras, dinheiro pertencente a terceiro, obtido de forma fraudulenta.

Texto Integral

Processo n.º 907/20.0T8PFR.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunta: Lina Castro Baptista
Adjunta: Anabela Dias da Silva

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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO
AA intentou a presente acção com processo comum contra “A..., S.A.”, pedindo que seja condenada a devolver-lhe a quantia de € 35.111,69, correspondente às compras e vendas fraudulentas feitas por terceiros desconhecidos em seu nome, e ainda a pagar juros vencidos no montante de € 442,50 e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Alegou, em resumo, que é proprietário de um talho, sendo que no dia 15/04/2020, até cerca das 11h55m, na sua conta bancária tinha em depósito à ordem a quantia de € 55.752,00. No dia 14/04/2020, foi contactado pelo telefone por uma pessoa do sexo feminino, a qual lhe fez uma encomenda de determinadas carnes para o dia seguinte, encomenda que ficou apontada em nome de BB. No dia seguinte, próximo da hora acordada para o levantamento da mercadoria encomendada (cerca das 11h30m), recebeu novo telefonema, desta vez em tom de voz masculina, questionando se a encomenda da BB estava pronta a ser levantada e o preço da mesma. Perante a afirmação do A. de que a mercadoria estava pronta a levantar, e a informação do preço a pagar, a pessoa que o contactou perguntou-lhe se tinha terminal de pagamento automático (TPA) na loja e perante a confirmação da existência do referido terminal, a mesma pessoa questionou o A. se havia próximo uma máquina de multibanco ao que o A. respondeu afirmativamente. Essa pessoa, cuja entidade não foi até à data possível apurar, solicitou ao A., que se dirigisse ao multibanco, dado que pretendia desde logo pagar o preço da mercadoria através do TPA do A., mas para tanto o A. tinha que o autorizar, levando a cabo determinada operação na caixa multibanco de acordo com as instruções que lhe iam ser dadas pela pessoa que o contactava telefonicamente. O A. dirigiu-se ao referido terminal e deu cumprimento às instruções da pessoa que se mantinha ao telefone, no convencimento de que as instruções que recebia e que efectuava visavam que o mesmo ficasse autorizado a fazer o pagamento do preço da mercadoria através do TPA existente no estabelecimento do Autor.
Após, regressou ao seu estabelecimento, a aguardar pela confirmação do pagamento. Como não existisse qualquer comunicação no TPA do pagamento efectuado, o A. caiu nele e receoso de que pudesse ter sido vítima de uma fraude, acedeu informaticamente à sua conta e verificou que tinha sido vítima de uma burla. Nesse momento, verificou que tinha na sua conta apenas a quantia de € 10.002,68. Tinham desaparecido, no espaço de minutos, € 45.749,52. Apesar da correria para a agência do banco onde tem sedeada a aludida conta, segundo informação prestada pelo funcionário do banco, não era possível cancelar qualquer dos movimentos a débito que se visualizavam na conta do A. por já se encontrarem efectivados. Apenas era possível evitar qualquer novo movimento a partir daquele instante, o que foi feito de imediato.
Foi ainda informado pelo funcionário da sua instituição bancária que, ao seguir as instruções que lhe eram dadas pela pessoa que lhe telefonou, aderiu à aplicação multibanco MB Phone e ao efectivar as operações a mando do terceiro, forneceu-lhe os dados necessários à movimentação da sua conta através da aludida aplicação informática.
O funcionário bancário que atendeu o A., ao atentar nos movimentos bancários, verificou que os movimentos a débito eram na sua maioria compras efectuadas junto da R., compras que ascendiam a um total de € 40.119,67. De imediato, e na tentativa de ajudar o A., dirigiu-se à loja A... em Paços de Ferreira, com o objectivo de obter informações como cancelar as encomendas que se visualizavam no extracto bancário. Nesse local foi informado que nada podiam fazer, uma vez que os movimentos que se visualizavam no extracto era de compras on-line e que o único modo de as cancelar seria através da referência da encomenda, do telemóvel ou email que tinha efectuado as encomendas. Forneceram ao aludido funcionário os telefones ... e ... e o email “cliente@A.....pt”.
O aludido funcionário tentou por várias vezes o contacto telefónico com a R. sem alguma vez conseguir estabelecer ligação. O A., através dos serviços do signatário da p.i., tentou nesse dia 15/04/2020 da parte de tarde do dia e durante cerca de uma hora, o contacto com os serviços telefónicos referidos, sem êxito. Dado o inêxito do contacto para os aludidos números de telefone, o A., através do signatário da p.i., enviou nesse dia 15/04/2020, pelas 15h20m através de correio eletrónico para o endereço “cliente@A.....pt” o texto cuja cópia junta, tendo sido anexado ao email cópia parcial do extracto bancário da conta do A. que identificava as compras ou encomendas feitas à R. e cujo cancelamento das entregas era pedido. A esse email a R. respondeu pelas 15h20m com o seguinte texto “Obrigado por contactar a A.... Face ao elevado número de pedidos, estimamos responder à sua questão no prazo de 3 dias úteis. Agradecemos a sua compreensão. Serviço de Apoio ao Cliente A....”. O signatário da p.i., em nome do A., responde ao email da R. com um novo email com o seguinte teor: “Para o assunto em questão 3 dias úteis já é tarde, quando se pretende travar a entrega de encomendas”. A este texto não surgiu qualquer resposta.
O A., no dia seguinte, enviou uma carta à R. que inicialmente era para ser enviada por correio registado com aviso de recepção e concluindo-se já no posto dos correios ser mais rápida a sua entrega ao destinatário por correio expresso, optou-se por utilizar este meio de envio. Essa carta foi recepcionada nos serviços da R. no dia 17/04/2020 às 10h02m02s.
Através do conteúdo, quer dos e-mails quer da carta, a R. ficou a saber que o A. foi vítima de uma burla e conduta fraudulenta por parte de terceiros, que o envolveu como pretenso comprador de equipamento à R. quando de facto nada tinha comprado. Mais se solicitou na carta que a R. devolvesse o dinheiro das pretensas compras, referindo-se na mesma, por lapso aritmético, que o valor das pretensas compras ascendia a € 33.542,84 quando de facto ascendiam a € 40.119,67 como resulta do somatório das compras reportadas no extracto bancário, erro que era detectável pelo extracto bancário que foi junto nessa mesma carta e que também tinha sido anexado ao primeiro e-mail acima referido, onde eram identificadas todas as pretensas compras efectuadas pelo A..
Tudo para concluir que a R. sabia, ou pelo menos estava em condições de saber que, desde o dia 15/04/2020, as compras que nesse mesmo dia supostamente lhe tinham sido feitas online pelo A. e identificadas no seu extracto bancário, não correspondiam a verdadeiras compras efectuadas pelo A. mas antes a uma situação de fraude que lhe foi devida e atempadamente comunicada.
Apesar de todo o esforço do A. nas comunicações efectuadas à R. e para que esta não o pudesse acusar de qualquer conduta negligente na denúncia da fraude, ainda no dia 17/04/2020 o signatário da p.i., perante o silêncio da R. e tendo conhecimento que esta pertence ao grupo empresarial B..., enviou ao provedor B..., para o email “provedoria@B....pt” o texto cuja cópia junta. Apesar de todas as tentativas de comunicação com a R. nenhuma satisfação foi dada directamente ao A.. Apenas a R. procedeu à devolução para a aludida conta bancária do A. da quantia total de € 5.007,98 – em 25/04/2020 devolveu € 499,99 por duas vezes e em 30/04 onde devolveu de uma vez € 2.249,00 e de outra vez € 1.759,00.
Do montante total das aparentes compras fraudulentas efectuadas por terceiros desconhecidos em nome do A. junto da R. falta esta devolver àquele a quantia de € 35.111.69. Admitindo que a R. não procedeu à devolução da quantia em falta por ter efectuado a entrega de parte da mercadoria fraudulentamente adquirida junto de si, a R. continua a ser a única responsável por essa entrega indevida da mercadoria, uma vez que o A. lhe comunicou pelos meios que tinha ao seu dispor e que a própria R. forneceu, a situação de fraude que as compras efectuadas junto de si e reportadas no extracto bancário do A. consubstanciavam.
Pelo que a R. só por falta de atenção e cuidado dos seus serviços, que se conduz a uma situação de negligência grosseira, de não atentarem na situação de fraude que lhe foi comunicada atempadamente, é que procedeu à entrega da mercadoria respeitante ao montante não devolvido. A R., independentemente de ter efectuado ou não a entrega da mercadoria respeitante ao montante que falta devolver, está obrigada a devolver esse montante ao A., uma vez que não foi o A. que lhe adquiriu esses bens e desse facto deu atempado conhecimento à R. pelos meios que esta disponibilizou e ainda pelo correio expresso. Ao montante em causa devem acrescer juros de mora, à taxa legal, desde pelo menos oito dias após a recepção da carta enviada pelo A. à R. por correio expresso, ou seja, 25/04/2020.
A Ré contestou alegando que o A. bem sabe que a Ré nada lhe deve, pretende dela receber o que sabe não ser devido, e que se prejuízo houve, o mesmo aconteceu por sua única e exclusiva culpa. Deduziu, ainda, a excepção de ineptidão da petição inicial alegando, em resumo, que o A. estriba a sua acção no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, que a causa de pedir, em que a acção se estriba, teria que conter factos conducentes á condenação conforme o pedido e que os requisitos da responsabilidade civil extracontratual não foram integrados com factos, nomeadamente no que á culpa se refere. Acrescentou que é perfeitamente claro que o Autor foi o único culpado desta situação, e que o Autor, ao que parece através de interposta pessoa – funcionário do Banco e o seu ilustre mandatário – parece culpar a Ré de não atender o telefone e que a Ré, pela simples análise de valores de compra num extrato de conta bancário, não consegue determinar os elementos essenciais que permitam controlar essa mesma encomenda, nomeadamente o seu ordenante, sendo de recordar que, á data, o Governo Português tinha ordenado o confinamento obrigatório, e o teletrabalho, por causa da Pandemia Covid19.
Alega ainda que os produtos em causa nos autos foram todos encomendados em 15.04.2020 e entregues na Rua ..., Lote ... R/C ..., ..., ..., entre o dia 16 a 20 de Abril, sendo certo que os dias 18.04 e 19.04 foram fim de semana. Que a carta supostamente remetida á Ré, foi enviada para a sua sede, na ... em Matosinhos, que a Ré tem mais de três centenas de estabelecimentos, para além do estabelecimento no site onde realiza vendas por via de internet e que a carta do Autor, foi recebida em 17.04 na recepção do prédio por volta das dez e meia da manhã, juntamente com toda a outra correspondência, normal e expresso, que são ás centenas e seguiu, internamente nos serviços da Ré, os tramites normais. A Ré anulou, erradamente diga-se, a entrega de duas encomendas e devolveu o dinheiro recebido, para a conta donde proveio o pagamento. Erradamente, porque a partir do momento em que a encomenda é feita e é aceite pela Ré, a propriedade dos bens dela constante já não é sua, mas do adquirente dos mesmos, como resulta dos arts. 879º a 891º do Código Civil. Quando procede ao cancelamento da encomenda e á devolução dos valores recebidos, a Ré expôs-se a que o proprietário dos bens, propusesse uma acção indemnizatória pelos prejuízos causados pela não entrega dos bens adquiridos. Não cabe á Ré, a obrigação de fiscalização da proveniência dos montantes, que servem para pagamento dos bens que coloca à venda. O que a Ré ficou a saber, e ainda hoje sabe, é aquilo que o Autor se queixou e queixa, o que não significa que a Ré tenha que assumir como verdadeiro. Bem pelo contrário. Em face das normas em vigor, a Ré não deveria ter anulado qualquer encomenda e entrega, dado que a propriedade dos bens não era sua, e não havia qualquer fundamento legal para que o fizesse. A Ré não sabia nem sabe, se o que foi alegado pelo Autor corresponde á verdade. A Ré não sabia nem sabe, se existem quaisquer outros factos que sejam extintivos do direito do Autor, nomeadamente, que o Autor de livre vontade procedeu ao pagamento de tais compras. O Autor, se queria anular essas vendas, deveria ter proposto uma acção judicial, e se a mesma viesse a ser decretada, hoje poderia estar a pedir responsabilidades á Ré.
Foi proferido despacho que determinou a notificação do A. para responder à excepção de nulidade do processo decorrente de ineptidão da petição inicial invocada pela R., concretizando e esclarecendo qual o facto ilícito culposo praticado pela R. que conduziu à sua desapropriação da quantia indicada no pedido e o nexo de causalidade entre essa conduta e o dano alegado.
O Autor respondeu alegando que a causa de pedir está devidamente identificada na p.i. face aos factos alegados, que a R. compreendeu bem qual era a causa de pedir, que se defendeu em conformidade como resulta da sua alegação de que errou quando anulou as vendas relativas aos valores devolvidos e quando alegou uma suspeição de simulação de crime por parte do A., pelo que não ocorre a excepção de nulidade por ineptidão da p.i..
Mais alegou que, conforme foi alegado, o A. foi vítima da conduta de terceiros que, com o objectivo de ilegitimamente enriquecerem, o levaram, por meio de factos que astuciosamente criaram, ao engano e à prática de determinadas operações num terminal de multibanco, com intenção de lhe causar prejuízo, e que esse comportamento criminoso de terceiros permitiu que o dinheiro que é propriedade do A. fosse indevidamente para à esfera patrimonial da R. para pagamento do preço de compras feitas junto desta. A R. enquanto beneficiária dos montantes que para si foram transferidos em violação do direito de propriedade do A. sobre o dinheiro transferido, tem que restituir os aludidos montantes, uma vez que os recebeu de quem não tinha direito a dispor desse dinheiro e desse facto foi avisada antes da entrega dos bens.
A R. não é a autora material do facto ilícito inicial, mas é autora do facto ilícito subsequente, materializado na apropriação indevida das quantias que para si foram transferidas da conta do A. após lhe ter sido comunicada a fraude ou burla em momento anterior à entrega dos bens das compra e vendas efectuadas junto de si pelos terceiros. Ainda que a R. desconhecesse, no momento em que recebeu a ordem de compra dos respectivos bens e bem assim do respectivo preço, a fraude que vitimou o A., a partir do momento em que lhe foi comunicado pelo mesmo a aludida burla, impunha-se a esta o dever de não proceder à entrega dos bens e consequentemente não se apropriar do dinheiro do A., sob pena de violar, como violou, o direito de propriedade daquele, uma vez que estamos em presença de uma compra e venda inexistente em relação ao A. ou de uma transferência de dinheiro indevida e ilegitimamente realizada. É essa apropriação por parte da R. que é ilícita uma vez que viola o direito de propriedade do A. e aquela teve conhecimento da fraude antes da entrega dos bens. A aludida conduta ilícita da R., apropriação do dinheiro da A., sem qualquer contrato ou ordem juridicamente válida por parte do A. foi causa directa, necessária e adequada do prejuízo sofrido pelo A.. A conduta da R. de não ter obstado à entrega dos bens relativos ao montante que não devolveu, apesar da comunicação anterior à efectivação dessa mesma entrega, é causa directa, necessária e adequada da violação do direito de propriedade do A., uma vez que a R. se apropria indevida e ilegitimamente do dinheiro por negligentemente não ter obstado à referida entrega.
O A. não tem que pagar o preço de algo que não adquiriu, nem autorizou o pagamento e, como tal, as transferências não autorizadas pelo A. que ocorreram para a R. das compra e vendas inexistentes com o A., só podem dar lugar à restituição daquilo que foi indevidamente pago.
A R., relativamente à entrega dos bens que efectuou, só pode queixar-se da incúria ou negligência dos seus funcionários, ou de quem recebe as comunicações ou da própria organização comunicacional que implementou, e esta incúria ou falta de organização comunicacional só pode reflectir-se na própria R. e nunca no A. que não pode de forma alguma ser responsável pelo modo de comunicação interna da R.. A ausência ou deficiente comunicação interna da R., da informação que o A. lhe fez chegar, que não impediu a entrega dos bens e a consequente apropriação por sua parte do dinheiro que é do A., não pode ser imputado a este que comunicou atempadamente à R. a burla de que foi vítima e que não deveria proceder à entrega dos bens relativos às encomendas que resultavam do extracto bancário cuja cópia foi enviada nas diversas comunicações.
O facto ilícito que dá causa à violação do direito da A. e ao pedido de restituição do montante peticionado em singelo é a violação do seu direito de propriedade sobre as quantias indevidamente transferidas para a R. e que esta indevidamente se apropriou, após lhe ter sido comunicado a fraude antes da entrega dos bens. Se actuasse de forma diligente evitava a entrega das mercadorias e consequentemente qualquer prejuízo para si e devolvia o que ilegitimamente se quer apropriar violando o direito de propriedade do A. aos aludidos montantes.
Foi proferido despacho que, ao abrigo do disposto no art. 590º, nº 2, al. b), e nº 4 do C.P.C. determinou a notificação do Autor para concretizar, da matéria de facto alegada:
- que instruções de terceiros recebeu e efectuou com vista a autorizar o pagamento do preço da mercadoria que lhe foi encomendada (art.º 8.º) e em que medida essas instruções e os actos por si realizados conduziram à transferência, sem o seu conhecimento e consentimento, da sua conta, da quantia de € 45.749,52 (arts. 11.º e 12.º, da p.i.);
- que movimentos a débito foram efectuados da sua conta bancária em benefício da Ré e em que datas (arts. 18.º e 19.º, da p.i.);
- Em que data(s) a Ré procedeu à entrega dos bens que lhe foram solicitados com os fundos monetários da conta bancária do Autor e se essa(s) entrega(s) ocorreu(ram) depois de ter conhecimento das comunicações de fraude por parte do Autor.
O A., em cumprimento da notificação efectuada, veio alegar que em cumprimento das instruções recebidas, após introduzir o seu cartão multibanco e respectivo código, foi-lhe pedido pela pessoa que efectuou o telefonema que selecionasse a opção “outras operações” e de seguida que selecionasse a opção “MBphone”, o que o A. fez; após foi-lhe dito para introduzir o número de telemóvel que lhe foi ditado, o que fez; depois da referida operação ter sido concretizada, foi dito ao A. para introduzir um código, que também lhe foi ditado o que este fez e concluiu de seguida a operação e retirou o seu cartão. O dito terceiro ou burlão, com a sua conduta enganosa perante o A. que o levou a praticar as ditas operações na caixa multibanco, conseguiu ter acesso e movimentar a conta bancária do A. através da dita aplicação informática e efectuou os movimentos bancários descritos sem o conhecimento e sem o consentimento do A..
Elencou, também, os movimentos a débito que foram efectuados em benefício da R., todos no dia 15/04/2020 e num total de nove, entre as 11h56m51s e as 12h11m24s.
Mais afirmou desconhecer em que data a R. procedeu à entrega ou disponibilizou os bens adquiridos com os fundos monetários do A.. Todavia, tendo o A., através do signatário da p.i., comunicado a fraude à R. por email do próprio dia 15/04/2020, que foi efectivamente recebido pela R. e ainda enviado a carta comprovadamente recebida no dia 17/04/2020, não crê o A. que pelo menos na 1ª data a R. já tivesse efectuado qualquer uma das entregas de vens subjacentes às aludidas encomendas.
Notificada, a Ré veio pronunciar-se alegando que mantém tudo o que referiu na contestação, que o que o A. veio aperfeiçoar consta já da p.i., que não existem factos novos que fossem trazidos ao processo com o requerimento do Autor, mas de qualquer forma todos os factos alegados são falsos, que os factos que já constam dos documentos juntos aos autos não foram aperfeiçoados, foram repetidos e que as crenças do A. em nada relevam para efeitos da acção.
Foi proferido despacho que declarou o Juízo Local Cível de Paços de Ferreira territorialmente incompetente para apreciar a presente ação e determinou a remessa dos autos a este Juízo Local Cível de Matosinhos.
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Proferiu-se sentença que julgou improcedente a acção e absolveu a Ré do pedido.
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Inconformado com a sentença, o Autor interpôs recurso finalizando com as seguintes
Conclusões
1- A R. foi absolvida do pedido por o Tribunal a quo, ser do entendimento que sobre a aquela não recaía qualquer dever geral de cuidado e como tal não existiu por parte da mesma qualquer atuação ilícita quer por ação quer por omissão que pudesse integrar e colocar em funcionamento o instituto da responsabilidade civil extracontratual.
II- Considerou ainda o Tribunal Recorrido que a atividade de comércio eletrônico desenvolvida pela R. não pode ser havida como atividade perigosa para os efeitos do artigo 493° n° 2 do C.C. e consequentemente não pode a R. responder com fundamento na responsabilidade pelo risco.
III- Afigurando-se como corretos os factos dados como provados, a R. ao não ter agido, no momento imediatamente a seguir para evitar a consumação da fraude comunicada, comete um facto ilícito, pelo menos por negligência.
IV- A R. avisada antes da entrega dos bens objeto das compras e vendas eletrônicas tinha o dever de não cumprir com o contrato que celebrou eletronicamente e consequentemente não entregar os objetos reportados àqueles contratos e não fazer seu o respetivo preço, com fundamento no dever de cuidado que é imposto a qualquer cidadão no artigo 231° n° 2 do Código Penal, não se devendo entender a Ré dispensada do mesmo pelo facto de ser pessoa coletiva.
V- Ainda que por mera culpa, a R. violou esse dever ao não ter em ação os canais de comunicação que dessem o alerta da fraude que se estava a concretizar.
VI- Impende, pois, sobre a R. como sobre qualquer cidadão, no desenvolvimento de qualquer atividade comercial, perante a noticia de uma fraude um dever de conduta cuidada que afaste a consumação dessa mesma fraude e assim sendo, o Tribunal recorrido, decidiu mal ao ter concluído pela inexistência da prática pela R., de qualquer facto ilícito, que prejudicasse o património do A. e consequentemente da não verificação deste pressuposto da responsabilidade civil extracontratual em que o A. fundamenta a sua pretensão.
VII- A R. tinha consciência da estar sujeita a essa obrigação de conduta, tanto assim que anula e muito bem, as compras e vendas reportadas nos autos, obstando desse modo à concretização da fraude relativamente a esses mesmos negócios de compra e venda.
VII - Pode assim afirmar-se sem margem para dúvida razoável, a existência do dever geral de cuidado e que a R. enquanto pessoa coletiva de direito privado está como qualquer cidadão, sujeita a essa obrigação, sendo que a R. tinha consciência de que tinha obediência a esse dever e ao não ter cumprido com a anulação de todas as compras e vendas fraudulentas que lhe foram comunicadas como resulta dos factos provados cometeu um facto ilícito gerador de responsabilidade civil extracontratual.
IX- Entende ainda o Recorrente que o Tribunal Recorrido não trilhou o melhor caminho quando afasta da qualificação de atividade perigosa, a atividade de comércio eletrônico desenvolvida pela R.
X - Mesmo que se admita que na previsão do artigo 493° n° 2 do Código Civil, quando aprovada pelo legislador, não cabia o comércio eletrônico como atividade perigosa, por ser inexistente àquela data, não pode a sua inexistência no momento da aprovação do preceito ser fundamento para a exclusão do conceito de atividade perigosa quando passou a existir e a ser utilizada maciçamente como meio de desenvolvimento da atividade económica.
XI- É facto público e notório, as fraudes que os sistemas eletrônicos e a internet permitem, e assim sendo quem utiliza estes meios como instrumentos do desenvolvimento da sua atividade comercial está consciente de que utiliza um meio que além de potenciar a aceleração e desenvolvimento comercial sem par, infelizmente potencia também a fraude e a deslocação patrimonial indevidas devendo por isso mesmo ser havido como um meio perigoso, na atividade exercida pela R.
XII- É mais perigoso o comércio eletrônico, pelas fraudes que possibilita e potencia e pela grandeza de danos que pode causar, do que outras atividades havidas como perigosas, como seja a exploração de atividades ligas à energia elétrica ou mesmo ao gás, em que um simples clique ou pressionar de uma tecla podem destruir patrimonialmente vidas ou gerar-se danos de milhares ou milhões de euros aos utilizadores e consumidores do comércio via eletrônica.
XIII- Também ao não qualificar a atividade de comércio eletrônico desenvolvido pela R. como atividade perigosa, ou pelo menos que, no desenvolvimento daquela atividade de comércio eletrônico utiliza um meio particularmente perigoso, a saber a internet, o Tribunal recorrido errou na subsunção dos factos ao direito.
XIV- A absolvição da R. do pedido atento os factos dados como provados é o resultado de uma incorreta interpretação e aplicação da lei feita pelo Tribunal Recorrido, nomeadamente quando considerou não existir o dever de cuidado a cargo da R. e ao não enquadrar a atividade do comércio eletrônico numa atividade perigosa por natureza, violando em consequência os artigos 483° n° 1 e 2 e 493° n° 2 ambos do C.C.
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A Ré respondeu concluindo da seguinte forma:
A. No âmbito dos presentes, confessou o Recorrente que deu a um terceiro desconhecido os códigos de acesso à sua conta de “MBWay”, tendo permitido, assim, a utilização, alegadamente, indevida do valor existente na conta bancária associada.
B. Referindo que comunicou esta “burla” à Recorrida atempadamente, para que a mesma pudesse cancelar as compras realizadas.
C. Ou seja, o Recorrente entende que a Recorrida, após receber um pedido de cancelamento duma encomenda tem de o fazer de imediato, independentemente de ser falso ou verdadeiro, independentemente de ser feito por quem procedeu à encomenda, independentemente da encomenda ter já sido entregue.
D. À data, o Governo Português tinha ordenado o confinamento obrigatório e o teletrabalho, por causa da pandemia Covid19.
E. Os produtos em causa nos autos foram todos encomendados em 15/04/2020 e entregues na Rua ..., Lote ... R/C ..., ..., ..., entre o dia 16 a 20 de Abril.
F. O Recorrente, após envio do primeiro email sobre a presente situação, recebeu uma mensagem automática da Recorrida a referir que só seria possível analisar o mesmo no prazo de 3 dias úteis.
G. Ainda assim, a Recorrida anulou, erradamente, a entrega de duas encomendas e devolveu o dinheiro recebido, para a conta donde proveio o pagamento.
H. A Recorrida não tem a obrigação de fiscalização da proveniência dos montantes que servem para pagamento dos bens que coloca à venda.
I. Concorda-se, integralmente, com o Tribunal a quo, quando refere na douta sentença que “mesmo a demonstrar-se que o A. foi vítima da fraude que descreve nos autos e que permitiu que terceiros utilizassem quantias de sua propriedade para adquirir bens junto da R., como bem refere a R., com as comunicações que lhe foram efectuadas, esta não ficou a saber que o A. foi vítima dessa fraude. O que ficou a saber é que o A. se queixa de ter sido vítima de fraude. Contudo, não se vislumbra que dessa queixa decorra alguma obrigação legal para a R., porque obrigação contratual manifestamente não existe, de a assumir como verdadeira e, consequentemente, que sobre a R. impendesse o dever de não proceder à entrega dos bens”.
J. Concluindo que “no âmbito desses contratos de compra e venda, sobre a R. impendia a obrigação de proceder à entrega dos bens vendidos”.
K. Daí que inexista uma apropriação indevida da Recorrida quanto às quantias que foram transferidas da conta do Recorrente, uma vez que inexiste qualquer obrigação legal de, em face de uma queixa de fraude ou burla por parte de um terceiro, alheio ao contrato de compra e venda que celebrou, não efetuar/cancelar a entrega dos bens vendidos.
L. Quanto à violação do dever geral de cuidado que impõe a utilização de um meio especialmente perigoso no exercício da atividade comercial da Recorrida cumpre dizer que tal alegação não tem qualquer cabimento, nem o Recorrente refere um único facto que integre a atividade da Recorrida como, especialmente, perigosa.
M. Qualquer cartão multibanco pode ser clonado ou até mesmo as notas podem ser falsificadas, sendo certo que não está aqui em causa qualquer ataque informático ou utilização indevida da plataforma da Recorrida.
N. Na verdade, quem efetuou o pagamento daquelas encomendas possuía os dados bancários necessários para a realizar, validamente.
O. No caso em apreço, não vislumbramos que os pagamentos por MbWay seja uma atividade de per si perigosa, não encontrando qualquer similitude com as hipóteses que têm vindo a ser densificadas pela doutrina e pela jurisprudência.
P. Assim, tem razão o Tribunal a quo quando refere, precisamente, que “não podemos considerar que a actividade de comércio electrónico desenvolvida pela Ré, seja suscetível de, por si só, implicar um risco acrescido para terceiros de ocorrência de danos, relativamente ao verificado com o comércio em geral, uma vez que os meios de pagamento passíveis de serem utilizados em ambas são absolutamente coincidentes”.
Q. Razão pela qual deve improceder totalmente o recurso apresentado pelo Recorrente.
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II—Delimitação do Objecto do Recurso
A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se a Ré deve ser responsabilizada por não ter cancelado, após ter recebido uma reclamação de fraude comunicada pelo Autor, a entrega das encomendas efectuadas através do site da internet, pagas alegadamente através da conta bancária pertencente àquele.
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III—FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS (elencados na sentença)
1)O A. através dos serviços do signatário da p.i., tentou no dia 15/04/2020 da parte de tarde do dia e durante cerca de uma hora, o contacto com os serviços telefónicos da R., sem êxito.
2)Dado o inêxito do contacto para os aludidos números de telefone, o A., através do signatário da p.i., enviou no dia 15/04/2020, pelas 15h20m através de correio eletrónico para o endereço “cliente@A.....pt” a seguinte comunicação:
“Exmos Senhores
Represento enquanto advogado, AA. O meu constituinte foi vítima de fraude através da qual fizeram hoje encomendas à vossa empresa que presumo tenham sido Online e que resultam do extrato que se anexa para melhor identificação.
Na impossibilidade de outro contacto, apesar de há cerca de uma hora estarmos a tentar pela linha de apoio ao cliente ... e ..., vimos solicitar o cancelamento de todas as entregas identificadas no dito extrato dado tratar-se de uma fraude.
Fico na expectativa que recebam este email e cancelem as encomendas e respetivas entregas.
Sem outro assuno Atenciosamente CC”, conforme documento junto com a p.i. como doc. nºs 5, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3)Foi anexado no email referido em 2) cópia parcial do extrato bancário da conta do A. conforme documento junto com a p.i. como doc. nºs 5, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
4)Ao email referido em 2), a R. respondeu pelas 15h20m com o seguinte texto: “Obrigado por contactar a A....
Face ao elevado número de pedidos, estimamos responder à sua questão no prazo de 3 dias úteis.
Agradecemos a sua compreensão.
Serviço de Apoio ao Cliente A....”, conforme documento junto com a p.i. como doc. nºs 6, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
5)O signatário da p.i., em nome do A., respondeu ao email da R. referido em 4) com um novo email com o seguinte teor:
“Para o assunto em questão 3 dias úteis já é tarde, quando se pretende travar a entrega de encomendas”, conforme documento junto com a p.i. como doc. nºs 7, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
6)O email referido em 5) não surgiu qualquer resposta.
7)O A. no dia 16/05/2020 enviou uma carta à R. por correio expresso, com o seguinte teor:
“Exmos. Senhores:
No dia de ontem (15-04-2020) fui vítima de uma burla e conduta fraudulenta por parte de terceiros que me envolve como pretenso comprador de equipamento na V/empresa quando de facto nada comprei.
As compras em causa são compras on-line e ascendem ao montante global de 33.542,84€.
No dia de ontem quando detetei a burla em que caí de imediato participei o crime às autoridades conforme cópia da participação que junto (doc. nº 1).
O meu advogado depois de algumas tentativas para os vossos contactos telefónicos (linhas de apoio ao cliente) ... e ..., que se mostraram infrutíferas, enviou um email para “cliente@A.....pt” conforme cópia que também junto (doc. nº 2).
Pelo presente sou a reafirmar o pedido daquele para que cancelem as entregas das compras aparentemente feitas por mim e que resultam do extrato bancário cuja cópia junto (doc. nº 3).
Mais solicito que me façam o retorno do dinheiro em causa que não corresponde como já referi a qualquer compra por mim efetuada mas antes a uma fraude que fui vítima.
Anexo os documentos que fui referindo ao longo do texto da presente carta. Sem outro assunto.
Atenciosamente”, conforme documento junto com a p.i. como doc. nº 8, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8)A carta referida em 7) foi recepcionada nos serviços da R. no dia 17/04/2020 às 10h02m02s.
9)A R. procedeu à devolução para a conta bancária do A. da quantia total de € 5.007,98, tendo-o feito parcelarmente no dia 25/04/2020 onde devolveu € 499,99 por duas vezes e em 30/04/2020, onde devolveu de uma vez € 2.249,00 e de outra vez € 1.759,00.
10)A R. procedeu à devolução referida em 9) porque anulou a entrega de duas encomendas.
11)A R. não devolveu ao A. qualquer outra quantia.
*
IV-DIREITO
O Autor pretende que a Ré seja condenada a devolver-lhe a quantia de € 35.111,69 correspondente ao preço global das compras celebradas por terceiros desconhecidos com dinheiro obtido da sua conta bancária através de uma alegada actuação ilícita.
Baseou o seu pedido no facto de ter sido vítima de uma artimanha que o levou a fornecer a terceiros desconhecidos os dados da sua conta bancária através da qual fizeram encomendas de produtos comercializados pela Ré, facto que comunicou prontamente a esta última para evitar a entrega dos objectos adquiridos, o que não conseguiu na sua totalidade.
Considera que a Ré actuou ilicitamente por não ter cancelado a entrega dos bens adquiridos com dinheiro indevida e ilegitimamente transferido da sua conta bancária, tendo feito uma apropriação desse dinheiro, violando, assim, o seu direito de propriedade.
A Ré defendeu que após a celebração dos contratos de compra e venda e aceitação da encomenda, a propriedade dos bens passa a ser do adquirente dos mesmos, não podendo, por isso, anular a entrega sob pena de ser responsabilizada pelo comprador. Não tinha de assumir a queixa de fraude como verdadeira nem sabia nem sabe se o alegado pelo Autor é verdadeiro, não lhe cabendo qualquer função fiscalizadora da proveniência do dinheiro.
A sentença acolheu a posição da Ré e, fundamentando que não se verificam os pressupostos da responsabilidade extracontratual ou contratual, esclareceu que “(…) mesmo a demonstrar-se que o A. foi vítima da fraude que descreve nos autos e que permitiu que terceiros utilizassem quantias de sua propriedade para adquirir bens junto da R., como bem refere a R., com as comunicações que lhe foram efectuadas, esta não ficou a saber que o A. foi vítima dessa fraude.(…)
Contudo, não se vislumbra que dessa queixa decorra alguma obrigação legal para a R., porque obrigação contratual manifestamente não existe, de a assumir como verdadeira e, consequentemente, que sobre a R. impendesse o dever de não proceder à entrega dos bens.
Acresce que na sentença também não se considerou que “a actividade de comércio electrónico desenvolvida pela Ré, seja suscetível de, por si só, implicar um risco acrescido para terceiros de ocorrência de danos, relativamente ao verificado com o comércio em geral, uma vez que os meios de pagamento passíveis de serem utilizados em ambas são absolutamente coincidentes.”
Em sede recursiva a argumentação a favor da responsabilização da Ré baseou-se no incumprimento do dever de cuidado por não ter anulado a entrega das encomendas e na perigosidade da actividade por si desenvolvida de comércio electrónico, ou seja, na violação dos artigos 483° n° 1 e 2 e 493° n° 2 ambos do C.Civil.
A divulgação de produtos e serviços comercializados à escala mundial, mediante a utilização de plataformas digitais numa economia globalizada, possibilitou o alargamento do mercado, proporcionando ao consumidor, de forma célere, cómoda e simples, o acesso a bens e serviços.
Na verdade, com a introdução das novas tecnologias, sempre em evolução, o consumidor, a partir do seu domicílio, com rapidez, economia de meios e de esforço, tem acesso a uma multiplicidade de bens e serviços, comercializados a nível mundial, podendo efectuar encomendas, através do seu aparelho informático ou do telemóvel, com extrema facilidade.
Sobre esta temática do comércio electrónico, o Dec.-Lei n.º 7/2004 de 7.01 transpôs para ordem jurídica interna a Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 08.06.2000.
Resulta do artigo 29.º que o legislador, como observa Sebastião Pizarro[1], assumiu a posição maioritária dos Estados Membros sobre o momento da conclusão do contrato, considerando que o aviso de recepção se destina apenas a assegurar a efectividade da comunicação electrónica e não a exprimir uma posição negocial.
Pinto Monteiro esclarece que “Os contratos à distância podem ser concluídos por via informática ou telemática, podendo o computador ser utilizado de modos diversos designadamente como meio de simples transmissão ou comunicação da declaração negocial, como meio de oferta ao público (ou de simples proposta de contratar) e de cumprimento imediato e automático do contrato em condições “standard” absolutamente imodificáveis e como meio de integração ou de concretização da declaração negocial.”[2]
Portanto, nas palavras de Sebastião Nobre Bizarro[3] “O contrato electrónico pode ser definido “como um contrato celebrado sem a presença física das partes, no qual as respectivas declarações de vontade são expressas através de equipamentos electrónicos de tratamento e armazenagem de dados, ligados entre si.”
No caso sub judice não estão em causa directamente os negócios de compra e venda celebrados à distância, através do site da Ré, na internet, mas tão-só saber se ocorreu violação do direito do Autor concretamente do direito de propriedade (do dinheiro alegadamente utilizado por terceiros desconhecidos) por não terem sido canceladas as entregas das encomendas por parte da Ré, vendedora.
Os pressupostos da responsabilidade extracontratual estão previstos no art. 483º, nº 1, do C.Civil: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Nesta conformidade, a questão nuclear consiste em saber se a Ré ao decidir não cancelar a entrega das encomendas após ter recebido a comunicação do Autor a queixar-se de ter sido vítima de fraude, violou o direito (de propriedade do dinheiro) do Autor ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios.
A resposta, tal como se concluiu na sentença, é negativa.
A Ré estava obrigada, mediante o vínculo emergente dos contratos de compra e venda celebrados à distância, ao cumprimento da obrigação de entrega do objecto desses negócios (cfr. art. 874.º do CC).
Com efeito, o contrato de compra e venda, para além da transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, tem como efeito essencial, do lado do vendedor, a obrigação de entregar a coisa, sob pena de incumprimento contratual (cfr. arts. 879.º a) e b) e 882.º do C.Civil).
Assim, a utilização (abusiva ou lícita) de dinheiro pertencente a outrem pelo comprador para pagamento do preço convencionado constitui res inter alios em relação ao vendedor, não sendo justificável para este último o incumprimento da obrigação de entrega da coisa com fundamento numa alegada fraude.
Numa palavra, a Ré estava adstrita ao cumprimento do efeito essencial do acordo relativo à entrega dos bens encomendados, que comercializa no seu site da internet, assumido nos contratos de compra e venda, celebrados à distância com o comprador.
Por outro lado, nenhuma responsabilidade lhe pode ser imputada (como não é) no que concerne à alegada fraude que o Autor se queixou ter sido vítima, através da qual ficou desapossado do dinheiro utilizado por terceiros nas compras dos produtos em causa.
Assim sendo, inexiste violação do invocado direito do Autor e consequentemente, não se verifica qualquer nexo de causalidade entre a conduta legítima da Ré e o empobrecimento daquele.
Relativamente à eventual responsabilidade da Ré que se traduziria no exercício de uma actividade perigosa, com inversão do ónus da prova, afigura-se-nos que, também nesta parte, a sentença não merece reparo.
Segundo o artigo 493.º, n.º 2 do C.Civil “Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.”
Por conseguinte, a perigosidade a que alude o mencionado preceito legal advém da natureza da própria actividade ou dos meios empregados.
Apesar da contratação através de sites da internet não ser isenta de riscos designadamente para o comprador consumidor (parte considerada mais fraca em confronto com um profissional ou sociedade comercial) não se enquadra na mencionada previsão legal porquanto o meio deve ser qualificado como perigoso, o que não sucede com a internet.
Reconhece-se que a contratação à distância poderá potenciar uma maior insegurança aos intervenientes nomeadamente quanto ao pagamento do preço e/ou recebimento do objecto comprado.
No entanto, não se pode confundir a possibilidade de existirem riscos, como sucede no comércio em geral, que poderão não se verificar, com meios susceptíveis de, em abstracto, produzirem danos a terceiros.
Vaz Serra, a quem se deve a inclusão desta norma no código civil, por influência da doutrina italiana, definiu “atividades perigosas” como as “que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades”.[4]
A celebração dos contratos à distância, através da utilização da internet, não configura uma actividade susceptível de causar, com acentuada probabilidade em comparação com a contratação por outros meios, danos a terceiros, ressarcíveis com recurso ao instituto da responsabilidade extracontratual.
Neste sentido acompanhamos a conclusão da sentença “(…) não podemos considerar que a actividade de comércio electrónico desenvolvida pela Ré, seja suscetível de, por si só, implicar um risco acrescido para terceiros de ocorrência de danos, relativamente ao verificado com o comércio em geral, uma vez que os meios de pagamento passíveis de serem utilizados em ambas são absolutamente coincidentes.
E tal como sustentou a Recorrida, o vendedor não tem obrigação de fiscalizar a proveniência das quantias monetárias com as quais o comprador procede ao pagamento dos bens que coloca à venda.
Em resumo, o vendedor de bens, divulgados e comercializados através da internet, não pode ser responsabilizado por não ter cancelado a entrega das encomendas a que estava obrigado contratualmente, pese embora ter sido informado que o comprador pagou com dinheiro pertencente a terceiro, obtido de forma fraudulenta.
Considerando as razões aduzidas, impõe-se concluir pela inexistência de fundamento legal para julgar procedente a pretensão de devolução do dinheiro retirado da conta bancária do Autor, alegadamente de forma ilícita, situação em que reconhece ter tido directa intervenção por não ter suspeitado que estava a ser vítima de uma burla.
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V-DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso e consequentemente, confirmam a sentença.
Custas pelo Recorrente.
Notifique.

Porto, 5/12/2023
Anabela Andrade Miranda
Lina Baptista
Anabela Dias da Silva
___________________
[1] Comércio Electrónico, Almedina, p. 36.
[2] A Responsabilidade Civil na Negociação Informatizada, Estudos do Direito do Consumidor, 1999.
[3] Ob. cit., Almedina, p. 73.
[4] Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades, nota 33, BMJ, n.º 85, p.378; na jurisprudência, v. entre outros, Ac. STJ de 25/05/2023, TRL de 07/09/2015 e de 22/06/2021 e TRE de 20/01/2010, disponíveis em www.dgsi.pt.