CONTRATO DE SEGURO
RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
DEVERES DA SEGURADORA
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

A aplicação da sanção prevista no art. 40.º, n.º 2, do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, instituído pelo DL n.º 291/2007, de 21 de agosto, seja na modalidade de acréscimo de juros, seja na modalidade de pagamento da quantia de 200 euros por cada dia de atraso no cumprimento dos deveres da seguradora, pressupõe a existência de lesado, na aceção de titular de direito de indemnização ante a seguradora, por danos decorrentes de sinistro automóvel, fundada em responsabilidade civil de ato de terceiro coberta por seguro obrigatório.

Texto Integral

PROCESSO N.º 1641/22.0T8MAI.P1
[Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível da Maia - Juiz 1]

Relator: Fernando Vilares Ferreira
1.º Adjunto: João Diogo Rodrigues
2.ª Adjunta: Márcia Portela

SUMÁRIO:
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EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Desembargadores da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
RELATÓRIO
1.
A..., UNIPESSOAL, LDA. intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra B... – COMPANHIA DE SEGUROS, S. A., pedindo a condenação desta no pagamento do montante global de 16.958,48€, sendo 1.714,72€ a título de danos sofridos no veículo de matrícula que identifica, 4.043,76€ a título de danos patrimoniais por privação do uso, ambas as quantias acrescidas de juros de mora à taxa legal dos juros comerciais, desde a data do sinistro integral pagamento, e 11.200,00€ por falta de pronúncia da Ré, nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 291/2007, acrescida de juros de mora previstos no artigo 40.º do mesmo diploma legal.
Alegou, para tanto, em síntese, que no dia 11.10.2021 ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes os veículos de matrícula ..-..-UI, segurado na Ré, e ..-ZB-.., sua propriedade, cuja responsabilidade atribuiu ao condutor do primeiro; como consequência, o seu veículo sofreu danos materiais que motivaram a sua paralisação; a Ré não se pronunciou quanto à responsabilidade pelo sinistro, devendo, por isso, ser condenada nos termos previstos na lei do seguro automóvel.
2.
A Ré contestou, impugnando parte da factualidade integrante da causa de pedir, pugnando pelo julgamento da ação conforme prova a produzir.
3.
Foi proferido despacho saneador que afirmou a regularidade da instância; procedeu-se à fixação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova.
4.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte DISPOSITIVO:
[Por todo o exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e em consequência condeno a Ré a pagar á Autora a quantia de 11.200,00 €.
Condeno Autora e Ré no pagamento das custas da acção, na proporção do decaimento.]
5.
Inconformado com a sentença, a Ré interpôs o presente recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, assente nas seguintes CONCLUSÕES:
1.ª – A douta Sentença não pode, de todo em todo, manter-se.
2.ª – A mesma viola diversos princípios legais, sendo certo que quer em sede de matéria de facto quer em sede de direito a mesma é iníqua e, portanto, tem que ser revogada e substituída por decisão que absolva a Recorrente da totalidade dos pedidos formulados pela Recorrida.
3.ª – Não assiste qualquer razão ao Tribunal a quo quando condena a Ré por violação do disposto no art.º 40.º do referido diploma legal.
4.ª – O n.º 2 do referido preceito legal refere que o atraso na resposta fundamentada constituiria a Ré/Seguradora como devedora para com o lesado e para com o ISP, em parte iguais, de uma quantia de €200,00 por cada dia de atraso.
5.ª – Não tendo a Ré sido considerada como responsável pela regularização de qualquer sinistro, a Autora não é uma lesada para os efeitos do disposto no art.º 4.º, n.º 2 do Dec.-Lei 291/2007.
6.ª – O incumprimento do dever de diligência por parte da seguradora gera o direito previsto no artigo 40 n.º 2 do DL. 291/2007 de 21 de Agosto, que deverá ser exercido por cada um dos seus titulares, lesado e ISP.
7.ª – Ora, não tendo resultado dos autos que a Autora seja lesada, não poderia a Ré ser condenada nos termos do já citado art.º 40.º do Dec.-Lei n.º 291/2002.
8.ª – No preâmbulo do citado diploma refere-se que “No presente vector das soluções centradas no aumento da protecção dos lesados (…)”, ou seja, todas as normas de protecção previstas no diploma se prendem com a existência de lesados.
9.ª – Ora, inexistindo lesado, não poderá o art.º 40.º n.º 2 do Dec.-Lei 291/2033 ser aplicado.
10.ª – Sem prescindir, sempre esta condenação se trataria de um manifesto abuso de direito pois a versão do sinistro não resultou como provada e a Autora estaria a beneficiar de uma ausência de resposta da Ré relativamente à assumpção (ou não) de um sinistro que não teve lugar ou que não teve responsabilidade do condutor do veículo segurado na Ré.
11.ª – A douta sentença violou, assim, por erro de interpretação e aplicação, as normas constantes dos art.º 40.º, n.º 2 do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto e art.º 334.º do Código Civil.
6.
A Ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, formulando para tanto as seguintes conclusões:
I – A Recorrente não cumpriu – nem alega que cumpriu – o disposto do n.º 2 do artigo 40.º do Regime de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil, regulado pelo Decreto-Lei 291/2007 de 21-08 que refere que o atraso na resposta fundamentada constituiria a Ré / Seguradora como devedora para com o lesado e para com o ISP, em partes iguais, de uma quantia de € 200,00 por cada dia de atraso.
II – Não se verifica qualquer contradição entre aquilo que foi a prova produzida e as conclusões a que chegou a Meritíssima Juíza do tribunal a quo.
III – Na ausência total de qualquer argumento que justificasse um recurso que permitisse uma revogação da sentença recorrida, a Recorrente decidiu fazer uma interpretação contra legem da norma em causa, alegando que a Recorrida não foi lesada no acidente, o que não faz qualquer sentido, como a seguir se demonstrará.
IV – Por um lado, ficou provado que a Autora foi lesada no acidente, como se pode constatar nos factos dados como provados; o que não resultou como provado foi que o condutor do veículo segurado pela Ré, tivesse dado causa ao acidente, como resulta dos factos não provados.
V – Por outro lado, mesmo que hipoteticamente se considerasse que a ora Recorrida não tinha sido lesada, a questão aqui em causa e que foi levada à apreciação do tribunal a quo foi o incumprimento do artigo 36.º n.º 1 al. e/ do DL n.º 291/2007, de 21/08 e a consequente aplicação do nº 2 do art.º 40.º do DL n.º 291/2007, verificando-se, como foi o caso, o atraso na emissão de pronúncia quanto ao acidente.
VI – Tratam-se de duas questões bem distintas, como aliás vem bem explicado no próprio acórdão invocado pela Recorrente, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10/09/2013 no Processo n.º 2463/12.2TBBRG.G1, disponível in www.dgsi.pt.
VII – Efectivamente, uma questão prende-se com a responsabilidade civil da seguradora, enquanto que outra foi alicerçada no preceituado do n.º 2 do art. 40.º do DL 291/2007 que consagra uma sanção punitiva destinada a compelir a seguradora a pronunciar-se sobre a responsabilidade do sinistro.
VIII – Indubitavelmente, a Recorrente nunca respondeu à ora Recorrida, do que resulta forçoso concluir que não se verificou nenhum erro na apreciação da prova produzida, como alega a Recorrente.
II.
OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil).
Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, a única questão carecida de resposta por via deste recurso traduz-se em saber se se verificam ou não os pressupostos que justificam a condenação da Ré seguradora no pagamento de indemnização ao Autor com fundamento na norma do n.º 2 do artigo 40.º do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo DL n.º 291/2007, de 21 de agosto.
III.
FUNDAMENTAÇÃO
1.
OS FACTOS
2.1.
Factos provados
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à indústria de transporte ocasional de passageiros em veículos automóveis ligeiros.
2. A Autora é sócia da C....
3. Entre os táxis propriedade da Autora e ao seu serviço, encontra-se o veículo automóvel de marca Skoda, modelo ..., com matrícula ..-ZB-...
4. O veículo automóvel de matrícula ..-ZB-.. usa a licença n.º ..., emitida pela Câmara Municipal ... em 11.10.2019.
5. No âmbito da sua atividade, no dia 11.10.2021, pelas 22h15, o referido veículo estava a regressar à sua postura no Aeroporto ..., sendo conduzido pelo motorista AA, gerente da Autora.
6. Era noite, o tempo estava bom, e o local é iluminado.
7. O pavimento, em betuminoso, em bom estado de conservação, estava seco.
8. A via com cerca de 7,10 metros de largura, no local configura uma curva aberta ligeiramente à direita com cerca de 300 metros de extensão, de ampla visibilidade.
9. Essa via tem duas faixas de rodagem no mesmo sentido de marcha, ambas com lombas, separadas por pinos de borracha com cerca de 50 cm de altura, sendo proibido ultrapassar e circular a mais de 30km/h.
10. À data o veículo automóvel com a matrícula ..-..-UI tinha a sua responsabilidade civil por circulação terrestre transferida para a Ré, B... Companhia de Seguros SA, através de contrato de seguro automóvel, titulado pela apólice n.º ....
11. Após o embate, o condutor do veículo com a matrícula ..-..-UI saiu local do acidente, não prestando qualquer auxílio ao condutor do veículo automóvel ZB.
12. O condutor do veículo ZB deslocou-se ao Hospital ....
13. No dia 12.10.2021, o veículo automóvel ZB deu entrada na oficina reparadora escolhida pela Autora, D... Lda, sita na Rua ..., Porto.
14. No dia 20.10.2021, o perito avaliador, realizou uma perícia ao veículo ZB.
15. A Autora autorizou a desmontagem para a realização da peritagem.
16. Nos termos do relatório de peritagem realizada a 20.10.2021, o total da reparação ascendia ao valor global de 1.714,72 €, sendo 360,00 € para mão de obra de peças (mecânico), 750,68 € para peças, 171,00 € para mão de obra de pintura e 112,40 € para materiais de pintura, tudo para reparação da mala e seu interior, para-choques e farolins traseiros.
17. O Sr. Perito estimou como sendo necessário três dias para a reparação do veículo, contudo não autorizou a reparação.
18. Até à data de 22.03.2022 a Ré não comunicou à Autora se aceitava ou declinava o sinistro e não autorizou a reparação do veículo.
19. O gerente da Autora solicitou ao garagista que fizesse a reparação do veículo automóvel.
20. O garagista procedeu ao arranjo do veículo automóvel ZB.
21. O acidente foi participado à Ré no dia 12.10.2021.
22. O veículo da Autora esteve a circular e a laborar.
2.2.
Factos não provados
Dos factos tidos com relevância para a decisão, Tribunal de que vem o recurso julgou não provados os seguintes:
1. A Autora tem ao seu serviço mais de dez táxis.
2. O veículo de matrícula ..-ZB-.. tinha a sua responsabilidade civil por circulação terrestre transferida para a E... - Companhia de Seguros S.A através de contrato de seguro automóvel, titulado pela apólice n.º ....
3. O referido veículo automóvel está afeto ao transporte ocasional de passageiros e a prestação de serviços de táxi, em dois turnos diários.
4. O veículo circulava a menos de 30 KM/H, na faixa de rodagem da direita (Via do Aeroporto) entre o final da ... e o acesso às chegadas do Aeroporto ... (partidas/cargas/Vips), a passar as lombas de redução de velocidade aí existentes, quando foi embatido na traseira pela frente do veículo automóvel com a matrícula ..-..-UI, táxi com a licença n.º ..., propriedade da firma F... Lda., que circulava no mesmo sentido de marcha, na mesma faixa de rodagem e imediatamente atrás do veículo ..-ZB-...
5. O garagista procedeu à reparação do veículo automóvel ZB, pela quantia de 1.714,72 €, constante no relatório de peritagem.
6. O veículo ZB esteve imobilizado/paralisado e impossibilitado de circular desde a data da eclosão do acidente até 22.11.2022.
7. A Ré transmitiu à Autora e ao seu sócio gerente as dúvidas que se suscitaram quanto às circunstâncias do sinistro.
8. A Ré transmitiu à Autora, por carta, em 26.04.2022, e ao seu sócio gerente que os resultados da averiguação que a mesma solicitara a uma entidade externa ainda não tinha apresentado conclusão definitivas e, daí não estar, ainda, em condições de se pronunciar definitivamente.
9. Tal informação foi prestada por carta e telefone.
2.
OS FACTOS E O DIREITO
2.1.
Conforme deixámos enunciado supra em III), importa que nos pronunciemos sobre se assiste ao Autor o direito de indemnização que lhe foi reconhecido na sentença recorrida, tendo por base a norma do n.º 2 do artigo 40.º do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo DL n.º 291/2007, de 21 de agosto (RSSORCA).
Para decidir como o fez, a sentença sob recurso desenvolveu a seguinte argumentação:
[Pretende, ainda, a Autora a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização por falta de pronúncia, nos termos previstos no Decreto-lei nº 291/2007, acrescida de juros de mora previsto no artigo 40º, do citado diploma.
Vejamos.
O citado diploma regula o Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, estabelecendo o Capítulo III um conjunto de regras e procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.
Estipula o artigo 36º, nº 1, alínea e), sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento eletrónico.
Por seu turno, o artigo 38º, do mesmo diploma, estabelece que a posição prevista na alínea e) do n.º 1 ou no n.º 5 do artigo 36.º consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte.
Não comunicando, ou não comunicando no prazo e na forma prevista são devidos juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável, sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal, nos termos estipulados pelo nº 2, do citado preceito.
No caso, não se verificando a responsabilidade do veículo segurado na Ré pela eclosão do sinistro não há lugar ao pagamento da indemnização e por conseguinte dos juros estipulados.
Não obstante, estipula o artigo 40º, do citado diploma, que a comunicação da não assunção da responsabilidade, nos termos previstos nas disposições identificadas no n.º 1 dos artigos 38.º e 39.º, consubstancia-se numa resposta fundamentada em todos os pontos invocados no pedido nos seguintes casos:
a) A responsabilidade tenha sido rejeitada;
b) A responsabilidade não tenha sido claramente determinada;
c) Os danos sofridos não sejam totalmente quantificáveis.
Acrescenta o nº 2 que em caso de atraso no cumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas no nº 1 dos artigos 38.º e 39.º, quando revistam a forma constante do número anterior, para além dos juros devidos a partir do 1.º dia de atraso sobre o montante previsto no n.º 2 do artigo anterior, esta constitui-se devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de (euro) 200 por cada dia de atraso.
No caso dos autos não resultou dos factos provados que a Ré, antes da contestação, tenha tomado posição sobre o sinistro participado violando desse modo o seu dever de comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), do artigo 36º, informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento eletrónico. O incumprimento do dever de resposta fundamentada constitui a seguradora como devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de 200,00 € por cada dia de atraso.
No caso, tendo o sinistro sido participado a 12 de Outubro de 2021 a Ré tinha o prazo de 30 dias úteis para se pronunciar contados do dia 14 de Outubro de 2021, ou seja, até 26 de Novembro de 2021. Porém, a Ré só se pronunciou em sede de contestação deduzida em 13.06.2022.
Deve, assim, a Ré ser condenada no pagamento da quantia de 100,00 €, diários, desde 29 de Novembro de 2021, na quantia de 11.200,00 €, conforme peticionado.]
Adiantamos desde já que a interpretação do regime jurídico em apreço feita pelo Tribunal recorrido não se coaduna com o que vemos como boa aplicação do direito no caso concreto.
As leis apresentam-se-nos como “enunciados linguísticos (textos) através dos quais o legislador instrui o julgador sobre os critérios que devem presidir à resolução de conflitos concretos entre pessoas, critérios determinados pelo mesmo legislador no exercício da sua função política. Não surpreende, por isso, que o problema da interpretação das leis ainda seja um dos problemas fundamentais da aplicação do Direito, apesar de hoje ser reconhecido que o momento crucial da aplicação do Direito deixou de ser a interpretação da norma para passar a ser a resolução do caso”[1].
Sendo indiscutível que toda a norma jurídica carece de interpretação mesmo nos casos em que se expressa de forma clara em termos literais, resulta do art. 9.º do CCivil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (n.º 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3).
No caso, a norma jurídica hipoteticamente adequada a solucionar o problema jurídico que nos é posto encontra expressão no n.º 2 do art. 40.º do RSSORCA, nos seguintes termos: “Em caso de atraso no cumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas nos n.ºs 1 dos artigos 38.º e 39.º, quando revistam a forma constante do número anterior, para além dos juros devidos a partir do 1.º dia de atraso sobre o montante previsto no n.º 2 do artigo anterior, esta constitui-se devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de (euro) 200 por cada dia de atraso”.
Inserida no capítulo III do título II do regime jurídico em apreço – que “fixa as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel” (cf. art. 31.º) –, a norma do cit. art. 40.º, n.º 2 assume natureza sancionatória para a seguradora incumpridora do dever de diligência no respeitante à celeridade na resolução que lhe cabe do conflito despoletado pela participação de um sinistro coberto pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
A sanção prevista pela cit. norma assume duas componentes: 1) agravamento para o dobro dos juros sobre o montante devido pela seguradora ao lesado a título de indemnização, quer esta seja fixada pelo tribunal ou resulte de proposta da seguradora aceite pelo lesado; 2) obrigação ante o lesado e o Instituto de Seguros de Portugal, de uma quantia de 200€ por cada dia de atraso.
No caso, a decisão recorrida afastou a possibilidade de considerar a aplicação da primeira das referidas componentes sancionatórias, e pela razão lógica de que nenhum montante é devido pela Ré à Autora a título de indemnização, em razão de a Autora não ter logrado provar os pressupostos geradores de responsabilidade para a Ré.
Mas se é assim, como não pode deixar de ser, então também se justifica, a nosso ver, a inaplicabilidade da mencionada segunda componente sancionatória.
Em primeiro lugar, porque a letra da lei aponta em tal sentido, ao impor a segunda componente sancionatória como complemento da primeira – “para além dos juros devidos…” –, o que nos leva a concluir que não se verificando os pressupostos da sansão principal (juros em dobro), logicamente não há lugar a sanção complementar (200€ por cada dia de atraso).
Depois, e porventura mais decisivo, importará atender, como defende a Apelante, ao conceito de “lesado” para efeitos de aplicação do normativo em questão.
Ora, o sentido do conceito de “lesado”, presente em múltiplas normas do regime jurídico que vimos apreciando, incluindo no n.º 2 do art. 40.º, só na relação jurídica estabelecida com a seguradora se poderá compreender, e mediante a qualificação desta como “lesante”.
Assim, “lesado”, para o efeito, não poderá considerar-se uma pessoa simplesmente prejudicada pela ocorrência de um sinistro automóvel, ou mesmo uma pessoa que tenha reclamado perante uma seguradora a reparação de prejuízos decorrentes de um acidente de viação, exigindo-se antes que se trate de uma pessoa que, para além de reunir aqueles pressupostos, seja titular de um direito de indemnização ante a seguradora, fundada em responsabilidade civil de terceiro, coberta por contrato de seguro obrigatório.
Apenas tal conceito de “lesado” se mostra, a nosso ver, compatível com a unidade do regime de seguro obrigatório em causa, e mesmo com a unidade do nosso sistema de responsabilidade civil no seu todo, assente na ocorrência de um prejuízo efetivo resultante de um ato ilícito e culposo.
Por todo o exposto concluímos não assistir à Autora o direito de receber da Ré qualquer montante com fundamento na norma do art. 40.º, n.º 2, do RSSORCA, e daí que tenha o recurso de proceder, com a consequente revogação da decisão recorrida.
2.2.
Tendo dado causa às custas do recurso e da ação, a Apelada/Autora constitui-se na obrigação de as suportar (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais).
IV.
DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, julgamos o recurso procedente e, consequentemente, decidimos:
a) Alterar a decisão recorrida e absolver a Ré da totalidade do pedido deduzido pela Autora; e
b) Condenar a Apelada/Autora no pagamento das custas do recurso e da ação.

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Porto, 5 de dezembro de 2023
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Vilares Ferreira
João Diogo Rodrigues
Márcia Portela
_________________
[1] Cf. ANTÓNIO AGOSTINHO GUEDES, A Importância do Texto da Lei na Interpretação de Normas Jurídicas, acessível em https://www.direitoemdia.pt/magazine/show/89.