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CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
AUSÊNCIA DE DOR OU SOFRIMENTO
SIGNIFICÂNCIA PENAL
Sumário
I–Integra o elemento objetivo do tipo legal de crime de ofensas à integridade física no âmbito de espetáculo desportivo previsto e punido pelo art. 33º/2 da Lei n.º. 39/2009, de 30/07 na redação introduzida pela Lei n.º 40/2023, de 10/08, com remissão para o disposto no art. 143º/1 do Código Penal, o ato de quem, encontrando-se a assistir a jogo de futebol, se debruça da bancada para desferir com a sua mão aberta uma pancada na zona auricular de um jogador, ainda que não provoque dor ou sofrimento.
II–Tratando-se de crime de dano quanto ao bem jurídico protegido, foi o mesmo atingido em cheio pela atuação do arguido que, estabelecendo um contacto físico indesejado com o ofendido, atentou contra a sua incolumidade corporal; também se cumpriu enquanto crime de resultado (material) quanto ao objeto da ação, pois que a conduta produziu um resultado: um impacto concretizado na zona da cabeça do visado, com o qual se consumou o crime.
III–A não prova (ou inexistência) de dor e a inexistência de lesão física visível, não são determinantes da insignificância da lesão do bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime de ofensa à integridade física que exclui a tipicidade.
IV–Não tem no caso aplicação a doutrina da insignificância penal, conhecida no direito romano pela máxima latina de minimis non curat praetor, para situações em que a lesão do bem jurídico protegido é de tão reduzida expressão que pode considerar-se insignificante, excluindo-se do campo teleológico de aplicação do tipo legal condutas que formalmente são típicas, mas que materialmente o não são.
Sumário:(da inteira responsabilidade da relatora)
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
1.–Vem o presente recurso interposto pelo arguido AA…. da sentença proferida em processo comum por tribunal singular, pelo qual foi condenado na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 6,50€ pela prática como autor material de 1 (um) crime de ofensas à integridade física contra agentes desportivos, previsto e punido pelos artigos 33.º e 34.º, em conjugação com o artigo 3.º, als. a), h) e n), da Lei 39/2009, de 30 de julho. 2.–O arguido recorrente peticiona a sua absolvição da prática deste crime de ofensa à integridade física, formulando para tanto as seguintes conclusões [transcrição]:
«(…) A)-Os presentes autos têm como base uma alegada agressão, por parte do arguido a um jogador de futebol, durante um jogo a que o arguido assistia. B)-Da decisão do Tribunal a quo, retira-se - Ponto 4 dos Factos Provados - que o que o arguido "(...) desferiu com a sua mão aberta, uma pancada na cabeça, na zona auricular, de ……". C)-Debruça-se o presente recurso por um lado, sobre exatamente qual foi a ação do arguido e, por outro, se a ação que existiu configura, ou não, a prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelos artigos 33.° e 34.° ex vi artigo 3.°, al. a), da Lei 39/2009, de 30/07. D)-O tipo de crime embora em tudo se assemelhe ao previsto e punido no artigo 143.° do CP, diferencia-se pelo enquadramento legal, nomeadamente tendo o crime em causa nos presentes autos natureza pública, ao contrário daquele que, como se sabe, é semi-público. E)-Da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo, aceita, sem reserva os pontos 1, 2, 3, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 F)-Aceita parcialmente os pontos 5, pois se é certo que não resultaram lesões, é igualmente certo que não houve agressão. G)-Considera incorretamente julgados o ponto 4 (da forma como o Tribunal o configura) e o ponto 6. H)-O arguido aceita que houve uma interação mas que tal interação não foi uma agressão e, seguramente não ofendeu a integridade fisica de ninguém, não se consubstanciou em nenhum mau trato, nem prejudicou o bem estar fisico do agente visado. I)-Uma ofensa à integridade fisica, por mais voltas que se deem, e independentemente do contexto legal, só é um crime se houver lesão, ainda que minima ao bem-estar do visado. Não foi o que aqui aconteceu. J)-Da versão do arguido, retira-se que, perante a confusão que se instalava e que, note-se com atenção, envolvia o seu filho que era também jogador em campo, o arguido terá tentado impor calma desde a bancada onde se encontrava. K)-Com a mão terá tocado algures na zona da cabeça de um jogador, recordando que a própria acusação refere não terem resultado lesões, tendo o Tribunal a quo, sustentado exatamente o mesmo no ponto 5 dos factos provados. L)-O relato do arguido é perfeitamente consentâneo com o do pretenso ofendido, sendo que as passagens trazidas em sede de motivação e ali claramente definidas, demonstram que o mesmo apenas procurou acalmar o outro interveniente. M)-Sendo para mais que o mesmo interveniente não refere coisa diferente, N)-De notar quanto às passagens relevantes nas declarações do arguido as dos seguintes minutos (tendo por referência o ficheiro áudio das declarações do mesmo): 00:11; 01:23; 02:30; 05:07;06:54;08:13; O)-Grosso modo, nos elementos centrais e relevantes do depoimento do arguido, o mesmo assume que teve uma ação, procurando acalmar o jogador que estava exaltado, num quadro de ânimos a avolumarem-se, sendo que (algo que a Acusação omitia) o filho do próprio arguido era um dos jogadores em campo. P)-E tal toma maior dimensão quando o alegado ofendido, a testemunha ……, confirmam o relato e dá ao tema a importância que ele tem, terá havido um toque, que não teve qualquer reflexo ou desconforto para o bem estar ou saúde do mesmo. Q)-Relata-o claramente aos minutos 03:10; 05:26; 05:56; 07:54; 09:03; 10:09; R)-Destes depoimentos diferentes, retiramos no essencial, uma enorme congruência entre as declarações do arguido e o depoimento da testemunha. S)-Num paralelismo com o futebol, poder-se-ia perguntar se a intensidade do ato, e a intenção do mesmo, seriam suficientes para criminalizar o facto. T)-Aqui, muito respeitosamente o recorrente discorda do Tribunal a quo. U)-Num derradeiro momento de análise de prova, se não se referem os depoimentos dos dois agentes de autoridade presentes na ocorrência, não é com pretensão de esconder o que quer que seja, pois que ambos os depoimentos, vão no sentido de não se ter tratado de nenhuma ato de gravidade, tentando, aliás, ambos mitigarem a responsabilidade do arguido e considerando que tratou-se de ocorrência normal e sem relevo. V)-A mera análise das declarações do arguido e do depoimento da testemunha, são suficientes para corroborarem a matéria do presente Recurso, consubstanciada com a matéria de Direito que agora se discorre. W)-Independentemente do enquadramento legal, um crime de Ofensa à Integridade Física, é o mesmo seja no âmbito do Código Penal, seja no quadro de Lei especial. Trata-se de um crime material e de dano. X)-Vai nesse sentido o Douto Acórdão da Veneranda Relação do Porto, datado do preciso mês em que os factos ocorreram, que, em sumário defende que "O crime de ofensa à integridade física é um crime material e de dano, cujo resultado consiste na lesão do corpo ou da saúde de outrem; por ofensas no corpo deve entender-se, "todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante"; Y)-O Tribunal a quo, faz questão de notar que esteve atento às alegações da Defesa, quando se alegou que o contacto existente, não assume a dignidade bastante ou suficiente para merecer a tutela penal e, por não ter resultado provado que o ofendido tivesse sentido dor. Z)-A defesa alegou mais do que isso, alegou que não só não houve dor como o que o pretenso lesado (que expressamente disse não querer ser tido como tal) refere um toque, que não só não lhe trouxeram dor, como qualquer desconforto, ou mau estar. AA)-Tal descrição é perfeitamente compatível com a argumentária do arguido, que afirma ter tocado no jogador para o acalmar (sendo a própria testemunha que afirma estar exaltada no momento dos factos). BB)-Vem, em contraponto, o Tribunal a quo, defender que a questão levantada pela defesa não é nova, mas que ficou resolvida com o Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Dezembro de 1992. CC)-A questão é que este Assento com 31 anos de existência, e que versava ainda sobre anterior Código Penal, também é lembrado no referido Acórdão do TRL, sendo que os Senhores Desembargadores conheciam o Assento, lembraram-se do mesmo e, ainda assim, afirmaram o que afirmaram e supra transcrevemos, ou seja, que "se trata de um crime material de dano" e que terá que criar mau estar "não insignificante". DD)-Se fizéssemos a mesma leitura que o Tribunal a quo fez, teríamos que concluir que a Relação do Porto, ao sustentar o que sustentou e, na mesma decisão referir o Assento do STJ, entraria numa contradição. EE)-Não foi assim, bem pelo contrário, pois uma coisa não contradiz a outra. FF)-Pondo de outra forma: Porventura alguém que puxe outrem pelo ombro, ainda que provocando dor, procurando evitar que o outro se envolva numa discussão, pratica um crime de OIF? A leitura do Tribunal a quo permitiria concluir que sim. GG)-Do próprio Aresto dos anos 90 se retira que integra o crime "(...) a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa (...), HH)-Não é de todo o que sucedeu no caso em apreço, seja por que prisma for, sendo que nem o alegado agressor e muito menos o alegado agredido, referem algo relevante ou sequer injuriante que tenha ocorrido, estando longe de uma agressão, livre e consciente, com um "animus nocendi" cometido à bofetada sobre uma pessoa, extrapolou aqui o Tribunal, um animus que não se provou e não se provando, para além de não ter existido qualquer tipo de dano, quase nem sido sentido o "toque", não houve prova de nenhuma vontade de agredir seja quem fosse. II)-No dizer do próprio "ofendido" sentiu o toque, o que claramente afasta a tal agressão voluntária, sendo aliás, totalmente compatível, com versão do arguido que procurou acalmar ânimos já exaltados, num jogo em que estava o seu próprio filho. JJ)-Acresce o facto determinante da testemunha que seria a vitima, referir que sentiu um toque, um impacto, mas que nem se apercebeu do que se tratava, nem referindo qualquer desconforto, quanto mais mau-trato, terá que ser a pedra angular da decisão. KK)-Repristinando a decisão da Veneranda Relação do Porto, em que o crime de Ofensa à Integridade Fisica é um crime material e de dano, sendo que a ofensa ao corpo deve ser entendida como todo o mau-trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar fisico de uma forma não insignificante. LL)-De uma forma ou de outra, teria que ter havido um animus nocendi que o Tribunal deu necessariamente como provado, sem encontrar provas que o sustentassem. MM)-Com a sua decisão violou o Tribunal o artigo 127.° do CPP, na medida em que formou a sua convicção com liberdade excessiva ao decidir contra as provas apresentadas, nomeadamente dando como provado um animus nocendi, que em nenhum momento probatório se encontrou verificado. NN)-Ao agir assim, violou igualmente o Tribunal a quo, Principio in dubio pro reo, plasmado no n.° 2, do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, tratando-se de um principio geral do direito processual penal, sendo a expressão, em matéria de prova, do principio constitucional da presunção de inocência do arguido, que neste processo foi violando de forma reiterada e sucessiva, sendo que sumariamente tendo o Tribunal dúvidas deve julgar a favor do réu e não o fez. OO)-Violou o Tribunal a quo o Principio da Legalidade, plasmado nos artigos 29.°, n.° 1 da CRP e 191.° da CRP, na medida em que não assentou a sua decisão em critérios de exclusiva legalidade no que concerne à apreciação da prova, sendo que a matéria probatória levava a decisão para fim diverso, não sendo suficiente a livre apreciação da prova para contornar este principio constitucional. PP)-Violou o artigo 34.° da Lei 39/2009, no sentido de considerar uma ofensa à integridade fisica, uma ação não sem animus nocendi. QQ)-São relevantes para contraditar a conclusão do Tribunal a quo, as declarações do arguido e Depoimento da testemunha ……; RR)-Andou mal o Tribunal a quo ao condenar o arguido, por ausência de elemento objetivo e subjetivo do tipo de crime, quando deveria ter absolvido o Tribunal
(…)».
3.–Notificado o Ministério Público do requerimento e alegações de recurso, veio em resposta subscrever os fundamentos da decisão recorrida, porquanto «a matéria de facto dada como provada na sentença reproduz com fidelidade o teor da prova produzida em sede de audiência de julgamento - declarações do arguido e prova testemunhal - encontrando-se devidamente fundamentada a convicção do julgador, em termos que subscrevemos inteiramente», sendo que «o Tribunal partindo das regras de experiência é livre de formar a sua convicção, de acordo com a regra consagrada no artigo 127.° do CPP. Assinala que com o recurso o recorrente pretende impor ao Tribunal recorrido a sua convicção, o que não é admissível.
Apelando à valorização dos princípios da oralidade e da imediação presentes na produção de prova em audiência de julgamento, «Tendo o tribunal a quo respeitado estes princípios, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.
Numa leitura, minimamente atenta da decisão recorrida, nomeadamente da fundamentação de facto e a indicação das provas, não se vislumbra que ao assentar os factos provados o julgador tivesse cometido qualquer erro de julgamento.
Pelo contrário, verifica-se ter a sentença seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas.».
Defende ainda nada haver a censurar na escolha e graduação da pena aplicada e conclui pela manutenção da decisão recorrida. 4.–O recurso veio a ser admitido a subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo. 5.–Subidos os autos a esta Relação, a Exm.ª Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer em que, perfilhando a posição do Ministério Público na primeira instância, conclui pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida. 6.–Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º/2 do Código de Processo Penal, sem que o arguido se pronunciasse. 7.–O processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º/3, b) do Código de Processo Penal.
II–FUNDAMENTAÇÃO
1.–QUESTÕES A DECIDIR
Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art. 410º/2 do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art. 379º/2 e 410º/3, do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.
Assim, são as seguintes as questões a decidir: 1.ª-Das razões para alterar a matéria de facto provada sob os pontos 4., 5. e 6., e por essa via absolver o arguido da prática do crime de ofensa à integridade física pelo qual foi condenado por não verificação dos factos integradores dos elementos objetivo e subjetivo típicos; 2.ª-Da exclusão da tipicidade por via da aplicação da doutrina da insignificância; 3.ª-Da sucessão de leis no tempo atentas as alterações aos arts. 33º e 34º, da L. 39/2009, de 30/07 introduzidas pela L. 40/2023, de 10/08, em vigor desde 10/09/2023.
2.–APRECIAÇÃO DO RECURSO
2.1–Decisão recorrida
É do seguinte teor da sentença recorrida na parte relevante para a apreciação do recurso [transcrição]:
«(…)
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram os seguintes:
2.1.- Factos Provados 1)-No dia 29 de maio de 2022, pela 19horas, no Estádio ..... ..... ..... (FONI), sito em ....., decorreu um jogo de futebol entre as equipas Grupo ..... ..... (GDA) e Grupo ..... ..... da ..... ..... (GPDCC). 2)-O referido jogo de futebol, organizado pela Associação de Futebol de ....., correspondia à 37.a jornada da época, estando inserido no campeonato distrital, 1a Divisão de Séniores, da modalidade de futebol. 3)-No desenrolar do jogo, por volta do minuto oitenta e oito, um dos jogadores da equipa do Grupo ..... ..... da ..... ..... (GPDCC) foi agredido por um dos jogadores da equipa adversária. 4)-Por virtude da altercação que se gerou entre elementos de ambas as equipas, …… recuou de costas até à bancada de adeptos do GPDCC, por ocasião do que o arguido, adepto do GPDCC, desferiu com a sua mão aberta, uma pancada na cabeça, na zona auricular, de ……. 5)-Da agressão não resultaram lesões. 6)-O arguido, agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de ofender o corpo e a saúde de ……, jogador do GDA, bem sabendo que, a descrita conduta é proibida e punida por lei. Outros factos com relevo para a decisão da causa 7)-O arguido não regista antecedentes criminais averbados no seu certificado do registo criminal. 8)-Completou o 12.° ano de escolaridade. 9)-É casado e pai de dois filhos com 17 e 21 anos. 10)- É gestor de carteiras na área comercial, auferindo cerca de € 1.400,00 mensais. 11)-A sua esposa é educadora de infância, cuja remuneração mensal ronda também os € 1.400,00. 12)-Vive com a sua esposa e os seus filhos em casa própria, adquirida com recurso o crédito bancário, cujas prestações mensais ascendem a € 700,00 mensais. 13)-Tem despesas fixas com água, eletricidade e telecomunicações, no valor aproximado de € 200,00.
2.2–Factos Não Provados
Não se provou que: a)-O autor da agressão referenciada em 3) foi o jogador …… .
II- DA MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Em termos genéricos, o Tribunal fundou a sua convicção considerando as declarações do arguido, a prova testemunhal e a prova documental constante dos autos, analisando todos os elementos probatórios em confronto entre si e de acordo com as regras da experiência e o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.° do Cód. de Processo Penal.
Relativamente aos factos provados em 1) a 5) valoraram-se as declarações do arguido, em concatenação com o depoimento do ofendido …… e das testemunhas …… e ……, militares da GNR que, no dia dos acontecimentos em discussão nos autos e conforme fls. 15 e 16, se encontravam em regime de serviço remunerado de policiamento de espetáculo desportivo, vulgarmente designado por “gratificado”, todos unânimes na identificação do lugar e dia da prática dos factos, na descrição de uma confusão prévia em campo entre jogadores das equipas referenciadas no libelo acusatório geradora de uma altercação entre as duas equipas, todos confirmando, inclusive o próprio, que o arguido desferiu uma pancada com a mão aberta na cabeça do ofendido e, ainda, a inexistência de lesões dela decorrentes. Arguido e ofendido concretizaram também, de forma espontânea e desinteressada, que a agressão referenciada em 3) não foi cometida pelo último, mas por outro colega da sua equipa, em razão do que se deu como não provado que tivesse sido o ofendido a agredir o jogador da equipa adversária.
Apesar da testemunha …... ter afirmado que arguido e ofendido estavam frente a frente quando o último foi atingido pelo primeiro, não se valoraram, nesta parte, as suas declarações porque infirmadas não só pelas declarações do arguido quando disse, referindo-se ao ofendido que “virou-se para trás (...) e não se queixou”, mas também pelo depoimento dos demais inquiridos, os quais, de forma objetiva, clara, espontânea e coerente, explicaram que, por virtude da confusão gerada entre os jogadores de ambas as equipas em resultado da agressão descrita em 3), o ofendido que também estava junto à linha lateral do campo de futebol recuou de costas e com os olhos postos nos demais jogadores em campo até à bancada dos adeptos do GPDCC, precisão que fizemos refletir nos factos provados, sem deixarmos de previamente ter comunicado o aditamento deste facto concretizador para efeitos de alteração não substancial dos factos.
No tocante à prova do facto descrito em 6), o arguido negou que fosse sua intenção agredir o ofendido e a testemunha …… referiu-se à pancada desferida pelo arguido como se de um “ato irrefletido” se tratasse.
Todavia, o circunstancialismo fáctico que rodeou o desferimento pelo arguido de uma pancada na cabeça do ofendido diz-nos coisa diversa, vejamos mais especificamente porquê: primeiro, tanto o arguido, como os demais inquiridos, referiram que para conseguir atingir o ofendido, o arguido teve que se debruçar sobre a bancada onde se encontrava; segundo, por todos foi referido que os ânimos estavam exaltados entre jogadores, ofendido incluído; terceiro, de acordo com o depoimento do ofendido, corroborado pelo depoimento da testemunha ………. e …….., junto do ofendido já se encontravam outros colegas de equipa; quarto, segundo o depoimento do ofendido, a distância entre si e o jogador da equipa adversária não era de molde a permitir o imediato contacto físico entre ambos, até porque, como também esclareceu, os colegas da sua equipa já estavam a tentar acalmá-lo e que à medida que o tentavam agarrar era o próprio quem se chegava para trás, assim aumentando a sua distância em relação àquele, uma vez que, como também disse, quanto “mais me agarram pior, não gosto que me agarrem, fico mais nervoso ainda’’,declarações que, por isentas e imparciais, mereceram a credibilidade do Tribunal, até porque não sobressaiu do seu depoimento qualquer intenção de prejudicar o arguido, sendo o próprio a afirmar que nunca foi sua vontade apresentar queixa contra o ofendido.
Ponderada a globalidade destas circunstâncias não se afigura minimamente crível, à luz das regras da normalidade do acontecer e da experiência comum, que apenas tivesse sido intenção do arguido acalmar o ofendido. E isto porque, o próprio ato de desferir pelas costas uma pancada (ainda que ligeira) na cabeça de um jogador em campo, já de si exaltado, é tudo menos apropriado a acalmar os ânimos do mesmo, sobretudo quando apanhado de surpresa, quando outros colegas já se encontravam ao seu lado e melhor posicionados para resolverem a situação e, finalmente, num momento em que o mesmo se distanciava do jogador da equipa adversária, recuando até às bancadas dos adeptos desta.
Que o arguido atuou de forma livre, voluntária, consciente e bem sabendo do caráter proibido da sua conduta, são elementos que, para além de compreendidos no reconhecimento pelo próprio da prática dos factos objetivamente considerados e de que não devia ter agido nos moldes em que agiu, sempre resultariam da factualidade objetiva que se deu como provada e das regras da experiência comum.
No que se reporta às condições familiares, económicas e sociais do arguido, tomaram-se em consideração as declarações do próprio que não mereceram qualquer reserva ao Tribunal e, quanto aos seus antecedentes criminais, o teor do certificado do registo criminal junto aos autos.
III–DA MOTIVAÇÃO DE DIREITO
Comete o crime de ofensas à integridade física previsto na Lei n.° 39/2009, de 30 de julho, aquele que “encontrando-se no interior do recinto desportivo, durante a ocorrência de um espetáculo desportivo, ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, com ou sem a colaboração de pelo menos outra pessoa, ofender a integridade física de terceiros ”,sendo punido com pena de prisão de 6 meses a 4 anos ou com pena de multa até 600 dias.
Já se as ofensas forem praticadas de modo a colocar em perigo a vida, a saúde, a integridade física ou a segurança, entre outros, dos praticantes, aquela pena é agravada, nos seus limites mínimo e máximo, até um terço (cfr. art. 34.°, n.° 1, do mesmo diploma legal).
O bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana, na dupla vertente do corpo e saúde.
Estamos perante um crime de resultado e de dano, porquanto para a consumação da ofensa é necessário que, em resultado da conduta do agente, se verifique uma lesão no corpo ou na saúde do visado e com isso a efetiva lesão do bem protegido, independentemente da dor ou sofrimento causados, da gravidade dos seus efeitos ou da sua duração.
Do ponto de vista subjetivo, exige-se um dolo genérico em qualquer uma das suas modalidades (cfr. arts. 13.° e 14.° do Cód. Penal).
Em sede de alegações orais, a Defesa pugnou pela absolvição do arguido por considerar que a pancada desferida pelo arguido não assume dignidade bastante ou suficiente para merecer a tutela penal e por não ter resultado provado que o ofendido tivesse sentido qualquer dor.
A questão não é nova, mas ficou resolvida com o Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de dezembro de 1992, que acompanhamos e que fixou a seguinte jurisprudência: "Integra o crime do artigo 142.° do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada, sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.".
No mesmo sentido, na doutrina, pronunciou-se Pedro Ribeiro de Faria (in Código Conimbricence[1]), M. Miguez Garcia e J. M. Castelo Rio (in Cód. Penal Anotado[2]), ou Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[3]), cuja posição também acompanhamos.
Aliás, se bem virmos, encontramo-nos na presença de um crime instantâneo, cuja consumação se basta com a produção do resultado típico, traduzido na lesão do corpo ou saúde de outrem, pouco importando a dor ou sofrimento causados, a gravidade dos seus efeitos ou a respetiva duração, fatores que, embora irrelevantes para o preenchimento do tipo objetivo de ilícito, não deixarão de relevar para efeitos de escolha da pena e sua medida.
Apenas de acrescentar que o contexto proporcionado por um jogo de futebol em que os ânimos dos jogadores de ambas as equipas já se encontram bastante exaltados, a agressão física desferida contra um jogador por adepto da equipa contrária é extraordinariamente favorável à eclosão da violência seja em campo, seja entre a assistência, em alguns casos com consequências graves e que em muito extrapolam a concreta atuação do agente agressor.
Isto dito, tendo-se provado, como se provou, que o arguido, enquanto assistia a um jogo de futebol no interior de um recinto desportivo, desferiu uma pancada na cabeça de ……, jogador de uma das equipas em campo, cuja qualidade era por si conhecida, demonstrada está a existência de uma agressão perpetrada pelo arguido contra o corpo de praticante e, com isso, o preenchimento do tipo objetivo da ofensa à integridade física previsto na Lei n.° 39/2009, de 30 de julho (cfr. artigos 3.°, als. a), h) e n), e 33.° e 34.° do diploma em análise).
Ficou também assente que o arguido representou que a sua atuação era idónea a ofender a integridade física de …… e que, não obstante isso, decidiu, de forma livre e consciente, atuar nos moldes atrás descritos, pelo que, representadas todas as circunstâncias do facto, a conduta do arguido enquadra-se, no plano volitivo, na figura do dolo direto, intencional ou de primeiro grau.
Estão, por isso, preenchidos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do ilícito criminal de ofensa à integridade física contra agente desportivo.
Agiu, ainda, com culpa, na medida em que tendo plena capacidade de avaliar a ilicitude do facto e de se determinar de acordo com essa avaliação, não o fez.
Inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, praticou, portanto, o arguido um crime de ofensas à integridade física contra agentes desportivos, previsto e punido pelos artigos 33.° e 34.°, ex vi artigo 3.°, al a) da Lei 39/2009, de 30 de julho.
(…)».
2.2–Da impugnação da matéria de facto
Conclui o recorrente que ocorre erro de julgamento quanto aos factos sob os pontos 4., 5. e 6., porquanto da prova produzida, concretamente das declarações prestadas pelo arguido e do depoimento do ofendido, resulta que, tendo havido de facto interação física, tendo o arguido tocado na zona da cabeça do ofendido, fê-lo com o único intuito de o acalmar porque estaria exaltado, como o próprio reconheceu, não ocasionando qualquer dor ou lesão, como reconhecido pelo Tribunal a quo.
Entende assim que não pode concluir-se ter ocorrido uma agressão ou ofensa à integridade física, no sentido usado no tipo legal de crime de ofensa à integridade física.
Percorrida, porém, a motivação do recurso, facilmente constatamos que o que está em causa é uma discordância quanto à convicção alcançada pelo Tribunal a quo com base nas mesmas provas que agora vêm assinaladas, as quais não impõem decisão diversa da que foi tomada.
2.2.1- Enquanto concretização do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, consagrado no art. 428º do Código de Processo Penal, segundo o qual os tribunais da Relação conhecem não só de direito mas também de facto, o erro de julgamento resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Tal erro pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada ou não provada nos termos em que o foi.
Nesta forma de impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida (como sucede com os vícios previstos no art. 410º/2 do Código de Processo Penal), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova produzida em audiência, nomeadamente por via da análise da documentação dessa prova e/ou da audição da gravação, no caso da prova por declarações e testemunhal; essa análise e audição é, no entanto, sempre delimitada e guiada pela especificação que onera o recorrente, como previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal.
Ou seja, serão uma análise e audição cingidas aos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, às concretas provas que, na sua perspetiva, impõem decisão diversa da recorrida, sendo que, quando gravadas, mediante audição das passagens em que se funda a impugnação que forem especificamente indicadas.
Todavia, conforme tem vindo a entender-se de forma pacífica na jurisprudência, esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse; antes se destina a obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.[i]
Na prática, o que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.
Nessa reapreciação, terá que atender-se à forma como se formou a convicção do julgador vertida na decisão sob recurso, tendo presente o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal.
Trata-se de uma regra de apreciação da prova segundo o livre convencimento motivado do julgador, mas sem poder confundir-se com íntima convicção do juiz, devendo assentar numa análise lógica e motivada da prova, segundo regras de experiência e com bom senso.
Daí a importância da fundamentação da decisão sobre os factos, exigindo-se do julgador a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito.
De tal sorte que, se essa decisão proferida em primeira instância se basear na livre convicção do juiz objetivada numa fundamentação compreensível e lógica, optando por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção, obtida com os benefícios da imediação e da oralidade, apenas deverá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização, pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum; só nesse caso, se impõeuma decisão diversa da recorrida, como postulado pelo disposto no art. 412º/3,b) do Código de Processo Penal, para o ónus da especificação.
Não basta, pois, que no recurso sobre a matéria de facto, o recorrente pretenda fazer uma revisão da convicção alcançada pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas a impõem.
Terá, assim, que ficar evidenciado que a convicção do tribunal recorrido se reconduz, por exemplo, a uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que se demonstre não só a possível incorreção decisória, mas a imperatividade de uma diferente convicção.
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe analisar o processo de formação da convicção do julgador do tribunal a quo, verificando se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar, não bastando, para uma eventual alteração, uma diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova produzida.
Por isso, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem a ela, já não o devendo ser quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a de forma lógica e racional. Ou seja, o tribunal da Relação só pode e deve determinar uma modificação da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõemuma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.[ii]
Nessa análise, o tribunal de recurso há-de usar igualmente do princípio da livre convicção na sua valoração autónoma das provas dentro dos já falados limites impostos pela especificação exigida ao recorrente nos termos do art. 412º/3 e 4 do Código de Processo Penal, e da não imediação que beneficia a primeira instância; não bastará, assim ao tribunal de recurso a assunção ou a recuperação genéricas da convicção ou dos termos da convicção do tribunal recorrido.[iii] Em suma: o tribunal de recurso deve verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova nela indicados e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
2.2.2–Postas estas premissas, como começamos por dizer, é patente que o recorrente vem em busca de um segundo julgamento da causa, atendo-se no essencial ao que ele próprio e o ofendido declararam junto do Tribunal recorrido, declarações que foram analisadas criticamente na decisão sobre a matéria de facto, mediante conjugação com a restante prova produzida, chegando a conclusões que se mostram razoáveis e conformes com as regras da experiência, em estrita observância da regra da livre apreciação da prova inscrita no art. 127º do Código de Processo Penal.
Mas vejamos um pouco mais em detalhe.
São então os seguintes os factos postos em causa (assinalados a negrito):
«(…) 4.–Por virtude da altercação que se gerou entre elementos de ambas as equipas, …… recuou de costas até à bancada de adeptos do GPDCC, por ocasião do que o arguido, adepto do GPDCC, desferiu com a sua mão aberta, uma pancada na cabeça, na zona auricular, de …… . 5.–Da agressão não resultaram lesões. 6.–O arguido, agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de ofender o corpo e a saúde de ……, jogador do GDA, bem sabendo que, a descrita conduta é proibida e punida por lei.
(…)».
O Tribunal a quo, não escamoteando, antes enfrentando a desvalorização do sucedido pelo ofendido, por um lado, e, por outro, a motivação apresentada pelo arguido para a prática dos factos, no sentido de que queria apenas acalmar o ofendido, escreveu a este propósito o seguinte:
«(…)
Relativamente aos factos provados em 1) a 5) valoraram-se as declarações do arguido, em concatenação com o depoimento do ofendido …… e das testemunhas …… e ……, militares da GNR que, no dia dos acontecimentos em discussão nos autos e conforme fls. 15 e 16, se encontravam em regime de serviço remunerado de policiamento de espetáculo desportivo, vulgarmente designado por “gratificado”, todos unânimes na identificação do lugar e dia da prática dos factos, na descrição de uma confusão prévia em campo entre jogadores das equipas referenciadas no libelo acusatório geradora de uma altercação entre as duas equipas, todos confirmando, inclusive o próprio, que o arguido desferiu uma pancada com a mão aberta na cabeça do ofendido e, ainda, a inexistência de lesões dela decorrentes. Arguido e ofendido concretizaram também, de forma espontânea e desinteressada, que a agressão referenciada em 3) não foi cometida pelo último, mas por outro colega da sua equipa, em razão do que se deu como não provado que tivesse sido o ofendido a agredir o jogador da equipa adversária.
Apesar da testemunha …… ter afirmado que arguido e ofendido estavam frente a frente quando o último foi atingido pelo primeiro, não se valoraram, nesta parte, as suas declarações porque infirmadas não só pelas declarações do arguido quando disse, referindo-se ao ofendido que “virou-se para trás (...) e não se queixou”, mas também pelo depoimento dos demais inquiridos, os quais, de forma objetiva, clara, espontânea e coerente, explicaram que, por virtude da confusão gerada entre os jogadores de ambas as equipas em resultado da agressão descrita em 3), o ofendido que também estava junto à linha lateral do campo de futebol recuou de costas e com os olhos postos nos demais jogadores em campo até à bancada dos adeptos do GPDCC, precisão que fizemos refletir nos factos provados, sem deixarmos de previamente ter comunicado o aditamento deste facto concretizador para efeitos de alteração não substancial dos factos.
No tocante à prova do facto descrito em 6), o arguido negou que fosse sua intenção agredir o ofendido e a testemunha ……. referiu-se à pancada desferida pelo arguido como se de um “ato irrefletido” se tratasse.
Todavia, o circunstancialismo fáctico que rodeou o desferimento pelo arguido de uma pancada na cabeça do ofendido diz-nos coisa diversa, vejamos mais especificamente porquê: primeiro, tanto o arguido, como os demais inquiridos, referiram que para conseguir atingir o ofendido, o arguido teve que se debruçar sobre a bancada onde se encontrava; segundo, por todos foi referido que os ânimos estavam exaltados entre jogadores, ofendido incluído; terceiro, de acordo com o depoimento do ofendido, corroborado pelo depoimento da testemunha …… e ……, junto do ofendido já se encontravam outros colegas de equipa; quarto, segundo o depoimento do ofendido, a distância entre si e o jogador da equipa adversária não era de molde a permitir o imediato contacto físico entre ambos, até porque, como também esclareceu, os colegas da sua equipa já estavam a tentar acalmá-lo e que à medida que o tentavam agarrar era o próprio quem se chegava para trás, assim aumentando a sua distância em relação àquele, uma vez que, como também disse, quanto “mais me agarram pior, não gosto que me agarrem, fico mais nervoso ainda’’, declarações que, por isentas e imparciais, mereceram a credibilidade do Tribunal, até porque não sobressaiu do seu depoimento qualquer intenção de prejudicar o arguido, sendo o próprio a afirmar que nunca foi sua vontade apresentar queixa contra o ofendido.
Ponderada a globalidade destas circunstâncias não se afigura minimamente crível, à luz das regras da normalidade do acontecer e da experiência comum, que apenas tivesse sido intenção do arguido acalmar o ofendido. E isto porque, o próprio ato de desferir pelas costas uma pancada (ainda que ligeira) na cabeça de um jogador em campo, já de si exaltado, é tudo menos apropriado a acalmar os ânimos do mesmo, sobretudo quando apanhado de surpresa, quando outros colegas já se encontravam ao seu lado e melhor posicionados para resolverem a situação e, finalmente, num momento em que o mesmo se distanciava do jogador da equipa adversária, recuando até às bancadas dos adeptos desta.
Que o arguido atuou de forma livre, voluntária, consciente e bem sabendo do caráter proibido da sua conduta, são elementos que, para além de compreendidos no reconhecimento pelo próprio da prática dos factos objetivamente considerados e de que não devia ter agido nos moldes em que agiu, sempre resultariam da factualidade objetiva que se deu como provada e das regras da experiência comum.
(…)».
O que é que dos elementos de prova indicados no recurso impõe uma decisão diversa da tomada?
Com todo o respeito, nada.
O único depoimento que vem transcrito nas alegações de recurso (apesar de se aludir genericamente às declarações prestadas pelo arguido) é o da testemunha ……, o jogador visado com a ação imputada ao arguido, e quanto aos seguintes trechos:
03:10: "Senti uma palmada na cabeça, ou assim.
05:26: "Senti um impacto"
05:56: "Não me queixei porque não havia motivo para queixa
07:54: "Senti um toque, uma pancada, sim, um toque.
09:03: "Estavam todos a separar, a não deixar chegar perto"
10:09: "Não gosto que me agarrem, ainda fico mais nervoso"
Ora, tendo presente que estamos perante crime de ofensa à integridade física com previsão especial na L. 39/2009, de 30/07, que estabelece o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, cujo procedimento criminal não depende de queixa, não vemos como estas afirmações feitas pela testemunha, cujo depoimento o Tribunal a quo, de resto, acolheu, possam impor decisão diversa da que foi tomada, quer quanto à forma assumida pelo contacto físico estabelecido entre o arguido e o ofendido (que o arguido sempre reconheceu ter existido), com uma palmada de mão aberta na zona auricular, quer quanto à intenção subjacente a esse contacto.
Diga-se ademais que tendo este Tribunal da Relação procedido à audição da gravação de todos os depoimentos testemunhais, assim como das declarações prestadas pelo arguido, como previsto sob o art. 412º/6 do Código de Processo Penal, não chegou a conclusão diferente da vertida na decisão recorrida.
Regista-se o facto de a testemunha ……, mostrando embora grande compreensão pelo ato do arguido na medida em que o bate-boca e atrito que estava a decorrer no campo o oporia ao filho do arguido, não deixou de ver ali uma agressão, como transparece das suas palavras – «sei que foi no calor do momento … apercebi-me logo que era o pai do rapaz … o atrito … era com o filho dele … para me estarem a bater só podia ser uma pessoa».
Mais: pese embora a desvalorização do sucedido pelo ofendido por ter percebido tratar-se do pai do jogador com quem altercava, foi pelo mesmo deixado claro que: «naquele momento, senti o impacto» da palmada na cabeça, de tal forma que o fez voltar-se para trás, vendo então de onde tinha a mesma provindo; questionado sobre se havia sentido dor nessa sequência, nunca disse não ter sentido dor ou desconforto, disse apenas: «não lhe posso dizer ao certo … estava focado no jogo … estava quente, nem sei se senti dor».
Como reconhecido por arguido e ofendido, esse impacto fez com que este se voltasse para trás, na direção da sua proveniência; não foi, por isso, um mero “toque” como a defesa procurou fazer crer, com referências várias à palavra; mesmo tendo por base apenas as declarações do arguido, dúvidas não ficam de que implicou da sua parte a ação de se debruçar sobre a bancada para poder alcançar o ofendido e necessariamente o ato de empreender energia de impulso para o atingir na cabeça; muito diferente de um “toque”, que se associa ao contacto físico estabelecido inadvertidamente, por exemplo ao cruzar-se com outra pessoa.
Só assim, de resto, se explica que os agentes policiais a prestar serviço no local (referiram nos respetivos depoimentos testemunhais a 10/20m do local onde decorreu este episódio) tivessem percecionado esta atuação como uma agressão – …… fala em “tipo um murro, uma chapada” -, expulsando o arguido do recinto, apesar de o ofendido ter manifestado não desejar apresentar queixa.
Também o arguido que, diga-se, não deixou de contextualizar a sua atuação com o facto de …… ter agredido um colega de equipa do seu filho, gerando-se uma confusão, admitiu que os jogadores estavam praticamente todos junto de …… quando este se aproxima, de costas, da bancada onde assistia ao jogo; é então que se debruça da bancada onde se encontrava para dentro do campo, dando com a mão aberta na parte superior da cabeça do jogador, ao mesmo tempo que disse algo como: «acalma-te», «tem cuidado», «pára lá com isso!».
Ora, se a ideia era apenas acalmar ……, o que estava já a ser tentado pelos restantes jogadores em campo, incluindo os da equipa desse jogador, que necessidade tinha o arguido de dar uma pancada na cabeça dele, estando ele de costas para si? Em que é que uma atitude dessas, vinda de um adepto da equipa adversária, poderia contribuir para conseguir alcançar esse desiderato?
O Tribunal a quo deu de facto a estas questões a resposta que se impunha:
«Não se afigura minimamente crível, à luz das regras da normalidade do acontecer e da experiência comum, que apenas tivesse sido intenção do arguido acalmar o ofendido. E isto porque, o próprio ato de desferir pelas costas uma pancada (ainda que ligeira) na cabeça de um jogador em campo, já de si exaltado, é tudo menos apropriado a acalmar os ânimos do mesmo, sobretudo quando apanhado de surpresa, quando outros colegas já se encontravam ao seu lado e melhor posicionados para resolverem a situação e, finalmente, num momento em que o mesmo se distanciava do jogador da equipa adversária, recuando até às bancadas dos adeptos desta.».
Parece-nos, pois, manifesto que, contrariamente ao que o arguido procurou fazer crer em julgamento, o seu intuito não era apenas o de acalmar o jogador ……, outrossim o de o repreender pelo que estava a fazer em campo (…… mencionou bate-boca com um jogador adversário que seria filho do arguido), e porventura reprimir-lhe qualquer laivo de reação na escaramuça que entretanto passara a envolver os jogadores de ambas as equipas.
O arguido teve, de resto, noção de que não deveria ter procedido daquele modo, afirmando que nunca antes o havia feito.
Não colhe, assim, o argumento da falta de intenção subjacente ao contacto físico estabelecido pelo arguido com o ofendido.
Assim, e tudo visto, temos que o ato objetivamente dirigido pelo arguido a …… foi o descrito em 4., não vindo sequer sugerida pelo recorrente redação alternativa à que aí ficou consignada para qualificar o contacto físico estabelecido e admitido (apesar da insistência da defesa no uso da palavra “toque”); por outro lado, o que ficou provado em 6. expressa corretamente o estado interior do arguido subjacente a essa atuação tal qual foi possível extrair dos factos objetivamente analisados.
Embora sem relevância na decisão, por se mostrar conclusiva e desnecessária a menção a “agressão” feita em 5. dos factos provados, deve ser eliminada, reformulando esse ponto nos seguintes termos:
«5. Do descrito em 4. não resultaram lesões».
*
Neste quadro, a decisão sobre a matéria de facto, além de devidamente fundamentada, contendo irrepreensível exame crítico das provas, reflete uma leitura adequada da prova produzida de acordo com a livre convicção do tribunal e as regras da lógica e da experiência, nada havendo a modificar para além da eliminação da palavra “agressão” do inciso 5..
Não foi, pois, violado o disposto no art. 127º do Código de Processo Penal, tão pouco o princípio da legalidade previsto nos arts. 29º/1 da Constituição da República Portuguesa e 129º do Código de Processo Penal; escusado será dizer que, não tendo o Tribunal ficado em situação de dúvida, não tem aqui aplicação o invocado princípio in dubio pro reo plasmado no art. 32º/2 da Constituição da República Portuguesa.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto, sem prejuízo da assinalada reformulação do ponto 5..
*
2.3–Do Direito
Fazendo um paralelismo com o futebol, indaga o recorrente «se a intensidade do ato, e a intenção do mesmo, seriam suficientes para criminalizar o facto».
Depois, citando a jurisprudência do acórdão da Relação do Porto de 04/05/2022[iv], frisa que «o crime de ofensa à integridade física é um crime material e de dano, cujo resultado consiste na lesão do corpo ou da saúde de outrem; por ofensas no corpo deve entender-se, todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante».
Defende, assim, que não se tendo provado que o ofendido tivesse sentido dor, tendo este referido um toque, sem que lhe tivesse trazido qualquer desconforto ou mau estar, tal contacto físico não assume dignidade bastante para merecer a tutela penal.
Rechaça a aplicação da jurisprudência do Assento do STJ de 18/12/1992, posto que aí está em causa uma agressão “à bofetada”, sendo que o acórdão da Relação do Porto citado também o teve em consideração, e apesar disso pronunciou-se pela irrelevância penal da ofensa que cause lesão insignificante.
Vejamos.
Como vimos, a questão da intenção subjacente ao ato perpetrado pelo arguido mostra-se ultrapassada em sede de decisão sobre a impugnação da matéria de facto, não tendo merecido acolhimento a alegação de falta de intenção de ofender por parte do arguido; provou-se o animus nocendi.
Sobra para apreciar em sede de Direito, a alegada baixa intensidade (insignificância) subjacente ao contacto físico estabelecido pelo arguido com o ofendido.
Pretende o recorrente que não assume a mesma relevância criminal para além do que já se tratou em sede da impugnação de facto (ficou provado que se tratou de uma pancada, não de um toque), porque:
–Não houve qualquer prejuízo para o bem-estar físico do ofendido;
–Tratando-se de crime material e de dano, teria que haver prejuízo não insignificante para que se considerasse preenchido o tipo de crime de ofensa à integridade física.
Ora, está provado que o arguido, deliberadamente, e como já se concluiu, com o propósito de ofender …… no seu corpo, sabendo a sua conduta proibida por lei, desferiu com a sua mão aberta uma pancada na cabeça deste, zona auricular.
E se não poderá dizer-se que esse contacto foi violento, também não pode concluir-se que foi insignificante e que não atingiu o limiar da censura criminal porque não deixou lesões nem foi reportada dor pela pessoa atingida.
Foi sem dúvida um contacto físico indesejado que atentou contra a incolumidade corporal do visado, com impacto em zona corporal sensível, como é a zona auricular na cabeça, e que foi como tal sentido pela pessoa a quem foi dirigido.
E por isso, integra-se por inteiro na classificação do crime de ofensa à integridade física como crime de dano quanto ao bem jurídico protegido – que foi atingido em cheio pela atuação do arguido e não apenas posto em perigo; também se cumpriu enquanto crime de resultado (material) quanto ao objeto da ação, pois que a conduta produziu um resultado: um impacto concretizado na zona da cabeça do visado, com o qual se consumou o crime[v].
Afastada fica a tese do recorrente de que se tratou de um “toque” quase impercetível ou inócuo, portanto, insignificante.
O facto de não ter deixado marca ou de não ter provocado dor ou sofrimento, tal como se entendeu na decisão recorrida, também não constitui critério de relevância criminal desse contacto físico.
Efetivamente, o Assento 2/92[vi] pôs cobro à polémica em torno da questão de saber se podia haver crime de ofensa à integridade física mesmo que da conduta típica não decorresse dor ou lesão, e fê-lo em sentido afirmativo.
E é isso que releva desta jurisprudência, não já o tipo de ofensa que ali estava em causa, uma bofetada, que, diga-se, também não será assim tão distante da pancada desferida pelo recorrente na zona auricular de ……...
Segundo Paula Ribeiro de Faria[vii], «o tipo legal do art. 143º fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados (aliás estamos perante uma ofensa no corpo mesmo quando a vítima, mercê da ingestão em excesso de bebidas alcoólicas, não se encontra em condições de sentir qualquer dor), ou de uma eventual incapacidade para o trabalho (o legislador não exige um número mínimo de dias de doença ou de impossibilidade para o trabalho (…)]».
Ou seja, a insensibilidade à dor por parte da pessoa atingida também não é critério a considerar para o preenchimento típico.
Também o Tribunal Constitucional se manifestou já contrário a uma interpretação restritiva do conteúdo do direito à absoluta inviolabilidade pessoal e da integridade física tutelado pelo art. 25º da Constituição, em função do grau de intensidade da ofensa corporal.[viii] Em suma: não se ter provado que o ofendido sentiu dor ou não ter este reportado um qualquer prejuízo decorrente da ofensa ocasionada no seu corpo pelo arguido, não constitui obstáculo ao preenchimento do tipo legal de crime de ofensa à integridade física.
Parece-nos, de resto, a despropósito a comparação feita pelo recorrente com a situação em que alguém puxe outrem pelo ombro, ainda que provocando dor, procurando evitar que o outro se envolva numa discussão, num apelo (não expresso no recurso) ao conceito de adequação social; a verdade é que tal situação nada tem que ver com o caso sub judice; como vimos, não resultou provado que o arguido tivesse dado a pancada em …… para evitar que ele se envolvesse numa discussão; …… já estava envolvido na discussão, sendo que uma pancada na cabeça, zona auricular, nunca seria idónea a afastar quem quer que seja de uma discussão.
Também não se vê a pertinência do paralelismo com o que ocorre entre atletas em jogos de futebol, em que o contacto físico é próprio da participação na atividade desportiva; aqui estamos em presença de uma interferência externa na prática desportiva, vinda de um espectador e dirigida a um praticante, em recinto desportivo, merecedora de especial censura por via do disposto nos arts. 33º e 34º, da L. 39/2009, de 30/07.
Diga-se ainda que no acórdão da Relação do Porto em que se louva o recorrente, considerou aquele Tribunal que agarrar e apertar uma pessoa pelos braços configurava uma ofensa corporal não insignificante, atribuindo-lhe relevância penal em sede de cometimento do crime de ofensa à integridade física.
Por último, e em face de tudo quanto resulta dos factos e da apreciação que precede, contrariamente ao que defende o recorrente, não tem in casuaplicação a chamada doutrina da insignificância penal, conhecida no direito romano pela máxima latina de minimisnon curat praetor.
Trata-se de situações em que a lesão do bem jurídico protegido é de tão reduzida expressão que pode considerar-se insignificante, excluindo-se do campo teleológico de aplicação do tipo legal, e nessa medida, servindo para excluir condutas que formalmente ou externamente são típicas, mas que materialmenteo não são.[ix]
Ora, como vimos, a conduta adotada pelo arguido, naquelas concretas circunstâncias – quando se disputava um jogo de futebol, do qual era espectador, encontrando-se os jogadores envolvidos em altercações, debruçando-se da bancada para o campo, para atingir com uma pancada, por trás, a cabeça, zona auricular, de um desses jogadores -, é, em si mesma reveladora do sentido ofensivo ínsito à realização do tipo, sendo formal e materialmente típica.
A não prova (ou inexistência) de dor e a inexistência de lesão física visível, constituindo um sinal a considerar para efeitos desta análise, como vimos supra, não é determinante, como pretendido pelo recorrente, da insignificância da lesão do bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime de ofensa à integridade física, afastando a tipicidade.
Acompanha-se, por isso, a decisão recorrida na parte em que se expende:
«(…)
Aliás, se bem virmos, encontramo-nos na presença de um crime instantâneo, cuja consumação se basta com a produção do resultado típico, traduzido na lesão do corpo ou saúde de outrem, pouco importando a dor ou sofrimento causados, a gravidade dos seus efeitos ou a respetiva duração, fatores que, embora irrelevantes para o preenchimento do tipo objetivo de ilícito, não deixarão de relevar para efeitos de escolha da pena e sua medida.
Apenas de acrescentar que o contexto proporcionado por um jogo de futebol em que os ânimos dos jogadores de ambas as equipas já se encontram bastante exaltados, a agressão física desferida contra um jogador por adepto da equipa contrária é extraordinariamente favorável à eclosão da violência seja em campo, seja entre a assistência, em alguns casos com consequências graves e que em muito extrapolam a concreta atuação do agente agressor.».
Não merece, assim, acolhimento a argumentação da defesa na parte em que pugna pela insignificância da ofensa cometida.
Improcede, pois, também nesta parte o recurso.
*
2.4–Da sucessão de leis no tempo
Os factos ajuizados ocorreram em 29/05/2022, tendo a sentença condenatória sido proferido em 29/03/2023, encontrando-se em qualquer destas datas em vigor a L. 39/2009, de 30/07, na versão introduzida pela L. 113/2019, de 11/09.
Sucede que a 10/09/2023 entrou em vigor a nova redação destes preceitos legais introduzida pela L. 40/2023, de 10/08 (art. 7º), sendo revogado o art. 34º e alterada a redação do art. 33º.
Assim, na versão vigente à data da prática dos factos e da prolação da sentença, dispunham aqueles preceitos o seguinte:
Artigo 33.º Ofensas à integridade física Quem, encontrando-se no interior do recinto desportivo, durante a ocorrência de um espetáculo desportivo, ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, com ou sem a colaboração de pelo menos outra pessoa, ofender a integridade física de terceiros é punido com pena de prisão de 6 meses a 4 anos, ou com pena de multa até 600 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal. Artigo 34.º Crimes contra agentes desportivos, responsáveis pela segurança e membros dos órgãos da comunicação social 1- Se os atos descritos nos artigos 29.º a 33.º forem praticadosde modo a colocar em perigo a vida, a saúde, a integridade física ou a segurança dos praticantes, treinadores e demais agentes desportivos que estiverem na área do espetáculo desportivo, bem como dos membros dos órgãos de comunicação social em serviço na mesma, as penas naqueles previstas são agravadas, nos seus limites mínimo e máximo, até um terço. 2-Se os atos descritos nos artigos 29.º a 33.º forem praticados de modo a colocar em perigo a vida, a saúde, a integridade física ou a segurança de elemento das forças de segurança, dos árbitros, de assistente de recinto desportivo ou qualquer outro responsável pela segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas, as penas naqueles previstas são agravadas, nos seus limites mínimo e máximo, em metade. 3-A tentativa é punível.
A partir de 10 de setembro passado, mercê da entrada em vigor das alterações introduzida pela L. 40/2023 de 10/08, deixou de existir o art. 34º, que foi revogado (art. 4º da L. 40/2023) e o art. 33º passou a dispor o seguinte:
Artigo 33.º Ofensas à integridade física no âmbito de espetáculo desportivo ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo 1-Quem praticar os factos descritos nos artigos 143.º, 144.º e 145.º do Código Penal, no âmbito do espetáculo desportivo, durante a deslocação para ou de espetáculo desportivo ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, é punido com a correspondente pena de prisão agravada em um quarto nos seus limites mínimo e máximo. 2-Quem, encontrando-se: a)No interior do recinto desportivo durante a ocorrência de um espetáculo desportivo; ou b)Em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo; praticar os factos descritos nos artigos 143.º, 144.º e 145.º do Código Penal contra agentes desportivos, membros dos órgãos de comunicação social, elementos das forças de segurança, assistentes de recinto desportivo ou qualquer outro responsável pela proteção e segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas, é punido com a correspondente pena de prisão agravada em metade nos seus limites mínimo e máximo.
Coloca-se assim a questão da aplicação no tempo da lei penal, sobre a qual rege o disposto no art. 2º do Código Penal nos seguintes termos:
«1-As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem. 2-O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais. 3-Quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser punível o facto praticado durante esse período. 4-Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.».
Assomando evidente que não ocorreu descriminalização da conduta, a qual sempre mereceria enquadramento no tipo legal de crime comum de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo art. 143º/1 do Código Penal, importa então determinar qual o regime concretamente mais favorável ao arguido.
Com efeito, na prática, o art. 33º da L. 39/2009, de 30/07 na sua redação atual, passa a contemplar o anterior tipo legal de crime de ofensa à integridade física contra terceiros, no seu nº1, e no nº 2 o tipo agravado que anteriormente era autonomizado sob o revogado art. 34º.
Adota-se também a técnica de remissão para a factualidade integradora dos tipos legais de crime de ofensa à integridade física previstos no Código Penal e respetivas molduras penais, ao invés de se indicar os factos relativos a um tipo especial e uma específica moldura penal.
No essencial, mantém-se, pois, intocada a previsão legal de criminalização e agravação da ofensa à integridade física cometida em recinto desportivo, no decurso de espetáculo desportivo, contra agente desportivo, como é um praticante.
Pelo que, os factos dados como provados integram a prática de um crime de ofensa à integridade física contra agente desportivo, previsto e punido pelo disposto nos arts. 33º e 34º/1, da L. 39/2009, de 30/07, na redação introduzida pela L. 113/2019, de 11/09, vigente à data da prática desses factos (e da prolação da sentença condenatória recorrida); atualmente, tais factos integram o tipo legal de crime de ofensas à integridade física no âmbito de espetáculo desportivo previsto e punido pelo art. 33º/2 da L. 39/2009, de 30/07 na redação introduzida pela L. 40/2023, de 10/08, com remissão para o disposto no art. 143º/1 do Código Penal.
Não se justifica, pois, qualquer outra reapreciação dos factos dados como provados ao nível da sua integração jurídico-penal.
O mesmo não ocorre quanto à determinação da pena, posto que se verifica sensível alteração das molduras penais aplicáveis.
Enquanto anteriormente o art. 33º previa uma moldura penal específica de 6 meses a 4 anos de prisão ou multa até 600 dias, que com a agravação prevista no art. 34º/1 (aqui a aplicável) de um terço nos limites mínimos e máximos, passava para prisão de 8 meses a 5 anos e 4 meses ou multa de 13 dias a 800 dias, atualmente, operando a moldura do tipo legal de crime de ofensa à integridade física previsto no art. 143º do Código Penal, temos que a moldura a aplicar ao caso em apreço, prevista sob o nº 2, a) e b), é de prisão de 1 mês e 15 dias a 4 anos e 6 meses ou multa de 15 dias a 540 dias – cfr. arts. 41º/1 e 47º/1, do Código Penal.
Neste quadro, sendo evidentemente de manter a opção pela pena não detentiva, de multa, devidamente justificada na sentença recorrida, aplicando o regime concretamente mais favorável ao arguido que corresponde à moldura penal do crime na sua previsão atualizada, importa já reformular a operação de determinação da sua medida concreta à luz da nova moldura.
Nos termos do disposto no art. 410º/1 do Código de Processo Penal, «sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.».
Na decisão recorrida consta a seguinte fundamentação quanto à determinação da medida concreta da pena:
«(…)
Escolhida a pena é agora necessário determinar a sua exata medida, nos termos do n.° 1 e n.° 2 do artigo 47.° do Cód. Penal, primeiro fixando os dias de multa à luz dos critérios previstos no n.° 2 do artigo 71.° do Código Penal, depois fixando o seu quantitativo diário.
Condição necessária é que a pena de multa represente "uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada" e jamais uma forma disfarçada de absolvição ou uma dispensa ou isenção de pena que se não tem a coragem de proferir (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2009, pág. 119).
Na determinação da medida concreta da pena há que ter em conta, desde logo, a moldura penal abstrata que, no caso, vai até 800 dias de multa.
Importando ponderar, no caso concreto, nomeadamente:
- as exigências de prevenção geral que são médias por não ser muito frequente a prática de crime contra praticante desportivo, mas comum a prática de crimes contra a integridade física de outrem, a que acresce a premente a preocupação e necessidade de prevenir a violência associada ao fenómeno desportivo;
- a intensidade do dolo que é de qualificar como elevado dado que o arguido agiu com dolo direto;
- o grau de ilicitude do facto a considerar como diminuto, tendo em conta a natureza da agressão infligida, a força empregue e a inexistência de lesões;
- o modo de execução do facto, cuja gravidade reputamos como ligeiramente acima da média, por ter sido perpetrado pelas costas do visado;
- a culpa do arguido que situamos um pouco abaixo da média pelo contexto futebolístico gerado em torno da desavença entre elementos das equipas em campo favorável à exaltação de ânimos entre a assistência.
Ao nível das condições pessoais do arguido milita a seu favor a inexistência de antecedentes criminais, a sua inserção social, familiar e laboral. Em seu desfavor, a não confissão integral e sem reservas dos factos.
Tudo ponderado, afigura-se-nos justo e equilibrado condenar o arguido na pena de 80 dias de multa pela prática do crime de ofensas à integridade física contra agentes desportivos.
(…)».
Ora, tendo por base a nova moldura penal encontrada, cujo limite máximo é substancialmente inferior àquele que foi considerado pelo Tribunal a quo, mas não podendo deixar de ter presente que a pena encontrada de 80 dias (1/10 do limite máximo) se encontrava já muito próxima do limiar mínimo a assegurar da prevenção geral positiva, na vertente de estabilização contrafáctica da validade da norma violada junto da comunidade, afigura-se-nos que em face de tudo quanto foi considerado provado e na ponderação já realizada na decisão recorrida, deve a pena de multa fixar-se em 60 (sessenta) dias, mantendo-se o respetivo quantitativo diário.
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III–DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder parcial provimento ao recurso, e consequentemente:
–– Determinar a correção da sentença recorrida quanto ao escrito em 5. dos factos provados, passando a aí constar: «5. Do descrito em 4. não resultaram lesões.»;
–– Por aplicação da lei penal concretamente mais favorável, alterar a pena aplicada ao arguido, que se fixa em 60 dias de multa à taxa diária fixada de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos).
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Sem custas - art. 513º/1 do Código de Processo Penal “a contrario”.
Notifique.
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Lisboa, 14 de dezembro de 2023
(Ana Cláudia Nogueira) (Ester Pacheco dos Santos) (Manuel Advínculo Sequeira)
[1]cfr. pág. 205 [2]cfr. Almedina, 2018, 3.a edição atualizada, págs. 651 e 652 [3]cfr. 3.a edição atualizada, UCE, 2015, pág. 556 [[i]]Entre outros, os acórdãos do STJ de 18/01/2018, relatado por Maia Costa no processo 563/14.3TABRG.S1, que aqui seguimos de perto, e de 17/03/2016, relatado por Pires da Graça no processo 849/12.1JACBR.C1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt . [[ii]]Cfr. o acórdão do STJ de 25/03/2010, relatado por Raul Borges no processo 427/08.OTBSTB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt [[iii]]Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/01/2010 relatado por Henriques Gaspar no processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt . [[iv]]Relatado por Cláudia Rodrigues no processo 194/20.9PHVNG, e acessível em www.dgsi.pt . [[v]]Sobre estes conceitos, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, UCE, 5ª ed. Atualizada, 2022, pág. 122. [[vi]]Acórdão do STJ de 18/12/1991, com o dispositivo: «Integra o crime do art.º 143.º do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.», acessível em www.dgsi.pt mas também publicado em DR 1ª Série, nº 33/92, de 08/02/1992. [[vii]]Citando Leal Henriques e Simas Santos, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág., 205. [[viii]]Cfr. acórdão do Tribunal Constitucional 226/2000, de 05/04/2000, acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc . [[ix]]Veja-se neste sentido o acórdão da Relação de Évora de 07/12/2012, relatado por Ana Barata Brito no processo 488/09.4TASTB.E1, e ainda sobre o princípio da insignificância em Direito Penal, Guzmán Dalbora, in La insignificância: especificación y reducción valorativas en el âmbito de lo injusto típico, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 14, pág. 69 e sgs; também Figueiredo Dias alude a este princípio a propósito da “criminalidade bagatelar”, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2019, 3ª edição, pág. 790.