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CONTRAORDENAÇÃO GRAVE
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
ARGUIDO
NOMEAÇÃO DE DEFENSOR
OBRIGATORIEDADE
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário
I – A norma contida no n.º 2 do art.º 53.º do RGCC prescreve, claramente, a necessidade de nomeação de defensor ao arguido, mesmo oficiosamente, pela autoridade administrativa, «sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido». II - Na densificação interpretativa de tal norma, o critério a utilizar deve ser objetivo, pelo que, em geral, deve ser nomeado defensor ao arguido, pela autoridade administrativa, nos casos de contraordenação grave ou muito grave. III – A nulidade insanável prevista no art.º 119.º, alínea c), do CPP deve ser equiparada à falta de nomeação de defensor no processo, quando esta é obrigatória.
Texto Integral
Proc. n.º 162/23.9T9PVZ.P1
Exame preliminar
Recurso adequado, tempestivo e recebido com o efeito devido.
Ao abrigo do disposto no artigo 417.º, n.º 6, alínea d), do Código de Processo Penal, profere-se, de imediato, decisão sumária.
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DECISÃO SUMÁRIA
No recurso de contraordenação n.º 162/23.9T9PVZ, supra identificado, no qual figura como recorrente a sociedade “A..., SA”, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto, nos termos do disposto no art.º 53.º do RGCO e nos art.ºs 64.º, n.º 1, al. h) e 119.º, al. c), ambos do Código de Processo Penal ex vi art.º 41.º, n.º 1 do RGCO, julgo verificada a nulidade insanável de falta de nomeação de defensor à sociedade arguida e, consequentemente, declaro nulo todo o processo contraordenacional desde o momento em que o defensor deveria ter intervindo, ou seja, desde o despacho proferido pela autoridade administrativa, a 29/01/2018 , que determinou a notificação da sociedade arguida nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 49.º da Lei n.º 50/2006, de 29/08 (fls. 9 a 10), devendo proceder-se à devolução dos presentes autos à autoridade administrativa a fim de ser suprida a referida nulidade.
Notifique.
Dê baixa.»
Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos contidos nas seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1. O presente recurso vem interposto da decisão judicial de fls. 105 e seguintes destes autos, proferida a 01 de Março de 2023, que decidiu: a verificação de uma nulidade insanável do procedimento contraordenacional consubstanciada na falta de nomeação obrigatória de defensor oficioso à sociedade arguida, aquando da notificação a esta última dirigida pela autoridade administrativa para que esta, querendo, apresentasse a sua defesa na fase administrativa do processo; e por força de tal declaração de nulidade, a nulidade de todo o processado ulterior à antedita notificação, com a devolução dos autos à autoridade administrativa para reparação da nulidade e desenvolvimento da subsequente tramitação processual.
2. Com efeito, não podemos concordar com o decidido pelo Tribunal recorrido.
3. Os factos tratados nestes autos não se revestem de complexidade e a sociedade arguida nunca requereu a nomeação de defensor oficioso ou apoio judiciário ou juntou aos autos comprovativo de que o tivesse feito ou sequer alegou a sua insuficiência económica.
4. Também não se alcança que a sociedade arguida preencha qualquer uma das condições legalmente previstas no art. 64º do Código de Processo Penal e na Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais que imporiam a nomeação oficiosa obrigatória de defensor oficioso.
5. Dos autos também não resulta qualquer facto que, em concreto, sugira a existência de circunstâncias específicas reveladoras da necessidade ou conveniência da sociedade arguida ter sido assistida por defensor aquando da notificação realizada nos termos do disposto no art.º 49º da L.Q.C.O.A.
6. A este respeito, cumpre chamar a atenção para a incongruência sistémica no contexto do ordenamento jurídico que nos envolve e para a falta de validade emergentes do critério adotado pelo Tribunal recorrido para concluir pela obrigatoriedade de defensor oficioso, isto é: ter sido entendida a obrigação de nomeação oficiosa de defensor por ter sido imputada à arguida uma contra-ordenação grave.
7. Se, após a impugnação judicial da decisão administrativa, a apresentação dos autos em juízo pelo Ministério Público, nos termos do disposto no art. 62º do R.G.C.O., equivale à acusação, como o próprio preceito legal reconhece, é imperativo concluir que a notificação do arguido em processo contra-ordenacional para apresentar a sua defesa equivale à figura do primeiro interrogatório não judicial em processo criminal.
8. Contudo, neste primeiro interrogatório não judicial a regra legal é de que o arguido não seja assistido por defensor, seja qual for a gravidade do crime.
9. Ora, se num processo criminal não existe, por regra, a obrigatoriedade legal para a nomeação de defensor ao arguido quando é confrontado com os factos processualmente pela primeira vez, independentemente da gravidade do crime, porque razão teria o legislador consagrado tal obrigatoriedade num processo menos “invasivo” dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos como é o processo contraordenacional para os casos de contraordenações graves ou muito graves? Porque razão o teria feito o legislador quando num processo contraordenacional, contrariamente ao que num processo penal sucede, nem sequer é abstratamente equacionável a aplicação duma sanção privativa da liberdade ao arguido?
10. Se aceitássemos a tese do Tribunal recorrido estaríamos a querer dizer que o legislador se “baralhou” e conferiu um regime mais garantístico aos arguidos em processo contraordenacional do que em processo criminal, o que não faz qualquer sentido, até porque o legislador em momento algum afirmou tal regra e é o interprete que no presente caso a retira da leitura que faz do espírito da norma.
11. É nosso parecer que, de acordo com a disciplina legal resultante da aplicação articulada do disposto nos arts. 53º do R.G.C.O., 64º do Código de Processo Penal e 39º da Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais, não existe no caso vertente nenhum fundamento para que tivesse sido nomeado defensor oficioso para assistir a sociedade arguida, pelo que o presente procedimento contraordenacional não padece de nenhum tipo de vício.
12. O Tribunal A Quo, ao ter considerado como obrigatória a nomeação de defensor oficioso para assistir a sociedade arguida em virtude de ser legalmente classificada como grave a contraordenação imputada àquela, violou, por errada aplicação e interpretação, o disposto conjugada e articuladamente nos arts. 41º e 53º do R.G.C.O., 64º do Código de Processo Penal e 39º da Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais.
13. A correta interpretação e aplicação conjunta e articulada de tais normativos no caso vertente impunha que tivesse sido considerada válida a notificação dirigida à sociedade arguida e toda a tramitação subsequente decorrente de tal ato porquanto inexiste qualquer obrigatoriedade legal de nomeação de defensor a arguido em sede contra-ordenacional só porque a infração que lhe é imputada é legalmente considerada grave ou muito grave.
14. Requer-se, portanto, com o presente recurso, que o Tribunal superior afirme a inexistência da nulidade declarada pelo Tribunal de 1ª Instância, confirme a validade do ato praticado pela autoridade administrativa nos termos em que foi realizado, bem como de todo os atos posteriores, e que, em consequência, ordene a prossecução dos autos com a sua regular tramitação na fase judicial do processo contraordenacional em que se encontram com a prática dos atos subsequentes tendentes à realização da audiência de julgamento atenta a impugnação parcial da matéria de facto realizada pela sociedade arguida.
Termos em que, e nos mais de direito aplicáveis, deve o presente recurso ser integralmente provido conforme o ora requerido.
MAS VOSSAS EXCELÊNCIAS FARÃO, COMO SEMPRE, O QUE MELHOR FOR DE JUSTIÇA!»
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Inicialmente rejeitado, o recurso veio a ser admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e sem efeito suspensivo do processo, na sequência da reclamação apresentada pelo recorrente e julgada procedente pela Exma. Sra. Desembargadora Vice-Presidente deste Tribunal da Relação do Porto (cf. apenso A, referência 16867036).
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, pugnou pela procedência do recurso.
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No cumprimento do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
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Decidindo.
Nos presentes autos de recurso de contraordenação, o tribunal de primeira instância proferiu a seguinte decisão, que suscitou a divergência do Ministério Público (segue transcrição):
«Veio a arguida A..., S.A. apresentar recurso da decisão administrativa proferida nos presentes autos (cfr. art.º 62.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, adiante designado por RGCO).
O tribunal é o competente (cfr. art.º 61.º, n.º 1 do RGCO).
O recurso é tempestivo e cumpre com as exigências de forma (cfr. art.º 59.º, n.º 3 do RCGO).
Deste modo, admito o presente recurso, de acordo com o disposto no art.º 63.º, n.º 1 do RGCO a contrario.
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A..., S.A., com sede na Rua ... ..., veio apresentar recurso da decisão da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, de 25/05/2022, que, pela prática da contraordenação ambiental grave, prevista e punida pelo art.º 18.º do Regulamento (CE) n.º 1013/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14/06, e pelo art.º 9.º, n.º 2, al. d) do DL n.º 45/2008, de 11/03, sancionável a título de negligência, nos termos previstos no art.º 22.º, n.º 3, al. b) da Lei n.º 50/2206, de 29/08, na sua atual redação, lhe aplicou uma coima no valor de 12.000,00€ (doze mil euros).
Concluiu o seu recurso invocando, entre o mais, a nulidade do processo administrativo consubstanciada na falta de nomeação de defensor oficioso na fase administrativa, dado que a infração imputada à arguida é qualificada pela legislação em vigor como grave.
Por sua vez, o Ministério Público, em sede de recebimento do recurso e introdução dos autos na presente fase judicial, pronunciou-se sobre a invocada nulidade, pugnando pela sua improcedência, porquanto entende que, de acordo com a disciplina legal resultante da aplicação articulada do disposto nos art.ºs 53.º do RGCO, 64.º do Código de Processo Penal e 39.º da Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais, não existe no caso vertente nenhum fundamento para que tivesse sido nomeado defensor oficioso para assistir a sociedade arguida, tendo-se oposto à decisão por mero despacho, verificando-se, deste modo, plenamente exercido o contraditório.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o art.º 53.º do RGCO que “o arguido da prática de uma contraordenação tem o direito de se fazer acompanhar de advogado, escolhido em qualquer fase do processo” (n.º 1), sendo que “a autoridade administrativa nomeia defensor ao arguido, oficiosamente ou a requerimento deste, nos termos previstos na legislação sobre apoio judiciário, sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido” (n.º 2) – sublinhado nosso.
Conforme vem sendo salientado pela doutrina maioritária, e com a qual sufragamos, a nomeação de advogado pela autoridade administrativa está dependente do facto de as circunstâncias do caso concreto relevarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido, podendo tais circunstâncias ser objetivas e estar relacionadas com a dimensão em abstrato da sanção aplicável e a sua repercussão na esfera económica do arguido ou assumir uma feição subjetiva e diretamente relacionada com uma diminuição da capacidade pessoal de defesa do arguido em virtude de razões pessoais, entendendo-se que cabem nos parâmetros daquela conveniência ou necessidade as situações elencadas no art.º 64.º, n.º 1, al. c) e d) do Código de Processo Civil ou, ainda, as situações de cometimento de uma contraordenação classificada como grave ou muito grave por norma expressa ou por referencia legal inequívoca – neste sentido ver, MENDES, António de Oliveira, e, CABRAL, José dos Santos – Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 2009, p. 177, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de – Comentário ao Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, outubro 2011, p. 226, DANTAS, Leonel – Considerações sobre o processo das contraordenações: a fase administrativa, 1995, p. 114, ANTUNES, Manuel Ferreira – Contraordenações e Coimas – Anotado e Comentado, 2005, pp. 299 e 300, SANTOS, Simas, e, SOUSA, Jorge Lopes de – Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, 2011, p. 403.
No caso dos autos, tal como consta da própria decisão administrativa, foi a sociedade arguida condenada pelo cometimento de uma contraordenação que a própria lei classifica como grave (cf. art.º 9.º, n.º 2, al. d) do DL n.º 45/2008, de 11/03), pelo que, sem necessidade de mais considerações, dúvidas não existem de que era obrigatória a nomeação de defensor à sociedade arguida.
Ora, a falta de defensor (incluindo a falta de nomeação) quando a lei exija a sua presença é causa de nulidade insanável do processo contraordenacional desde o momento em que ele devia ter intervindo, nos termos conjugados do art.º 64.º, n.º 1, al. h) e 119.º, al. c), ambos do Código de Processo Penal ex vi art.º 41.º, n.º 1 do RGCO (cfr. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de – Comentário ao Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, outubro 2011, p. 227).
Assim, sendo obrigatória a nomeação de defensor à sociedade arguida nos presentes autos e não tendo sido efetuada tal nomeação (conforme se extrai compulsados os autos, dado que se constata que a sociedade arguida somente constituiu mandatário aquando da interposição da impugnação judicial, tendo inclusive sido a própria administração da sociedade arguida a apresentar defesa perante a autoridade administrativa sem a constituição de mandatário, ou seja, atuando em toda a fase administrativa contraordenacional sem defensor – fls. 12 a 22 e 67), é nosso entender estarmos perante a supracitada nulidade insanável do processo contraordenacional, que se verifica desde a prolação pela autoridade administrativa do despacho, de 29/01/2018, que determinou a notificação da sociedade arguida nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 49.º da Lei n.º 50/2006, de 29/08 (fls. 9 a 10).
Tal nulidade, conforme prescreve o referido art.º 119.º do Código de Processo Penal ex vi art.º 41.º, n.º 1 do RGCO, é de conhecimento oficioso e pode ser declarada em qualquer fase do procedimento.
Ademais, importa sublinhar que o facto de o Ministério Público se ter oposto à decisão por mero despacho não obsta ao conhecimento de tal nulidade, dado que a presente decisão não constitui uma decisão de mérito (decisão que está subjacente no preceituado no art.º 64.º do RGCO), mas antes uma decisão formal, não se vislumbrando fundamento para que o tribunal tenha de designar data para audiência de julgamento quando constata, desde logo, a existência de uma nulidade processual insanável, decidindo nesse sentido, para além de que não se verifica, na presente decisão, qualquer ponderação da prova ou de direito relativamente à decisão administrativa.
Face ao exposto, nos termos do disposto no art.º 53.º do RGCO e nos art.ºs 64.º, n.º 1, al. h) e 119.º, al. c), ambos do Código de Processo Penal ex vi art.º 41.º, n.º 1 do RGCO, julgo verificada a nulidade insanável de falta de nomeação de defensor à sociedade arguida e, consequentemente, declaro nulo todo o processo contraordenacional desde o momento em que o defensor deveria ter intervindo, ou seja, desde o despacho proferido pela autoridade administrativa, a 29/01/2018 , que determinou a notificação da sociedade arguida nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 49.º da Lei n.º 50/2006, de 29/08 (fls. 9 a 10), devendo proceder-se à devolução dos presentes autos à autoridade administrativa a fim de ser suprida a referida nulidade.
Notifique.
Dê baixa.
Sem custas.»
A questão a assinalar no presente recurso prende-se, essencialmente, com a dimensão interpretativa da norma contida no art.º 53.º, n.º 2 do RGCC. O art.º 53.º do referido diploma legal, depois de estabelecer, no respetivo n.º 1, que «o arguido da prática de uma contraordenação tem o direito de se fazer acompanhar de advogado, escolhido em qualquer fase do processo», dispõe, no respetivo n.º 2, que «a autoridade administrativa nomeia defensor ao arguido, oficiosamente ou a requerimento deste, nos termos previstos na legislação sobre apoio judiciário, sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido».
Como justamente salienta a sra. juíza na decisão recorrida, vem sendo assinalado pela doutrina maioritária – e não vemos razões para dela divergir - que a nomeação de advogado pela autoridade administrativa está dependente do facto de as circunstâncias do caso concreto relevarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido, podendo tais circunstâncias ser objetivas e estar relacionadas com a dimensão em abstrato da sanção aplicável e a sua repercussão na esfera económica do arguido ou assumir uma feição subjetiva e diretamente relacionada com uma diminuição da capacidade pessoal de defesa do arguido em virtude de razões pessoais, entendendo-se que cabem nos parâmetros daquela conveniência ou necessidade as situações elencadas no art.º 64.º, n.º 1, al. c) e d) do Código de Processo Civil ou, ainda, as situações de cometimento de uma contraordenação classificada como grave ou muito grave por norma expressa ou por referência legal inequívoca – neste sentido ver, entre outros, MENDES, António de Oliveira, e, CABRAL, José dos Santos – Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 2009, p. 177, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de – Comentário ao Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, outubro 2011, p. 226, DANTAS, Leonel – Direito Processual das Contraordenações, p. 85.[1]
Como consta da própria decisão administrativa, a arguida foi condenada pelo cometimento de uma contraordenação que a lei classifica como grave (cf. art.º 9.º, n.º 2, al. d) do DL n.º 45/2008, de 11/03), razão pela qual concordamos que, nestas circunstâncias, era obrigatória a nomeação de defensor para intervir em sua representação.
Não tendo sido nomeado defensor à sociedade arguida durante toda a fase administrativa do processo, sendo certo que esta apenas constituiu mandatário para a representar aquando da interposição da impugnação judicial, importa determinar as consequências do incumprimento de tal formalidade.
Considerou o tribunal a quo que foi cometida uma nulidade insanável do processo contraordenacional – por isso, de conhecimento oficioso e suscetível de ser conhecida a todo o tempo (art.º 119.º do CPP, aplicável ex vi do art.º 41.º, n.º 1, do RGCO) -, que se verifica desde a prolação pela autoridade administrativa do despacho, datado de 29/01/2018, que determinou a notificação da sociedade arguida nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 49.º da Lei n.º 50/2006, de 29/08 (fls. 9 a 10).
Como é sabido, em matéria de nulidades processuais penais vigora o princípio da legalidade, de acordo com o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei (cf. art.° 118.°, n.°1, do Código de Processo Penal), sendo que, nos casos em que a lei não comine a nulidade, o ato ilegal é irregular (cf. art.º 118°, n° 2, do Código de Processo Penal).
Deste modo, o princípio da legalidade do processo e dos atos implica um numerus clausus dos fundamentos da invalidade, com o sentido de que a nulidade do ato não resulta da simples violação ou inobservância de disposições legais, mas tem que estar expressamente prevista como consequência da violação ou inobservância das condições ou pressupostos que a lei expressamente referir. A violação ou inobservância das condições ou pressupostos do ato, que não constitua nulidade, determina apenas a sua «irregularidade». [2]
No presente caso, tendo sido omitido o ato de nomeação de defensor à sociedade arguida, cuja observância se mostrava obrigatória dada a natureza grave da contraordenação que lhe era imputada, nenhuma dúvida subsiste de que foi praticado um ato processual à revelia do estatuído no nº 2, do citado artigo 53º, do RGCO, impondo-se, assim, em primeiro lugar, que se qualifique juridicamente aquele vício, para num segundo momento, uma vez que foi detetado, determinar os seus efeitos.
Para tanto, há que verificar se tal omissão é cominada pela lei como nulidade. Não o sendo, estaremos em face de uma mera irregularidade.
O regime geral das contraordenações e coimas não dispõe de qualquer norma específica a regular esta matéria, devendo ser supletivamente aplicadas as normas do processo penal (art.º 41.º, n.º 1, do RGCO).
As “nulidades insanáveis” são as que taxativamente estão indicadas no artigo 119.º, do Código de Processo, que estabelece o seguinte: “Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respetiva composição;
b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48°, bem como a sua ausência a atos relativamente aos quais a lei exigir a respetiva comparência;
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência;
d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;
e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n° 2 do artigo 32.°;
f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.”.
Portanto, o art.º 119.º, c) do CPP comina de nulidade insanável “a ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência”. Vem sendo entendido pela jurisprudência e alguma doutrina que esta situação deve ser equiparada à falta de nomeação de defensor no processo, quando esta é obrigatória, tendo sido também este o entendimento do tribunal a quo na decisão recorrida.[3]
Solução contrária levaria a uma compressão desproporcionada do direito ao defensor e ao exame contraditório das provas, inerentes ao princípio da defesa efetiva num processo equitativo, que estão consagrados nos artigos 20º nºs 1 e 4 e 32º nºs 1, 3 e 5 da Constituição, inclusivamente em relação à Administração (art.º 268º, nº4, da C.R.P.), no artigo 6º nº 3 al. c) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e nos artigos 47º e 48º nº 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Foi, assim, cometida uma nulidade insanável, consubstanciada na omissão de nomeação de defensor à sociedade arguida, durante a fase administrativa do processo contraordenacional, o que tem como efeito, nos termos do artigo 122º do CPP, a invalidade do ato que foi praticado e dos atos subsequentes, que dele dependerem – e, portanto, a nulidade de todo o processo contraordenacional desde o momento em que o defensor deveria ter intervindo, ou seja, desde o despacho proferido pela autoridade administrativa, a 29/1/2018, que determinou a notificação da sociedade arguida, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 49.º da Lei n.º 50/2006, de 29/8 (fls. 9 a 10 dos presentes autos).
Improcede, consequentemente, o presente recurso, nenhuma censura merecendo a decisão recorrida.
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Decisão.
Pelo exposto, julgo improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida e seus efeitos.
Sem custas, por delas estar isento o MP/recorrente.
Notifique e comunique, após trânsito, à autoridade administrativa (IGAMAOT), com cópia da presente decisão.
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94.º, n.º 2, do CPP)
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Porto, 21 de novembro de 2023.
Liliana de Páris Dias
com assinatura digital aposta no documento.
_________ [1] António Beça Pereira, in “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Coimbra, 1996, páginas 94/95, considera que deverá ser nomeado defensor, nos termos do n.º 2 do art.º 53.º em análise, em casos de especial complexidade jurídica ou fáctica – solução que se nos afigura de afastar, dada a sua natureza subjetiva e, por consequência, excessivamente casuística. [2] Cf. Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado (2014), anotação ao artigo 119º, pág.383, citado no acórdão deste TRP de 11/4/2018, relatado pelo Desembargador Luís Coimbra e disponível para consulta em www.dgsi.pt. [3] Cf., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3ª edição atualizada, pág. 185; na jurisprudência, os acórdãos deste TRP de 23/11/2016 (relatado pelo Desembargador Manuel Soares) e de 11/9/2019 (relatado pela Desembargadora Maria Dolores Silva e Sousa), disponíveis em www.dgsi.pt. Em torno da interpretação normativa prevista na alínea c) do n. ° 1 do artigo 119.º do Código Processo Penal, utilizando as palavras de José da Costa Pimenta (Código de Processo Penal Anotado, 2.ª edição, pág. 217), «O que constitui nulidade absoluta (ou insanável) é a sua falta de comparência, quando obrigatória (artigo 119.°, al. c) - o que pressupõe, no rigor dos princípios, que o defensor já esteja constituído ou nomeado e haja sido convocado para o acto, ou o devesse ter sido».