ACIDENTES DE TRABALHO
FASE CONCILIATÓRIA
FASE CONTENCIOSA
IPATH
Sumário

A fase contenciosa no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho tem por base o requerimento a que se refere o nº 2 do art.º 138º do CPT quando estão apenas em causa questões atinentes à fixação da incapacidade, incluindo a atribuição de IPATH.
(sumário da autoria da Relatora)

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa:

I- Relatório

Nos presentes autos emergentes de acidente de trabalho (ocorrido em 24.02.2021) em que é sinistrado AA foi por este apresentada petição inicial, com patrocínio do Ministério Público, contra “Fidelidade, Companhia de Seguros, SA” e “Generali Seguros, S.A.”, tendo sido formulado o seguinte pedido:
a) Se solicite a realização de inquérito profissional e estudo do posto de trabalho e respectivo parecer, a levar a cabo pelo Instituto do Emprego de Formação Profissional, a fim de ser possível enquadrar a actividade profissional do A. antes do acidente e apurar das suas actuais limitações, nos termos do artigo 21º, nº 4 da LAT;
b) O sinistrado seja submetido a perícia por junta Médica, ao abrigo do disposto nos artigos 139.º, n.º 1, do Código do Processo de Trabalho, 25.º, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro e 58.º, al. b), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 20 de Abril, para o que se junta a respectiva lista de quesitos em anexo.
E reclama, deste modo, das Rés:
a) A pensão anual, resultante da incapacidade que lhe for fixada, tendo em conta as retribuições anuais que estão assentes e as demais responsabilidades previstas na Lei;
b) Bem como de outras despesas de deslocação que por esta mesma razão venha a ter no decurso dos autos;
c) Com juros de mora vencidos e vincendos, sobre todas as antecedentes prestações, à taxa anual legal, desde a data dos respectivos vencimentos até integral pagamento.
Requereu ainda o A., à cautela, caso o Tribunal perfilhe entendimento diverso quanto à forma de início da fase contenciosa, «ao abrigo dos princípios da adequação e economia processual, que seja admitido o requerimento para realização de exame por junta médica que consta da petição inicial».
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Pela Exma. Juiz a quo foi proferido o seguinte despacho:
«(...) Quanto ao ulterior prosseguimento dos autos, mediante propositura de ação ou mediante realização de exame por junta médica
Sem prejuízo de revermos a nossa posição – porque a questão não se nos afigura linear – certo é que temos vindo a entender que a divergência sobre a existência (ou não) de IPATH é ainda e tão só uma divergência quanto à incapacidade (natureza da incapacidade) atribuída ao sinistrado. Saber se o sinistrado está afetado de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual é uma questão sobre a incapacidade, que cai a nosso ver no âmbito de aplicação do disposto no artigo 117º, nº 1, alínea b) do CPT. Por isso, se a única divergência respeita a este concreto ponto – não conformação com o resultado da perícia médica singular que atribuiu ou não atribuiu IPATH – o processo deve prosseguir para a fase litigiosa tendo por base requerimento de junta médica (cfr. artigo 138º do CPT).
E salvo melhor entendimento, a decisão sobre a IPATH não fica fragilizada por ser decidida tendo por base o requerimento para realização de junta médica, ao invés da propositura da ação, pois que mesmo sem petição inicial o juiz pode socorrer-se de outros elementos probatórios que auxiliem na formação da convicção, como o parecer do IEFP com a concreta descrição das funções do sinistrado e com a avaliação da compatibilidade das limitações de que padece com o exercício das funções inerentes à sua profissão. Pode ainda o Tribunal socorrer-se, se for esse o caso, de um exame por
junta médica da especialidade da Medicina do Trabalho, o qual pode ser realizado no posto de trabalho do sinistrado.
Acresce que a decisão sobre a IPATH tomada pelos peritos médicos obedece a um critério técnico-científico, mas tem que tomar necessariamente em consideração as tarefas específicas desempenhadas por aquele sinistrado em concreto na sua actividade habitual.
Em face do exposto, decido que os autos devem prosseguir para a fase litigiosa tendo por base o requerimento para junta médica, o que se determina.
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Considerando que o sinistrado, através da Digna Magistrada do Ministério
Público, concordou com o aproveitamento do requerimento para junta médica que apresentou na petição inicial, ao abrigo dos princípios da adequação e economia processual determino o aproveitamento do referido requerimento, devendo os senhores
peritos oportunamente responderem ao seguinte quesito formulado pelo sinistrado:1 - Por virtude das lesões e sequelas de que ficou a padecer, encontra-se o sinistrado impedido de exercer as funções essenciais atinentes ao posto de trabalho e sua atividade profissional de “oficial especializado de carnes”, estando em situação de IPATH?
Em caso de resposta negativa ao quesito anterior, requer-se que se fundamente a discordância.
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Previamente à realização do exame por junta médica e sem prejuízo da realização de outros exames que os senhores peritos entendam pertinentes, para que a junta médica melhor possa decidir sobre a existência de IPATH, solicite-se ao IEFP a elaboração do parecer prévio de peritos especializados a que alude o artigo 21º, nº 4, da Lei nº 98/2009, de 04/09, destinado a descrever as concretas funções do sinistrado, aferindo se as suas limitações atuais são ou não compatíveis com o exercício das suas
funções, e/ou se é reconvertível em relação ao seu posto de trabalho.»
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O sinistrado, com o patrocínio do Ministério Público, recorreu da decisão que recusou o recebimento da petição inicial e formulou as seguintes conclusões:

Determina o artigo 117º nº 1 do Código do Processo do Trabalho que a fase contenciosa da acção de acidente de trabalho tem por base:
-A petição inicial, em que o sinistrado, doente ou respectivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos;
- Ou o requerimento, a que se refere o n.º 2 do artigo 138.º, do interessado que se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho.

Da leitura conjugada de tais preceitos, resulta que o singelo requerimento da junta médica para a abertura da fase contenciosa da acção de acidente de trabalho apenas tem lugar quando o único ponto de divergência entre as partes é o grau de incapacidade atribuído em função das sequelas observadas e por todos reconhecidas como provenientes do acidente.

Já quando em causa se encontra o estabelecimento do nexo causal entre as sequelas de que o sinistrado se entende portador e a existência de IPATH, contrariando o resultado do exame médico, então a abertura da fase contenciosa da acção deve ser pelo mesmo promovida mediante a apresentação de petição inicial, acrescida do requerimento de perícia por junta médica.

Nestes casos, em que aquilo que se discute não é apenas o grau de incapacidade apresentada, mas o nexo causal entre a incapacidade existente e o acidente, então é ao julgador que compete apreciar, fazendo para o efeito uso, não só da prova pericial (obtida através da junta médica requerida), mas também da prova documental e testemunhal apresentada.

O que se pede ao Juiz, neste caso, não é apenas que fixe o grau de incapacidade ao sinistrado, é que fixe esse grau considerando que as sequelas apresentadas e a existência de IPATH decorreram do acidente.

As conclusões a que chegam os senhores peritos, são limitadas ao domínio técnico-científico.

O juízo a fazer quanto à questão de saber se as lesões/sequelas determinam, ou não, IPATH passa também pela apreciação do tipo de tarefas concretas que o trabalho habitual do sinistrado envolve conjugado, se for o caso, com outros elementos probatórios e com as regras do conhecimento e experiência comuns, o que extravasa um juízo puramente técnico-científico.

E tal implica a produção de prova, ouvir testemunhas e perceber qual a actividade concretamente desenvolvida pelo sinistrado.

E, quando assim é, o motivo de divergência ultrapassa a mera análise pericial para que se convoca o regime previsto nos artigos 117º nº 1 al. b) e 138º nº 2 do Código do Processo do Trabalho.
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, deverá dar- se provimento ao recurso, revogando-se o despacho que decidiu não receber a petição inicial apresentada pelo sinistrado.
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“Fidelidade, Companhia de Seguros, SA” contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
1. A Tentativa de Conciliação dos presentes autos, frustrou-se em virtude de o sinistrado não concordar apenas com a circunstância de não lhe ter sido atribuída IPATH.
2. A existência de acidente, a sua caracterização como acidente de trabalho, as lesões e as sequelas que do mesmo emergiram, a data da alta e retribuição auferida e transferida, mereceram a concordância das partes.
3. A ser assim, o processo deveria seguir com a apresentação do requerimento de junta médica a que alude o artigo 138º nº2 do CPT e nunca, com a apresentação de uma petição inicial, como pretende o sinistrado.
4. O sinistrado pugna pela atribuição de IPATH sem, contudo, trazer aos autos qualquer relatório clínico que o suporte.
5. O sinistrado vai mais longe, ao sustentar que está em discussão o nexo causal entre as sequelas e as consequências para a atividade profissional exercida à data do acidente.
6. Contudo, entende a Recorrente que o nexo causal a determinar é sempre aquele que se estabelece ou não entre o acidente e as lesões e, esse foi perfeitamente fixado no exame médico singular. O sinistrado é portador de uma incapacidade permanente parcial de 7,5 % em consequência do acidente de trabalho dos autos, pelo que dúvidas não restam que o nexo causal entre o acidente e as lesões está estabelecido.
7. No presente caso, não estamos perante uma verdadeira divergência de nexo, mas sim perante uma divergência de incapacidade (independentemente de ser para o trabalho habitual ou não);
8. Aliás, veja-se que nos termos do disposto na al. b) do ponto 5.A, do anexo I da TNI, a avaliação para atribuição de incapacidade absoluta para o trabalho habitual deve ser feita por uma junta pluridisciplinar composta por um médico do Tribunal, um médico representante do sinistrado e um médico representante da entidade legalmente responsável.
9. Diga-se ainda que o processo seguir para a tramitação que lhe compete (i.e. junta médica) em nada prejudica os direitos do sinistrado, uma vez que caso o Mª Juiz entenda que a junta médica não foi suficiente para formar a S/ convicção, poderá sempre requerer meios de prova adicionais.
10. A lei é clara e a jurisprudência também! Sempre que as questões relativamente às quais não houve acordo na fase conciliatória estejam diretamente relacionadas com a incapacidade permanente, terão de ser dirimidas em sede de junta médica, pelo que o presente processo deverá seguir a tramitação a que alude o 138º n.º 2 do CPT.
Terminou, pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.
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II- Importa solucionar no âmbito do presente recurso se os autos devem prosseguir para a fase litigiosa tendo por base o requerimento para junta médica.
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III- Apreciação
Conforme resulta do disposto no art.º 117º, nº1 do CPT, a fase contenciosa tem por base:
a) Petição inicial, em que o sinistrado, doente ou respectivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos;
b) Requerimento, a que se refere o nº 2 do art.º 138º, do interessado que se não conforma com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho.
O requerimento a que se refere o nº 2 do art.º 138º do CPT é formulado se na tentativa de conciliação apenas tive havido discordância quanto à questão da incapacidade.
Vejamos o caso concreto.
Consta do auto de exame médico: «AT 24.2.2021 rotura da coifa do ombro direito; assistido avaliado e seguido pelo segurador foi tratado por via artroscópica sem intercorrências; recuperação subsequente de programa de FT; períodos de IT do segurador a fls 12 autos – acresce ITP 40 % de 6.3.2021 a 12.3.2021; data de consolidação ML das lesões fixável em 7.2.2022
ATUAL
défices das mobilidades conjugadas do ombro direto, Grau I;
fator 1,5 pela idade».
As lesões do sinistrado foram pelo sr. perito médico integradas no capítulo I 3.2.7.3 a) da TNI.
Foi arbitrada ao sinistrado uma IPP de 7,5%, a partir de 08.02.2022.
Foi realizada tentativa de conciliação no dia 23.03.2023 e consta da respectiva acta:
«(…) Iniciada a diligência resulta dos autos que:
1. Data do acidente – 24/02/2021,
2. Local do acidente – Loures,
3. Entidade patronal, sob cuja orientação e direcção trabalhava – BB, SA,
4. Desempenhando as funções de cortador de carnes,
5. Descrição do acidente – o sinistrado ao deslocar-se do talho à peixaria para ir entregar um PDA a um colega, tropeçou em algo e caiu no chão sobre o lado direito do corpo.
6. Lesões corporais sofridas no acidente – rotura da coifa do ombro direito. Actualmente apresenta défice das mobilidades conjugadas do ombro direito – grau I;
7. Incapacidades temporárias atribuídas pelo senhor perito médico: as mesmas que a seguradora acrescidas de:
- ITP de 40% de 06/03/2021 a 12/03/2021 – 8 dias
8. Grau de incapacidade permanente parcial atribuído pelo senhor perito médico do Tribunal – 7,5%.
9. Data da alta clínica – 07/02/2022,
10. À data do sinistro auferia a retribuição salarial mensal de 830,00€ x 14 meses, no total de 9.960,00€, acrescido de subsídio de alimentação de 6,00€ x 242 dias, no total de 1.452,00€, acrescido de outras remunerações de 217,83€ x 12 meses, no total de 1.613,96€, acrescido de subsídio de férias de 939,45€, acrescido de subsídio de Natal de 830,00€, na totalidade anual de 15.795,41€

 Sinistrado

O sinistrado declarou que pretende ver reconhecidos os direitos legalmente para si resultantes do acidente de trabalho dos autos –
11. Concorda com as incapacidades temporárias que lhe foram fixadas e com a data da alta.
12. Concorda com a incapacidade permanente parcial de 7,5 % que lhe foi atribuída, mas entende que se encontra com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, pelos motivos que passa a explicar:
a) Como perdeu a mobilidade completa do ombro direito, e é destro, deixou de conseguir fazer os movimentos de cortar carne e de desossar, entre outros;
b) Assim deixou de ser oficial especializado de carnes (vulgo oficial cortador), e teve que ser requalificado para o posto de operador especializado, desempenhando funções de repositor de peixe congelado e manuseio de serra eléctrica de corte de peixe, nomeadamente bacalhau e a máquina eléctrica de peixe congelado;
c) Por exemplo, no corte de carnes, todo ele manual, tem que se ter destreza para efectuar corte fino, partir costeletas ou chispe, tudo o que implica um esforço adicional, nomeadamente o bater;
d) Tal facto implicou que deixou de ser cortador de carnes, para ser repositor, com implicações no salário;
e) Por exemplo, actualmente um oficial especializado de carnes na sua empresa aufere cerca de 950€ e o sinistrado na categoria para a qual foi requalificado ficou a auferir 875€;
f) Era cortador de carne, desde os 14 anos, pelo que aquele era o seu ofício e teve que se adaptar;
g) Era um trabalhador especializado e passou a ser um trabalhador indiferenciado;
13. Não está integralmente pago das indemnizações devidas por incapacidade temporária por si sofridas uma vez que apenas foi ressarcida relativamente aos períodos considerados pela seguradora;
14. Número de deslocações a este Tribunal por virtude dos autos – 2;
15. Requer que o pagamento das indemnizações a que tenha direito seja realizada através de IBAN para o número já conhecido nos autos e para o qual a seguradora realizou os pagamentos de IT.
Pelo que não se concilia, porque requer a propositura de acção para ver reconhecida a existência de IPATH.

Seguradoras

As Companhias Seguradoras, através dos seus legais representantes, declararam o seguinte em relação às pretensões do sinistrado:
1. Reconhecem o acidente sofrido pelo sinistrado como acidente trabalho.
2. Aceitam o nexo de causalidade entre tal acidente de trabalho e as lesões sofridas pelo sinistrado.
3. Aceitam que a responsabilidade por acidentes de trabalho em relação ao sinistrado estava para si transferida com referência ao montante salarial mensal de 830,00€ x 12 meses, acrescido de subsídio de alimentação de 6,00€ x 242 dias, no total de 1.452,00€, acrescido de outras remunerações de 217,83€ x 12 meses, no total de 1.613,96€, acrescido de subsídio de férias de 939,45€, acrescido de subsídio de Natal de 830,00€, na totalidade anual de 15.795,41€,
4. Não concordam com as incapacidades temporárias que foram fixadas ao sinistrado, pelo Exmo. Perito Médico do tribunal,
5. Concordam com a data da alta;
6. Não concordam com a incapacidade permanente parcial de 7,5% que foi atribuída ao sinistrado.
Face ao exposto, não se conciliam.
Reconhecem ser devedora ao sinistrado (na proporção das respectivas responsabilidades) dos seguintes direitos patrimoniais, que se obrigam a pagar-lhe:
a) A pensão anual e vitalícia no montante que vier a resultar da IPP atribuída em sede junta médica
b) Despesas de deslocação a este Tribunal por virtude dos autos – 20€ (…)»

Resulta do exposto que as divergências entre as partes incidem quanto às questões atinentes à incapacidade. Não ocorrem divergências quanto ao nexo causal entre o evento e as lesões[1]. A divergência essencial referente à atribuição (ou não) de IPATH pode ser resolvida com base na realização de exame por junta médica e no parecer já solicitado ao IEFP[2].
Perante o actual quadro fáctico, entendemos que a decisão recorrida (que determinou a continuação dos autos na fase litigiosa tendo por base o requerimento para junta médica) é a adequada e está conforme o preceituado nos citados art.ºs 117º, nº 1 e 138º, nº2 do CPT.
Improcede, desta forma, o recurso de apelação.
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IV- Decisão
Em face do exposto, o Tribunal acorda em julgar improcedente o recurso de apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Sem custas, atenta a isenção do sinistrado.   

Lisboa, 14 de Dezembro de 2023
Francisca Mendes
Leopoldo Soares
Alves Duarte
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[1] Sobre situações diversas versam os Acórdãos desta Relação de 02.05.2007 e 15.09.2021- www.dgsi.pt.
[2] Vide, quanto à possibilidade de o Tribunal solicitar pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos, o preceituado no art.º 139º, nº 7 do CPT.