RESOLUÇÃO CÉLERE DE SINISTRO
PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO
TVDE
CRITÉRIO INDEMNIZATÓRIO
Sumário

I.–A celeridade e a colaboração honesta e leal na resolução do sinistro, que se impõem entre a seguradora e o tomador, o segurado ou o beneficiário, são deveres que se justificam especialmente neste tipo de contrato por só assim se poderem tomar as medidas necessárias a minorar os prejuízos e a cumprir adequadamente os fins contratuais. Quanto mais depressa se encontre uma solução justa para o caso, tanto melhor. É, pois, com este fito que as partes devem colaborar na regularização dos acidentes.

II.–Sendo exclusiva a responsabilidade do obrigado à indemnização, o termo final da contabilização do dano da privação do uso corresponde ao momento em que é disponibilizada a indemnização devida.

III.–Na procura de um montante equitativo diário pode considerar-se, como mero indicador, o valor estabelecido no acordo firmado entre a Associação Portuguesa de Seguradores e a Associação Empresarial de Operadores de TVDE, sendo validado tal valor quando no âmbito negocial em momento anterior ao recurso à arbitragem, já a Autora havia aceite a utilização do valor fixado pelas Associações do sector.

  (Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO:


E…, LDA, com sede … solicitou junto da L…, SA, o pagamento de indemnização relativo ao período de paralisação da viatura …VC.
Arguiu que a Companhia de Seguros assumiu a responsabilidade do seu segurado, pelo que lhe competirá pagar à requerente o valor de indemnização diária, para fazer face à imobilização da viatura, de 57,08€/dia, conforme o acordo paralisação AEO-TVDE/APS, assim, solicitando o valor total de 13.527,96 € (237 dias a contar desde o dia do acidente em 20 de fevereiro de 2022 até à entrada do processo no Centro de informação, mediação e arbitragem de seguros).
Sujeito pelas partes o litígio ao Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros, foi proferida decisão pelo arbitro na qual se considerou a reclamação parcialmente procedente por provada e, em consequência, se condenou a Reclamada a pagar à Reclamante a quantia de €12.043,88.

Inconformada veio a reclamada recorrer para o Tribunal estadual, com as seguintes conclusões:
«1.–Nos termos do disposto nos arts.0 627.°, 629.°, n.° 1, 631.°, n.° 1, 637.°, n.° 1 e 2, 638.° e 639.°, todos do CPC, vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida a fls, com a qual, salvo o devido respeito, a Recorrente não se poderá conformar.
2.–O presente recurso visa, desde logo, a alteração da matéria de facto, pelo que, pelas presentes alegações de recurso, vem a ora Recorrente: Impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, nos termos previstos no art.° 640.° do CPC, adiante especificando os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, assim como as concretas provas constantes no processo, que impõem decisão diversa da recorrida e que, salvo o devido respeito, deverão ser renovadas; Pugnar pela alteração do teor da sentença proferida, com base na factualidade dada como provada (e não provada) nos presentes autos que, salvo o devido respeito, não apreciou devidamente a prova produzida em sede de Audiência de Julgamento e nem interpretou e aplicou correctamente os preceitos 483.°, 562.°, 563.°, 566.°, n.° 3 e 570.°, n.° 1, todos do CC.
3.–O Tribunal a quo deu como não provado: ‘‘que a Reclamante recebeu a carta da Reclamada datada de 17/03/2023, nem as eventuais razões que levaram a Reclamada a só efetuar a peritagem em agosto de 2022", facto esse que a aqui Recorrente se insurge e com o presente recurso se impõe que passe a constar da matéria dada como provada, nos termos do disposto na al. c) do n.° 1 do art° 640.° do CPC.
4.–Importa ter em conta os seguintes depoimentos: M…, representante legal da aqui Recorrida, cujo depoimento ficou gravado em ficheiro de áudio com referência 1954 1, com a duração desde os 00:00 minutos até aos 13:10 minutos; F…, gestor de seguros, cujo depoimento ficou gravado em ficheiro de áudio com referência 1954 2, com a duração desde os 00:00 minutos até aos 36:55 minutos.
5.–Relativamente à factualidade dada como não provada atente-se o depoimento da testemunha F…. Quando questionado pela mandatária da aqui Recorrente acerca da assunção de responsabilidade pelo sinistro, o mesmo referiu o seguinte: “Nós comunicamos a todos os envolvidos, no dia 17 de marco comunicámos a nossa posição era de assunção de responsabilidade.". (minuto 02:12 até 02:37).
6.– Testemunha: Sim, portanto, o Reclamante E... a partir do momento em que nós comunicámos a assunção da responsabilidade, poderia e deveria, pensamos nós, ter tomado uma qualquer iniciativa, fosse de reparação ou fosse de outra qualquer, mas nunca recebemos contacto deles nesse sentido."(minuto 03:16 até 03:50).
7.–Testemunha: Exactamente, a partir de 17 de Março a E... sabia que a companhia Lusitânia estava à disposição para pagar os prejuízos decorrentes do acidente." (minuto 04:41 até 04:55).
8.–Daqui se retira, que a Recorrida, desde o dia 17/03/2022 tinha conhecimento, através de comunicação que lhe foi endereçada, de que a Recorrente assumia a responsabilidade pela regularização dos danos decorrentes do sinistro em apreço.
9.–“Nós comunicámos no dia 17 de março (…) [leia-se, a responsabilidade pelo sinistro].Nós ternos uma carta registada que enviámos para os intervenientes, inclusivamente para a E... (...) a dizer que assumíamos a responsabilidade do acidente." (minuto 14:24 até 14:41).
10.–Sendo que confirma, no minuto 25:07. a testemunha e o Mmo. Juiz, que esta é a mesma morada por onde seguiu a carta da comunicação da perda total que a recorrida confessa ter recebido a 29/08/2022.
11.–Do depoimento da testemunha, retira-se que a Recorrida confessa ter recebido a carta datada de 29/08/2022, cujo endereço para o qual foi remetida é exactamente o mesmo do constante da carta datada de 17/03/2022 remetida pela Recorrente a informar que se responsabilizava pela regularização dos danos decorrentes do sinistro.
12.–“Mandatária: Não recebeu nenhuma carta no dia 17 de março a dizer que assumiam [leia-se, a Recorrente] a responsabilidade pela reparação do veículo da E...? Reclamante: Não, esta carta para mim chegou agora às mãos é novidade.” (minuto 01:12 até 01:26).
13.–Ora, acontece que a Mandatária, de seguida, confronta a Recorrida com a carta em apreço, sendo que, se deve salientar, a referida carta apenas foi junta aos autos, a requerimento da Mandatária da Recorrente e sem oposição da Recorrida, durante a Audiência de Julgamento - como se referiu supra.
14.–Acontece que quando a Recorrida é confrontada com a documentação em causa, o Mmo. Juiz prepara-se para o fazer - via partilha de ecrã virtualmente - quando a Recorrida diz “Eu tenho, eu tenho na mão” (minuto 01:36-01:37).
15.–Das declarações de parte do representante legal da Recorrida resulta ainda o seguinte: “Mandatária: Mas esse endereço para o qual a carta está endereçada era o endereço correcto da E... em 2022? Reclamante: Não, não era.
Mandatária: O sr. não recebia cartas aqui nesta morada?
Reclamante: A sede mudou. Por isso é que eu perguntei como é que tinham chegado a esta morada.
Mandatária: Portanto as cartas que iam para esta morada, o que é que lhes acontecia?
Reclamante: Não sei. (...) Umas eram entregues.(...) Não, desculpe. Esta morada da sede, eram entregues. Isto até era uma morada que era do contabilista. (...)
Mandatária: Portanto as cartas que iam para essa morada, eram entregues depois à sociedade porque era a morada do contabilista é isso?
Reclamante: Exactamente, sim, sim(minuto 02:34 até 03:55).
16.–Efectivamente, resulta das declarações proferidas pelo representante legal da Recorrida que as cartas entregues na morada endereçada na carta remetida pela Recorrida a 17/03/2022 a assumir a totalidade da responsabilidade pelo sinistro, eram entregues à Recorrida!
17.–Assim e perante as declarações de parte da Recorrida e o depoimento da testemunha F..., deveria o douto Tribunal a quo ter dado como provado que a Reclamante recebeu a carta da Recorrente datada de 17/03/2022, a assumir a totalidade da responsabilidade pelo sinistro.
18.–É o próprio Tribunal a quo, salvo o devido respeito, que se contradiz quando profere uma sentença onde dá como não provada a entrega/conhecimento da carta supra referida, mas, simultaneamente, dá como provado o facto n.° 8, segundo o qual "As cartas entregues nessa morada eram posteriormente entregues à Reclamante.".
19.–Estamos perante uma contradição entre a fundamentação e a decisão proferida.
20.–De facto, salvo o devido respeito, os elementos de prova supra referidos não corroboram, no entendimento da ora Recorrente, as conclusões a que chegou o douto Tribunal a quo, no que concerne ao período temporal de contabilização da privação do uso do veículo, para efeitos de indemnização.
21.–Mantém a Recorrente a profunda convicção de que a matéria de facto considerada como provada (e não provada) nos presentes autos impunha, no caso concreto, uma decisão diferente no que toca quer em relação ao tempo de contabilização do dano da privação do uso, quer em relação ao montante arbitrado a final a título de indemnização pela privação do uso do veículo ...VC.
22.–Face à factualidade considerada como provada (e não provada) supra transcrita, com o devido respeito e salvo melhor entendimento, a Recorrente sempre dirá que a quantia arbitrada pelo Tribunal a quo, a título de indemnização pela privação do uso do veículo ...VS peca por exagero, desde logo porque no cômputo da referida indemnização foi considerado um período temporal manifestamente exagerado e desproporcional, conforme melhor se verá infra.
23.–Deverá o Tribunal ad quem dar como provado o facto “que a Reclamante recebeu a carta da Reclamada datada de 17/03/2023, devendo-se contabilizar, para efeitos de indemnização por privação de uso de automóvel, 25 dias ao invés dos 211 dias plasmados na douta Sentença recorrida.
24.–Assim, sem estar em causa a configuração do sinistro de viação ou a distribuição da culpa, a Recorrente vem-se insurgir contra o montante indemnizatório arbitrado na douta sentença recorrida a título de indemnização pela privação do uso do veículo ...VS, uma vez que, entende que tais montantes se afiguram manifestamente desajustados, por excessivos, desproporcionais e incongruentes, atenta a factualidade julgada provada (e não provada) nos autos e, bem assim, os critérios jurisprudenciais actualmente seguidos pela nossa jurisprudência, encontrando-se, nessa medida, incorrectamente interpretadas e/ou aplicadas as normas legais previstas nos arts.0 483.°, 562.°, 563.°, 566.°, n.° 3 e 570.°, n.° 1, todos do CC.
25.–Ora, não obstante as diversas teses em torno do tema da privação do uso de veículo, no entendimento da Recorrente e na esteira de grande parte da jurisprudência dos Tribunais Superiores, esta privação não basta, só por si, para fundar uma obrigação de indemnizar, incumbindo ao lesado uma obrigação de efectiva prova da existência de prejuízos de ordem patrimonial decorrentes da não utilização do bem.
26.–Sendo certo que, da matéria considerada como provada nos presentes autos e supra transcrita, não resultou que a Recorrida tenha sofridos danos decorrentes da privação do uso do veículo ...VS e em que medida.
27.–Efectivamente, da matéria de facto dada como provada, apenas resultou que “o veículo sinistrado estava afecto à actividade de TVDE e que do acidente resultou a perda total do mesmo, cujo valor, aliás, já foi pago à Reclamante pela Reclamada. Assim, não podem restar dúvidas de que a Reclamante tem direito a ser indemnizada pelo tempo em que ficou privada do seu veículo tendo em conta o disposto nos artigos 483°, n.° 1 e 563.° do Código Civil
28.–Ora, a Recorrida, nos autos em apreço, nem sequer logrou de alegar os concretos prejuízos de que sofreu com esta imobilização.
29.– De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04/07/2013, Processo n.° 5031/07.7TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. “a privação do uso de um veículo automóvel não é suficiente para nela fundar a obrigação de indemnizar, a não serem alegados e provados danos emergentes e (ou) lucros cessantes por aquela causados”.
30.–Repita-se que, da parte da Recorrida, não houve qualquer alegação e, muito menos, prova, de que, de facto, a privação do veículo ...VS provocava na sua esfera jurídica danos, conforme, de resto, facilmente se constata da matéria considerada como provada nos presentes autos.
31.–Motivo pelo qual, face à ausência de suporte fáctico capaz de consubstanciar a indemnização peticionada pela Recorrida, a título de privação do uso do veículo ...VS, a aqui Recorrente entende que nem sequer devia ter sido condenada a indemnizar a Recorrida por este alegado dano.
32.–Neste sentido e face o que antecede, entende a Recorrente que nenhuma indemnização deverá ser arbitrada à Recorrida, a título de privação de uso do veículo ...VS, porquanto a mesma não logrou provar a existência de prejuízos vertidos na sua esfera jurídica em consequência dessa privação.
33.–Poderia a Recorrida socorrer-se de prova documental dos rendimentos efectivos da viatura anteriores ao acidente, porém não o fez!
34.–Assim, a douta sentença recorrida deve Ser revogada e, em consequência, a Recorrente ser absolvida do pagamento da indemnização arbitrada pelo Tribunal a quo, a título de privação do uso do veículo, sob pena de violação do preceituado nos arts.° 483.°, 562.° e 563.°, todos do CC.
Ainda assim,
35.–Considerando-se que a Recorrente deverá ser condenada a liquidar à Recorrida uma indemnização pela privação da utilização do veículo ...VS, sempre se dirá que, não sendo possível quantificar o dano em valores certos face aos factos provados, o Tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos do art.° 566.°, n.° 3 do CC - conforme defendido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 06/02/2018, Processo n.° 189/16.7T8CDN.C1.
36.–Com efeito, no caso vertente, nenhum sentido faz que a Recorrente tenha sido condenada a pagar à Recorrida o valor de 57,08€ diários, por referência à privação do uso do veículo ...VS quando não resultou provado que a Recorrida tenha, efetivamente, sofrido esse prejuízo diário, na sequência da impossibilidade de utilizar o veículo ...VS.
37.–Ora, o Tribunal a quo fixou essa quantia tendo em conta o acordo celebrado entre a AEO TVDE e a ATS, cuja Tabela a ele anexado determina um valor diário de compensação de paralisação de 57,08€.
38.–Ainda que este acordo exista, o mesmo só vincula as seguradoras e empresas a ele associadas, o que não é o caso da aqui Recorrente.
39.–Por conseguinte, não deverá, assim, ser aplicado diretamente e sem mais um valor indemnizatório apenas porque vem estipulado no referido acordo.
40.–Neste sentido vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/10/2022, segundo o qual “existe Acordo firmado entre a “Associação Portuguesa de Seguradoras" e a “AEO-TVDE - Associação Empresarial de Operadores de TVDE”, sobre os valores indemnizatórios a atribuir em caso de paralisação de viaturas decorrentes de sinistros rodoviários. Trata-se, porém, como resulta de tal documento, e nomeadamente das cláusulas que transcreveram aquando da adição de factos à decisão factual, dum acordo vincula apenas as seguradoras e empresas respetivamente associadas.". Assim,
41.–Cumpre ao Tribunal, ao invés, determinar uma eventual indemnização justa, adequada, proporcional e aplicada ao caso concreto, tendo em conta os critérios de equidade presentes no art.° 566.°, n.° 3 do CC e o entendimento jurisprudencial dos Tribunais Superiores.
42.–Porém, ainda que se aceita a aplicação do acordo, há que ter em conta o Acórdão supra identificado segundo o qual que “Provando-se que o veículo sinistrado e que ficou imobilizado por via do acidente era destinado pelo seu proprietário à atividade de prestação de serviços TVDE, nada obsta que na formulação do juízo equitativo, o juiz possa sopesar em indicativos os valores indemnizatórios previstos em “Acordo de Paralisação" celebrado entre a Associação Portuguesa de Seguros e a Associação Empresarial de Operadores TVDE, ainda que o lesado não seja dela associado". Mais,
43.–"Podemos, ainda, assim, e à míngua de outros elementos, questionar a possibilidade de lançar mão dos valores indemnizatórios referenciados em tal acordo (...) para encontrar a indemnização justa no caso concreto. Não nos repugna tal possibilidade, desde que os mesmos sejam meramente indicativo e a considerar conjunta e conjugadamente com a facticidade do caso concreto, que, salvo o devido respeito, não sucedeu em 1ª instância onde (...) se optou por aplicar directamente um valor indemnizatório previsto num acordo celebrado entre duas associações, fruto, seguramente, de discussão e negociações específicas em prol dos interesses dos respectivos associados, e que por tal razão, e sem uma justificação convincente não poderia ser aplicado, sem discussão(...).”.
44.–Assim, salvo devido respeito, o Tribunal a quo deveria ter encetado igual entendimento aquando da concretização da indemnização a atribuir à Recorrida.
45.–Assim, sempre cumprirá ressalvar que este acordo é mera mente indicativo, não podendo ser aplicado, sem mais, a toda e qualquer situação, independentemente das circunstâncias casuísticas, não podendo os valores nele constantes infirmar o que vem sendo fixado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Isto posto,
46.–É entendimento do Tribunal ad quem, no acórdão supra identificado, fixar o seguinte, “cumpre determinar a indemnização que reputamos como justa, adequada e proporcional. Ora, partindo da realidade factual disponível e como já mencionámos, muito escassa, em particular no que tange à utilização que em concreto era dada ao veículo, e mesmo ponderando referencialmente os valores indemnizatórios fixados por terceiros que laboram no mesmo sector (...) logramos alcançar um valor indemnizatório diário superior a €20,00, considerando, inclusivamente, os valores que vêm sendo fixados pela nossa jurisprudência.
47.–Ora, no caso em apreço, também a Recorrente desconhece factores essenciais como a quantidade de turnos realizados pela Recorrida, se o veículo era utilizado diariamente, a quantidade de clientela que tinha diariamente, entre outros.
48.–Neste sentido vide, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/10/2022, segundo o qual “Ora, a Autora e ora apelante não demonstrou factos susceptíveis de evidenciar o tipo de utilização que em concreto dava ao veículo no exercício da sua actividade comercial: o mesmo era utilizado diariamente? para todo o tipo de transportes de passageiros? apenas para alguns serviços em concreto? Trata-se de questões cujas respostas revestiriam utilidade no ajuizamento sobre a indemnização a arbitrar, mas que não encontram eco na matéria de facto a considerar.”.
49.–Neste sentido e face a tudo o que antecede, entende a Recorrente que, considerando-se não ser necessária a prova dos danos concretos causados pela privação do uso do veículo em causa, a ser atribuída qualquer indemnização à Recorrida a este título, sempre deverá a referida indemnização ser fixada com recurso a critérios de equidade, nos termos do art.° 566.°, n.° 3 do CC e, em acréscimo, tendo sempre em conta o que é fixado pelos Tribunais Superiores.
50.–Assim, entende a Recorrente que a douta sentença recorrida deverá ser revogada e alterada nos termos ora requeridos, sob pena de violação do disposto nos arts.° 483.°, 562.°, 563.° e 566.°, n.° 3, todos do CC.
Porém, à cautela cumpre referir,
51.–Ainda que se aceite o lavrado na sentença recorrida, há que salientar que os cálculos estão incorrectos.
52.–Assim sendo, entre as datas supra referidas ocorre um período temporal de 190 dias aos quais acresce os 20 dias definidos no art.° 3.°, n.° 11 do acordo entre a AEO-TVDE e a APS.
53.–Por conseguinte, tal dará um total de 210 dias e não de 211 dias, o que perfaz um total indemnizatório de 4.200,00€ - (210 dias x 20,00€) - ao invés de 12.043.88C.
Mais,
54.–Além da questão da inexistência de prova dos danos causados pela privação do uso e da indemnização diária fixada pela doutra sentença ora recorrida, a Recorrente não poderá, igualmente, concordar com o período temporal considerado pela douta sentença para efeitos de privação do uso, nomeadamente os 211 dias.
55.–Afigura-se manifestamente desproporcional condenar a Recorrente a indemnizar a Recorrida pela privação do uso do veículo ...VS desde a data do acidente (20/02/2022) até à comunicação pela Recorrente da perda total do veículo (29/08/2022).
56.–Isto porque os factos dados como provados n.° 6,7 e 8, impõem decisão diversa daquela que a douta sentença recorrida alcançou, pelo que deverá ser apreciada.
57.–Face à prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, entende a Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter considerado provado que “a Reclamante recebeu a carta da Reclamada datada de 17/03/2022”.
58.–Tendo a Recorrente assumido a responsabilidade pelo sinistro a 17/03/2022 e o mesmo tendo ocorrido a 20/02/2022, tal perfaz 25 dias de indemnização por conta da paralisação do veiculo.
59.–O quantum indemnizatório terá de ser, novamente, contabilizado pelo Tribunal ad quem tendo em conta critérios de equidade (cfr. o art.° 566.°, n.° 3 do CC).
60.–Porém, tendo em conta o entendimento deste douto Tribunal ad quem noutra jurisprudência, tal quantum equivalerá a 20,00€ diários.
61.–Feitos os cálculos, deverá a Recorrente, caso assim se decida, indemnizar a Recorrida num valor nunca superior a 500,0Q€ (25 dias x 20,00€).
62.–Por conseguinte, o Tribunal a quo, atendendo à prova documental, testemunhal e às declarações de parte da Recorrida nos autos, não formulou o devido juízo de valor em relação ao período temporal a contabilizar para efeitos de indemnização de privação de uso do veículo ...VS. pelo que se deverá dar como provado o facto de que a Recorrida recebeu a carta da Recorrente datada de 17/03/2022 a assumir a totalidade da responsabilidade pelo sinistro, alteração essa que se requer, desde já, por meio do presente recurso.
63.–Ora, emerge dos autos que a Recorrente em nada contribuiu para a o prolongamento da privação do uso do veículo ...VS, tendo sido a Recorrida quem deu azo a esse protelamento.
64.–Veja-se que a Recorrente informou a Recorrida, a 17/03/2022, de que aceitava a responsabilidade pela eclosão do acidente, porém foi a Recorrida quem não procedeu à efectiva reparação do automóvel.
65.–Isto posto, não pode deixar de se ter em conta que a Recorrida contribuiu, também, em certa medida, para o agravamento dos danos que da paralisação advieram, havendo que situar o seu comportamento no âmbito do art.° 570.°, n.° 1 do CC.
66.–Assim, perante a matéria de facto considerada como provada (e não provada) e perante a própria contribuição da Recorrida para o agravamento do dano, a Recorrente entende que o período de 211 dias não deveria ter sido considerado para efeitos de privação do uso, na medida em que, apenas por culpa da Recorrida a privação se prolongou no tempo.
67.–Sucede que o Tribunal a quo não teve em consideração o supra exposto e, assim, condenou a Recorrente a liquidar à Recorrida o valor de 12.043,88€ a título de privação do uso do veículo VS peio período de 211 dias.
68.–Perante a própria contribuição da Recorrida para o agravamento dos danos, a Recorrente entende que o período de 211 dias não deveria ter sido considerado para efeitos de privação de uso, na medida em que, apenas por culpa da Recorrida a privação se protelou no tempo.
69.–Assim, entende a Recorrente que, a ter de indemnizar a Recorrida pela privação do uso do veículo, tal indemnização apenas poderia ser arbitrada por referência ao período que decorreu entre a data do acidente (20/02/2022) e a data da comunicação da assunção da responsabilidade (17/03/2022) que, no caso, perfaz 25 dias.
70.–Nesta medida e por qualquer dos identificados fundamentos, deverá ser dado provimento ao presente recurso, sendo revogada a douta sentença recorrida ou caso assim não se entenda, ser substituída nos moldes supra expostos, sob pena de, a manter-se a decisão proferida, manter-se uma decisão na qual se encontram incorrectamente interpretada e/ou aplicadas as normas legais previstas nos arts,° 483.°, 562.°, 563.°, 566.°, n.° 3 e 570.°, n.° 1 do CC, bem como, da jurisprudência dos Tribunais Superiores.».

A reclamante não apresentou contra alegações.

Recebido o recurso junto do Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros foi proferido o seguinte despacho: «Por ter legitimidade a Recorrente, estar em tempo e ser recorrível a decisão, admito o recurso da Reclamada interposto por requerimento e alegações, que é de apelação, sobe imediatamente e nos próprios autos e com efeito devolutivo - artigos 29.°, n.°2, do Regulamento do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros, 39.°, n.°4, e 59.°, n.°l, e), da Lei da Arbitragem Voluntária, Lei n.° 63/2011 de 14 de Dezembro, 644.°, n.°l, a), 645.°, n.°l, a), e 647.°, n.°l, do Código de Processo Civil - determinando a respectiva subida ao Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do artigo 641.°, n.°l, do Código de Processo Civil.».

Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*

Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.

Importa assim, saber no caso concreto:
1.–Se é de alterar os factos a considerar e, consequentemente:
a)-Não considerar a existência do dano pela privação do uso de veículo por ausência de prova do prejuízo;
b)-Considerar o valor diário como sendo de 20€ e não o valor de 57,08€, por este ser um valor fixado entre a AEO TVDE e a ATS, que não vincula a seguradora;
c)-Por se entender que apenas é devido o valor diário entre a data do acidente (20/02/2022) e a data em que a apelante assumiu a responsabilidade pelo sinistro perante a apelada, ou seja, 17/03/2022, e não desde a data da comunicação da perda total do veículo, num período de 25 dias e não os 211 dias considerados na decisão sob recurso.
d)-Se não é de aplicar o acréscimo dos 20 dias definidos no artº 3º nº 11 do acordo entre a AEO-TVDE e a Associação Portuguesa de Seguros.
*

II.– FUNDAMENTAÇÃO:

No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1.–No dia 20/02/2022, pelas 05h50m, no cruzamento entre a Rua ..... ..... e a Avª. ..... ....., em Lisboa, ocorreu um acidente entre o veículo com a matrícula ...VC, propriedade da Reclamante e o veículo com a matrícula …PD, cuja responsabilidade se encontrava transferida para a Reclamada pela apólice de seguros de responsabilidade civil automóvel n° ….
2.–A Reclamada assumiu a responsabilidade pela ocorrência do acidente.
3.–A Reclamada considerou o veiculo da Reclamante como perda total.
4.–O veículo sinistrado está inscrito nas plataformas electrónicas da UBER e da BOLT.
5.–A Reclamante dedica-se à actividade de TVDE, entre outras.
6.–A Reclamada comunicou por carta datada de 29/08/2022 a situação de Perda Total e colocou nessa data o valor da indemnização ao dispor da Reclamante.
7.–As comunicações da Reclamada para a Reclamante foram endereçadas para uma morada que não corresponde à morada da Reclamante.
8.–As cartas entregues nessa morada eram posteriormente entregues à Reclamante.
*

Mais se consignou que: ”Nada mais se apurou de relevante quanto à decisão a tomar.”. Concluindo-se, porém, no âmbito da motivação que:
Não ficou provado que a Reclamante recebeu a carta da Reclamada datada de 17/03/2023, nem as eventuais razões que levaram a Reclamada a só efectuar a peritagem em agosto de 2022.
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Da impugnação da decisão de matéria de facto:

No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer. E quando seja impugnada a matéria de facto estabelece o art. 640.º do C.P.C.:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b)- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a)- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b)- Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Por outro lado, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objectivos que o art. 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.
Acresce que haverá sempre que considerar que a alteração tenha de ter relevância para a decisão. Logo, tal como se alude no Acórdão desta Relação de 26/09/2019 (Proc. nº 144/15.4T8MTJ.L1-2, in www.dgsi.pt) “Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.)”.
Considerando que relativamente à decisão proferida pelo Centro de Arbitragem em causa cabe recurso ordinário para este Tribunal Estadual, as regras relativas ao recurso seguem as normas do Código de Processo Civil aplicáveis e supra aludidas.
Nas suas extensas alegações de recurso insurge-se a apelante com o seguinte:” Não ficou provado que a Reclamante recebeu a carta da Reclamada datada de 17/03/2023, nem as eventuais razões que levaram a Reclamada a só efectuar a peritagem em agosto de 2022.”. Pretendendo que seja dado como provado que “A reclamante recebeu a carta da recorrente data de 17/03/2022, a assumir a totalidade da responsabilidade do sinistro”- conclusão 17ª. Discorrendo nas sua conclusões que tal prova advém do depoimento da testemunha FJM..., gestor de seguros, e ainda das declarações do representante da reclamante, que admite ter recebido tal carta.
Vejamos então.
Considerando os documentos juntos aos autos, a fls. 11 foi junto um email no qual a reclamante, com data de 8/09/2022, reclama o pagamento do valor relativo à privação do uso de veículo de matrícula …VC, desde o dia do acidente a 20/02/2022 ao dia da carta final de resolução, a 29/08/2022, no valor diário de 56,07€ e no total de 10.653,30€. Em resposta e este veio a “N Seguros” (entretanto incorporada, por fusão, na ora apelante) dizer que a assunção da responsabilidade do sinistro foi comunicada a 17/03/2022, a todos os intervenientes, e que “Apenas a 28/07/2022 fomos solicitados pela F… para marcação de peritagem ao …V e só em 22/08/2022 nos é dada a indicação da oficina da vossa escolha”. Peritagem foi agendada para o dia seguinte, a 23/08/2022 e concluída nesse dia. Após recolha de propostas para os salvados comunicamos, a 29/08/2022, a perda total da viatura apresentando proposta de indemnização (…)”. No mesmo documento alude ao acordo APS-TVDE mas referindo que no mesmo se prevê uma indemnização relativa à paralisação do veículo no máximo de 20 dias, aceitando o valor diário de 57,74€, pelo que a proposta final a título de paralisação no mesmo email é de 1.154,80€.
A fls. 20 foi junta a carta da “N Seguros”, datada de 29/08/2022, dirigida à apelada, para a morada sita na Rua …, S..... M..... A....., na qual além do mais, conclui pela perda total do veículo, propondo o valor indemnizatório total relativo ao veículo (com a indicação do valor do salvado). A fls. 22 foi junto um email da reclamada “N Seguros” ao centro de arbitragem, no qual reitera que assumiu a responsabilidade em 17/03/2022, e que “tinha a informação que a reclamante estava a regularizar os prejuízos da sua viatura com a sua congénere, razão pela qual não efectuou de imediato a peritagem àquela viatura”, concluindo que não é responsável pela privação do uso para além daquela data.
Na contestação junta pela reclamada junto do CIMPAS, veio a mesma arguir a ilegitimidade da reclamante, impugnar o acidente a que se reporta (artº 10º a 12º) admitindo porém a responsabilidade do veículo por si seguro (artº 13 e 14), e no que concerne aos danos da paralisação põe em causa a utilização do veículo pela reclamante, afirmando desconhecer se o veículo está impedido de circular e o nexo de causalidade entre o acidente e a paralisação (artº 16 a 28), por fim, também entende que quer os dias reclamados, quer o valor, é excessivo, dizendo que a reclamante contribuiu para os danos dado ter aguardado oito meses para intentar a acção junto do CIMPAS, esgrimindo argumentos assentes no artº 570º do CC. Além disso, impugna os factos que fundamentam a privação do uso, e ainda considera excessivo o valor diário de “57,08€”(artº 57). Em momento algum da sua contestação invoca a carta a assumir a responsabilidade pela acidente, alegadamente enviada a 17/03/2022, nem a mesma foi junta aos autos aquando da contestação.
Na audiência foi junta uma carta dirigida à reclamante, datada de 17/03/2022, para a morada supra aludida (na Rua …, S..... M..... A.....) na qual a “N Seguros” sob o assunto “Definição de Responsabilidade”, informa que a responsabilidade pela produção do acidente deve-se ao seu segurado em 100%. 
Importa referir que todas as notificações levadas a cabo pelo Centro de arbitragem à reclamante o foram na seguinte morada:”Prac. … A..... V.....”.
Sem cuidar, por ora, da prova indicada pela apelante, o comportamento da mesma vai sendo diferenciado nos autos, o que determina a ausência total de razão a nível impugnatório, e ainda que se admita que a mesma enviou a carta data de 17/03/2022 à apelada, na qual assume a responsabilidade pelo acidente do seu segurado, tal não resulta admitido nos autos pela mesma, mormente na sua contestação. Não há que olvidar que as partes estão obrigadas todo ao longo dos litígios ao princípio da cooperação e ao dever da boa fé.
Ora, a apelante na sua contestação até põe em causa a sua responsabilidade no acidente, dizendo que desconhece se o veículo foi ou não reparado, contrariando quer a carta envida a 17/03/2022, mas igualmente a carta de 29/08/2022 onde assume, após peritagem, que se verifica uma situação de perda total do veículo. Aliás, a assunção de um determinado facto ou parâmetro indemnizatório pela apelante vai sendo igualmente diferenciado consoante tal a beneficie ou não, pois a par da contestação nos termos sobreditos, também ao longo do processo admite a indemnização diária fixada pela AEO-TVDE e APS, como entende, já neste recurso, que esta já não deve ser considerada. O que ocorre igualmente com a indicação dos vinte dias constante do acordo de tais Associações quando elabora uma proposta de indemnização à reclamante, ou pretendendo afirmar que tal período de tempo não lhe é aplicável, no âmbito das suas conclusões de recurso, afirmando que ainda “que este acordo exista, o mesmo só vincula as seguradoras e empresas a ele associadas, o que não é o caso da aqui Recorrente” (conclusão 38). Todavia, relativamente a tais questão as mesma serão abordadas infra a propósito do  valor indemnizatório a fixar, pelo que nesta sede importa sim apreciar a alteração pretendida pela apelante, ou seja, o dar-se como provado o teor da carta de 17/03/2022.
Ora, é que aqui que entendemos que apesar de se poder considerar o envio da carta da apelante a informar a apelada da assunção da responsabilidade pelo sinistro em causa, pelo envio da carta de 17/03/2022, tal envio e assunção serão de todo irrelevantes para a decisão da causa, pois o que relevaria era a alegação (sendo que esta já faltaria quanto a tal assunção) e prova do motivo pelo qual a peritagem e a conclusão da perda total do veículo, com  a indicação do valor indemnizatório só ocorre por carta de 29/08/2022, ou seja, cerca de seis meses após o acidente. Nada alude a apelante na sua contestação, limitando-se a afirmar que a reclamante só despoletou a arbitragem oito meses depois do acidente, sem sequer aludir à assunção da sua responsabilidade, ou sequer indicar o que motivou a peritagem e conclusão tardia.
Do depoimento da testemunha F… resulta na verdade a comunicação de assunção da responsabilidade, aliás, foi o seu depoimento que determinou a junção da carta em causa datada de 17/03/2022, porém, já nada releva a declaração do mesmo contida na conclusão 6. e 7., pois a carta de 17/03/2022 não contém qualquer proposta indemnizatória ou de reparação do veículo, pretendendo a testemunha dizer que: “a partir do momento em que nós comunicámos a assunção da responsabilidade, poderia e deveria, pensamos nós, ter tomado uma qualquer iniciativa, fosse de reparação ou fosse de outra qualquer, mas nunca recebemos contacto deles nesse sentido." e ainda que “a partir de 17 de Março a E... sabia que a companhia L… estava à disposição para pagar os prejuízos decorrentes do acidente.". Nada resulta nesse sentido da carta, nem se explica porque motivo não foi feita a peritagem do veículo, não podendo a reclamante pretender que esta fosse feita pela apelada, pois quem havia assumido a responsabilidade pela ocorrência do acidente foi a apelante, competindo a esta encontrar a solução, ou  a reparação ou a indemnização, o que apenas fez em 29/08/2022 e não na carta de 17/03/2022.
Vejamos, porém, se das declarações do legal representante da apelada existe matéria confessória tal como resulta do disposto nos artº 352º e ss. do CC, ainda que se deva sempre considerar a ausência de alegação da apelante na sua contestação.
Na decisão recorrida relativamente ou com repercussão nesta questão motivou-se as respostas no seguinte: “Para prova dos factos vertidos sob os n.°s 3 e 6 a convicção do tribunal resulta da correspondência junta aos autos. Para prova dos factos vertidos sob o n.° 7 a convicção do tribunal resulta da análise do endereço das cartas confrontadas com a certidão permanente da Reclamante e com o endereço constante da correspondência enviada pela Reclamante à Reclamada. Para prova dos factos vertidos sob o n.° 8 a convicção do tribunal resulta de confissão do representante legal da Reclamante ouvido em declarações de parte”.
Das declarações de M… legal representante da apelada, afirmou que participou a 22/02 o acidente em causa, mais afirmou que não recebeu a carta de 17/03 que lhe chegou “agora à sua mão”, lendo a carta, mas sem que lhe fosse sequer perguntado de que forma e quando é que recebeu tal carta, reiterando que “lhe chegou agora às mãos”, a morada não era da apelada, reconhecendo porém que por vezes ia lá buscar correspondência, dizendo que era a morada do contabilística, mas nem sempre eram todas entregues, pois a sede era na A..... V..... . Afirmou peremptoriamente que nunca recebeu tal carta, aliás disse que até estranhou pois contactava a companhia de seguro e nunca tal lhe foi dito. Aludiu ao acordo da AEO TVDE e APS e que a Seguradora aludiu a tal acordo para indicar uma proposta de pagamento de vinte dias unicamente, pelo que a “carta é uma novidade”. Quanto ao pagamento referiu que foi feito directamente à Caixa, e que apenas foi feito em Janeiro “deste ano”, ou seja 2023. Foi claro que a seguradora apenas fez propostas em Setembro, e nunca a Lusitânia comunicou previamente, acabando por dizer que a 1ª comunicação que recebeu da Companhia com cópia desta carta ocorre a 6/09/2022, nessa data é que recebe o valor a pagar reportando-se ainda a uma carta de 29/08. Sempre entendeu que a indemnização pela privação do uso seria uma situação à parte, pois o valor do veículo seria devido à entidade locadora – a Caixa leasing -  a reclamante apenas teria de ser ressarcida pelo prejuízo pelo facto de ter deixado de obter lucro com a utilização da viatura. Também explicou porque motivo não reparou o veículo, pois não iria reparar sem que a seguradora permitisse tal, pois nunca iriam suportar o valor da reparação sem o aval da seguradora, o que nunca teria ocorrido pois até concluíram pela perda total. Insistindo a mandatária da apelante, de forma incompreensível numa situação que nunca ocorre - “deveria ter procedido à reparação da viatura”, pois a mera assunção da responsabilidade desacompanhada de qualquer outra orientação por parte da seguradora é inócua para o comportamento do lesado. Também afirmou que perdeu o motorista devido ao facto de ter perdido a viatura em causa.
É por demais manifesto a ausência de razão da apelante na almejada alteração, aliás, a forma desgarrada do contexto na afirmação da posse da carta de 17/03/2022 pela apelada toca as raias da má fé, pois ao contrário do afirmado neste recurso o que resulta das declarações é que a carta em causa adveio à posse da Apelada na sequência da tentativa de obter a indemnização, o que ocorreu a partir de Setembro de 2022, data a partir da qual iniciaram negociações tendo em vista ressarcir a reclamante, e no âmbito das quais a reclamada juntou as cartas alegadamente enviadas à reclamante em momento anterior, mas que nada prova que lhe tenham sido entregues nas datas das mesmas. Aliás, mesmo no que concerne à carta de 29/08, o legal representante da reclamante também afirmou que chegou à sua posse pela mesma via, e ainda que tenha afirmado que a morada era do contabilista da sociedade, certo é que não resulta evidente nem a entrega posterior de tais cartas, ou pelo menos a data da sua entrega. Importa referir que no que concerne à carta de 29/08 a indemnização pela perda do veículo não seria da reclamante, mas sim da locadora proprietária do veículo, pelo que tal comunicação teria inclusive de ser enviada à mesma.
Donde, nada nos permite alterar a matéria de facto tal como foi decidida pelo Tribunal arbitral, mantendo-se a mesma e improcedendo o recurso nesta parte.
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III.–O DIREITO:

A questão essencial a decidir prende-se assim, com  a atribuição da indemnização pela privação do uso do veículo, veículo esse interveneiente num acidente de viação, no qual a seguradora apelante assumiu a total responsabilidade por advir de comportamento imputável ao seu segurado.
A sentença sob recurso conclui primeiramente pelo direito à indemnização, afirmando que “o veículo sinistrado estava afecto à actividade de TVDE e que do acidente resultou a perda total do mesmo(…). Assim, não podem restar dúvidas de que a Reclamante tem direito a ser indemnizada pelo tempo em que ficou privada do seu veículo tendo em conta o disposto nos artigos 483.°, n.° 1 e 563.° do Código Civil, uma vez que compete à Reclamada indemnizar a Reclamante por todos os danos que esta não teria sofrido se não fosse o acidente.”.
Insurge-se desde logo a apelante quanto a tal direito, dizendo que não basta a privação, competindo à reclamante provar os efectivos prejuízos – cf. conclusões 25ª a 34ª.
Antecipando, também aqui entendemos que não lhe assiste razão.
Senão vejamos.
Não há indemnização sem dano. Este é um dos pressupostos indispensáveis da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar (art.ºs 483º e seg.s e 562º e seg.s do Código Civil). O lesante ou a seguradora responsável, deve reparar o dano de modo a colocar o lesado na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão.
O prejuízo ou dano consubstancia-se num sacrifício, tenha ou não conteúdo económico, e uma das formas possíveis é a pessoa deixar de poder gozar de todo ou de que passa a ter um gozo mais reduzido ou precário (Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra, 3ª edição, pág.s 326 e 327).
Logo, verificado o sinistro, o segurado ou o tomador, consoante a concreta situação ocorrida, têm o dever, ex bona fide, de minorar os danos ou de evitar a sua propagação (art.º 762º, nº 2, do Código Civil).( A. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina 2013, pág. 699).
A celeridade e a colaboração honesta e leal na resolução do sinistro, que se impõem entre a seguradora e o tomador, o segurado ou o beneficiário, são deveres que se justificam especialmente neste tipo de contrato por só assim se poderem tomar as medidas necessárias a minorar os prejuízos e a cumprir adequadamente os fins contratuais. Quanto mais depressa se encontre uma solução justa para o caso, tanto melhor. É, pois, com este fito que as partes devem colaborar na regularização dos acidentes, de preferência de forma amigável, devendo a boa fé estar presente nos contactos que estabeleceram entre a as mesmas.
A privação do uso de veículo poderá constituir uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. Ela é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira a sua utilização, como é o caso, de exercer os poderes correspondentes ao seu direito (neste sentido, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2011, proc. 3922/07.2TBVCT.G1.S1 e de 08.05.2013, proc. 3036/04.9TBVLG.P1.S1, in www.dgsi.pt, citando-se, no segundo, outra jurisprudência, nomeadamente os acórdãos do mesmo Tribunal 5 de Julho de 2007, proc. nº 07B1849, e de 10 de Setembro de 2009, proc. nº 376/09.4YLSB, também publicados na referida base de dados.).
Esta posição, na jurisprudência, insere-se numa das duas correntes que vêm sendo seguidas nos tribunais, incluindo no Supremo Tribunal de Justiça, a que não tem sido alheia a influência de alguma doutrina, designadamente a que foi desenvolvida por Abrantes Geraldes (In “Indemnização do Dano da Privação do Uso”, Coimbra, Almedina, 2001), o qual preconiza que tendo em conta o disposto nos art.ºs 562º a 564º e 566º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente pode resultar:
a)-Um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como seria o aluguer de outro veículo;
b)-Um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa;
c)-Um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no art.º 1305º do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender.
Pois entendemos que não há que assumir a outra posição que preconiza a essencialidade da alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo, de proceder à utilização do veículo e termos desta. Posição essa assumida pela apelante em sede de recurso, mas que manifestamente não colhe, pois no caso concreto é manifesta a utilização do veículo pela reclamante no âmbito da sua actividade, pois provou-se que o veículo sinistrado está inscrito nas plataformas electrónicas da UBER e da BOLT e que a Reclamante dedica-se à actividade de TVDE, entre outras.
No caso dos autos, o que releva para a fixação de tal valor indemnizatório é a prova da impossibilidade de utilização do veículo na sequência do acidente, resultando ainda provada a sua utilização efectiva na actividade desenvolvida pela reclamante.
É certo que tem sido entendido, na esteira daquela última corrente enunciada, que o dano que advém da simples privação do uso do veículo é susceptível de indemnização calculada pelo recurso à equidade (neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2005, doc. nº SJ200511290031227, in www.dgsi.pt). Trazendo ainda à colação acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.12.2003 (in endereço da net aludido), a impossibilidade de dispor do veículo, mesmo para passear, constitui dano de lazer e, enquanto tal, dano susceptível, quando prolongada essa impossibilidade, de merecer a tutela do direito, devendo ser compensada.
Citando o Prof. Gomes da Silva, refere-se no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.2007 (endereço da net aludido) que “o bem só interessa, quer económica quer juridicamente (...) pela utilidade, isto é, pela aptidão para realizar fins humanos”; e nos casos de perda ou deterioração de um bem, o dano consiste “no malogro dos fins realizáveis por meio do bem perdido ou deteriorado, isto é, consiste menos na perda do próprio bem do que em ser-se privado da utilidade que ele proporcionava”. No dano haverá sempre, portanto, a frustração de um ou mais fins, resultante de se haver colocado o bem, por meio do qual era possível atingi-los, em situação de não poder ser utilizado para esse efeito.
Nesta lógica de raciocínio, Abrantes Geraldes refere que “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização”(In Indemnização do Dano Privação do Uso, pág.s 39-41).
Actualmente, porém, sem prejuízo de serem conhecidas as dúvidas e os argumentos debatidos a este propósito, aderimos à tese que se nos afigura ter-se tornado maioritária na jurisprudência, segundo a qual: “competindo ao lesado provar o dano da privação do uso, não é suficiente, para tanto, a prova da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efectiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante.” (cfr. acórdão do STJ de 28-01-2021, Revista n.º 14232/17.9T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.).
Com efeito, conforme se refere no acórdão do STJ de 17-06-2021, Revista 879/17.7T8EVR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt., (citando Maria da Graça Trigo, in Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 60), “em paralelo com o aprofundamento do problema surgiu uma posição intermédia que parte da exclusão da reparação do dano em abstracto mas que, num segundo nível, admite como suficiente a prova da ocorrência de danos concretos com base numa presunção. Ao lesado pede-se apenas a prova que utiliza habitualmente a viatura na sua vida diária, presumindo-se que, da respectiva privação, derivem danos efectivos. Esta posição é hoje tendencialmente maioritária na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça”.
No caso presente, a reclamante fez prova da utilização do veículo, sendo este o instrumento de trabalho utilizado no desenvolvimento da sua actividade, pelo que ainda que se adira a tal tese intermédia, in casu está consubstanciado o direito a obter a indemnização pela privação do uso pretendida pela apelada, sem necessidade de prova dos prejuízos efectivos que a mesma teve com tal privação, como defende a apelada. O que determina a improcedência quanto às conclusões do recurso neste ponto.
Aqui chegado e concluindo-se pela ressarcibilidade de tal dano, importa aferir do período de tempo a considerar e o seu valor. Pois é quanto a este último que o juízo deve ser feito em termos de equidade e não na definição da existência do dano.
Na decisão sob recurso conclui-se da seguinte forma:”Estando o veículo da Reclamante afecto à actividade de TVDE deverá aplicar-se, nem que seja por analogia o disposto no acordo celebrado entre a AEO-TVDE e a APS (junto aos autos pela Reclamante) que determina um valor diário de paralisação de €57,08 desde o dia do acidente até à data da efectiva regularização da substituição do veículo sinistrado não podendo, no entanto, exceder 20 dias a contar da data da definição de responsabilidades pela Reclamada (art.° 3º n.° 11 do referido acordo). Ora o acidente ocorreu em 20/02/2022, a Reclamada definiu a responsabilidade em carta datada de 29/08/2022 (com efeito não ficou provado que a carta enviada pela Reclamada a 17/03/2022 tenha sido entregue ou chegado ao conhecimento da Reclamante), não se sabendo qual a data em que ocorreu a substituição do veículo sinistrado pelo que se aplicam os 20 dias previstos no acordo. Assim a Reclamante tem direito a ser indemnizada pelo período de 211 dias ao valor diário de €57,08 o que perfaz a quantia de €12.043,88.”.
Insurge-se a recorrente com tal entendimento, defendendo quer que o período a considerar apenas sejam os dias entre a data do acidente, a 20/02/2022, e o dia 17/03/2022, data em que assumiu a responsabilidade pelo acidente, ou seja 25 dias. Mas caso se entenda diferentemente entende que não lhe é aplicável o valor diário de compensação de paralisação fixado entre a AEO TVDE e a ATS, o que não a vincula por não ser associada e, socorrendo-se do Ac. deste Tribunal de 6/10/2022, entende que o valor diário adequado se situaria nos 20€. No mais, caso se entenda que o período temporal é relativo à data do acidente e a carta de 29/08, tal perfaz 190 dias, “aos quais acresce os 20 dias definidos no artº 3º nº 11 do acordo entre a AEO-TVDE e a APS” (conclusão 52ª), pelo que haverá que considerar 210 dias e não 211. No mais, discute a contribuição da apelada no agravamento de tal dano, socorrendo-se sempre e apenas da comunicação da assunção da responsabilidade da apelante com o envio da carta de 17/03/2022.
Como já deixámos referido concluindo-se pela existência da ofensa ao direito de uso, dificilmente se poderá, na maior parte dos casos, encontrar o valor exacto de tal prejuízo. Daí que se fale antes de atribuição de uma compensação, que deverá ser determinada por juízos de equidade, tendo em conta as circunstâncias concretas do caso. O apelo a estes factos com vista a apurar o quantum devido resulta do disposto no n.° 3 do art.º 566.° do Código Civil.
Para a determinação do valor do dano, ou se apura a concreta existência de despesas feitas pelo lesado em consequência dessa privação, ou se recorre à equidade caso não se apurem quaisquer gastos, mas sim que o lesado utilizava o veículo nas suas deslocações habituais (para fins profissionais, familiares, lazer, etc.) sem que lhe tivesse sido atribuído veículo de substituição. Na primeira situação, o lesado terá direito à reparação integral dos gastos/custos que teve por via da dita privação. Já na segunda hipótese, a medida da indemnização terá que ser encontrada em função da impossibilidade do lesado utilizar o veículo nas suas deslocações diárias, profissionais, familiares, de lazer, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizá-lo pela falta de um veículo próprio que satisfaça as suas necessidades básicas (Ac. da Relação de Coimbra de 10.9.2013, proc. 438/11.8TBTND.C1, in www.dgsi.pt.).
No caso dos autos inexistem factos provados nem foram alegados prejuízos efectivos relacionados com perda de rendimentos obtidos pela utilização do veículo.
Porém, no caso concreto a ofensa ao uso e fruição, inerente ao direito da apelada prende-se com a indisponibilidade de uso do veículo utilizado na sua actividade económica, pelo que esta privação tem uma repercussão negativa no seu património. E que dizer quanto ao valor concreto? Aqui tal como entendeu o tribunal recorrido haverá que ser encontrado um valor com recurso à equidade.
Tendo conteúdo indeterminado, variável de acordo com as concepções de justiça dominantes em cada sociedade e em cada momento histórico, a equidade está limitada pelos imperativos da justiça real (a justiça adequada às circunstâncias) em oposição à justiça meramente formal. Julgar segundo a equidade significa dar a um conflito a solução que parecer mais justa, atendendo apenas às características da situação e sem recurso à lei eventualmente aplicável. A indemnização através dela encontrada não está subjugada a um critério puramente matemático.
A indemnização tem por finalidade ressarcir o lesado dos prejuízos que, na realidade, sofreu, não podendo conduzir a um desequilíbrio da prestação relativamente ao dano, designadamente não podendo servir para um enriquecimento injusto do lesado à custa do lesante (ou de quem for responsável).
A recorrente faz apelo à decisão proferida neste tribunal datada de 6/10/2022 (proferido no proc. n 13683/21.9T8LSB.L1-8, publicado in www.dgsi.pt), que numa situação similar fasta o montante diário de compensação da paralisação fixado pelas Associações referidas, por entender que subjaz a tal valor a discussão havia nessas Associações e que o mesmo será meramente indicativo, e socorrendo-se de valores fixados pela jurisprudência dos Tribunais superiores fixa o mesmo em 20€.
Ora, entendemos que ao contrário é de subscrever o decidido no Acórdão desta Relação, datado de 13/07/2023 (proferido no proc. nº 12939/21.5T8LSB.L1-7, no mesmo endereço), no qual se entende que: I.– Para que ao lesado que suporta a privação do uso de um veículo automóvel por força dos danos causados por um acidente de viação seja atribuída uma indemnização a esse título, basta que se afira dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos. II.–Tratando-se de veículo automóvel utilizado como instrumento de trabalho ou no exercício de actividade lucrativa, a existência de um prejuízo material decorre normalmente da simples privação do uso, independentemente da utilização que, em concreto, seria dada ao veículo no período de imobilização.
III.– Estando em causa um veículo ligeiro de passageiros utilizado pela proprietária no exercício da sua actividade de TVDE, não se tendo provado, em concreto, quais os valores obtidos com a sua utilização ou os constrangimentos concretamente suportados por via da sua privação, nada obsta a que se atenda, em termos meramente indicativos, aos valores indemnizatórios acordados entre entidades terceiras do sector e, bem assim, ao valor aceite pela própria lesada noutra sede negocial, efectuando uma ponderação equilibrada no conjunto com os demais dados existentes nos autos, concluindo-se pela adequação da fixação do valor indemnizatório diário em 80,00€.(sublinhado nosso).
Com efeito, na procura de um montante equitativo pode considerar-se, como mero indicador, o valor estabelecido no acordo firmado entre a Associação Portuguesa de Seguradores e a Associação Empresarial de Operadores de TVDE (documento junto aos autos). E ainda que tal acordo não seja aplicável nos autos (invocando a Apelante que não é associada), podem os valores ali previstos funcionar como indicadores a considerar – para um veículo ligeiro de passageiro até cinco lugares, o montante diário previsto é de €57,08 ou €96,28, consoante o veículo esteja afecto a um ou a dois turnos.
Haverá ainda que considerar como forma de fornecer valores indicativos, o acordo celebrado entre a Associação Portuguesa de Seguradores e a ANTRAL (Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros), que prevê o mesmo montante diário de €57,08 ou de €96,28, consoante o veículo estivesse afecto à realização de um ou de dois turnos diários.
Ora, não é despiciendo considerar os valores protocolados pelas associações de profissionais do sector, ainda que nada se tenha alegado quanto ao número de turnos efectuados pelo veículo em causa.
A aceitação de tal valor tem ainda um outro fundamento no caso dos autos, pois há que atender que no âmbito negocial em momento anterior ao recurso à arbitragem, já a Autora havia aceite a utilização do valor fixado pelas Associações do sector em termos de acordo. Com efeito, não há que olvidar que face ao email junto a fls. 11, no qual a reclamante, com data de 8/09/2022, reclama o pagamento do valor relativo à privação do uso de veículo de matrícula ...VC, desde o dia do acidente a 20/02/2022 ao dia da carta final de resolução, a 29/08/2022, no valor diário de 56,07€ e no total de 10.653,30€. Em resposta a apelante, ainda que dizendo que tal valor só é devido até 17/03/2022, mas admitindo igualmente que “Apenas a 28/07/2022 fomos solicitados pela Fidelidade para marcação de peritagem ao ...VC e só em 22/08/2022 nos é dada a indicação da oficina da vossa escolha”. Peritagem foi agendada para o dia seguinte, a 23/08/2022 e concluída nesse dia. Após recolha de propostas para os salvados comunicamos, a 29/08/2022, a perda total da viatura apresentando proposta de indemnização (…)”, de relevante para a decisão é que consta da mesma missiva que a apelante alude ao acordo APS-TVDE, por um lado afirmando que no mesmo se prevê uma indemnização relativa à paralisação do veículo no máximo de 20 dias, mas por outro lado, aceitando o valor diário de 57,74€ de acordo com tal instrumento consensual estabelecido pelas entidades do sector. Logo, não pode pretender que seja considerado um valor diferenciado, sendo o valor diário indicado pelo reclamante inclusive inferior, ou seja 57,08€ diários, sendo este o valor a considerar.
Assim, não se pode deixar de considerar o valor aceite pela apelante em sede de negociação com o reclamante, tendo por base.
Resta, por último, saber qual o período indemnizatório a ser considerado.
Para a decisão quanto ao tempo importa ter presente que dos factos resulta evidente a perda total do veículo, perda total tal como vem definida no artº  41º, nº 1, al. c), da LSO (Decreto-lei nº 291/2007, de 21 de agosto), que estabelece o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), no qual se estabelece que: “Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:(…)
c)-Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.”
Todavia, a jurisprudência maioritária tem vindo a entender que aquele normativo não revogou o nº 1 do art.º 566º do Código Civil e que não é aplicável aos litígios em fase judicial. Pela sua inserção no contexto daquele decreto-lei nº 291/2007, no capítulo III, sob a epígrafe “Da regularização dos sinistros”, a par da proposta razoável para a regularização que a seguradora deve apresentar ao lesado, tal preceito dispõe para os procedimentos a adoptar pelas empresas de seguros na fixação de prazos com vista à regularização rápida de litígios e do estabelecimento de princípios base na gestão de sinistros. Visa-se ali a resolução simplificada, rápida e amigável dos litígios entre as seguradoras, os seus segurados e terceiros. Assim, mediante a apresentação de uma proposta razoável de indemnização apresentada pela seguradora, fundada nos critérios estabelecidos nesse diploma, pode o segurado ou o terceiro aceitá-la, resolvendo-se em definitivo o litígio. Mas se não houver acordo, e se houver necessidade de recorrer às vias judiciais, a determinação da espécie e do quantum da indemnização passam a ser regulados pelos regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, entre os quais avultam, de um lado, o princípio da reparação in natura e, de outro, o princípio da reparação integral do dano, ficando afastada a aplicação dos critérios previstos no Capítulo III do Decreto-lei nº 291/2007, designadamente o artigo 41º (entre outros acórdãos da Relação do Porto de 7.09.2010 e de 10.4.2014, proc. 1942/12.6TJVNF.P1, bem como o recente da mesma Relação proferido no proc. nº289/19.1T8MCN.P1, datado de 28.05.2020, bem como desta Relação de 9.7.2014, proc. 3100/12.0YXLSB.L1-1, todos in www.dgsi.pt).
Porém, ainda que tal normativo não seja relevante para aferir da “perda total” ou não do veículo e valor indemnizatório a ter em conta em relação ao veículo, já o será para se considerar o tempo, considerando que a A. peticiona o valor devido a título de privação do uso até à data da interposição da presente acção.
Trazendo à colação o decidido no Acórdão da Relação de Guimarães, datado de 25.06.2020, no proc. nº1136/18.7T8PTL.G1 (endereço da net aludido):« Tendo a Ré Seguradora informado o autor que o veículo se encontrava em situação de perda total e posto à disposição do lesado quantia inferior à necessária para a reparação do veículo, esse acto não a exonera do pagamento do montante referente à privação do respectivo uso, pois a falta de aceitação da quantia era justificada por ser inferior ao dano sofrido, não fazendo o credor incorrer em mora. Mercê da imobilização do veículo sinistrado, não se tratando de uma situação de perda total e nem tendo a seguradora disponibilizado uma viatura de substituição pelo período necessário à reparação, o lesado tem direito a ser indemnizado pela privação do uso da viatura até ao pagamento pela ré do valor devido a título do custo da reparação do veículo.».
A propósito desta questão decidiu-se ainda no Acórdão do STJ de 7/09/2021 (proc. nº 1022/20.0T8LRA.C1) que: «1.- O art.º 41º do DL 291/2007, de 21.8, contém regras de definição da indemnização por perda total aplicáveis no âmbito do procedimento de proposta razoável previsto no Capítulo III do referido diploma legal, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade. 2.- Não tendo as partes chegado a acordo no aludido procedimento, recorrendo o A. à via judicial, relevam, apenas, as regras gerais enunciadas nos art.ºs 562º e 566º do CC. 3.- Porque a compensação do dano é um resultado que só se atinge se o lesado receber uma soma com a qual possa agora conseguir as mesmas vantagens ou utilidades que o facto constitutivo de responsabilidade lhe fez perder, nas situações de “perda total” do veículo automóvel em consequência de sinistro, há que averiguar o seu valor dentro do património e/ou para a vida do lesado; o valor que o veículo representa efectivamente – tal como estava antes do sinistro – dentro do património do autor, e não o valor que ele obteria se naquele mesmo estado o vendesse. 4.- Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel, danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos. 5.- Sendo exclusiva a responsabilidade do obrigado à indemnização, o termo final da contabilização do dano da privação do uso corresponde ao momento em que é disponibilizada a indemnização devida (acrescido do tempo necessário para a efectivação do conserto do mesmo, quando não seja caso de perda total).
No caso concreto a apelante defende a contribuição do lesado no agravamento de tal dano, por aplicação do artº 570º do CC, decorrente do tempo em que reivindicou a sua ressarcibilidade, dizendo que deveria ter feito tal pedido logo após a carta de 17/03/2022, carta onde a apelante assumiu a responsabilidade pela ocorrência do acidente pelo seu segurado. Ora, mesmo que tal carta e o seu teor resultasse provada nos autos a mera assunção de tal responsabilidade não determinaria o final do prazo para efeito de indemnização pela privação do uso, pois em tal comunicação não formula a apelante qualquer proposta de resolução, não alude à reparação do veículo, ou à sua perda total com o pagamento da indemnização correspondente. Donde, o envio e a recepção de tal carta, mesmo a terem sido consideradas demonstradas, seriam inócuas para a decisão que ora se discute.
Daqui resulta que apenas releva a data em que a apelante disponibiliza ao lesado o valor da indemnização devida, ou seja, a 29/08/2022, e não tendo sido alegada a data de tal pagamento e não tendo sido posto em causa a aplicação do critério previsto no artº 3º nº 11 do Acordo estabelecido entre a AEO-TVDE e a APS, haverá que considerar o disposto em tal disposição que prevê que: “Em caso de perda total do veículo, o período de paralisação será contado desde a data do acidente ou da data da recepção da comunicação do acidente na empresa de Seguros, conforme previsto no ponto 2., até à data da efectiva regularização da substituição do veiculo sinistrado., não podendo, no entanto, exceder 20 dias, contados a partir da definição de responsabilidade pela empresa de seguros e desde que não se verifique negligência por parte do lesado”.
Logo, nada nos permite afastar o critério seguido pelo decisão sob recurso, sendo devido os 190 dias que decorrem desde o acidente até à data da disponibilização do valor indemnizatório proposto pela seguradora/apelante pela perda total do veículo, ou seja, 190 dias, acrescido e mais vinte dias nos termos sobreditos, sobre os quais aliás a apelante nada objectou no seu recurso (cf. conclusão 52ª), o que perfaz 210 dias ao valor diário de 57,08€, alterando-se apenas a decisão por conter um erro de cálculo quanto aos dias.
Assim, procede parcialmente a apelação, devendo a apelante ser condenada a pagar à apelada o valor total de 11.986,80€. Porém, considerando que o decaímento advém apenas de um erro de cálculo, cuja repercussão final é de apenas 0,48% para a apelada, deixa tal percentagem de ter relevância para efeito de condenação em custas, as quais ficarão a cargo da apelante na íntegra.
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IV.–Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Reclamada e, consequentemente, condena-se a Apelante a pagar à apelada o valor indemnizatório de 11.986,80€.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 14 de Dezembro de 2023

Gabriela de Fátima Marques
Eduardo Petersen Silva
Nuno Lopes Ribeiro