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ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
ACÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
CONTRATOS DE ARRENDAMENTOS
Sumário
I - Da conjugação dos arts. 941.º, 942.º, 944.º, n.º 5 e 946.º, n.º 2, do CPC, resulta que a ação de prestação de contas não é uma ação de simples apreciação ou constitutiva, mas sim uma ação declarativa de condenação, tendo em vista a definição de um quantitativo como saldo que o devedor é condenando a pagar ao credor. II - Apresentadas as contas pelo A., nos termos do art. 943.º, n.º 1, CPC, o R. não é admitido a contestá-las, conforme resulta da parte inicial do art. 943.º, n.º 2 (e do também art. 942º, n.º 5), sendo as mesmas julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes. III - O deferimento da prestação de contas apresentadas pelo A., quando o R. as não apresente, não significa uma espécie de cominatório pleno que leve a admitirem-se, sem mais, as contas apresentadas pelo primeiro, sem quaisquer exigências de prova. IV - Ao contrário, a lei alude a um julgamento, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes. V - Como, por vezes, cabe ao devedor da prestação de contas o monopólio dos documentos relativos às receitas (e despesas), ao invés de um juízo objetivo ou orientado por um critério de ónus probatório, a lei recorre ao prudente arbítrio do julgador tendo o juiz o poder-dever de realizar todas as diligências indispensáveis para aprovar as contas. VI - O juiz não deve prescindir de documentos de suporte das contas (das receitas ou das despesas) quando o normal é que eles existam e nenhuma justificação válida é apresentada para a sua falta ou não apresentação. VII - No âmbito dos contratos de arrendamentos não é normal que ao recebimento das rendas não corresponda um contrato de arrendamento escrito, recibos de quitação e inscrição dos contratos nas Finanças. VIII - Sendo assim, de acordo com as regras da experiência e atendendo ao normal funcionamento dos contratos de arrendamento, afigura-se-nos não ser de julgar de imediato as contas apresentadas quanto a receitas provenientes de rendas, sendo de efetuar averiguações mínimas sobre a existência dos arrendamentos habitacionais, valores de rendas e duração dos contratos, sobretudo quando estão em causa mais de duas décadas de recebimento de tais rendas.
Texto Integral
Processo n.º 8731/21.5T8VNG-A.P1
Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
A 17.11.2021, AA, divorciado, residente na Rua ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, instaurou processo de inventário para partilha de bens comuns do casal (processo apenso aos presentes autos), na sequência de divórcio de 22.3.2004, contra a ex-mulher, BB, residente na Avenida ..., ..., Vila Nova de Gaia, alegando terem sido casados sob o regime de comunhão de adquiridos e terem efetuado extrajudicialmente partilha parcial dos bens comuns. O requerente foi aí nomeado cabeça de casal.
Aqueles autos de inventário encontram-se em fase de decisão sobre a reclamação da relação de bens, tendo recentemente (por sentença de 5.10.2023, ainda não transitada, tendo sido interporto recurso pelo cabeça de casal), sido habilitados, no lugar da requerida, os seus filhos, CC e DD.
Entretanto, a 29.3.2022, veio BB instaurar o presente apenso de prestação de constas, ao abrigo do disposto nos arts. 941º e seguintes, bem como, artigo 1091.º e 292.º a 295.º todos do CPC, pretendendo o seguinte:
I. Deverá ser pago pelo Requerido a quantia de € 266.499,98 acrescida: ii. de todas as rendas vincendas desde a interposição da presente demanda, até efetivo e integral pagamento; iii. dos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento a cujo final apurado;
II. Mais se Requer que, ao valor total apurado, seja deduzida a quantia de € 24.979,30, conforme doutamente determinado na sentença de liquidação.
Para tanto alegou terem requerente e requerido em comum a propriedade dos seguintes imóveis, sitos na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia:
frações “C”, “E”, “F”, “I”, “J”, “K”, sendo que, a Fração “K” se subdivide em 5 habitações: R/C Esquerdo, R/C Direito, 1º Esquerdo, 1º Direito, 2º Esquerdo, todos frações do prédio sito na Rua ..., ..., inscritos na matriz ... e na conservatória do Registo Predial sob o n.º ....
Estas frações acham-se arrendadas, pelo montante global mensal de € 4.580,00, tendo o requerido recebido as rendas, desde setembro de 2010 até à data do requerimento inicial, ou seja, durante 138 meses, no tal de € 632.040,00, cabendo € 316.020,00, à requerente. A tal valor deve subtrair-se a quantia de € 51.632,60, que a requerente já recebeu no âmbito de uma transação judicial (proc. 6896/07.8TBVNG-C). Acrescem juros de mora, no montante de € 2.112,58. Alude a um “saldo provável” a favor do requerido de € 24.979,30, que pretende ver deduzido.
Contestou o requerido, invocando litispendência, porquanto a requerente já deduziu incidente de liquidação relativo às rendas, de setembro de 2010 a outubro de 2019 (proc. 6896/07.8TBVNG-C).
O pedido ora efetuado contraria a transação efetuada pelas partes naquele processo, por via da qual a requerente recebeu metade de € 51.625,00.
Algumas frações não estão ou nunca estiveram arrendadas. Além disso, suportou despesas com IMI, desde maio de 2011 até setembro de 2021, e despesas com limpeza, reparação, eletricidade, seguros, apresentando as seguintes constas: Despesas: Limpeza das escadas X 50 € = 6.900 € Electricidade das escadas 138 X 1190 €/ mês = 15.180 € Água: 138 X 20 € = 2.760 Sub total: 24.840 € / 2 = 12.460 € a cada um (AA e BB) Trabalho AA – 138 meses X 300 / mês = 41.400 € Total a receber: 12.420 + 41.400 = 53.820 € Rendas: Fracção C – 125 € X 40 meses (está arrendado desde Março de 2019) = 5.000 € Fracção E – 350€ X 138 meses = 48.300 € Fracção F – Nunca esteve arrendado – destinava-se à sede da A... , Ldª( pertença de A. e R. Fracção I – Arrendada desde Abril de 2017 - 13 meses: 1.453 € X 13 meses = 18.900€ Fracção K: R/C Dtº: 138 meses X 55 € = 75.900 R/C Esqº: 138 meses X 380 € = 62.440 1º Esqº: Não está arrendada 2º Esqº - Arrendado desde Maio de 2016 (74 meses:74 X 400 € = 29.600 € Sub Total: Total: 220.790 / 2 (AA e BB) = 110.395 € Há que deduzir os impostos: 30.910,60 A haver: 48.776,50 € A pagar: 30.178, 90 Há que deduzir o IMI pago por AA, nos últimos 138 meses,
Termina, pedindo: A) Deve ser declarado que a Requerente está obrigada a pagar ao Requerido, 50 % das despesas que este pagou relativas à administração dos imóveis e bens identificados, dos quais é comproprietária na proporção de metade, em compropriedade com o Requerido; B) Deve a Requerente ser condenada a pagar ao Requerido o montante de €108.000,00, acrescido de juros moratórios à taxa legal, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.
A 6.6.2022, veio a requerente solicitar a notificação do requerido para juntar aos autos os documentos enumerados no articulado do R., relativos às despesas alegadas, a fim de que a mesma pudesse, quanto a estes, exercer contraditório.
Notificado, o R. nada disse.
A 12.10.2022, foi proferido o seguinte despacho: No âmbito do presente processo especial de prestação de contas instaurado por BB, o Réu, devidamente citado, veio apresentar articulado com a ref. 32347683, onde a partir dos art. 71s apresenta, da forma que aí consta (e dos documentos anexos ao articulado), as contas que, segundo alega, corresponderão ao exercício de cabeçalato no período indicado (Setembro de 2010 a Março de 2022). Importa verificar se o Réu deu cumprimento ao disposto no art. 944.º do CPC, já que neste preceito legal se mostra prevista a hipótese de correção da forma de apresentação das contas prestadas (n.º 2). Dispõe o citado art. 944.º, n.º 1 do CPC que “As contas que o réu deva prestar são apresentadas em forma de conta-corrente e nelas se especificará a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo…”. Como se disse, a inobservância desta disposição, “… quando não corrigida no prazo que for marcado oficiosamente ou mediante reclamação do autor, pode determinar a rejeição das contas, seguindo-se o disposto nos n.°s 1 e 2 do artigo anterior”. O termo “conta-corrente” significa escrituração do crédito e do débito de uma pessoa ou entidade. A forma de conta-corrente é uma forma simples de escrituração de transações, em rubricas de deve e haver ou débitos e créditos, de modo a revelar a situação patrimonial de uma conta em cada momento ou num determinado período de tempo. Através do saldo resultante das entradas, receitas ou créditos e das saídas, despesas ou débitos[1]. Tal escrituração deve ser efetuada num só documento do tipo: Apresentar as contas sob a forma de conta-corrente é “uma das formas de contabilidade, é uma das artes de escriturar as contas”. O Ac. TRL de 24/3/1976[2] já referia que “…Quando se diz «as contas devem ser apresentadas em forma de conta corrente» quer-se aludir a uma forma gráfica de contabilidade, a um determinado método de dar a conhecer as operações de crédito e débito entre duas pessoas. A espécie gráfica conta-corrente decompõe-se em três elementos fundamentais: receitas, despesas e saldo. As contas apresentam a expressão ou a forma gráfica de conta-corrente, quando em colunas separadas se inscrevem as verbas de receitas, as verbas de despesa e o saldo resultante do confronto de umas e de outras. As verbas de receita inserem-se em coluna que tem a rubrica «Haver», as verbas de despesa em coluna encimada pela palavra «Deve»”. A apresentação das contas sob a forma de conta corrente visa, assim, a representação do movimento patrimonial e monetário, a exposição sintética de todos os dados e movimentos monetários da atividade de uma determinada entidade, de modo a refletir nela toda a situação patrimonial dessa mesma entidade num determinado momento ou período de tempo. A espécie gráfica conta corrente decompõe-se, assim, em três elementos fundamentais: receitas, despesas e saldo. Assim, as contas apresentam a expressão ou a forma gráfica de conta corrente, “quando, em colunas separadas, se inscrevem as verbas de receita, as verbas de despesa e o saldo resultante do confronto dumas e doutras”. As verbas de receita inserem-se em coluna que tem a rubrica «Haver»; as verbas de despesa em coluna encimada pela palavra «Deve». Realce-se, entretanto, que o citado art. 944.º, n.º 1 do CPC não se limita a exigir que as contas sejam apresentadas em forma de conta-corrente.Acrescenta, ainda, que é preciso especificar a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, o que significa que é necessário “discriminar e individualizar as diferentes fontes de receita e as diferentes causas de despesa”[3]. Ora, analisando o articulado apresentado pelo Réu, considera-se que o Réu não logrou cumprir, ou cumpriu de uma forma deficiente, a forma imposta pelo citado art. 944.º CPC, nomeadamente, tendo em conta o explanado. Na verdade, o Réu não só não elaborou as contas na forma contabilística que se acaba de enunciar, como além disso não juntou a prova documental de suporte das verbas alegadas, não explicitando, em cada uma, a proveniência e destino das mesmas. Nesta conformidade, convido o Réu a corrigir a apresentação de contas por si efetuada nos termos do art. 944.º, n.º 2 do CPC, e tendo em conta o explanado, ficando advertido que a inobservância do disposto no n.º 1 do citado dispositivo legal poderá determinar a rejeição das contas, seguindo-se os termos do n.º l e 2 do art. 943.º do CPC. Prazo: 20 dias.
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Quanto ao mais requerido pelo Réu, importa, ainda, notar que apenas se encontra prevista a notificação para pagamento do saldo quando o mesmo seja favorável à Autora (art. 944.º, n.º 5 do CPC) e não em relação ao Réu, pelo que vai indeferido o pedido deste último. Aliás, neste ponto importa esclarecer que este pedido Réu de “… deve ser declarado que a Requerente está obrigada a pagar ao Requerido 50% das despesas que este pagou relativas à administração dos imóveis e bens identificados, dos quais é comproprietária na proporção de metade, em compropriedade com o requerido” e “deve a Requerente ser condenada a pagar ao Requerido o montante de 108.000,00 €, acrescido de juros moratórios àtaxa legal, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento” é injustificado, mesmo que o Réu não se esteja a referir ao disposto no art. 944.º, n.º 5 do CPC. Com efeito, no âmbito desta ação especial de prestação de contas não é admissível a dedução de reconvenção. O que significa que o Réu, neste processo, não pode pedir nada, nomeadamente, a condenação da Autora a pagar-lhe um pretenso crédito que alegadamente possa ter sobre esta última. Se o Réu o quiser fazer, terá de recorrer a uma outra ação, que não ao processo especial de prestação de contas. No âmbito deste processo especial, se alguém, eventualmente, tiver alguma coisa a receber será a Autora - nunca o Réu -, caso, a final, no confronto das receitas cobradas e das despesas realizadas, venha a apurar-se que existe um concreto saldo positivo a favor da Autora. É que, importa, além disso, já esclarecer as partes que a ação de prestação de contas não é uma ação de simples apreciação ou constitutiva. É, isso sim, uma ação declarativa de condenação, em que se visa apurar “ quem deve e o que deve “ e em que se consente, até, que o devedor possa vir a ser executado por apenso. A prestação de contas tem em mira a definição de um quantitativo como saldo. E isto porque o pedido de prestação de contas envolve, necessariamente, um pedido de condenação no pagamento de um saldo positivo. Na verdade, o saldo proveniente de determinada gestão tem de ser apurado em ação de prestação de contas, na qual se condenará o devedor a pagar “a quantia que resultou do julgamento das contas”. A sentença que fixar o saldo tem, pois, natureza condenatória. E, como tal sentença funciona como título executivo, concede-se a possibilidade de, imediatamente e por apenso, se proceder à execução para cobrança do saldo encontrado. Encontrando-nos, assim, “perante um processo especial pré-modelado”, temos de concluir que o pedido de prestação de contas envolve necessariamente um pedido de condenação no pagamento do saldo apurado (cfr. Alberto dos Reis, «Processos Especiais», vol. I, pág. 308). Notifique.
Este despacho foi notificado ao R. por carta remetida a 12.10.2022.
Nada tendo sido ou requerido pelo R., veio a ser proferido despacho de 5.12.2022, com o seguinte conteúdo: Uma vez que apesar de devidamente convido para o efeito, nos termos do n.º 2 do art. 944.º CPC, o Réu não veio corrigir as contas por si apresentadas, decide-se rejeitar as mesmas. Notifique. Cumpra-se o disposto no art. 943.º, n.º 1 CPC.
Tal despacho foi notificado às partes no mesmo dia.
A A. requereu a prorrogação do prazo para apresentar as contas, invocando, nomeadamente, falta de colaboração do R., o que foi deferido.
Veio a fazê-lo em 5.5.2023, apurando-se um crédito a seu favor de €241.520,68.
Apresentou mapa de prestação de contas.
Veio a ser proferida sentença, datada de 10.5.2023, com o seguinte teor: Nos presentes autos de acção especial de prestação de contas, que BB instaurou contra AA, que exerce funções de cabeça de casal no inventário, de que a presente ação constitui o apenso A, o réu apesar de devidamente citado, o Réu apresentou a contestação com a ref. 32347683, tendo, então, sido convidado a corrigir as contas por si apresentadas, sob pena de rejeição, nos termos do disposto no art. 944.º, n.º 2 CPC (cfr. ref. 440650316), o que não fez, pelo que as contas por si apresentadas na forma que consta dos autos, foram rejeitadas, conforme resulta do despacho com a ref. 442810239.
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Por isso, foi a Autora notificada para as apresentar, nos termos previstos no art. 943.º, n.º 1, do CPC, o que fez – cfr. ref. 35541298.
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Não sendo o Réu admitido a contestar estas contas, e analisados os documentos juntos aos autos, nomeadamente com o requerimento/petição inicial, delas resultando perfeitamente claras as receitas obtidas, as despesas realizadas e o saldo apurado, tudo em conformidade com os elementos documentais juntos aos autos.
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De resto, não foram oferecidas quaisquer provas e não se vislumbra necessária a realização de quaisquer outras diligências probatórias.
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Nestes termos, e em obediência ao disposto no art. 941.º e 943.º, n.º 2, ambos do CPC, decido: a) julgar validamente prestadas as contas apresentadas pela Autora, com referência à administração que o Réu e cabeça de casal fez das frações “C”, “E”, “F”, “I”, “J”, “K-r/c esquerdo”, “K-r/c direito”, “K-1.º esquerdo”, “K- 1.º direito” e ““K-2.º esquerdo”, nos termos e em conformidade com a conta-corrente constante do documento com a ref. 35541298, relativamente ao período compreendido entre Outubro de 2010 e 15 de Julho de 2022, e respetivos juros, e em consequência, b) condenar o Réu AA a pagar à Autora BB, a quantia de 241.520,68 €, correspondente ao saldo positivo delas resultante, a favor desta última. Custas pelo Réu (art. 527.º, n.º 2 do CPC).
A 19.6.2023, o R. vem recorrer da sentença, do despacho de 12.10.2022 e do despacho de 5.12.2022, visando a revogação das três decisões judiciais, com base nos argumentos que assim conclui: 1. O presente processo de prestação de contas é um processo especial destinado à prestação e aprovação de contas. 2. Tem como objecto, o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no reconhecimento de que as contas estão prestadas pagamento do saldo que venha a apurar-se – artº 941º do CPC. 3. O processo é adequado quando através dele se pretende conseguir o fim indicado pela lei, sendo através da petição inicial que se deve aferir o propósito do Autor e, consequentemente, a adequação do processo ao que nesse articulado foi expresso. 4. O propósito da Autora ao propor a presente acção decorre da factualidade alegada na petição inicial pretendendo em peticionando que o Réu preste contas da administração de alguns bens do casal, revelando não saber qual o saldo das contas que o Réu como “cabeça de casal” tem de lhe prestar. 5. Sendo titular dos bens administrados por outrem e alegando não estar em poder de toda a informação atinente às receitas que geram e às despesas que acarretam propôs a presente a acção de prestação de contas. 6. Visando a prestação de contas a definição de um quantitativo como saldo a condenação do pedido terá que será condenação à prestação de contas e, quando estas sejam prestadas, a declaração de que se encontram prestadas. 7. Não sendo o processo especial de prestação de contas uma acção comum não pode o tribunal condenar o Réu no pagamento de qualquer quantia, como o fez a sentença recorrida. 8. O despacho de 12.10.2022 convidou o Réu a corrigir a apresentação de contas por si efetuada nos termos do art. 944.º, n.º 2 do CPC, e tendo em conta o explanado, ficando advertido que a inobservância do disposto no n.º 1 do citado dispositivo legal poderá determinar a rejeição das contas, seguindo-se os termos do n.º l e 2 do art. 943.º do CPC. 9. Este despacho é desproporcional., pois ao ordenar na cominação de rejeição das contas, seguindo-se os termos do n.º l e 2 do art. 943.º do CPC para o caso de o R. não cumprir o convite formulado é uma decisão desproporcional e viola as normas dos arts. 943.º n.º 1 e 2 CPC bem como o princípio da proporcionalidade e do processo equitativo previsto no artº 20º nº 4 CRP. 10. A sentença recorrida violou o disposto nos artº s 941. 11. Devem ser revogados os 2.º e 3.º despachos recorridos (despacho de 12.10.2022 que convidou o Réu a corrigir a apresentação de contas por si efetuada nos termos do art. 944.º, n.º 2 do CPC, e despacho de 05.12.2022 que decidiu rejeitar as contas por si apresentadas). 12. A obrigação de prestar contas é estruturalmente uma obrigação de informação, e existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias, cujo fim é estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição dum saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito. 13. A norma processual do art. 941.ºdo CPC pressupõe a existência de normas de direito substantivo que imponham a obrigação de prestar contas. 14. Obrigação esta, de prestar contas, que é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias; e cujo fim é estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição dum saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito. 15. Mandaria a prudência e o rigor devidos que o juiz a quo, antes de proferir a sentença, fizesse uso do artigo 943.º/2 do CPC e procurasse obter as informações necessárias a perceber que despesas que foram efectuadas pelo R. 16. Na presente acção basta ao autor dizer a razão por que pede contas ao réu, a razão por que entende que sobre o réu impende a obrigação de as prestar; sendo a partir daqui que as especialidades processuais se situam. 17. O despacho recorrido que rejeitou as contas é ilegal e não há razões que justifiquem a rejeição dessas contas por mera inobservância da forma de conta-corrente. 18. O Mmº Juiz a quo deveria ordenar a junção de suporte documental para comprovação das contas apresentadas. 19. Deveria o Mmº Juiz a quo verificar se as contas apresentadas pelo autor podem servir de base para que se ordenassem diligências com vista ao seu aperfeiçoamento ou rectificação. 20. Só no caso de tais diligências serem, de todo, inviáveis ou infrutíferas, é que o juiz deveria rejeitar as contas apresentadas pelo autor”. 21. Os dois despachos recorridos que rejeitaram as contas apresentadas e recusaram produção de prova violaram os art. 943.º/2 e 945.º/5 do CPC. 22. O Mmº Juiz a quo não usou do prudente arbítrio, pois não utilizou deve utilizar dados da experiência comum. 23. A sentença recorrida não interpretou e aplicou corerectamente esta disposição legal nem utilizou o prudente arbítrio ao decidir a rejeição das contas apresentadas., violando o art. 943.º/2 do CPC. 24. Devem ser anulados os dois despachos recorridos de 12.10.2022 e de 05.12.2022.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Objeto do recurso:
- dos despachos de 12.10.2022 e de 5.12.2022 e do caso julgado formal;
- da condenação do R. e da prestação de contas.
FUNDAMENTAÇÃO Fundamentos de facto
Para além do que acima consta quanto ao iter processual, dá-se como provado o seguinte:
1- A. e R. casaram, a 29.6.1987, sem convenção antenupcial, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado a 22.3.2004 (doc. 1 junto com o requerimento de inventário apenso).
2- No inventário para separação de meações apenso, foi nomeado cabeça-de-casal o aqui requerido.
3- Na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, freguesia ..., encontram-se descritos e aí inscritos, ao tempo do requerimento, destes autos, em nome de A. e R., os seguintes imóveis (cfr. doc. 1 junto com o requerimento de 25.7.2022, nos autos de inventário apensos:
a) - Com a descrição nº e art. matricial 4272 correspondente a esta fração:
b) - Com a descrição e mesmo art. matricial correspondente a esta fração:
c) - Com a descrição e mesmo art. matricial correspondente a esta fração:
d) – Com a descrição e mesmo art. matricial correspondente a esta fração:
e) Com a descrição e mesmo art. matricial correspondente a esta fração:
f) Com a descrição e mesmo art. matricial correspondente a esta fração:
4 - Consta do mapa de prestação de contas apresentado pela requerente, a fls. 122 a 134, o seguinte:
MAPA DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
Resumo
Devido à Requerente a título de Rendas + Juros
(316020,00€ + 2 112,58€)
318132,58€
Devido ao Réu a título de crédito
(51 632,60€ + 24979,30€)
76611,90€
Devido à Autora pelo Réu
(318 132,58€ - 76611,90€)
241520,68€
Fundamentos de Direito
Estamos perante uma das formas de processo especial, o processo de prestação de contas.
O processo de prestação de contas encontra-se regulado nos arts. 941.º e ss. do CPC.
Do ponto de vista substantivo, a obrigação de prestar contas deriva de um dever mais geral, o de prestar informação, consignado no art. 573.º CC.
O dever de prestar contas existe sempre que alguém trate de negócios alheios ou de negócios simultaneamente alheios e próprios, surgindo a obrigação de informação com um âmbito alargado: o de pormenorizar as receitas e despesas efetuadas, acompanhada da justificação e documentação respetivas (P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Ed., p. 590).
A lei prevê, entre vários casos de obrigação de prestação de contas, o do cabeça de casal, incluindo quem tenha exercido de facto tal função, estipulando o art. 2093.º CC dever o cabeça de casal prestar contas anualmente.
Assim sucede, então, no quadro da comunhão resultante do casamento e do exercício das funções, de facto ou de direito, de cabeça-de-casal ou do cônjuge, dissolvido o matrimónio, em dependência dos autos de inventário para partilha[4].
O processo inicia-se com a petição inicial, peça processual onde o autor deve invocar o ato ou facto que justifica o seu pedido; esse ato ou facto constitui a causa de pedir (a razão por que se julga no direito de exigir a prestação de contas e por que entende que sobre o réu impende a obrigação de as prestar).
Cabe àquele que invoca o direito a prestação de contas o ónus de provar os factos constitutivos da sua pretensão – art. 342.º, n.º 1 do CC.
Deve o autor concluir a petição requerendo que o réu seja citado para apresentar as contas em 30 dias ou, no mesmo prazo, contestar a ação, sob cominação de não poder deduzir oposição às contas que o autor apresente.
Após a citação, o réu pode assumir na contestação três posições:
1.Nada faz;
2. Apresenta as contas;
3. Contesta a obrigação de prestar contas.
Nestes autos, o R., citado, não contestou a obrigação de prestar contas à A., pelo efeito de recebimento de rendas de imóveis comuns que se encontram ou encontraram arrendados e pretendeu mesmo apresentar contas, designadamente tendo em vista a condenação da A. a pagar-lhe despesas que afirma ter tido com a administração dos imóveis e impostos correlativos.
O tribunal explicitou, através do despacho de 12.10.2022, que as contas não tinham sido apresentadas pela forma devida, convidando o R. a fazê-lo e enunciando as consequências legais previstas no art. 944.º CPC, normativo que especifica como devem ser apresentadas as contas (em forma de conta-corrente) – n.º 1 – estabelecendo o n. 2 o seguinte: ”A inobservância do disposto no número anterior, quando não corrigida no prazo que foi fixado oficiosamente ou mediante reclamação do autor, pode determinar a rejeição das contas, bem como o respetivo saldo”.
Mais estabelece o n.º 3 que “As contas são apresentadas em duplicado e instruídas com os documentos justificativos”.
Ora, na situação dos autos, nem o R. reagiu ao despacho que considerou não corretamente prestadas as contas - o despacho de 12.10.2022 -, assim se formando caso julgado formal (art. 620.º CPC), como, além disso, foi notificado para juntar os documentos de suporte dos factos que alegou – mormente das despesas (mas também das receitas) – nada tendo feito.
Por outra parte, no mesmo despacho, ao notificar o R. de que a não apresentação das contas, em forma de conta-corrente, poderia determinar a rejeição das contas, limitou-se o tribunal a transcrever a previsão do art. 944.º, n.º 2, CPC, não se vendo como pode considerar-se tal cominação desproporcional (?), não sendo alegado qual a norma jurídica cuja aplicação violaria a Constit. cujo art. 20.º, n.º 4, foi invocado.
De igual modo, o despacho de 5.12.2012, rejeitando as contas apresentadas pelo R., não tendo sido objeto de recurso, transitou em julgado, constituindo decisão obrigatória dentro dos autos, concorde-se ou não com o modo, mais ou menos exigente, de ver as contas que o R. apresentou
Assim, verificando-se que o R., apesar de diversas vezes notificado, nada disse nos autos desde a contestação, de 24.5.2022, até ao presente recurso, que apresentou, a 19.6.2023, mesmo quando solicitado a colaborar, no sentido da junção dos documentos de suporte das despesas a que aludiu, está absolutamente justificado o deferimento à A. da tarefa de apresentação das contas, nos termos do n.º 1 do art. 943.º CPC.
Fora de dúvidas que aqueles dois despachos, há muito transitados em julgado, se mostram também conformes com o rito processual legalmente previsto.
Resta saber se se encontram bem julgadas as contas apresentadas pela A.
Em primeiro lugar, não assiste razão ao recorrente quando afirma que o processo de prestação de contas não é próprio para levar à condenação da parte no pagamento de uma quantia à outra.
É exatamente o oposto: “A formulação do pedido de prestação de contas envolve, ainda que implicitamente, o pedido de condenação do obrigado no eventual saldo favorável” (anotação 1 ao art. 942.º, Abrantes Geraldes et alt., Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2021, p. 390).
No mesmo sentido, Rita Lobo Xavier (A relação especificada de bens comuns: relevância jurídica da sua apresentação no divórcio por mútuo consentimento, JULGAR - N.º 8 – 2009, p. 25, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/5221/3/464646546.pdf): “Não será de excluir que o outro ex-cônjuge, mais tarde, pretenda propor uma acção de prestação de contas, nos termos dos artigos 1014.º e ss. do CPC [atual 941.º ss.], pedindo o apuramento das receitas e despesas realizadas e a condenação no pagamento do respectivo saldo.
Também Rui Pinto, citando jurisprudência: «Se as contas apresentarem um saldo a favor do autor, a parte final do art. 941.º admite que o autor possa cumular sucessivamente um pedido condenatório. Deste modo, normalmente, “o pedido de prestação de contas, […] [envolve] necessariamente, o pedido de condenação no eventual saldo final” (RC 14.5.2013/Proc. 9-B/1991.C1)».
Desta Relação, podem ver-se, entre outros, ac. de 10.1.2022, relatado pela aqui primeira adjunta e assinado pelas ora relatoras e segunda ajunta, no Proc. 194/19.1T8VGS.P1: “ (…) este processo tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administre bens alheios e, também, a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.
Ac. de 11.5.2020, Proc. 1471/17.1T8PRT-A.P1, também subscrito pelas aqui adjuntas: «Da conjugação destes preceitos [941.º, 942.º, 944.º, n.º 5 e 946.º, n.º 2, do CPC] emerge, sem margem para dúvidas, que a acção de prestação de contas não é uma acção de simples apreciação ou constitutiva.
É, isso sim, uma acção declarativa de condenação, em que se visa apurar” quem deve e o que deve “, e em que se consente, até, que o devedor possa vir a ser executado por apenso.
A prestação de contas tem em mira a definição de um quantitativo como saldo.
E isto porque o pedido de prestação de contas envolve, necessariamente, um pedido de condenação no pagamento de um saldo positivo».
Assente, por isso, ter todo o cabimento a condenação do obrigado à prestação de contas no saldo que se apurar a favor do sujeito ativo do direito de crédito que lhe corresponde.
Considera, depois, o recorrente que, antes de proferir sentença, deveria ter sido feito uso do disposto no art. 943.º, n.º 2, CPC, de modo a obter-se informação sobre as despesas efetuadas pelo R., devendo ordenar-se a junção de suporte documental para a comprovação das contas apresentadas pela A.
Como já dissemos, a rejeição das contas apresentadas pelo R. foi decidida por despacho de 5.12.2012, o qual transitou já em julgado. Recorde-se ter o tribunal solicitado ao R. que, além de apresentar as contas (incluindo as despesas por si alegadas) na forma de conta-corrente, o que este não fez, também juntasse os documentos de suporte das despesas que disse ter suportado. O R. nunca apresentou esses documentos. Por essa razão, não se vê como pode agora pretender que o tribunal, transitado o despacho que não aceitou tais despesas, ainda viesse a notificá-lo, mais uma vez, para documentar despesas que já rejeitara por decisão transitada em julgado.
Quanto à junção de suporte documental para comprovação das contas apresentadas pela A., vemos que, apresentadas as contas pela A., o R. não é admitido a contestá-las, conforme resulta da parte inicial do art. 943.º, n.º 2 (também art. 942-º, n.º 5), sendo as mesmas julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes.
Como se expõe no ac. RG, de 16.2.2017, Proc. 628/14.1TBBGC-C.G1: I – No processo de prestação de contas, a situação em que se encontram o autor e o réu no que concerne à apresentação das contas é diferente, pois é sobre o réu que recai a obrigação de as prestar, dispondo ele dos elementos necessários para o fazer ou podendo obtê-los; já o autor terá mais dificuldades para o fazer. II - Por isso, para a apresentação das contas pelo autor, a lei é menos exigente do que para a do réu e, também por tal motivo, são cometidos ao tribunal amplos poderes de indagação. III - Se o autor apresentar as contas de forma imprecisa ou incompleta deve ser convidado a aperfeiçoá-las ou serem feitas diligências e por isso o juiz não tem necessariamente que aprovar as contas apresentadas pelo autor mas sim proferir decisão justa. IV - Considerando essa menor exigência, entende-se que a não apresentação sob a forma de conta-corrente e a falta de documentação não são motivos de rejeição. V - Incumbir pessoa idónea para dar parecer sobre as contas é uma mera faculdade (e não obrigatoriedade).
Ora, as contas apresentadas pela A. encontram-se elaboradas de modo formalmente correto e referem-se às rendas auferidas pelo arrendamento dos imóveis que pertencem a A. e R., desde outubro de 2010 a 15.7.2022.
Na sentença não foi, porém, indicada qualquer matéria de facto – o que determinaria nulidade da peça, por força do disposto no art. 615.º, n.º 1 al. b) CPC – vício que, todavia, não foi arguido.
Quanto aos documentos de suporte dos arrendamentos e do recebimento de rendas, o tribunal considerou “analisados os documentos juntos aos autos, nomeadamente com o requerimento/petição inicial, deles resultando perfeitamente claras as receitas obtidas”, afirmando, mais adiante “não foram oferecidas quaisquer provas”, o que, em si, é contraditório (ou há documentos – e quais em concreto para quais factos - e foram analisados ou não os há porque não foram oferecidos).
Neste segmento, temos que, ao contrário do R., que foi quem administrou este património imobiliário e, por isso, terá à sua disposição todos os elementos dos quais resulte quais as frações arrendadas, desde quando, e por que valores, a A. não disporá desses elementos ou de todos eles.
Neste caso, diz a lei que o juiz decide segundo o prudente arbítrio “depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes, podendo ser incumbida pessoa idónea de dar parecer sobre todas ou parte das verbas inscritas pelo autor (art. 943.º, n.º 2).
Em anotação 8 e 9 ao art. 943.º, Abrantes Geraldes et alt, cit., p. 394, explicita: «Os poderes-deveres instrutórios previstos no n.º 2 mostram a preocupação legal de que as contas sejam julgadas com base em elementos dotados de um mínimo de consistência. O prudente arbítrio não pressupõe “certeza”, sob pena de não haver lugar a tal tipo de julgamento, apelando a mais um juízo em que se ponderem, com razoabilidade, todos os elementos disponíveis, procurando obter um valor que, com forte probabilidade, envolva a menor margem de erro.»
As receitas que a A. apresentou – uma vez que as despesas aludidas pelo R. já se acham afastadas por decisão transitada em julgado – referem-se a rendas provenientes do arrendamento de dez frações (são seis frações, mas a última delas subdivide-se em cinco habitações).
A A. considera estarem todas elas arrendadas, desde outubro de 2010 e até março de 2022, num total de rendas de € 632.040,00, o que equivale a € 316.000,00, para cada um dos A. e R.
Junta-lhe juros de mora (€ 2.112,58)
Subtrai-lhe dois valores (€ 51.632,60 e € 24.979,30) que o R. já lhe terá saldado.
Apura um saldo a seu favor de € 241.520,68.
Compulsando os autos, neles não verificamos qualquer dos contratos de arrendamento referidos às dez frações em causa, ignorando nós a que contratos se referem as receitas apresentadas, desde quando e até quando se iniciaram os contratos e quais os valores concretos de rendas pagos desde outubro de 2010 até 15.7.2022.
A A. apenas junta uma declaração emitida pela Autoridade Tributária, datada de 3.8.2018 (doc. de fls. 10), relativamente às frações C, E, F, J e K, cujos contratos de arrendamento nessa data em vigor teriam uma renda declarada de € 150,00; € 350;00; € 750; € 150; € 350,00; € 550,00 (este seria o r/c da fração K).
A A. solicitara à AT que juntasse os contratos de arrendamento, mas é consabido não receber aquela entidade tais documentos, limitando-se o senhorio a registar os contratos em causa, indicando apenas o imóvel locado, a identificação das partes, duração do contrato e valor da renda.
A A. juntou também um auto de penhora, datado de 11.5.2016, levada a efeito no processo 6896/07.8TBVNG, onde se acha penhorada a verba n.º 3, correspondente a € 380,00, mensais pagos pelo inquilino da fração K, R/C esquerdo, a verba n.º 6, correspondente a € 550,00, mensais pagos pelo inquilino da fração K, R/C direito. Também o auto de penhora, datado de 19.5.2016, onde se acha penhorada a verba n.º 1, correspondente a € 400, 00, mensais pagos pelo inquilino da fração K, 2.º andar, esquerdo.
Nada foi junto quanto ao 1.º esq. e 1.º dt.º, da fração K, que o R. afirma terem estado sempre devolutos.
Como já referimos, o deferimento da prestação de contas apresentadas pelo A., quando o R. as não apresente, não significa uma espécie de cominatório pleno que leve a admitirem-se, sem mais, as contas apresentadas pelo A., sem quaisquer exigências de prova.
Ao contrário, a lei alude a um julgamento, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes. Como, por vezes, cabe ao devedor da prestação de contas o monopólio dos documentos relativos às receitas (e despesas), ao invés de um juízo objetivo ou orientado por um critério de ónus probatório, a lei recorre ao prudente arbítrio do julgador, o que lhe permite “valorar a prova trazida para os autos em termos bastante mais flexíveis do que numa mera análise estrita da prova, segundo critérios de certeza judicial (ac. RC, de 16.12.2015, Proc. 423/08.7TBLMG.C1), tendo o juiz “o poder dever de realizar todas as diligências indispensáveis para aprovar as contas e pode aprovar verbas para as quais não existem documentos, ou porque não é comum exigir documentos dessas receitas ou despesas ou, por exemplo, porque se justifica que os documentos se perderam ou foram destruídos. Agora esta possibilidade não afasta a necessidade de o juiz ser criterioso nesse julgamento. Designadamente, o juiz não deve prescindir de documentos quando o normal é que eles existam e nenhuma justificação válida é apresentada para a sua falta ou não apresentação” (Ac. RP, de 12.7.2023, acima citado[5]).
Analisando as verbas de rendas apresentadas pela A., suscita-nos desde logo a dúvida se, entre os anos de 2010 e 2022, as rendas se mantiveram iguais para cada ano, sem oscilações, o que não corresponde à realidade do mercado habitacional; que não tenha havido hiatos nos arrendamentos em nenhuma das frações; que as rendas hajam sempre sido pagas, sem qualquer incumprimento pelos inquilinos.
No âmbito dos contratos de arrendamentos não é normal que ao recebimento das rendas não corresponda um contrato de arrendamento escrito de recibos de quitação. Também é exigível a declaração dos contratos nas Finanças.
Sendo assim, de acordo com as regras da experiência e atendendo ao normal funcionamento dos contratos de arrendamento, afigura-se-nos não ser de julgar de imediato as contas apresentadas quanto a rendas, sendo de efetuar averiguações mínimas sobre a existência dos arrendamentos, valores de rendas e duração dos contratos, considerando tratar-se de mais de duas décadas de alegadas receitas[6], razão porque se nos afigura não poder, sem mais, julgarem-se validamente prestadas as receitas apresentadas pela A. quando é certo que, considerando a origem das mesmas, haverá documentos de suporte cuja recolha não foi sequer tentada nos autos.
Temos, porém, uma base já segura, a que resulta da confissão do R., num total de, pelo menos € 220.790,00 (fls. 47 v.º), cabendo à A. €110.395,00, do qual se desconta o valor por esta indicado a favor do A. (€ 76.611,90), do que resulta um saldo já apurado a favor da A. de € 33.783,10.
Na verdade, nos termos do n.º 4 do artigo 944.º do Código de Processo Civil, a inscrição nas contas das verbas de receita faz prova contra o réu, logo, o juiz deve aprovar todas as verbas da receita apresentadas pelo réu mesmo que não sejam juntos documentos justificativos.
Quanto aos restantes € 205,625 (€ 316.020,00 – € 110.395,00), haverá que efetuar diligências de prova que se revelam possíveis e pertinentes: solicitar à autoridade tributária a indicação de todos os contratos de arrendamento, e seus elementos, registados nas Finanças quanto aos imóveis descritos nos factos provados, desde outubro de 2010, até à atualidade; notificar o autor para juntar todos os contratos de arrendamento relativos a tais frações, no mesmo período e/ou indicar quais os arrendatários das mesmas (ouvindo-os, caso necessário), ao longo desse período, sob pena das sanções previstas no art. 417.º, n.º 2, CPC.
Cremos, assim, assistir parcial razão ao recorrente, impondo-se a revogação também parcial da sentença.
Dispositivo
Pelo exposto, na parcial procedência do recurso, revoga-se parcialmente a sentença, julgando-se validamente apresentadas as contas pela A. acima transcritas, relativamente às rendas admitidas pelo R. a fls. 47 v. e também constantes do relatório deste acórdão, resultando um saldo a favor da A. € 33.783, 10.
Condena-se o R. a pagar à A. a quantia de € 33.378, 10.
Determina-se o prosseguimento dos autos para maior indagação probatória nos termos sobreditos, quanto às demais receitas apresentadas pela A.
Custas por ambas as partes, na proporção do decaimento.
Porto, 27.11.2023
Fernanda Almeida
Eugénia Cunha
Fátima Andrade
_______________ [1] V. Ac. TRP de 28.5.2007 (relator Sousa Lameira), de 31.1.2008 (relator Ataíde das Neves) e de 22.3.2011 (relator Fernando Samões), In Dgsi.pt. [2] In CJ, 1976, t. 2.°, pág. 461 [3] Cfr. Prof. Alberto dos Reis, in Processos especiais, vol. I., pág. 315. [4] Cfr. ac. RL, de 26.4.2007, Proc. 1944/07-2: I Na constância do matrimónio a Lei não prevê que o cônjuge que exerça a administração de facto preste contas da mesma ao outro cônjuge. II Havendo necessidade de prestação de contas pelo cônjuge que administre bens comuns, tal só poderá ser requerido pelo outro após a dissolução do casamento o que terá de ser efectuado não em processo autónomo perante o Tribunal comum mas antes por dependência dos autos de inventário para partilha de bens do casal, nos termos do disposto no artigo 1019º do CPCivil, e no Tribunal de Família, sendo este o competente [5] No mesmo sentido o já indicado ac. desta Relação, de 4.5.2023: “o uso do prudente arbítrio (a que se refere os arts. 943.º, n.º 2 e 945.º, n.º 5, do Código de Processo Civil) serve para o juiz, valorando a prova em termos mais flexíveis, considerar justificadas, sem documentos, verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los; mas não “serve” para o próprio juiz criar novas verbas da receita ou da despesa. O juiz, usando de prudente arbítrio, deve utilizar dados da experiência comum, permitindo-se-lhe valorar a prova trazida para os autos em termos mais flexíveis do que numa mera análise estrita da prova, podendo considerar justificadas sem documentos verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los, sendo aqui admissível a formulação de um juízo de probabilidade favorável (ocorre aqui um desvio na regra da apreciação estrita da prova). O prudente arbítrio não se confunde com poder discricionário. O juiz move-se com grande liberdade e largueza, mas não pode emitir a decisão que lhe apetecer, mas a sentença que, sendo prudente, corresponde ao estado dos autos, à prova neles produzida. (…). Nesta matéria do ónus da prova da exatidão das verbas de receita e de despesa, já o Prof. Alberto dos Reis defendia que incumbia à pessoa que presta as contas, portanto, ao réu, no caso de contas exigidas. Assim acontece ainda no atual Código de Processo Civil, como emerge da conjugação do n.º 3 do art. 944º com o referido n.º 5 do art. 945.º: As contas são apresentadas pelo réu instruídas com os documentos justificativos, sendo estes apenas dispensáveis nas situações em que as verbas de receita ou de despesa não é costume exigi-los, podendo então considerar-se justificadas sem documentação. Mas, se o autor impugna a verba da receita, argumentando que a receita foi ou devia ser superior à inscrita, cumpre-lhe fazer a prova da sua alegação. (…) Quem gere bens alheios (ou parcialmente alheios), deve ser escrupuloso e rigoroso na sua administração, não podendo deixar de ter elementos e informações para apresentar quando lhe são pedidas contas, pelo que qualquer dúvida, situada no espetro dos elementos e informações que é suposto dever ter, tem que ser decidida/julgada contra si; ou seja, aquele que deve prestar contas não pode aspirar a tirar “vantagens” da sua falta de colaboração processual, no que diz respeito às receitas e despesas efetivamente por si realizadas”. [6] No ac. desta Relação acima mencionado, de 4.5.2023, considerou-se que, tratando-se de contas relativas a um longo período – naquele caso de 15 anos – deveria tentar recolher-se o máximo de prova de suporte, submetê-la a contraditório, com vista à obtenção de um saldo tão rigoroso quanto possível.