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DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário
I – A solução interpretativa correta é a que admite a possibilidade de tomada de declarações para memória futura sem que tenha havido prévia constituição de arguido, pois que tal não pondo irremediavelmente em causa o direito ao contraditório, por outro lado, assegura igualmente o interesse na boa realização da justiça e eficaz descoberta da verdade material. II - À tomada de declarações para memória futura sem prévia constituição de arguido, não poderá, porém, recorrer-se sem fundamento material bastante que o legitime, o que ocorrerá, designadamente, em situações em que o inquérito corra contra pessoa não determinada (o suspeito ainda não está identificado), ou em que no inquérito já se conhece a identidade do suspeito, mas não foi ainda possível, ou não se mostra ainda oportuno, constituí-lo como arguido, nomeadamente, por desconhecimento do seu paradeiro, dificuldade de localização para notificação em tempo útil, por razões de discricionariedade tática na investigação ou por razões de urgência ou em que se verifica necessidade de garantir que a vulnerabilidade do declarante não o expõe a potenciais pressões ou represálias, assim garantindo a espontaneidade e veracidade do respetivo depoimento, o que, de outro modo, poderia estar em risco. III - Estas serão, porém, situações a apreciar casuisticamente, de acordo com as circunstâncias concretas quanto ao estado e aos eventuais futuros desenvolvimentos da investigação, à situação do declarante, em especial quanto às suas necessidades de proteção face a potenciais reações negativas por parte do suspeito, etc.; nas quais surja como proporcional e razoável sacrificar o respeito pelo princípio do contraditório pleno aos interesses da realização da justiça e descoberta da verdade material e, acima de tudo, às necessidades de proteção do declarante.
Texto Integral
Processo 134/23.3T9MCN-A.P1
Comarca do Porto Este
Juízo de Instrução Criminal de Penafiel – Juiz 2
Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO I.1. OMinistérioPúblico veio interpor recurso do despacho proferido no Juízo de Instrução Criminal de Penafiel em 18.09.2023 que decidiu indeferir a realização de declarações para memória futura de uma menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.
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I.2. Recurso da decisão (conclusões que se transcrevem integralmente)
“1ª O Ministério Público, a 11/09/2023 promoveu, ao abrigo do disposto no art.° 271.°. n.°s 1 e 2 do Código Penal, a realização de diligencia de tomada de Declarações para Memória Futura à Ofendida AA, visando que as mesmas pudessem ter valor probatório em julgamento, porquanto nos presentes autos se denunciava a prática, pelo suspeito BB, de factos integrantes de crime (s) de importunação sexual, previsto (s) e punível (eis) pelo art.° 170.° do Código Penal, com a agravação do disposto no artigo 177.°. n.° 1. alíneas b) e c), do mesmo compêndio legislativo, o que fez nos termos e com os fundamentos constantes do despacho reproduzido no local próprio, cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido por economia processual para todos os legais efeitos.
2ª Por despacho proferido a 18/09/2023. cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido por economia processual para todos os legais efeitos, o Meritíssimo Sr. Juiz de Instrução Criminal indeferiu a realização da supra referida diligência, mas fê-lo de forma com a qual não nos conformamos.
3ª O Art.° 271.°, n.° 2. do CPP, sob a epígrafe, "Declarações para Memória Futura" dispõe nos seguintes termos: "2- No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior. ".
No despacho recorrido o Meritíssimo Juiz ignorou a obrigatoriedade que decorre do referido n.° 2 de tal normativo legal, da realização de declarações para memória futura quando o ofendido (a) for de menor idade, e se esteja, como no caso dos autos, perante crime (s) contra a liberdade e autodeterminação sexual, dado que nada referiu quanto a tal obrigatoriedade, mas apenas fez referência aos pressupostos constantes do n.° 1.
4ª Com as declarações para memória futura pretende-se recolher elementos probatórios, junto da vítima sobre os contornos dos factos denunciados e que tenham relevância criminal, designadamente, a identidade do autor do crime, a motivação, as consequências (físicas, emocionais, etc.) dessa actuação, eventuais testemunhas desses factos e outros elementos que na sequência daquelas declarações se considere oportuno inquirir, evitando a revitimização da Ofendida.
É sempre este o escopo de qualquer tomada de declarações para memória futura a uma vítima e. por isso, com o devido respeito, consideramos que não há que fazer diligências probatórias prévias para sustentar a notícia do crime de tal modo que, posteriormente, sejam já deferidas as declarações para memória futura.
5ª Nos termos do disposto nos artigos 53.°, n.° 2, al. b), e 263.° n.° 1. ambos do C.P.P.. cabe ao Ministério Público e não ao Meritíssimo Juiz com funções instrutórias a direção da ação penal, sendo aquele quem poderá decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito.
6ª Acresce ainda que. muito respeitosamente, não há qualquer base legal para que. desde logo e em primeiro lugar, se constitua alguém como Arguido para. posteriormente, se tomarem declarações para memória futura à vítima. Ademais, no decurso do inquérito, caso sejam constituídos Arguidos, será sempre dado conhecimento aos mesmos de todos os elementos probatórios aquando do seu eventual interrogatório, podendo o arguido exercer o seu direito de defesa, tanto mais que não é pelo facto de a vítima ter sido inquirida em declarações para memória futura que tal facto inviabilizará, em absoluto, que volte a ser inquirida, aquando do julgamento, caso seja deduzida acusação, obviamente caso tal se justifique.
7ª Em termos de estratégia de investigação criminal e gestão processual, cremos, nem é a opção mais correta. O auto de noticia/participação criminal/queixa, cremos, não é um meio de prova "hoc sensu ", mas um início de prova. Não se deve. em termos de estratégia processual, apenas com base num auto de denúncia constituir alguém como Arguido, porque para o fazermos, enquanto magistrados do Ministério Público, deveremos atentar que o art.° 58.°, n.° 1. al. a), do CP.P. exige que haja uma suspeita fundada da prática de crime, o que, apenas com um auto de notícia, não pode verificar-se.
E precisamente por essa razão que tantos inquéritos criminais são arquivados sem que se cheguem a constituir os denunciados como Arguidos, seja porque os Ofendidos/testemunhas não prestam declarações credíveis, porque as testemunhas indicadas pelos Ofendidos contrariam a versão dos factos trazida na queixa, porque desistem do procedimento criminal, porque se recusam validamente a prestar declarações nos termos do disposto no art.° 134.° do C.P.P. etc.
8ª Não será, pois, a prestação de declarações para memória futura que protegerá a vítima, mas será essencial para. num caso como o vertente, descrever com a minúcia exigida a factualidade denunciada, para evitar que a mesma seja revitimizada e, assim, se possa lograr, a final, uma efetiva responsabilização penal do denunciado, assim se verifiquem, pois. indícios da prática do crime que de acordo com as regras do direito probatório permitam sustentar uma condenação.
9ª Inexistem vantagens para protecção da vítima e recolha da prova em não ouvir imediatamente, para memória futura, uma vítima menor de crime sexual, e há uma grande desvantagem em decidir-se como se decidiu, designadamente, potenciar a revitimização da Ofendida, na medida em que o (a) Magistrado (a) do Ministério Público teria que proceder à inquirição prévia da vítima, com vista à recolha de prova que legitimasse/justificasse a prévia constituição do suspeito como arguido, pois tal como se sabe, em tal tipo legal de crime o mais importante meio de recolha de prova são as declarações da própria vítima.
10ª Cremos, ainda e sobretudo, que a fundamentação invocada na douta decisão de indeferimento recorrida, não legitima nem justifica o indeferimento da requerida realização da diligência de tomada de declarações para memória futura, dado que os direitos de defesa do Arguido ficarão salvaguardados com a nomeação de defensor oficioso, e afigura-se-nos incorreta e infundamentada a afirmação de que a não constituição prévia do suspeito como arguido "...poderá configurar a nulidade insanável prevista no artigo 119.°. al. c). do CPP em conjugação com o que determina o artigo 271°, n." 2. do CPP" dado que tal referida nulidade apenas ocorreria se o inquérito fosse encerrado sem que o suspeito, sendo conhecida a sua identidade e o seu paradeiro, fosse constituído e interrogado como arguido, e não na situação que por agora releva quanto às declarações para memória futura.
11ª Incorreu, pois. o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal em erro notório na apreciação da prova ao valorá-la como valorou, e ao indeferir a supra referida promoção do Ministério Público, quando carecia de fundamentos para tal.
12ª Ao decidir como decidiu, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal violou o disposto nos artigos 53.°. n.° 2, al. b), 67.° - A, n.° 1, al. b), 58.° n.° 1 al. a), 127°, 263.° n.° 1 e 271º, n.º 2, todos do C.P.P..” Pugna pela revogação da decisão judicial recorrida e a sua substituição por outra que designe dia e hora para a tomada de declarações para memória futura da menor ofendida.
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I.3. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação o Ministério Público acompanhou a argumentação constante na motivação do recurso interposto pelo Ministério junto do tribunal recorrido.
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I.4. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
Assim, da análise das conclusões do recorrente a única questão que importa apreciar e decidir é a de saber se o Mmo. Juiz de Instrução podia ter indeferido a tomada de declarações para memória futura requeridas pelo Ministério Público.
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II.2. Decisão recorrida (que se transcreve integralmente)
“O Ministério Público vem requerer a inquirição de menor para declarações para memória futura.
Para o efeito, invoca que nos presentes autos de inquérito se investiga crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor.
Apreciando.
A prestação de declarações para memória futura constitui uma exceção ao princípio constitucional da imediação consagrado no artigo 32.°, n°5 da Constituição da República Portuguesa. Daqui decorre que as declarações para memória futura recolhidas, neste caso, durante o inquérito têm natureza excecional.
Dispõe o n.° l do artigo 271° CPP que "em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do Defensor — n°2 do citado preceito legal.
Sucede que, no presente caso, o denunciado ainda não foi sequer constituído como arguido.
Salvo melhor entendimento, consideramos que apenas é admissível as declarações para memória futura ainda que não haja arguido constituído, ou seja, sem a presença ou possibilidade do arguido exercer cabalmente naquela diligência um efetivo contraditório, quando razões inadmissíveis de urgência impõe a sua realização, nomeadamente, desconhecimento da identidade do suspeito, ausência deste, necessidade urgente de preservar prova, necessidade urgente de proteger o declarante ou outras pessoas, partida eminente ou possibilidade séria de morte deste (CPP anotado, pelos Conselheiros do STJ, pág. 965).
Ora, uma vez que nenhuma das aludidas condições se impõe nos presentes autos, consideramos inviável, antes da constituição como arguido do denunciado, a realização da presente diligência, o que se determina.
Acresce que a ausência de tal diligência poderá configurar a nulidade insanável prevista no artigo 119.°, al. c), do CPP em conjugação com o que determina o artigo 271.°, n.° 2, do CPP.
Notifique.”
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II.3. Apreciação do Recurso §1. Com interesse para a apreciação da questão enunciada importa ter presente os seguintes elementos factuais e ocorrências processuais que constam dos autos:
a) Nos autos, iniciados em 15.02.2023, investiga-se a prática por parte do suspeito BB de factos integrantes de, pelo menos, um crime de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170º do Código Penal (doravante CP), com a agravação do disposto no artigo 177º, n.º 1, al. als. b) e c) do CP sobre AA.
b) AA nasceu a .../.../2007.
c) O suspeito, BB, à data dos factos denunciados, era companheiro da progenitora da menor, relação que actualmente já terá cessado.
d) A menor encontra-se a viver em casa do seu irmão desde Junho de 2022.
e) Em 11.09.2023 o Ministério Público proferiu despacho com o seguinte teor: “Compulsados os autos, encontra-se indiciada a verificação dos seguintes factos: - AA nasceu a .../.../2007, e é filha de CC e DD. - Desde Fevereiro de 2022 que o suspeito BB, na sequência do relacionamento amoroso com a progenitora da jovem, passou a integrar o seu agregado familiar, constituído ainda pela progenitora e o seu irmão EE, irmão da jovem, residindo na Rua ..., ..., .... - Em data não concretamente apurada, tendo a AA 14 anos de idade, e encontrando-se a jovem no carro com o suspeito, este colocou a mão na cocha da jovem, - Porque a AA disse ao suspeito para não fazer aquilo, votou a pôr a mão na zona da cocha e a dar sapatadas e disse-lhe "às vezes é um consolo, outras vezes não”. - Em datas e número de vezes não concretamente apurados, do período compreendido entre Fevereiro de 2022 e Julho de 2022, quando a AA falava com o suspeito, este dava-lhe ligeiras sapatadas na zona nadegueira, bem como lhe colocava as mãos na zona da cina e após colocava a mão na zona das nádegas. - Em data não concretamente apurada, na residência do agregado familiar, estando a ofendida sentada no sofá, o suspeito ajoelhou-se à sua frente e perguntou-lhe se sabia beijar e que se não soubesse, lhe ensinava. - Em data não concretamente apurada de Julho de 2022. por altura das festas de ..., o suspeito estando embriagado, apelidou a ofendida de ladra, leviana, merda, mimada. - De seguida, o suspeito bateu, por duas vezes, com força na mesa da cozinha, e referindo a um jovem por quem a AA nutria sentimentos, disse que o matava e que trazia a cabeça dele e a metia em cima da mesa, em frente à jovem e à sua mãe. - Ainda em data não concretamente apurada, o suspeito exibiu o pénis a uma vizinha, pegando nele e abanando-o, o que fez na presença da AA, à data com 14 anos de idade. Os factos supra descritos são suscetíveis de integrar em abstrato, pelo menos, a prática do crime de importunação sexual, p. e p. pelo art.° 170.° do Cód. Penal, com a agravação do disposto no art.° 177.° n.° 1 ai. b) e c). Nos termos previstos pelo artigo 271, número 1, do Código de Processo Penal, nos casos de vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. De acordo com o número 2, do Código de Processo Penal, nos processos em que sejam investigados crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor “procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior”. Assim, o legislador prevê a tomada de declarações para memória futura de vítima de crimes contra a autodeterminação sexual, como o que está em causa nos presentes autos. Assim, conclua os autos ao Mm.° JIC junto da ICIC, a quem se requer se digne designar dia para audição da menor AA, nascida a .../.../2007, para memória futura, com as formalidades requeridas pelo art.° 271º do Cód. Proc. Penal e ainda do artigo 27.° n.°s 1 e 2 da Lei n.° 93/99 de 14 de Julho, isto é, com o devido acompanhamento técnico especializado.”
f) Na sequência deste despacho foi proferida a decisão recorrida supra transcrita.
g) Na data da despacho proferido pelo Ministério Público o suspeito não se encontrava constituído arguido.
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§2. A matéria das declarações para memória futura, enquanto acto antecipado de produção de prova na fase de inquérito, encontra-se regulada no artigo 271º do Código de Processo Penal (doravante CPP), na redacção introduzida pela Lei n.º 102/2019, de 06.09 e que se passa a transcrever na parte que releva para o presente recurso: “1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. 2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior. 3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor. (…) 8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”
A tomada de declarações para memória futura foi inicialmente pensada pelo legislador português como meio preventivo de conservação da prova susceptível de perder-se ou inviabilizar-se antes do julgamento, tendo contudo ampliado o seu objectivo para protecção de fontes de prova que beneficiem de especial protecção (cfr. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Paulo Dá Mesquita, pág. 614).
É um procedimento, como se sabe, de natureza excepcional em relação aos princípios de imediação e da oralidade, que demandam, como regra, que toda a prova seja produzida em audiência de julgamento.
Concentremos a nossa atenção na inquirição antecipada de vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.
A revisão de 1998 (Lei 59/98, de 25.08) aditou ao n.º 1 do artigo 271.º do CPP as vítimas de crimes sexuais.
No domínio dos crimes sexuais, Cruz Bucho (em “Declarações para memória futura (elementos de estudo)”, Guimarães, 2012, págs. 36-40, disponível em www.trg.pt) escreveu “o recurso a declarações para memória futura procura: i) evitar os danos psicológicos implicados na evocação sucessiva pelo declarante da sua dolorosa experiência e a sua exposição em julgamento público e, ii) fixar os elementos probatórios relevantes a partir do primeiro relato presumivelmente mais próximo e espontâneo, evitando o perigo de contaminação da prova.”.
Como se referiu no acórdão do TRE de 09.03.2021, relatado pelo Desembargador Renato Barroso (disponível em www.dgsi.pt) “A prestação de declarações para memória futura constitui, verdadeiramente, um direito da própria vítima, de se poupar à revitimização, onde se pretende evitar que a vítima seja levada a reviver os sentimentos negativos de medo, ansiedade e dor que vivenciou aquando da prática dos factos num ambiente formal e público, e com a presença do arguido no edifício do tribunal, ainda que não na sala de audiências.
Estes riscos de vitimização secundária e de distorção probatória adquirem maior acuidade no caso das vítimas menores de crimes sexuais.
Em conformidade, no que concerne aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, a reforma de 2007 (Lei 48/2007, de 29.08) veio impor, no n.º 2 do mesmo normativo, a obrigatoriedade da inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
Este regime prevalece, quer sobre o regime geral, de produção de toda a prova em julgamento, quer sobre o do artigo 271º, nº 1 do CPP que tem, manifestamente, critérios mais restritivos.
Neste caso, “atendendo à natureza dos crimes em questão, à posição do declarante (vítima) e às suas características pessoais (idade inferior a 18 anos)a lei processual penal presume iuris et de iure a necessidade de antecipação da prova, tornando-a obrigatória” (vidé Cruz Bucho, ob. cit., págs. 69-70 e, ainda, o acórdão do TRP de 06.02.2019, relatado pelo Desembargador Horácio Correia Pinto, disponível em www.dgsi.pt ).
Revertendo ao caso presente, torna-se evidente que o enquadramento da situação dos autos terá de ser feito à luz do artigo 271º, n.º 2 do CPP como pretendido pelo recorrente.
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§3. A tomada de declarações para memória futura foi indeferida pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal por considerar que, nos casos em que o denunciado ainda não foi constituído arguido, por não poder exercer cabalmente um efectivo contraditório, a realização da diligência só será admissível por razões de urgência, nomeadamente, desconhecimento da identidade do suspeito, ausência deste, necessidade urgente de preservar prova, necessidade urgente de proteger o declarante ou outras pessoas, partida eminente ou possibilidade séria de morte deste.
O princípio do contraditório tem assento constitucional – artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
Tal princípio tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao arguido/acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação.
No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial; as excepções a esta regra não poderão, no entanto, afectar os direitos de defesa, devendo ser dada ao arguido/acusado uma efectiva possibilidade de confrontar e questionar directamente as testemunhas de acusação, quando estas prestem declarações em audiência ou em momento anterior do processo.
As declarações para memória futura constituem uma excepção ao princípio da imediação e, são diligências de prova realizadas pelo juiz de instrução na fase do inquérito, sujeitas ao princípio do contraditório, e que visam a sua valoração em fases mais adiantadas do processo como a instrução e o julgamento, mesmo na ausência das pessoas que as produziram.
Pode não ser o contraditório pleno, dada a fase processual em que se encontra o processo e as limitações à consulta integral do mesmo, mas é o contraditório possível e suficiente para assegurar os direitos de defesa do arguido.
Estando em causa um crime de natureza sexual e tendo como vítima uma menor, como é o caso, a lei impõe que a mesma preste declarações para memória futura, conforme estipula o artigo 271º, nº 2 do CPP.
Da resenha de ocorrências processuais supra transcritas, podemos concluir que a tomada de declarações para memória futura foi requerida pelo Ministério Público num momento em que – nesse processo – o suspeito estava identificado mas não tinha ainda sido constituído arguido.
Assim, antes de mais, coloca-se a questão de saber se a prestação de declarações para memória futura pressupõe ou não a prévia constituição de arguido.
A jurisprudência e doutrina têm adoptado duas posições distintas quanto à admissibilidade das declarações para memória futura sem prévia constituição de arguido:
- A primeira considera que a lei apenas admite a tomada de declarações para memória futura nos casos em que haja arguido constituído e defensor nomeado, argumentando-se para o efeito que só é possível exercer o contraditório que a diligência pressupõe nas situações em que existe já uma pluralidade de sujeitos processuais com posições antagónicas em relação ao objecto da prova. Quer dizer, tratando-se de depoimento para prova de factos incriminadores, sem arguido que deles se possa defender nem defensor que o possa representar, não pode haver lugar à essa forma de produção antecipada de prova.
Neste sentido, podem consultar-se os acórdãos do TRP, de 18.04.2001 relatado pelo Desembargador Manso Raínho e do TRE de 29.03.2005 relatado pelo Desembargador José Magalhães (Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, tomo 2, pág. 229 e ano XXX, tomo 2, pág. 269, respectivamente) e os autores Damião da Cunha (“O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento – artºs 356.º e 357.º do CPP – algumas reflexões à luz de uma recente evolução jurisprudencial”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 7, 1997, pág. 405), Mouraz Lopes (“O interrogatório da vítima nos crimes sexuais: as declarações para memória futura”, Sub Júdice, nº 26, 2003, pág. 16) e Joaquim Malafaia (“O acusatório e o contraditório nas declarações prestadas nos actos de instrução e nas declarações para memória futura”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 14, 2004, págs. 532-533).
- A segunda considera não ser necessário a prévia constituição de arguido para ter lugar a prestação de declarações para memória futura por considerar que este regime assenta na protecção dos interesses na realização da justiça e da descoberta da verdade material e, ainda, por razões de urgência ou vulnerabilidade também protegidas pela lei.
Neste sentido, tem decidido a maioria da jurisprudência, entre outros, os seguintes acórdãos: do TRP de 13.07.2005 relatado pelo Desembargador António Gama, 23.11.2016 relatado pelo Desembargador Manuel Soares e 06.07.2022 relatado pela Desembargadora Amélia Catarino; do TRC de 29.10.2010 relatado pelo Desembargador Abílio Ramalho; do TRL de 04.05.2017 relatado pelo Desembargador Abrunhosa de Carvalho, 03.02.2022 relatado pelo Desembargador Guilherme Castanheira e 12.10.2023 relatado pela Desembargadora Amália Carolina Teixeira e do TRE, de 07.07.2011 relatado pelo Desembargador Pedro Maria Godinho Vaz Pato, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Este entendimento tem sido também defendido na doutrina, entre outros, pelos autores António Gama (“Reforma do Código Processo Penal: Prova Testemunhal, Declarações para memória futura e reconhecimento”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 19, 2009), Paulo Dá Mesquita (cfr. ob. cit., Tomo III, pág. 973), Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, págs. 728-729) e Cruz Bucho (ob. cit., págs. 137-145) que sintetiza os argumentos determinantes a favor desta solução interpretativa: (i) o artigo 271º do CPP não enumera como pressuposto para a prestação de declarações para memória futura a que já tenha havido constituição de arguido ou que o inquérito corra contra pessoa determinada; (ii) do n.º 3 do artigo 271º do CPP não decorre que a prestação de declarações para memória futura depende da existência de arguidos constituídos no processo para que possam estar presentes no acto e exercer, logo aí, o contraditório, mas sim que, havendo arguidos constituídos, os respectivos defensores (tal como o Ministério Público) têm de estar presentes no acto; iii) as declarações para memória futura não podem ser configuradas como um “julgamento antecipado parcial”, apesar do que consta na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 109/X, que esteve na base da norma, dado que a prova aí recolhida pode nem vir a ser valorado pelo tribunal, em audiência de julgamento, por exemplo por se ter tornado desnecessária e que há outros importantes desvios às regras que imperam em audiência de julgamento; iv) se o inquérito corre contra pessoa ainda não determinada, não tem sentido falar-se em violação do princípio do contraditório, porque por definição não há ainda um interesse cujo confronto possa ser assegurado; v) há outros casos em que a lei admite a produção de prova ainda subordinada ao princípio contraditório e ao respeito pelos direitos de defesa, em que a presença do arguido é dispensada.
No supra citado acórdão do TRP de 13.07.2005 escreveu-se que:
“A faculdade de o arguido estar presente, prevista no art.º 271º n.º 3 do Código Processo Penal é, e consubstancia indiscutivelmente, um momento relevante do contraditório. Agora o que é preciso lembrar é que o processo penal é um espaço de conflito e de compatibilização de interesses. As finalidades primárias a cuja realização o processo penal se dirige são, de uma parte, a realização da justiça e a descoberta da verdade, como formas necessárias de conferir efectividade à pretensão punitiva do Estado; de outra parte a protecção face ao Estado dos direitos fundamentais das pessoas, nomeadamente do arguido. Ora esta conflitualidade deve ser resolvida, partindo do caso concreto, através da tarefa de operar a concordância prática das finalidades em conflito, optimizando os ganhos e minimizando as perdas axiológicas [F. Dias, Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do Código Processo Penal, RPCC, 8º Fasc. 2, pág. 202].(…) O momento essencial do contraditório fica intocado, pois ocorre na audiência de discussão e julgamento. E se é verdade que o não assistir ao depoimento é uma desvantagem, exercer em audiência de julgamento o contraditório a um depoimento para memória futura tem, além das desvantagens da falta de imediação, da ausência da oralidade, etc. comuns à acusação, à defesa e ao próprio tribunal, uma indiscutível vantagem: permite uma defesa organizada e estruturada, o depoimento é conhecido e definitivo, não é uma surpresa, o que não acontece com o depoimento acabado de fazer em audiência de julgamento, e convém lembrar que o contra interrogatório é seguido à inquirição pela acusação, art.º 348º n.º 4 do Código Processo Penal. Depois, e isso para nós releva indiscutivelmente, não se pode esquecer que a intervenção do juiz na fase de inquérito do actual processo penal e no concreto caso de declarações para memória futura caracteriza-se pela tutela das liberdades, alheando-se da actividade investigativa. Ao juiz na fase do inquérito estão reservadas funções jurisdicionais típicas de guardião dos direitos fundamentais dos cidadãos, surgindo aqui na veste de juiz das liberdades. Daí que não é despicienda esta função do juiz como garante dos direitos dos arguidos. (…)”.
Quanto a esta questão, entendemos que a solução interpretativa correcta é a que admite a possibilidade de tomada de declarações para memória futura sem que tenha havido prévia constituição de arguido, pois que tal não pondo irremediavelmente em causa o direito ao contraditório, como se viu, por outro lado, assegura igualmente o interesse na boa realização da justiça e eficaz descoberta da verdade material.
À tomada de declarações para memória futura sem prévia constituição de arguido, portanto, não se poderá recorrer sem fundamento material bastante que o legitime, o que ocorrerá, designadamente, em situações em que o inquérito corra contra pessoa não determinada (o suspeito ainda não está identificado), ou em que no inquérito já se conhece a identidade do suspeito, mas não foi ainda possível, ou não se mostra ainda oportuno, constituí-lo como arguido, nomeadamente, por desconhecimento do seu paradeiro, dificuldade de localização para notificação em tempo útil, por razões de discricionariedade táctica na investigação ou por razões de urgência ou em que se verifica necessidade de garantir que a vulnerabilidade do declarante não o expõe a potenciais pressões ou represálias, assim garantindo a espontaneidade e veracidade do respectivo depoimento, o que, de outro modo, poderia estar em risco.
Estas serão, porém, situações a apreciar casuisticamente, de acordo com as circunstâncias concretas quanto ao estado e aos eventuais futuros desenvolvimentos da investigação, à situação do declarante, em especial quanto às suas necessidades de protecção face a potenciais reacções negativas por parte do suspeito, etc., nas quais surja como proporcional e razoável sacrificar o respeito pelo princípio do contraditório pleno aos interesses da realização da justiça e descoberta da verdade material e, acima de tudo, às necessidades de protecção do declarante.
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§4. Admitida a possibilidade de prestação das declarações para memória futura sem prévia constituição de arguido nos termos acima delimitados importa agora averiguar se, no caso que nos ocupa, estamos perante algumas das situações supra elencadas.
No caso presente, deparamo-nos com uma situação em que o suspeito, ainda não foi constituído arguido, mas já se encontra devidamente identificado.
Ora, se é certo que correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatória quer a sua constituição como arguido, quer o seu interrogatório em conformidade com o disposto nos artigos 58º, n.º 1, al. a) e 272º, n.º 1, ambos do CP, por outro lado, o juízo sobre essa decisão compete à autoridade que dirige o inquérito (veja-se, a este propósito, Paulo Dá Mesquita, ob. cit., Tomo III, pág. 983 e Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 733).
No caso vertente, constata-se que o Ministério Público ao requerer a tomada de declarações para memória futura limitou-se a invocar o n.º 2 do artigo 271º do CPP.
Isto significa que não foram aduzidas quaisquer razões para justificar a tomada de declarações para memória futura sem prévia constituição do suspeito já determinado nos autos como arguido.
Conforme salientado por Cruz Bucho (ob. cit., pág. 147) “… sem grave quebra do princípio da lealdade, nem o Ministério Público, nem o órgão de polícia criminal, podem cair na tentação de omitir a constituição de arguido, retardando-a com o único propósito ou objectivo de, por este meio ardiloso, o arguido e o seu defensor (que aquele tem o direito de escolher - art. 32.º, n.º 3 da Constituição da República) serem afastados da produção antecipada de prova, escudando-se no facto de a lei não impor a notificação da realização da diligência aos suspeitos ainda não constituídos arguidos que, por isso, não devem ser notificados.”
Assim, e dada a necessidade, atrás assinalada, de compaginar o exercício da discricionariedade técnica que há-de reconhecer-se ao titular do inquérito no tocante à condução da investigação e à recolha da prova dos factos sob suspeita, com a existência de razões ponderosas que legitimem limitar o contraditório na produção antecipada de prova nos termos acima explanados, somos levados a concluir que, no caso, não tendo sido invocada qualquer razão (designadamente, razões de urgência na recolha do depoimento, ou necessidade de proteger a declarante) para retardar a constituição de arguido do suspeito já determinado no processo para momento posterior à tomada de declarações para memória futura no inquérito, não era possível, no imediato, proceder a esta diligência.
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§5. Aqui chegados, é manifesto que a decisão recorrida não violou o disposto no artigo 271.º, n.º 2 do CPP., devendo, por isso, ser mantida.
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III- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, manter o despacho recorrido.
Sem custas.
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Porto, 06.12.2023
Maria do Rosário Martins
Maria Joana Grácio
Pedro M. Menezes