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ASSISTENTE
LEGITIMIDADE DO ASSISTENTE PARA RECORRER
DISPENSA DE PENA
Sumário
I - Há que ter em conta que o “Assento” do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/99 firmou jurisprudência no sentido de que «o assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir» II - No caso da dispensa de pena facultativa por força do disposto no n.º 3 do artigo 74.º do Código Penal, e alínea b) do nº1 do mesmo preceito, é pressuposto da aplicação deste instituto a reparação do dano causado; nessa medida, é de considerar que ao se opor à aplicação do instituto da dispensa de pena, o assistente tem subjacente um interesse próprio para além da vertente punitiva e preventiva do direito penal, a qual compete ao Estado. III – Nos termos do artigo 186.º, n.º 2, do Código Penal, para aplicar a dispensa de pena num crime de injúria, não basta que o ofendido também tenha também injuriado o arguido, é ainda necessário que tenha sido ele a provocar a ofensa. IV - Para além disso, no caso dos autos, fica desde logo afastada a possibilidade da dispensa de pena, porquanto o arguido não reparou o ofendido pelos danos sofridos, não sendo compatível a condenação do mesmo em indemnização por esses danos e a verificação do requisito do n.º 2 do artigo 74.º do Código Penal.
Texto Integral
1ª secção criminal
Proc. nº 640/21.4GAPRD.P1
Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO:
No processo comum (tribunal singular), do Juízo Local Criminal de Paredes, juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, em que é assistente AA, o arguidoBB, nascido em 8/4/71, foi submetido a julgamento e a final foi proferida sentença de cuja parte decisória consta o seguinte: (…) Assim, em face do exposto, de facto e de direito, decide-se, julgar a acusação pública parcialmente improcedente por não provada e, em consequência decide-se: - Absolver o arguido BB da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), com referência ao artigo 131º, todos do Código Penal. - Condenar o arguido BB, pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º1 do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa. - Dispensar o arguido de pena (art. 375.º, n.º 3, do Código de Processo Penal). - Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante civil AA, condenando o demandado civil BB a pagar-lhe o valor de € 100,00 (cem euros), a título compensação pelos não patrimoniais por aquele sofridos, acrescido dos juros moratórios que se vençam, a partir da presente decisão, até efectivo e integral pagamento, absolvendo o arguido/demandado civil do demais peticionado.
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Custas Criminais Condena-se o/a arguido/a a pagar as custas do processo, fixando a taxa de justiça em uma unidade de conta, já reduzida a metade atenta a confissão, nos termos dos art. 344.º, nº 2, al. c), 513.º, n.º1 e 514.º, n.º1 do Código de Processo de Penal e do art. 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III, do anexo ao D.L. 34/2008 de 26 de Fevereiro.
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Custas Civis
Sem custas civis (atenta a isenção prevista no artigo 4.º, n.º1, alínea m), do Regulamento das Custas Processuais - D.L. 34/2008, de 26 de Fevereiro).
(…)
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Inconformado, o Assistente interpôs recurso, no qual formula as seguintes conclusões: (…) 1.O Tribunal recorrido errou na fixação da prova, dando como assente no ponto 6 dos factos provados que “Em consequência das condutas do arguido supra referidas, o assistente sentiu medo, inquietação, humilhação, vergonha, angústia, nervosismo e incómodos.” e como não provado que “O arguido BB ao dirigir as expressões supra mencionadas ao assistente CC, actuou de modo susceptível e adequado a causar receio, inquietação, insegurança e medo da concretização do mal anunciado, nomeadamente contra a integridade física e vida deste último, atento o teor das expressões proferidas, o que conseguiu.” o que constitui uma contradição entre factos provados e não provados uma vez que se o assistente sentiu medo em consequência da conduta do arguido, é porque o arguido agiu de modo a causar receio, inquietação, insegurança e medo da concretização do mal anunciado ao assistente, pelo que dever-se-á fazer constar dos factos provados que O arguido BB ao dirigir as expressões supra mencionadas ao assistente AA, actuou de modo susceptível e adequado a causar receio, inquietação, insegurança e medo da concretização do mal anunciado, nomeadamente contra a integridade física e vida deste último, atento o teor das expressões proferidas, o que conseguiu. II. Resulta da prova produzida, concretamente, das declarações do arguido gravadas em ficheiro áudio n.º 20230126143711_3831570_2871677, com início pelas 14:37 e termo pelas 14:57, a minutos 8:45 a 10:30, a confissão integral dos factos, em particular, dos factos constitutivos do tipo legal de crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º n.º 1, 155.º n.º 1 al. a) e com respeito ao artigo 131.º do Código Penal. III. Assim como resulta da restante prova produzida, nomeadamente, das declarações do assistente gravadas em ficheiro áudio n.º 20230126143711_3831570_2871677, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 14 horas e 54 minutos, entre minutos 1:54 a 5:12, e da gravação de áudio e imagem transcrita nos autos a fls. 40 a 41 e reproduzida em sede de julgamento. V. Pelo que deverá fazer-se constar dos fatos provados que O arguido BB ao dirigir as expressões supra mencionadas ao assistente AA, actuou de modo susceptível e adequado a causar receio, inquietação, insegurança e medo da concretização do mal anunciado, nomeadamente contra a integridade física e vida deste último, atento o teor das expressões proferidas, o que conseguiu. V. Violou o Tribunal recorrido o artigo 153.º n.º 1 do Código Penal, por errar na sua interpretação, posto que entendeu, em face dos factos dados como assentes, que a conduta do arguido ao dirigir ao assistente as expressões “tu daqui a algum tempo não passas ali, não passas ali que eu mato-te, eu mato-te seu filho da puta, eu mato-te” não proferiu uma ameaça de um mal futuro, mas sim iminente, que apenas não se concretizou porque o assistente não se deslocou para junto do mesmo. Resulta dos factos assentes e da prova produzida que o assistente passou de carro em frente à casa do arguido, dirigindo-se para a sua própria casa, e que o arguido, depois de o assistente ter passado de carro, se deslocou para a frente da casa do mesmo, tendo o assistente entrado em casa e começado a ouvir expressões injuriosas proferidas pelo arguido contra si. O assistente posicionou-se numa marquise ao nível do primeiro andar, e começou a gravar a discussão iniciada pelo arguido, e no decurso da mesma o arguido disse, entre outras “… tu daqui a algum tempo não passas ali, não passas ali que eu mato-te, eu mato-te filho da puta, eu mato-te, sabes o quê… vem cá a abaixo filho da puta, vem aqui a baixo, cabrão do…” e “ Pistola, eu não preciso de pistola. Pistola! Para ti? Para ti? Anda aqui abaixo” e “eu não preciso de pistola para ti, para ti basta assim uma bananada, assim um bufardo nessas beiças pum, e acabou mais nada”. VII. De tais expressões resulta que o arguido avisava o assistente que o mataria e agrediria se ele passasse em frente à sua casa ou se descesse e o confrontasse na rua. VIII. Tais expressões proferidas naquelas circunstâncias de tempo e lugar, representam para o assistente o anúncio de um mal futuro, não relevando, para efeitos de preenchimento do tipo legal de crime p. e p. pelo artigo 153.º e agravado pelo artigo 155.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal, que o tempo verbal empregue pelo arguido nas expressões proferidas, tenha sido o presente, mas antes que para execução do mal anunciado, tenha que mediar algum tempo, mais ou menos longo, mas nunca no exato momento em que o anúncio de execução desse mal é feito (vide Ac. do TRC, proc. 81/18.0PBFIG-C1) IX. O Tribunal recorrido considerou na Sentença que proferiu, que o mal anunciado pelo arguido não se concretizou porque o assistente não se abeirou do arguido – tal entendimento determina por si só, que o mal anunciado pelo arguido nunca seria iminente, mas antes, sempre futuro. X. Atento o exposto, errou o Tribunal a quo na interpretação do artigo 153.º n.º 1 do Código Penal, e na integração dos factos assentes, devendo o arguido ser condenado pela prática do crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153.º e agravado pelo artigo 155.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal. XI. O Tribunal recorrido violou o artigo 74.º do Código Penal, porquanto dispensou o arguido do cumprimento da pena em que foi condenado, sem se terem por verificados os pressupostos contidos no aludido preceito normativo XII. Não é diminuta a culpa do arguido, pois que o mesmo, conforme resulta da prova, foi quem iniciou a discussão com o assistente, começando a injuriá-lo sem provocação, dizendo que o matava. E os princípios de prevenção geral e especial, não são logrados pela condenação do arguido sem a sua punição, uma vez que, em especial, o mesmo sentir-se-á impune perante uma atuação que se comprovou em tribunal ter acontecido, sendo que da decisão em escrutínio resulta que alguém, após ter sido filmado a injuriar outrem (e a dizer que o matava), e após ver tais filmagens serem reproduzidas em julgamento e aceites pelo tribunal como meio de prova, não será alvo de qualquer punição, o que não salvaguarda o ordenamento jurídico, como fim da prevenção geral. XIII. Pelo que não deverá o arguido ser dispensado da pena em que foi condenado, por não se terem preenchidos os pressupostos de aplicação do artigo 74.º do código Penal. Na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, deve o tribunal ter em conta não os critérios do artigo 496.º e 494.º do Código Civil, e os padrões usualmente praticados pela jurisprudência (vide Acórdão do TRG, proc. n.º 118/14.2T9VNF.G1). XV. São circunstâncias próprias do caso em concreto e elementos a ter em conta para a fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, o facto do arguido auferir, em conjunto com a respetiva cônjuge, com quem vive em economia comum, cerca de € 1.575,00 (mil, quinhentos e setenta e cinco euros), e despende com créditos fixos mensais, cerca de € 470,00. Conforme o ponto 6 dos factos dados como provados, o facto do assistente ter sentido medo, inquietação, humilhação, vergonha, angústia, nervosismo e incómodos, na sua própria casa, e ainda, ter que conviver com o arguido, porque o mesmo é seu vizinho, e passar necessariamente em frente da casa do mesmo, não obstante o arguido ter dito “não passas ali que eu mato-te”. XVI. O Tribunal recorrido violou o artigo 496.º e 494.º do Código Civil, porquanto na fixação do montante da indemnização que condenou o arguido a pagar ao assistente, não considerou as circunstâncias do caso em concreto, o grau de culpa do agente, a sua capacidade económica e financeira, e a corrente jurisprudencial para casos análogos, que determinam que tal montante deveria ser bastante superior, sendo ajustado, equitativo e ponderado, o valor peticionado pelo assistente que ascende a € 1500,00 (mil e quinhentos euros) Nestes termos e com o douto suprimento do muito omitido, deve ser concedido provimento ao presente recurso e em consequência,
A) ser o Arguido condenado pelo crime de ameaça agravada;
B) a cumprir a pena pela qual foi condenado; e, C) pagar ao assistente/demandante cível, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por si sofridos, quantia nunca inferior a €1.500,00 (mil e quinhentos euros),
(…)
O Magistrado do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta acompanhando a resposta do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
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Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação: (…) A. Factos Provados:
Da audiência de julgamento e com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1 - No dia 29 de Agosto de 2021, pelas 18:30 horas, quando o assistente AA se encontrava no interior da sua residência, sita na Rua ..., ... – Paredes, área desta Comarca, abeirou-se da janela, depois de ter sido alertado por ruídos de vozes que vinham do exterior. 2 - Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido BB encontrava-se no exterior, frente à residência do assistente. 3 - Entre arguido e assistente travou-se uma discussão, em que ambos procederam à troca das seguintes expressões, melhor descritas no auto de transcrição de áudio e vídeo de fls. 40 e 41, cujo teor se dá por integral mente reproduzido: “ Denunciado: “Imperceptível” Não fazes bem a ninguém, só fazes mal a toda a gente Denunciante: Quê? Quê? Denunciado: Não fazes bem a ninguém, só fazes mal a toda a gente. Denunciante: O quê? Denunciado: Tu és uma doença deste mundo, tu és uma doença. Denunciante: O quê? Denunciado: Uma doença, neste mundo.Tu! Denunciante: O quê? Quem? Tu? tu és, já há muito tempo, que és uma doença. Denunciado: Eu vivo aqui há 50 anos, e nunca..,dou-me bem com toda a gente, tu não te dás bem com ninguém, com ninguém, és uma merda que aqui estás. Denunciante: Não! Denunciado: Uma merda, mesmo! Denunciante: Eu dou-me bem com toda a gente, exceto Vós! Denunciado: desde quando? Denunciante: Desde sempre. Denunciado: Diz-me com quem---diz-me com quem… Denunciante: Percebeste” Olha tu metes-te ali dentro de casa, pareces um psicopata de primeira hipótese. -De resto eu dou-me bem com toda a gente. Denunciado: Eu? Psicopata? Psicopata és tu! (continua a falar sob a voz do denunciante não se percebe o que diz) Denunciante: Sim psicopata, És um psicopata e não tens respeito por ninguém. Devia ter respeito pelos vizinhos, e além disso estás para aí a insultar, vai insultar para a tua casa. Denunciado: Fazes mal a toda a gente, fizeste e continuas a fazer, a tua mãe é uma santa, mas tu não és. Denunciante; Era uma santa, era, era porque vós punheis a pata, mas agora aqui não pondes a pata, não, não pondes a pata em cima, não pões, não pões. Denunciado: ola para mim, olha para mim… Denunciante: não pões os teus cães a vir aqui com a merda. Denunciado : olha para mim, olha para mim, os cães,.. os cães.. Denunciante: Nem pões … isto vai sair daqui, ouviste? Isto vai sair daqui. Denunciado: Olha sabes q que é que eu vou fazer com isto? Denunciante: Isto vais aprender a ter respeito! Vais aprender a respeitar, vais aprender a respeitar. Denunciado: Tu, tu é que vais… tu daqui a algum tempo mão passas ali que eu mato-te, eu mato-te, filho da puta, eu mato-te, vem aqui abaixo filho da puta, vem aqui abaixo , cabrão do… Denunciante: Anda lá força, vai buscar a pistola Denunciado: Eu não preciso de pistola. Pistola! Para ti? Para ti? Anda aqui abaixo. Denunciante: Sim! Anda cá. Então mata força. Denunciado: Eu não preciso de pistola para ti, para ti basta assim uma bananada, assim um bufardo nessas beiças pum, e acabou mais nada. Denunciante: Mais nada? Denunciado: Sim, mais nada, para ti é só uma sapatada. Denunciante: Anda cá então, és muito forte! Denunciado: Eu? Não! Mas tu não vales nada, não vales nada tu, não vales nadinha tu. Denunciante: Não. Denunciado: sabes o que é que tu fizeste ali à minha porta Denunciante: Força. Força, anda lá força. Denunciado: Ele é que é merda (responde a terceiro) Denunciante: Força, força, anda lá força. Denunciado; Filma, estás muito bonito aí a filmar, tens jeito para a fotografo? A tua profissão não dá para mais nada. Denunciante: Tu, tu na GNR, vais dizer tudo isso o que me estás aqui a dizer…. 4 - O arguido agiu com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração da assistente. 5 - O arguido sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. 6 - Em consequência das condutas do arguido supra referidas, o assistente sentiu medo, inquietação, humilhação, vergonha, angústia, nervosismo e incómodos. 7 - Do CRC do arguido nada consta. 8 - O arguido é marceneiro de profissão e aufere salário no valo de € 870,00. 9 - Vive com a esposa e a filha de 13 anos de idade. 10 -A esposa é costureira e aufere salário mínimo nacional. 11 -De prestação de crédito habitação suportam mensalmente o valor de € 270,00. 12 -Suportam, ainda, prestação de crédito para obras no valor de € 200,00 mensais.
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B. Factos Não Provados De resto, não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a boa decisão da causa, designadamente:
- O arguido BB ao dirigir as expressões supra mencionadas ao assistente CC, actuou de modo susceptível e adequado a causar receio, inquietação, insegurança e medo da concretização do mal anunciado, nomeadamente contra a integridade física e vida deste último, atento o teor das expressões proferidas, o que conseguiu. - Desde então, o assistente evita entrar e sair de casa a horas mais tardias ou sempre que vê o arguido.
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C. Motivação da matéria de facto O tribunal fundou a sua convicção no que toca à data, ao local e ao objecto do processo com base nas declarações prestadas pelo arguido e pelo assistente, no depoimento das testemunhas ouvidas, conjugados com o teor dos documentos juntos aos autos e visualização do vídeo com as imagens recolhidas pelo assistente junto aos autos, designadamente: Auto de notícia de fls. 4 a 7; Auto de Apreensão de fls. 8 a 9; Auto de visionamento e extracção de fotogramas de fls. 34 a 39; Auto de transcrição de áudio e vídeo de fls. 40 e 41 (ref. 7490727, de 11/11/2021); Documentos de fls. 46 a 71 – fotografias do local – ocupação e dejectos; tudo devidamente valorado e conjugado com as regras da experiência comum.
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O arguido prestou declarações admitiu os conflitos com o assistente, seu vizinho, bem como que recebeu uma carta do assistente a “ameaçar” que lhe ia matar os cães, tendo visto no local “umas bolinhas de carne”, receando que se tratasse de veneno, cerca de 15 dias antes da altercação em causa nos autos. Afirma existir outro processo de natureza criminal, devido ao facto de o assistente ter insultado a sua mãe (puta e vaca), na presença da sua filha de 13 anos de idade, o que ocorre sempre que esta se encontra a limpar os dejectos dos seus cães. No dia em causa, refere que foi provocado pelo assistente, que lhe dirigiu um gesto obsceno, levantando o dedo médio. Nesse contexto, e após ter sido provocado, admitiu ter-se deslocado junto à sua habitação e ter proferido as afirmações constantes da acusação, por se encontrar revoltado face aos constantes conflitos com o vizinho. Ameaçou-o para que se dirigisse “cá abaixo”, que lhe dava uma “sapatada”.
Por sua vez, o assistente AA, confirma o teor das ameaças e insultos proferidos pelo arguido, bem como o motivo dos desentendimentos – por causa das relações de vizinhança, conturbadas alegadamente face à sujidade causada pelos cães do arguido, afirmando que não provocou o arguido em momento nenhum. Confirma ter tido medo, que continua a ter, evitando passar em frente a casa do arguido. O tribunal entendeu ser crucial a visualização das imagens recolhidas pelo assistente – permitida ao abrigo do disposto no art. 167.º, conjugado com o art. 189.º, do CPP, em consequência da qual se procedeu à alteração dos factos descritos na acusação, no sentido de melhor abranger o diálogo que se travou entre arguido e assistente. Foi possível percepcionar o tom exaltado que ambos assumiram, sendo certo que se o arguido o admitiu desde logo, o mesmo não fez o assistente, que tentou passar a ideia de que nada disse e nada fez, de que não provocou o arguido, com o que não se pode, de todo, concordar, atento o teor do vídeo reproduzido em julgamento. Aliás, o que se constata é que ambos se dirigem insultos mutuamente, sendo que o assistente apelida o arguido de “psicopata”, e após as referidas ameaças, não só não revelou ter medo, como respondeu de modo veemente, continuando a provocar e a acirrar o arguido, para que o mesmo continuasse com a sua atitude, coisa que expressamente negou ter feito. Assim, tendo em conta o visualizado contexto, concluímos que o arguido, com as suas ameaças, pretendia atingir o assistente em momento próximo, iminente, “vem cá abaixo… para ti basta assim uma bananada, assim um bufardo nessas beiças…”, entendendo-se que a sua intenção se reporta a um momento próximo, e não a um momento futuro. O mesmo pretendia desferir-lhe um “bufardo”, não obstante ter dito momentos antes que o matava, de imediato, o que só não se concretizou porque o assistente não se deslocou junto de si. Assim, temos que o arguido não teve qualquer intenção de ameaçar o ofendido, mas antes, resultado daquela discussão, estava a ameaçá-lo que os agredia no momento, configurando-se o seu comportamento com uma quase tentativa de agressão, que só não se veio a concretizar porque o assistente não desceu da sua casa, sendo certo que o mesmo continuou a acirrar o arguido, “Anda cá. Então mata força”, “Anca cá então, és muito forte!” Acresce que o mesmo não teve intenção de o matar num momento futuro, como se disse, não restando senão dar como não provado o elemento subjectivo do crime em questão. Quanto ao elemento subjectivo do crime de injúria, o mesmo retira-se da conjugação dos factos provados com as regras da experiência comum, pois qualquer cidadão, que corresponde ao padrão do homem médio, agindo como agiu o arguido, revela intenção directa de praticar os factos, como efectivamente, o fez. Quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelo assistente em consequência das condutas do arguido dadas por assentes, os mesmos resultam das regras da experiência, bem como das declarações do próprio assistente, quanto ao seu estado de espírito. No mais, faleceu a sua prova, atenta a falta de credibilidade das suas versões, como supra explicado – quanto à questão da ameaça. Em sede de condições de vida, designadamente no que concerne à situação económica, social e familiar do arguido, o Tribunal fez fé nas declarações pelo mesmo proferidas, uma vez que as mesmas pareceram credíveis no que concerne a tais aspectos. Os antecedentes criminais do arguido resultaram provados com base na análise dos respectivos Certificados de Registo Criminal juntos aos autos. Todos os elementos probatórios constantes dos autos foram analisados de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum, tendo sido todos articulados e concatenados entre si.
(…)
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
.Se ocorreu erro de julgamento quanto à matéria não provada sob o primeiro parágrafo dos factos não provados;
. Se a matéria provada integra a prática pelo arguido de um crime de ameaça;
.Se se encontram verificados os pressupostos da aplicação de dispensa de pena ao Arguido;
.Se o valor da indemnização fixado deveria ser de 1.500,€ e não de 100€.
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II - FUNDAMENTAÇÃO:
1ª Questão recorrida
O Assistente alega que a sentença incorreu em erro de julgamento quando deu como não provado que “.O arguido BB ao dirigir as expressões supra mencionadas ao assistente CC, actuou de modo susceptível e adequado a causar receio, inquietação, insegurança e medo da concretização do mal anunciado, nomeadamente contra a integridade física e vida deste último, atento o teor das expressões proferidas, o que conseguiu..”
Alega para que tal factualidade provada está em contradição com a factualidade provada sob o ponto 6 dos factos provados, no qual consta como provado que: “Em consequência das condutas do arguido supra referidas, o assistente sentiu medo, inquietação, humilhação, vergonha, angústia, nervosismo e incómodos.”
Como é sabido a verificar-se contradição entre a matéria de facto provada e não provada e caso a mesma fosse insanável, estaríamos perante a existência do vício da contradição insanável da fundamentação previsto n artº 410º nº2 al.b) do CPP.
Porém, a matéria provada, sob o ponto 6 da dos factos provados, não respeita aos elementos dos tipos legais dos crimes imputados nos autos, - crimes de injúrias e de ameaça, mas sim à matéria alegada no pedido cível. E quanto ao pedido cível deduzido nos autos o recurso não é admissível.
Efectivamente em matéria de recurso da decisão cível proferida resulta do disposto no nº 2 do art. 400º do CPP, “sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”.
Sendo a alçada do Tribunal recorrido de €5000,[1]artº 44º nº1 da Lei (de Organização do Sistema Judiciário) 62/13 de 28/8 em vigor à data da dedução do recurso,[2] e uma vez que o pedido civil deduzido tem o valor de 1500 € torna-se claro não estarem verificados no caso em apreço a cumulação dos requisitos pressupostos por lei para a admissibilidade do recurso relativo ao pedido cível.
Como tal e adiantado já a última questão do recurso, não se conhece do mesmo quanto ao pedido civil, o que implica não se conhecer de nenhuma questão relacionada com tal pedido, designadamente impugnação da matéria de facto ou alegação de vícios do artº 410º nº2 do CPP.
Improcede pois esta questão.
No que respeita à impugnação da factualidade constante dos factos não provados, a pretensão do recorrente de que a mesma passe a constar dos factos provados é improcedente.
Por um lado, as passagens transcritas, pelo recorrente não impôem uma diferente conclusão.
O recorrente invoca ter existido “a confissão integral” dos factos pelo arguido, parecendo esquecer que toda a matéria provada objectiva, foi dada como tal com base na “filmagem” efectuada pelo próprio assistente.
Ouvidas por nós integralmente as declarações do Arguido, artº 412º nº6 do CPP, extrai-se das mesmas que o mesmo, e no que concerne à factualidade que suportava o crime de ameaça, assumiu e confessou a mesma. Quanto à matéria de facto relativa ao crime de injúrias, a mesma não é questionada pelo recorrente.
A existência de confissão dessa materialidade, assume relevância processual, face às dúvidas que se poderiam suscitar sobre a licitude da recolha de imagens efectuada pelo Assistente face ao que dispõe o artº 167º do CPP e artº 199º nº2 al.a) e b) do CP. Isto porque não obstante se concordar com o entendimento expresso no ac. da Rel. de Évora de 29/3/2016, e profusa jurisprudência e doutrina nele citada, de que a “finalidade de filmar a materialidade e autoria do crime, e de utilizar posteriormente o vídeo como prova do facto,”excluiria a tipicidade, ou pelo menos afastaria a ilcitude da conduta do assistente por ter agido ao abrigo do direito de necessidade, como resulta do próprio teor da gravação o Assistente iniciou a mesma ainda antes de o Arguido proferir as expressões tidas por injuriosas ou alegadamente ameaçadoras, sendo o consentimento do arguido duvidoso, face à forma como reagiu ao aperceber-se e tais filmagens.
Porém, tendo o arguido confessado os factos objectivos dados como provados, no caso o “efeito à distância” das provas proibidas[3], e sem estar a admitir a existência de alguma prova proibida, sempre esbarraria na prova autónoma proveniente da confissão do Arguido.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 7/6/2006 “.A doutrina foi formada no contexto jurídico anglo-saxónico de afirmação da "regra da exclusão", segundo a qual uma prova obtida em violação dos direitos constitucionais do acusado não pode ser usada contra este; mas a extensão da "regra da exclusão" às provas reflexas e a projecção de invalidade foi sempre conformada e limitada por circunstâncias particulares que determinam que a invalidade da prova se não projecte à prova reflexa. São os casos de prova obtida por "fonte independente", "descoberta inevitável" ou "mácula dissipada" (…). No caso de "fonte independente", a produção de prova autónoma corroborando os conhecimentos também derivados da prova inválida afastaria o "efeito-à-distância"; a confissão, ou a prova testemunhal autónoma têm sido consideradas o paradigma da chamada "fonte independente"..”[4] (negrito nosso)
Não obstante e como se referiu a impugnação quanto ao elemento subjectivo terá de improceder.
Na verdade, face à factualidade dada como provada sobre a troca de palavras entre o Assistente e o Arguido só podemos concordar com o teor da fundamentação da decisão recorrida quando na mesma se escreveu que: “Aliás, o que se constata é que ambos se dirigem insultos mutuamente, sendo que o assistente apelida o arguido de “psicopata”, e após as referidas ameaças, não só não revelou ter medo, como respondeu de modo veemente, continuando a provocar e a acirrar o arguido, para que o mesmo continuasse com a sua atitude, coisa que expressamente negou ter feito...”.
Aquilo que resulta do teor da conjugação das declarações do Arguido, que confessou os factos e das declarações do Assistente suportadas na filmagem que o próprio fez, é que o arguido desafia o assistente a descer, para lhe dar “um bufardo”, uma sapatada, e o assistente logo desafia o arguido a ir buscar a pistola.
A interpretação que o recorrente faz da frase “Tu, tu é que vais…tu daqui a algum tempo não passas ali, não passas ali que eu mato-te, eu mato-te filho da puta, vem aqui abaixo, cabrão do” não é com o devido respeito a que resulta das expressões utilizadas e do seu contexto.
O Arguido não está a dizer que matará o assistente quando ele passar num momento futuro, mas, que o assistente já não vai passar ali, porque ele arguido o mata naquele momento, caso ele venha “aqui em baixo.”
Porém no contexto da discussão, desafiado pelo Assistente para ir buscar a pistola, apreende-se que afinal o arguido apenas pretende dar ali, e seo Assistente descer “um bufardo”, “uma sapatada”, pelo que a sentença recorrida, na parte em que dá como não provada a factualidade relativa ao elemento subjectivo escrevendo na fundamentação de facto que, “concluímos que o arguido, com as suas ameaças, pretendia atingir o assistente em momento próximo, iminente, “vem cá abaixo… para ti basta assim uma bananada, assim um bufardo nessas beiças…”, entendendo-se que a sua intenção se reporta a um momento próximo, e não a um momento futuro. O mesmo pretendia desferir-lhe um “bufardo”, não obstante ter dito momentos antes que o matava, de imediato, o que só não se concretizou porque o assistente não se deslocou junto de si.….” tem arrimo na prova produzida.
O que vem de se dizer será completado pelo que de seguia se irá expor em sede de integração jurídica quanto ao crime de ameaça.
Improcede pois a impugnação.
2ª Questão
Alega o Assistente, que se encontram preenchidos os elementos constitutivos do crime de ameaça agravada pelo qual o arguido foi acusado.
Dispõe o artº 153º nº 1 do Cód. Penal: «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias».
Trata-se de um ilícito em que o bem protegido é a liberdade de decisão e acção.
Em relação aos elementos objectivos, evidenciam-se três características essenciais ao conceito de ameaça: “mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente”.[5]
E tem-se realçado a necessidade de que o mal integrador da ameaça, não pode ter um carácter iminente e contemporâneo desta, mas antes constituir o anúncio intimador de uma acção futura.
Neste sentido escreveu-se no Ac. da Relação do Porto de 17/11/2004 que “Ocrime de ameaça é um crime contra a liberdade pessoal (encontra-se no capítulo “Dos crimes contra a liberdade pessoal”), contra a liberdade de decisão e de acção. Por isso, a ameaça há-de ser de tal ordem que gere insegurança, intranquilidade ou medo no visado, de modo a condicionar as suas decisões e movimentos dali em diante. E isso não acontecerá se a ameaça for de um mal a consumar no momento, porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objecto da ameaça, sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível, ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumaçãodo mal anunciado, do que resulta não ficar o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali para a frente.”[6]
Estamos perante um crime de mera acção, assente no conceito de adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, tendo deixado após a revisão de 1995, de ser um crime de resultado.[7]
Isto significa, que para efeitos de integração do tipo de ilícito deixou de relevar que o ofendido se tenha sentido ou não ameaçado, bastando a adequação da ameaça para provocar medo ou intranquilidade.
E sobre o critério da adequação, refere o mesmo Prof. que “O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é suscetível de intimidar ou de intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado). [...] Uma vez que o atual crime de ameaça não exige, por um lado, a intenção do agente de concretizar a ameaça, nem se exige a ocorrência do resultado/dano, e, por outro lado, exige que o mal ameaçado seja constituído pela prática de determinados crimes, a conclusão a tirar é de que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado)”.[8]
A nível subjectivo exige–se o dolo, no sentido em que este nas palavras do Prof. Taipa de Carvalho basta-se “com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade ao ameaçado. Isto assim como o próprio conceito de ameaça, pressupõe, naturalmente que o agente tenha a vontade de que a ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário. Tendo em conta que o que releva é o critério do efeito, e portanto, a consciência do agente da susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade, é irrelevante que o agente, tenha ou não, a intenção de concretizar a ameaça”.[9]
A estes elementos acresce que a inevitabilidade do mal ameaçado tem de aparecer como dependente da vontade do agente, sendo esta que distingue a ameaça do simples aviso ou advertência .[10]
Em situação não sobreponível, mas próxima da dos autos, escreveu-se no ac. desta Rel. de 1/7/2009, “É no condicionamento da concretização do mal futuro à verificação também futura, da necessidade [ na perspectiva do recorrente arguido/arguido, por razões não esclarecidas] da sua concretização que se encontra o traço distintivo entre a ameaça e o simples aviso”.[11] (negrito nosso)
Ora, no caso dos autos o que emerge da factualidade é que a frase ameaçadora da agressão, é no contexto da discussão com o Assistente um desafio a uma conduta por parte daquele, perante a qual o Arguido iria reagir, o que não chegou a acontecer porque o ofendido não correspondeu ao desafio com qualquer acção, mas antes com outro desafio verbal, o de que o arguido fosse buscar a pistola, o que este também não fez.
Por essa via podemos dizer que tal como se escreveu no citado acórdão de 17/11/2004 “.a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ficar o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali para a frente.” e que as expressões proferidas pelo arguido foram, no contexto, um aviso com característica de desafio, aviso cuja concretização ficou dependente do comportamento do próprio ofendido, o que exclui o preenchimento do tipo objectivo de ameaça, para além de não ter ficado provado o elemento subjectivo.
Improcede pois esta questão.
3ª questão
O recorrente alega não estarem verificados os pressupostos da aplicação do instituto de dispensa da pena quanto ao crime de injúrias pelo qual o Arguido foi condenado na pena de 60 (sessenta) dias de multa.
A decisão recorrida aplicou ao arguido a dispensa de pena pelo crime de injúrias com a seguinte fundamentação:
“.O tipo legal prevê a possibilidade de dispensa de pena. Ora, segundo dispõe o normativo indicado, o tribunal pode dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido. Trata-se de uma situação que fundamenta a dispensa facultativa de pena baseada na chamada provocação e que, como resulta do texto da referida norma, tanto pode consistir num acto ilícito do ofendido (conduta ilícita) como num acto lícito, mas socialmente reprovável (conduta repreensível). Ponto é que se verifique um nexo de causalidade entre o facto da provocação e a ofensa provocada, revelador da carência da pena inerente ao mecanismo de dispensa ali previsto, para além de que supõe uma conexão temporal da qual se retira que o agente agiu motivado pela provocação e que essa sua reacção foi proporcional ao acto de provocação. No caso dos autos, apurou-se que o ofendido também insultou o arguido pelo que além de ilícita, a sua conduta foi reprovável. A aplicação deste regime, por força do disposto no art. 74.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, depende da verificação simultânea de três pressupostos, a saber: - que a culpa do agente seja diminuta; - o dano tenha sido reparado; e - à dispensa de pena se não oponham exigências de prevenção especial de socialização ou de prevenção geral. No que se refere ao primeiro dos pressupostos, refira-se que a quantificação da culpa se faz através da ponderação das circunstâncias presentes no caso concreto que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as elencadas no n.º 2, do artigo 71.º, do Código Penal. Procedendo, então, à sua identificação, apurando, ao mesmo tempo, o modo como elas se repercutem na pena através da culpa, temos que o dolo foi na modalidade de dolo directo, no entanto apurou-se que a assistente também insultou o arguido, tendo até iniciado a discussão com este. Por outro lado, o desvalor do resultado é de grau simples, e os antecedentes criminais do arguido não são indiciadores de uma personalidade delitiva, conforme resulta do seu certificado de registo criminal. Assim, a pena ficaria aquém do limite médio da respectiva moldura abstracta, o que permite reconhecer o carácter diminuto da culpa. Relativamente à reparação do dano, há a salientar que a assistente deduziu nestes autos, pedido de indemnização civil, que será oportunamente apreciado. De um ponto de vista político-criminal, a exigência de reparação efectiva liga-se substancialmente ao requisito de que à dispensa de pena se não oponham exigências de prevenção. Neste particular, e do ponto de vista da prevenção especial, não existem circunstâncias que se oponham a que se dispense a pena. Na verdade, o arguido não apresenta disfunções relevantes do ponto de vista da sua integração familiar e profissional, não carecendo especialmente de socialização. Do ponto de vista da prevenção geral, impõe-se colocar as pessoas a coberto de lesões à sua honra e consideração, alcançando-se, porém, no caso dos autos, a salvaguarda do ordenamento jurídico, e em especial da norma violada, com a declaração de culpabilidade do arguido, não sendo, por isso, necessária a imposição de uma pena. Verificados, então, todos os pressupostos de que depende a aplicação do regime contido nos artigos 74.º, n.ºs 1 e 3 e 186.º, n.º 2, do Código Penal, é pois de concluir pela desnecessidade da pena no caso concreto. Decide-se, pois, dispensar a pena aplicada ao arguido..”
O recorrente alega que o arguido deve ser condenado na pena de 60 dias de multa fixada, porquanto a culpa do arguido não é diminuta, e que a as razões de prevenção geral se opõem à dispensa de pena, não se encontrando verificados os pressupostos do artº 74º do CP.
Desde já se adianta assistir razão ao Assistente, nesta parte, ainda que por razões não concretamente coincidentes das do recorrente
Antes de mais face ao disposto no artº 401º nº1 b) do CPP a leiconfere legitimidade ao Assistente para recorrer das decisões contra ele proferidas, mas logo no nº 2 do mesmo preceito estabelece que « Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir » e o Assento do STJ 8/99 de 30/10/97 –AR 1ª séria – de 10/8/99, que firmou jurisprudência no sentido de que « o assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir », coloca-se a questão do interesse em agir do Assistente quanto à aplicação da dispensa de pena, porquanto da referida norma e jurisprudência fixada resulta que o assistente tem legitimidade para recorrer também da espécie da pena, desde que tenha um interesse concreto e próprio em agir, e não um mero desejo de vindicta privada.
Há porém que ter em conta que Ac de Fixação de Jurisprudência, do STJ nº2/2020, fixou jurisprudência no sentido de que “O assistente, ainda que desacompanhado do Ministério Público, pode recorrer para que a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado fique condicionada ao pagamento, dentro de certo prazo, da indemnização que lhe foi arbitrada.”
Ora no caso da dispensa de pena facultativa por força do disposto no nº3 do artº 74º do CP, e alínea b) do nº1 do mesmo preceito, é pressuposto da aplicação deste instituto a reparação do dano causado. Nessa medida, entendemos que ao se opor à aplicação do instituto da dispensa de pena, o Assistente tem subjacente um interesse próprio para além da assistente na vertente punitiva e preventiva do direito penal, que compete ao Estado.
Como se disse a dispensa de pena prevista nos nºs 2 e 3 do artº 186º do CP tem carácter facultativo, e como tal a sua aplicação está sujeita à verificação dos pressupostos previstos no artº 74º do CP, conforme resulta do nº3 deste último preceito.[12]
A verificação dos requisitos do artº 74º nº1 do CP é cumulativa, vale dizer, que a ilicitude do facto e a culpa do agente sejam diminutas; que o dano haja sido reparado; à dispensa de pena se não oponham razões de prevenção.
A estes requisitos gerais precede a obrigatoriedade da verificação de algum dos pressupostos específicos previstos no artº 186º nº1,2 e 3 do CP.
A dispensa de pena é um instituto destinado a resolver bagatelas penais, em que se verificam todos os pressupostos da punibilidade mas em que não se justificaria a aplicação de qualquer sanção penal, já que tanto não era exigido pelos fins das penas.
Estamos perante um poder-dever, um poder vinculado que o tribunal deverá aplicar sempre que se verifiquem os pressupostos formais e estiverem já realizados os fins das penas.
O instituto da dispensa da pena dever ser assim dirigido à realização da justiça, ou seja, à protecção dos bens jurídicos que foram violados e à reintegração do agente na sociedade – afinal as finalidades das penas, cfr. artigo 40º/1 C Penal.
Como decorre da fundamentação da sentença, na mesma considerou-se verificado o requisito do nº 2 artº 186º do CP, que dispõe que «O tribunal pode ainda dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível», com fundamento em que: “No caso dos autos, apurou-se que o ofendido também insultou o arguido pelo que além de ilícita, a sua conduta foi reprovável.…”
Com o devido respeito, por tal entendimento, afigura-se não ter o mesmo sustentação na matéria de facto, porquanto da matéria de facto provada não resulta anterior provocação por parte do denunciante, tendo sido o denunciado quem se dirigiu aquele e iniciou a troca de insultos. Nos termos da lei não basta pois que o ofendido também tenha insultado, é ainda necessário que tenha sido a provocar a ofensa.
Para além disso, no caso dos autos, fica desde logo afastada a possibilidade da dispensa de pena, porquanto o arguido não reparou o ofendido pelos danos sofridos, face à prática pelo arguido de factos ilícitos culposos, não sendo compatível a condenação do mesmo em indemnização por danos morais pelos mesmos factos e a verificação do requisito do nº2 do artº 74º do CP.
Como tal conclui-se não estarem verificados os pressupostos da dispensa de pena previstos nos artº 186 nº2 e 74ºnº 1 al.b) do CP, pelo que o arguido terá de cumprir a pena de 60 (sessenta) dias de multa que lhe foi fixada, e da qual não recorreu.
Uma vez que a medida da pena se encontra já estabelecida importa fixar a taxa diária nos termos do artº 47º nº2 do CP, no qual se dispõe que «Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5€ e 500€, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.»
Convém ter presente que a taxa diária de multa deve ser fixada de modo a representar um sacrifício para o condenado,[13] pois só assim poderá ser sentida como uma verdadeira pena, já que como refere Figueiredo Dias “… enquanto a fixação do número de dias visa adequar-se ao mal do crime, a do quantitativo diário tem em vista o mal da pena e tenta distribui-lo por igual entre ricos e pobres” Parte Geral, II - As Consequências do Crime, § 185.
Assim, tendo presente a situação económica e financeira provada sob os pontos 8 a 12 da factualidade provada, fixa-se a taxa diária da multa fixada em 6 (seis) euros.
Como supra se expões não pode este tribunal e recurso conhecer da 4ª questão recorrida vale dizer pedido civil.
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III – DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em no parcial provimento do recurso interposto pelo assistente AA revogar a decisão recorrida na parte em que dispensou o arguido BB de pena, condenando-se o mesmo na pena 60 (sessenta) dia de multa que lhe foi aplicada pela prática de um crime de injúria, p.p. pelo artº 181º nº1 do CP, à taxa diária de 6 (seis) euros. No mais mantém-se a decisão recorrida.
Custas pelo Assistente fixando-se a taxa de Justiça em 3 UC (artº 515 nº1 al.b) do CPP)
Elaborado e revisto pela relatora
Porto, 6/12/2023
Lígia Figueiredo
Maria Luísa Arantes
Lígia Trovão
_______________ [1] Vigente desde 1/1/2008, cf artº 12º 1. [2] Cfr. artº 44º nº1 da Lei (de Organização do Sistema Judiciário) 62/13 de 28/8 que dispõe «em matéria cível a alçada dos tribunais da relação é de € 30.000 e a dos tribunais de primeira instância é de 5.000», sendo que nos termos do nº3 do preceito «A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a ação.» [3] Cfr. Prof. Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora pág,196ss. [4] Ac.STJ de 7/6/2006, proferido no proc. 06P650 (relator Cons Henriques Gaspar). [5] Prof Taipa de Carvalho Comentário Conimbricense do Código, Penal, Coimbra Editora 2ª edição, pág.553. [6] Proferido no processo 0414654 da RP (relator Manuel Braz). [7] Prof. Taipa de Carvalho ob. cit. pág.562. [8] Ob. Cit pág.562. [9] Ob. cit pág. 566. [10] Cf. Prof.Taipa de Carvalho, ob. cit. pág. 553. [11] Ac de 1/7/2009, proferido no proc. JTRP00042756, (relatora Isabel Pais Martins. [12] Diferentemente do que sucede no caso previsto no nº1 do artº 186º do CP, em que a dispensa resulta obrigatória, [13] Cr. Ac.RP 2/12/2009 in DGSI.pt