SEGURANÇA SOCIAL
INDEMNIZAÇÃO CÍVEL
PERDA DE INSTRUMENTOS
PRODUTOS E VANTAGENS
SUBSIDIARIEDADE
PAGAMENTO
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário

I – Os institutos da indemnização cível e da perda de produtos e vantagens a favor do Estado têm diferentes finalidades, pois que o primeiro se destina à reparação dos danos sofridos pelo ofendido/lesado em resultado da prática do crime e o segundo visa impedir que o agente mantenha as vantagens económicas obtidas com a prática de um crime.
II – Contudo, tais institutos não se excluem mutuamente, pois que a dedução e procedência do pedido cível não obsta à igual procedência do pedido de perda de produtos e vantagens a favor do Estado, nos termos do artigo 110.º do Código Penal, desde que se verifiquem os respectivos pressupostos.
III – Em todo o caso, o arguido não é obrigado a pagar em duplicado, uma vez que somente se pretende que não obtenha vantagens económicas decorrentes da prática do crime e não a sua sujeição a uma nova penalização, que conduziria ao seu “empobrecimento ilícito”.
IV – Assim, perante o pagamento efectuado ao ofendido cai qualquer possibilidade de o Estado obter o pagamento da vantagem económica resultante de facto ilícito, em igual medida, mesmo que tenha havido condenação do agente do crime nesse sentido, o que resulta do disposto no n.º 6 do artigo 110.º e também do n.º 2 do artigo 130.º do Código Penal.
V – Efectivamente, o instituto da perda a favor do Estado apresenta uma relação de subsidiariedade relativamente à satisfação do direito do ofendido, coexistindo ambos apenas na medida em que se torne necessário para, em qualquer circunstância, evitar que o arguido fique enriquecido com a prática do crime.
VI – Ainda que não tenha sido deduzido pedido cível pelo Instituto da Segurança Social, tendo o arguido pago a este, antes do julgamento, o total do montante correspondente às quotizações retidas e respectivos juros de mora devidos, o qual correspondia à vantagem económica obtida com a prática do crime, já não pode ser obrigado a pagar tal valor ao Estado, devendo, por isso, na sentença, declarar-se extinta a instância, por inutilidade superveniente, relativamente ao pedido de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público.

Texto Integral

Proc. n.º 2999/21.4T9AVR.P1

Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I
Nos autos de Processo Comum Singular n.º 2999/21.4T9AVR, do Juízo Local Criminal de Aveiro – Juiz 1, foi proferida sentença, em 01-06-2023, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, e ao abrigo dos preceitos legais citados, decide-se:
1. Condenar AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), 6 e 7, aplicável ex vi do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, ambos do R.G.I.T., na pena de 180 dias de multa à taxa diária de €7,50, o que perfaz o quantitativo global de €1.350,00.
2. Julgar a sociedade “A..., Lda.”, como criminalmente responsável pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), 6 e 7, aplicável ex vi do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, ambos do R.G.I.T., e por referência aos artigos 7.º e 12.º do RGIT e 11.º do Código Penal, condenando-a na pena 300 dias de multa, à taxa diária de €8,00, o que perfaz o montante global de €2.800,00.
3. Declarar a perda do valor de €58.300,54 a favor do Estado, condenando AA e “A..., Lda.”, a entregar essa mesma quantia aos cofres do Estado, por equivaler à vantagem patrimonial obtida com a prática do ilícito.
4. Condenar os arguidos no pagamento das custas e encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s para cada um.
5. Fixa-se em 120 (cento e vinte) dias a prisão subsidiária que o arguido AA terá de cumprir no caso de não pagar, voluntária ou coercivamente, a pena de multa em que foi condenado.” (ref.ª 127726210).
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Descontentes com tal decisão, dela interpuseram recurso os arguidos AA e A..., Lda, tendo apresentado a respectiva motivação, com conclusões, as quais se sintetizam nas seguintes questões:
a) Contradição entre os pontos 11. e 12. dos factos dados como provados, em virtude do pagamento de 10.731,35€ no prazo de 30 dias fixado para o efeito, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT (conclusões A) a C)).
b) Indevida declaração de perda a favor do Estado da quantia de 58.300,54€, com a correspondente condenação dos recorrentes ao seu pagamento, sustentando os mesmos haver inutilidade dessa declaração de perda, em virtude do pagamento integral efectuado antes da sentença, conforme consta do ponto 19. dos factos dados como provados, sendo que, a entender-se como na sentença recorrida, o artigo 110.º do Código Penal estaria ferido de inconstitucionalidade, por afronta ao disposto no artigo 18.º da CRP, tendo a decisão violado o disposto em ambos esses preceitos (conclusões D) a V)) - (ref.ª 14777241).
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Admitido regularmente o recurso por despacho, o Ministério Público apresentou resposta, sustentando, em síntese, que a sentença recorrida não merece qualquer censura ou reparo, em termos de facto e de direito, devendo ser negado provimento ao recurso (ref.ª 15096725).
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Remetidos os autos a este Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, dizendo, em síntese, aderir à argumentação contida na resposta do Ministério Público em primeira instância e concluindo que a sentença apreciou correctamente a prova, não padecendo de qualquer vício, além de ter sido devidamente declarada a perda do valor de € 58.300,54 a favor do Estado, por equivaler à vantagem patrimonial obtida, devendo o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a sentença nos seus precisos termos (ref.ª 17394059).
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Os recorrentes responderam a tal parecer, reafirmando o vertido na motivação e conclusões do recurso (ref.ªs 375261 / 375285).
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Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, com decisão em conferência.
II
As conclusões formuladas, resultado da motivação apresentada, delimitam o objecto do recurso (art. 412.º, n.º 1, CPP), sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).
Não se descortinando questões de conhecimento oficioso, passa a apreciar-se os fundamentos do recurso, para o que importa ter presente os factos dados como provados e não provados na sentença recorrida, os quais foram os seguintes:
Factos provados:
Produzida a prova e discutida a causa, com relevo para a decisão de mérito a proferir, resultaram provados os seguintes factos:
1. A sociedade “A..., Lda.”, com o NIPC ..., foi constituída sob a forma de sociedade por quotas, está sediada na Rua ..., n.º ..., 1.º andar, ..., Aveiro, e tem por objecto social: marketing, design, web design, criatividade e produção de suportes gráficos, organização, promoção e produção de eventos, criatividade e produção de publicações e agência de moda e ainda a construção civil, projectos de decoração, comércio de artigos para o lar e electrodomésticos, para residenciais e não residenciais.
2. À data dos factos infra descritos, a sociedade “A..., Lda.”, tinha como único gerente AA, sendo este o único responsável pelos negócios daquela sociedade, praticando todos e quaisquer actos indispensáveis ao regular funcionamento da mesma, designadamente, contratando trabalhadores, procedendo ao pagamento de salários, impostos e cotizações devidas à Segurança Social, contraindo empréstimos bancários, sendo o rosto visível da sociedade nas relações comerciais mantidas com clientes, fornecedores e entidades bancárias.
3. Para o exercício da sua actividade, a sociedade “A..., Lda.”, empregava diversos trabalhadores e colaboradores, que prestavam serviços sob as suas ordens e direcção e a quem eram pagas as correspondentes remunerações, depois de descontada e retida a percentagem relativa às contribuições de tais trabalhadores para a Segurança Social.
4. Por força do exercício da actividade desenvolvida por aquela sociedade, AA conhecia as obrigações legais que impendiam sobre a sociedade que geria, designadamente relativas ao pagamento das remunerações aos seus trabalhadores e administradores.
5. Assim, sabia AA, concretamente, que do total das remunerações pagas pela sociedade, deveria ser efectuada declaração mensal à Segurança Social no mês subsequente ao do pagamento dos salários, acompanhada do pagamento do valor (taxa) neles descontado, a título de contribuições para a aquela entidade.
6. A sociedade “A..., Lda.”, à data da prática dos factos descritos infra, pagava regularmente os salários dos seus trabalhadores e gerentes e procedia, através de AA, seu gerente, à entrega nos serviços da Segurança Social das correspondentes folhas de remuneração destinadas a mencioná-los.
7. Assim, no período compreendido entre o dia 01 de Junho de 2017 e 29 de Fevereiro de 2020 AA, no exercício da referida gerência, actuando em nome e no interesse da sociedade “A..., Lda.”, deduziu das remunerações dos seus trabalhadores as quantias correspondentes às cotizações devidas por estes à Segurança Social, retendo-as e não as entregando nos cofres desta entidade até ao vigésimo dia do mês imediatamente seguinte àquele a que respeitavam, fazendo-as suas.
8. De igual modo, no período compreendido entre o dia 01 de Julho de 2020 e 31 de Outubro de 2020, AA, no exercício da referida gerência, actuando em nome e no interesse da sociedade “A..., Lda.”, deduziu das remunerações dos seus trabalhadores as quantias correspondentes às cotizações devidas por estes à Segurança Social, retendo-as e não as entregando nos cofres desta entidade até ao vigésimo dia do mês imediatamente seguinte àquele a que respeitavam, fazendo-as suas.
9. Assim, nos referidos períodos, AA, no exercício da referida gerência, actuando em nome e no interesse da sociedade “A..., Lda.”, deduziu das remunerações dos seus trabalhadores e reteve, não as entregando à Segurança Social, as seguintes quantias, constantes dos quadros que seguem:
9.1. – Quadro I – Cotizações retidas nas remunerações mensalmente pagas aos trabalhadores do regime geral dos trabalhadores por conta de outrem – COD 000:
9.2. Quadro II – Cotizações retidas das remunerações mensalmente pagas aos trabalhadores sujeitos ao regime de incentivo ao emprego COD 602:

10. Do modo descrito, AA, no exercício daquela gerência de facto e de direito e agindo em nome e no interesse da sociedade arguida “A..., Lda.”, reteve e não entregou à Segurança Social o valor de €48.264,17 – no período referido no ponto 7. - e o valor de €10.036,37 – no período referido no ponto 8. –, tudo no montante global de €58.300,54, desviando-o para satisfação de outros fins, mais concretamente para pagamento de salários e fornecedores.
10. AA, na qualidade de gerente da sociedade “A..., Lda.”, não procedeu à regularização dos pagamentos em falta, no prazo de 90 dias subsequentes ao termo das datas limites para a entrega das contribuições devidas (até ao 20.º dia do mês seguinte a que respeitavam).
11. AA e bem assim, a sociedade “A..., Lda.” foram, devida e regularmente, notificadas para procederem ao pagamento das quantias devidas, no prazo de 30 (trinta) dias, acrescidas dos respectivos juros e do valor da coima aplicável, não tendo sido regularizada a situação nesse prazo.
12. Os arguidos após terem sido notificados para procederem ao pagamento das quantias devidas, no prazo de 30 dias, conforme mencionado em 11., pagaram, por conta daquela dívida relativa a contribuições (cotizações de Junho de 2017 a Janeiro de 2018) a quantia de €4.851,24, em 22-10-2021, e a quantia de €5.880,11, em 16-11-2021.
13. Nas datas limites de pagamento das ditas contribuições à Segurança Social, bem como nos períodos mais próximos, a sociedade arguida possuía meios financeiros para satisfazer os seus pagamentos, designadamente os referentes à Segurança Social, nos montantes indicados.
14. O arguido AA praticou os factos supra descritos agindo sempre em nome e no interesse da sociedade arguida “A..., Lda.”, com o intuito único e logrado de fazer desta sociedade os montantes referidos nos pontos 7. a 9., no montante global de €47.569,19, e de assim obter para a sociedade arguida e, por via indirecta, também para si enquanto gerente da mesma, uma indevida vantagem patrimonial equivalente a este montante, retido e não pago aos Cofres da Segurança Social, com a consequente lesão patrimonial desta entidade neste valor global, acrescido dos respectivos juros de mora.
15. O arguido AA agiu do modo supra descrito pese embora soubesse que as quantias indicadas nos pontos 7. a 9. não lhe pertenciam, nem à sociedade arguida “A..., Lda.”, que representava, que estava obrigada a entregá-las à Segurança Social e que, fazendo-as da sociedade arguida, agia sem a autorização e contra a vontade daquela entidade.
16. O arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente de que praticava actos proibidos e criminalmente punidos.
17. Os factos supra descritos foram levados a efeito em virtude de a sociedade não ter sido sujeita a inspecção regular por parte dos serviços de fiscalização, e tal ser de molde a que a actuação que vinha sendo levada a cabo estar a ser bem-sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração na prática descrita que levou a cabo, homogeneamente, ao longo do período de tempo referido.
18. Para além disso, AA agiu sempre dentro do mesmo quadro de constrangimento e dificuldades de fluxo financeiro que a sociedade “A..., Lda.”, vinha atravessando, decorrente de quebra de receitas e de créditos incobráveis sobre alguns clientes, desde data não concretamente apurada, mas anterior ao ano de 2017, o que ocasionou também a celebração de acordos de pagamento prestacional com o Instituto da Segurança Social que vinham sendo regularmente pagos.
19. Em data não concretamente apurada, anterior a 01-09-2022, “A..., Lda.”, procedeu ao pagamento das cotizações e respectivos juros de mora do período de Junho de 2017 a Agosto de 2017, Novembro de 2017 a Abril de 2018, Agosto de 2018, Novembro de 2018 a Fevereiro de 2019, Abril de 2019 a Fevereiro de 2020 e de Julho a Outubro de 2020.
20. O arguido AA é casado, sendo que a esposa trabalha como gestora de clientes por conta da sociedade “A..., Lda.”, e aufere mensalmente €1.100,00.
21. O arguido AA mantém as funções de gerência da sociedade “A..., Lda.” e aufere mensalmente €1.300,00.
22. O agregado familiar de AA é ainda composto por dois filhos menores de idade e reside em casa própria, que se encontra onerada com hipoteca para garantia de pagamento de crédito pessoal, para o qual despende a quantia de €780,00 mensais.
23. Como habilitações literárias o arguido tem o 12.º ano de escolaridade, muito embora tenha iniciado a frequência de curso superior de engenharia civil, do qual desistiu por não se enquadrar nos seus objectivos pessoais.
24. Dos autos não constam antecedentes criminais registados relativamente a AA.
25. A sociedade “A..., Lda.” com o objecto social definido em 1. dos factos provados tem actualmente ao serviço 21 trabalhadores e encontra-se a laborar em instalações arrendadas, para o que despende quantia mensal não concretamente determinada.
26. A sociedade “A..., Lda.”, no ano de 2022 não apresentou lucro tributável, encontrando-se com capitais próprios negativos.
27. Dos autos não constam antecedentes criminais registados relativamente à sociedade “A..., Lda.”.
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Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa ou que não se compaginem com a factualidade apurada.
Nomeadamente, não se apuraram os demais factos contantes da contestação – alegados sob 4.º, 7.º, 9.º, 10.º.”
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E importa também ter em conta a fundamentação vertida na sentença relativamente à perda de vantagens a favor do Estado, a qual é a seguinte:
VI. Da declaração de perda de vantagens do facto ilícito a favor do Estado:
Ao abrigo do normativo ínsito na alínea b) do n.º 1 do artigo 110.º do Código Penal, o Ministério Público requereu o perdimento a favor do Estado do montante de €58.300,54, com o fundamento de que tal valor corresponde à vantagem obtida pela comissão dos factos típicos e ilícitos.
Estatui o artigo 110.º do Código Penal que:
1. São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objectos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2. O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3. A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objecto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4. Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5. O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6. O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.
A redacção desta norma foi introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio, em vigor desde 31-05-2017, e que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Directiva 2014/42/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 03-04-2014.
Assim, de acordo com os ensinamentos de Pedro Caeiro (in, Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime (…), publicado pela Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 21, n.º 2, Abril-Junho de 2011, Coimbra Editora, pág. 271), por “vantagens relacionadas com o crime entendemos, latamente, os produtos que, existindo já à data da prática do crime (de forma a excluir os produtos), passam (ou destinam-se a passar) para a disponibilidade do agente como efeito desse crime, aí se incluindo as recompensas dadas ou prometidas aos agentes de factos ilícitos típicos”.
Neste mesmo sentido, leia-se a noção de vantagem patrimonial que é dada pelo Prof. Figueiredo Dias (in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do Crime, pág. 632), como sendo “todo e qualquer benefício patrimonial que resulte do crime ou através dele tenha sido alcançado”.
A razão de ser desta norma recai sobre a máxima comum de que “o crime não compensa” (no sentido das necessidades de prevenção geral) e de que a satisfação pessoal do infractor com a prática de um crime é anulada pela efectiva punição e desempoçamento daquilo com que beneficiou, tanto em termos jurídicos como morais ou sociais (no sentido das necessidades de prevenção especial). É, então, uma forma de combate/desincentivo à criminalidade, pensada para a criminalidade económico-financeira, mas que a transcende por ser aplicável a qualquer tipo de ilícito porque a “ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito típico (prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral), mas sem que neste último aspecto deixe de caber o reflexo da providência ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de integração). Nem é seguramente diferente o pensamento político-criminal que a doutrina alemã pretende afirmar (…) quando fala da necessidade de «aniquilamento do benefício patrimonial ilicitamente conseguido» e, consequentemente, de o Estado «não tolerar uma situação patrimonial antijurídica», operando a «restauração da ordenação dos bens correspondentes ao direito»” (Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 632/3).
Ademais, sem prejuízo dos direitos da vítima, o confisco é transversal a todos os crimes, sem prejuízo da existência de lesados ou de estes fazerem valer os seus direitos através da dedução de pedido de indemnização civil.
E a perda tanto pode ser em espécie como, reunidos os pressupostos legais, por equivalente, ou seja, pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
Por outro lado, temos que a norma do artigo 110.º do Código Penal impõe como condição indispensável que a vantagem seja adquirida para o agente ou para outrem, directa ou indirectamente através da prática do facto ilícito ou mediante transacção ou troca com o objecto directamente adquirido por meio do facto ilícito típico (incluindo-se aqui as vantagens em cadeia, advenientes, por exemplo, de sucessivas vendas de objectos).
Se a coisa já não existe, se o seu paradeiro é desconhecido ou se não pode ser apreendida ou declarada perdida por outras razões, resta ao Estado a possibilidade extrema de confiscar o respectivo valor. Sem este mecanismo suplementar, as instâncias formais de controlo dificilmente conseguiriam recuperar todos os proventos do crime: o arguido poderia obstar à concretização do confisco mediante a simples ocultação do bem” (João Conde Correia, in Da proibição de confisco à perda alargada, edição da Imprensa Nacional, pág. 87).
No caso dos autos, está em causa uma vantagem patrimonial decorrente da prática de um crime de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social, sendo que a sociedade arguida aplicou/reinvestiu/gastou a quantia devida a título de imposto, razão pela qual, terá de se operar uma perda na forma da substituição por pagamento ao Estado da quantia equivalente à do montante apropriado, por ser essa a valorização e que é susceptível de reduzir a arguida ao status quo anterior à prática do ilícito típico.
Mostrando-se preenchidos os pressupostos legais atinentes à perda da vantagem a favor do Estado, decide-se nessa exacta medida, condenando “A..., Lda.”, e AA a entregar ao Estado a quantia de €58.300,54 (e não em valor inferior porquanto tal equivale, sem prejuízo do pagamento em sede tributária, ao valor da apropriação global).”
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Cumpre, pois, analisar as questões submetidas pelos recorrentes à apreciação deste Tribunal.
a) Contradição entre os pontos 11. e 12. dos factos dados como provados, em virtude do pagamento de 10.731,35€ no prazo de 30 dias fixado para o efeito, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT (conclusões A) a C)).
Os recursos representam um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou lapsos das mesmas através da sua análise por outro órgão jurisdicional, constituindo um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).
A decisão de interpor recurso, não sendo o mesmo obrigatório, é em si mesma uma opção responsabilizante, pois que o recorrente (no caso do arguido através de Defensor) tem o ónus de apresentar a motivação, ou seja, invocar as concretas razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida, com apoio na lei aplicável, bem como de condensar aquelas nas respectivas conclusões, enunciando as questões que pretende ver reapreciadas, aí resumindo “as razões do pedido” (n.º 1 do citado art. 412.º).
Neste caso, os recorrentes começam por transcrever os pontos 11., 12., 14. e 19. dos factos dados como provados na sentença recorrida, dizendo que ao dar-se simultaneamente como provado o constante dos pontos 11. e 12. “corresponde a considerar como provado que os devedores nada pagaram em tal prazo”, estando a factualidade descrita naquele primeiro ponto (11.) “em contradição com os factos assentes constantes do ponto seguinte” (12.), pois que da prova produzida resultou provado, como se considerou aliás na sentença, o pagamento parcial das cotizações referidas na acusação, tendo até os arguidos sido pronunciados “apenas pelo não pagamento de cotizações no valor de €47.569,10”, devido às duas entregas, na quantia global de €10.731,35, no prazo de 30 dias fixado para o efeito, pelo que “deverá ser alterada a decisão recorrida sobre aquele ponto no sentido de ali se fazer constar que os arguidos foram notificados para procederem ao pagamento das quantias devidas, no prazo de 30 (trinta) dias, acrescidas dos respectivos juros e do valor da coima aplicável, tendo regularizado parcialmente a situação nesse prazo.” (págs. 1 a 3 da motivação).
Daqui resulta que os recorrentes não procedem à impugnação da matéria de facto, com sindicância da prova produzida, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. Os mesmos limitam-se a invocar a contradição entre o que consta dos pontos 11. e 12. dos factos dados como provados, sugerindo a correcção do teor do primeiro deles, o que nos remete para o vício enunciado no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do mesmo Código (ainda que os mesmos não invoquem qualquer preceito legal).
Com efeito, a decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto pode ser modificada nos termos previstos no artigo 431.º do CPP, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º do mesmo Código, cabendo neste normativo, além do mais, as situações de ocorrência de “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, desde que “o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum” (al. b) do n.º 2 do art. 410.º).
Tais vícios (do n.º 2 desse preceito) constituem um defeito estrutural da própria decisão, tendo que resultar do respectivo texto e evidenciando-se da sua simples leitura, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando, por isso, vedado o recurso a elementos a ela estranhos para os fundamentar, designadamente a elementos probatórios produzidos em audiência e/ou constantes dos autos.
Trata-se do dominado âmbito restrito da impugnação da matéria de facto, sendo que a impugnação ampla já pressupõe a convocação dos elementos probatórios constantes dos autos e produzidos em audiência, com o ónus, da parte do recorrente, de dar cumprimento ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP.
No que respeita à contradição na fundamentação, trata-se, efectivamente, do indicado vício da alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º, o qual é endógeno à própria sentença, representando contradições que resultam do seu texto, por si só ou conjugado com as ditas regras da experiência comum. Mas não se trata de qualquer contradição, pois que a mesma tem de ser “insanável”.
Tal como tem sido entendido na jurisprudência, por contradição insanável da fundamentação “entende-se o facto de afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas (…). Para haver contradição insanável é necessário que haja oposição entre factos que mutuamente se excluem por impossibilidade lógica (…)”.[1]
Em síntese, esse vício tem de resultar do texto da própria decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, facilmente se percebendo que o tribunal efectuou uma avaliação e ponderação manifestamente incorrectas, desadequadas, desconformes a tais regras e baseada em juízos ilógicos e contraditórios.
O objecto de apreciação é, neste caso, somente o teor da sentença recorrida (sem reexaminar as provas produzidas).
Voltando ao caso em análise e tendo presente o texto da sentença recorrida no que concerne aos factos dados como provados constantes dos pontos 11. e 12. não vemos qualquer contradição - e muito menos insanável – entre o que consta do primeiro e do segundo deles.
Com efeito, no ponto 11. diz-se:
“11. AA e bem assim, a sociedade “A..., Lda.” foram, devida e regularmente, notificadas para procederem ao pagamento das quantias devidas, no prazo de 30 (trinta) dias, acrescidas dos respectivos juros e do valor da coima aplicável, não tendo sido regularizada a situação nesse prazo.”
no ponto 12. diz-se:
12. Os arguidos após terem sido notificados para procederem ao pagamento das quantias devidas, no prazo de 30 dias, conforme mencionado em 11., pagaram, por conta daquela dívida relativa a contribuições (cotizações de Junho de 2017 a Janeiro de 2018) a quantia de €4.851,24, em 22-10-2021, e a quantia de €5.880,11, em 16-11-2021.”
Na verdade, ao contrário do que parece ser sugerido pelos recorrentes, no ponto 11. não se diz, nem daí se deduz, que os arguidos nada pagaram. Diz-se apenas que a situação não foi “regularizada” nesse prazo de 30 dias, concedido para o efeito.
E o aludido artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, aplicável por remissão do n.º 2 do artigo 107.º, estabelece que os factos “só são puníveis” se a prestação “não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.”
O crime de abuso de confiança contra a Segurança Social consuma-se no momento em que termina o prazo para a entrega do valor das cotizações, sem que a mesma tenha sido realizado, em conformidade, aliás, com o disposto no artigo 3.º do Código Penal (crimes omissivos).
Tratando-se, no caso, de crime continuado, o mesmo consumou-se na data do último acto omissivo, sendo também esta a data a considerar para o início do prazo de prescrição do procedimento criminal (art. 119.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do C. Penal).
Em todo o caso, os factos só são puníveis se verificado, a posteriori, o estabelecido no n.º 4 do artigo 105.º, ex vi n.º 2 do artigo 107.º, do RGIT, tratando-se de condições objectivas de punibilidade.
Efectivamente, uma vez consumado o crime e decorridos mais de 90 dias desde o termo do prazo para pagamento das contribuições, a conduta deixa de ser punida se tais contribuições, acrescidas dos juros respectivos e eventual coima, forem pagas no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. Só nestas circunstâncias é que a punibilidade da conduta fica afastada.
Foram razões de política criminal que ditaram tal regime, dando-se prevalência ao interesse de arrecadamento das receitas / cotizações relativamente à perseguição criminal dos infractores.
Em qualquer caso, o pagamento apenas parcial do valor devido não tem a virtualidade de excluir a punibilidade da conduta ilícita praticada.[2]
Ora, o pagamento das quantias aludidas no ponto 12., realizado no referido prazo de 30 dias, ainda que tenha contribuído para a redução da dívida, não teve como efeito a regularização da situação nesse prazo.
Como é bom de ver, a situação só fica regularizada se tiver sido pago o total da quantia devida, acrescida dos juros de mora respectivos e da eventual coima (se aplicável).
Basta que falte pagar uma parte do valor, por irrisória que seja, para que a situação não possa ser considerada regularizada.
Os pagamentos que os recorrentes efectuaram (ponto 12.), sendo por conta da dívida, não tiveram, pois, o condão de regularizar a situação.
Diferente seria se no ponto 11. se dissesse que, após essa notificação e no prazo concedido, os arguidos nada pagaram. Mas não é isso que ali consta.
Ademais, como é referido na resposta do Ministério Público, nem sequer se vislumbra o efeito útil da alteração pretendida pelos recorrentes, pois que os pagamentos parciais constam do ponto 12., não assumindo os mesmos qualquer relevância jurídica para o preenchimento do tipo legal de crime que lhes é imputado, o qual, aliás, se mostra preenchido mesmo quando a não entrega das quantias retidas a título de contribuições seja apenas parcial (n.º 1 do art. 107.º do RGIT).
Não pode, por isso, falar-se em contradição entre esses dois pontos da matéria de facto, com a consequente necessidade de alterar a redacção do primeiro nos termos sugeridos pelos recorrentes.
Assim, improcede esta pretensão recursiva.
*
b) Indevida declaração de perda a favor do Estado da quantia de 58.300,54€, com a correspondente condenação dos recorrentes ao seu pagamento, sustentando os mesmos haver inutilidade dessa declaração de perda, em virtude do pagamento integral efectuado antes da sentença, conforme consta do ponto 19. dos factos dados como provados, sendo que, a entender-se como na sentença recorrida, o artigo 110.º do Código Penal estaria ferido de inconstitucionalidade, por afronta ao disposto no artigo 18.º da CRP, tendo a decisão violado o disposto em ambos esses preceitos (conclusões D) a V)).
Nesta parte, os recorrentes alegam, em síntese, que a sentença recorrida declarou perdida a favor do Estado a quantia de 58.300,54€, referida na acusação, sendo que o recorrente AA requereu a abertura da instrução, tendo a decisão instrutória, na sequência do alegado, aditado um novo facto relativo aos pagamentos efectuados, por conta das cotizações, no prazo de 30 dias concedido, das quantias de 4.851,24€ e de 5.880,11€, tendo a sentença recorrida, por seu lado, considerado que a lesão patrimonial da Segurança Social, equivalente aos valores retidos e não entregues, foi de 47.569,19€ (ponto 14. dos factos dados como provados) e não o constante da acusação, pelo que o valor a declarar perdido a favor do Estado nunca poderia ser de 58.300,54€. Mais alegam que, com base no instituto relativo à perda de vantagens, constante do artigo 110.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, nunca o agente do crime pode ser compelido a pagar duas vezes a mesma quantia, sendo que a sentença recorrida deu como provado o pagamento, em data anterior a 01-09-2022, das cotizações e respectivos juros de mora, correspondentes aos períodos constantes da acusação (ponto 19. dos factos dados como provados), pelo que, ao pagarem a totalidade das cotizações, acrescidas dos juros devidos, deixaram de ter qualquer vantagem patrimonial decorrente da prática do crime e restauraram a ordem patrimonial conforme ao direito existente se o crime não tivesse sido praticado, o que ocorreu antes da sentença, sendo, por isso, a declaração de perda não só desnecessária e inútil, mas também desproporcionada, na medida em que os arguidos, ao terem de cumprir o decidido, estariam a devolver em dobro a quantia correspondente à vantagem que haviam retirado da conduta ilícita, tendo sido violado o disposto nos artigos 110.º do Código Penal e 18.º da CRP (págs. 3 a 10 da motivação).
Vejamos.
O recurso versa, neste segmento, sobre matéria de direito, impondo a lei que, nesse caso, sejam indicadas, designadamente, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP).
Está em causa o disposto no artigo 110.º do Código Penal, que tem por epígrafe “Perda de produtos e vantagens”, segundo o qual, no que agora releva:
1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
(…)
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
(…)
4 – Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
(…)
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.”
Não está posto em causa nos presentes autos, pois que não é objecto do recurso, que o aludido valor relativo às cotizações não entregues à Segurança Social, com os juros respectivos, constitui uma vantagem patrimonial resultante de facto ilícito típico, nem tão pouco que a sua declaração de perda a favor do Estado encontra suporte neste normativo legal.
Efectivamente, apenas está em causa clarificar se, perante os factos dados como provados, desde logo o pagamento de 10.731,35€ (4.851,24€ + 5.880,11€), efectuado no prazo de 30 dias que foi concedido, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT (ponto 12. dos factos dados como provados), bem como o pagamento, em data anterior a 01-09-2022, pela sociedade arguida, “das cotizações e respectivos juros de mora do período de Junho de 2017 a Agosto de 2017, Novembro de 2017 a Abril de 2018, Agosto de 2018, Novembro de 2018 a Fevereiro de 2019, Abril de 2019 a Fevereiro de 2020 e de Julho a Outubro de 2020” (ponto 19. dos factos dados como provados), deverão ou não ter reflexo na declaração de perda determinada na sentença, a qual, como se disse, considerou o montante de 58.300,54€, condenando os arguidos a entregar tal valor ao Estado.
Conforme é alegado pelos recorrentes e resulta dos factos dados como provados (pontos 7. a 12. e 19.), o que também é aceite pelo Ministério Público na resposta que apresentou ao recurso, à data em que a sentença foi proferida já os arguidos tinham pago à Segurança Social o total das quantias devidas a título de cotizações e respectivos juros de mora.
Neste contexto, será legal declarar, na mesma sentença, a perda daquele valor e condenar os arguidos no seu pagamento ao Estado?
Afigura-se-nos que a resposta tem de ser necessariamente negativa.
Efectivamente, como princípio, o pedido de decretamento de perda de produtos e vantagens a favor do Estado, nos termos do referido normativo legal, deve proceder sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, sendo eles a prática de um facto ilícito típico e a existência de produtos ou vantagens dele resultantes, tal como aí definidos e na extensão estabelecida em tal preceito.
Na verdade, trata-se aqui de um imperativo legal e não de um poder discricionário do Juiz, que, como tal, não poderá condicionar a procedência de tal pedido a quaisquer outros requisitos, designadamente a não formulação ou a improcedência do pedido de indemnização civil por parte do lesado.
Com efeito, ainda que continuem a existir divergências doutrinais e jurisprudenciais a tal respeito, tendo em conta que os fins e objectivos pretendidos com tal instituto (no essencial, o impedir que o agente mantenha vantagens económicas obtidas com a prática de um crime) são distintos daqueles que visam o pedido de indemnização civil (a reparação dos danos sofridos pelo ofendido / lesado), considera-se que a dedução e procedência deste último não obsta à igual procedência daquele, nem o substitui.
Na verdade, uma coisa é a condenação – na restituição ao Estado da vantagem obtida e no valor indemnizatório ao ofendido - e outra, distinta, é a execução de ambos os direitos assim obtidos.
Efectivamente, nesta vertente há consenso no sentido de que o arguido não pode pagar em duplicado pois que, como se referiu, o que se pretende é que não obtenha vantagens económicas e não a sua sujeição a uma nova penalização decorrente da prática do crime, esta de natureza económica e que conduziria ao seu “empobrecimento ilícito”.
E se é certo que os ofendidos não podem ser prejudicados pela condenação decorrente do decretamento da perda dos produtos ou vantagens a favor do Estado (n.º 6 do referido art. 110.º), então perante o pagamento efectuado ao ofendido cai qualquer possibilidade de o Estado obter o pagamento da vantagem económica resultante de facto ilícito, em igual medida, mesmo que tenha havido condenação do agente do crime nesse sentido.
Assim, nas situações em que o valor do eventual pedido civil formulado é igual ou superior ao valor da “vantagem”, se o arguido é condenado a pagar a totalidade desse valor ao lesado - que dispõe da aludida “preferência” –, já não terá que pagar ao Estado. Na verdade, nestas situações, este último pagamento (ao Estado) só ocorrerá em casos residuais, designadamente quando o lesado, por qualquer motivo, se desinteresse ou desista da cobrança total ou parcial da quantia - caso em que, por força do decretamento da perda a favor do Estado, este poderá exigir o pagamento em causa, impedindo assim que o agente do crime mantenha a vantagem obtida com a sua prática.[3]
Ou seja, o instituto da perda a favor do Estado apresenta uma relação de subsidiariedade relativamente à satisfação do direito do ofendido, coexistindo ambos apenas na medida em que se torne necessário para, em qualquer circunstância, evitar que o arguido fique enriquecido com a prática do crime.
Em síntese, a lei assegura a primazia da satisfação dos direitos do ofendido, sendo que o agente do crime, caso haja declaração de perda de vantagens a favor do Estado, nunca poderá ser compelido a pagar duas vezes, o que resulta do disposto no referido n.º 6 do artigo 110.º e também do n.º 2 do artigo 130.º do Código Penal.
No caso sub judice, ainda que não tenha sido deduzido pedido de indemnização cível pela Segurança Social, a verdade é que os arguidos pagaram, muito antes da prolação da sentença, os valores relativos à totalidade das cotizações que haviam sido retidas e não entregues, bem como os juros de mora devidos.
Neste contexto, tendo sido liquidada a obrigação, satisfazendo os direitos do ofendido, no caso o Instituto da Segurança Social, deixou, como os mesmos alegam, de existir qualquer vantagem económica ou patrimonial resultante da prática do crime.
Assim, a declaração de perda a favor do Estado, com a condenação dos arguidos ao pagamento do valor respectivo, seja os aludidos 58.300,54€ ou qualquer outro, deixou de ter suporte legal, pois que, ressarcido o ofendido, os mesmos não podem ser compelidos a pagar a mesma quantia, agora ao Estado, o que seria contra o sentido e razão de ser do referido normativo (art. 110.º do C. Penal) e atentaria contra princípios constitucionais, como seja o da proporcionalidade (n.º 2 do artigo 18.º da CRP).
Efectivamente, já não subsiste a necessidade de restauração da ordem patrimonial relativamente à vantagem económica que está subjacente ao instituto consagrado no referido artigo 110.º do Código Penal, além de que, como se referiu, o agente do crime, se não pode ficar enriquecido, também não pode sofrer uma dupla penalização patrimonial.
Neste contexto, a avaliação efectuada na sentença recorrida, embora fazendo-se uma adequada análise do instituto da perda de vantagens, não pode subsistir, pois que aí se refere que “terá de se operar uma perda na forma da substituição por pagamento ao Estado da quantia equivalente à do montante apropriado, por ser essa a valorização e que é susceptível de reduzir a arguida ao status quo anterior à prática do ilícito típico”, concluindo-se pela condenação dos arguidos “a entregar ao Estado a quantia de €58.300,54 (e não em valor inferior porquanto tal equivale, sem prejuízo do pagamento em sede tributária, ao valor da apropriação global).” - (vide transcrição supra).
Efectivamente, não foi considerado o ressarcimento do ofendido, entretanto efectuado, no valor correspondente à totalidade das cotizações e juros devidos, conforme foi dado como provado (pontos 12. e 19.).
Do mesmo modo, a argumentação vertida na resposta do Ministério Público, acolhida no Parecer, parece ser toda ela sustentada no pressuposto de, à data da sentença, persistir o direito do ofendido, o que não é o caso dos autos.
O entendimento de que não pode ser cobrada duas vezes a mesma quantia torna ilegítima uma condenação que, já à data, se sabe não poderá vir a ser executada, por o ofendido já ter sido integralmente ressarcido, não havendo divergência entre o valor devido a este e o que se pretende ver declarado perdido a favor do Estado.
Em casos como o presente, mostrando-se satisfeita a obrigação para com o ofendido, a condenação, além de não ter suporte legal, é absolutamente inútil, impedindo também a lei a prática desse tipo de actos (art. 130.º do CPC).
Nessa medida, impunha-se a declaração de extinção da instância no que respeita ao pedido de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público, atenta a sua inutilidade superveniente, resultante do aludido pagamento (art. 277.º, al. e), do CPC).
Não pode, por isso, persistir a proferida condenação.
Assim, procedendo esta questão recursiva, impõem-se a revogação da sentença nessa parte.
III
Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso interposto pelos arguidos AA e A..., Lda, revogando-se a sentença recorrida na parte em que declarou a perda, a favor do Estado, do valor de €58.300,54, e condenou os mesmos a entregar essa quantia aos cofres do Estado (ponto 3. do dispositivo), mantendo-se a mesma sentença quanto ao mais decidido.
Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP, à contrário).
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Notifique.
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Porto, 13-12-2023.
Raúl Cordeiro
Jorge Langweg
Manuel Soares
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[1] Cfr. Ac. do STJ de 08-05-1996, Proc. 327/96, in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Ac. da RE de 10-12-2013 - Proc. n.º 388/11.8IDFAR.E1, in www.dgsi.pt.
[3] Neste mesmo sentido podem ver-se os Acs. deste Tribunal da Relação de 28-10-2021 (José Carreto), de 29-06-2022 (Liliana de Páris Dias) e de 12-07-2017 (Jorge Langweg) e da Relação de Évora de 07-09-2021 (Nuno Garcia), todos disponíveis em www.dgsi.pt.