CRIME DE BURLA TRIBUTÁRIA
PENA DE PRISÃO
SUSPENSÃO DA PENA DE PRISÃO COM A CONDIÇÃO DE PAGAR
ARTIGO 14º DO REGIT
Sumário


I- A questão da obrigatoriedade de condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias monetárias correspondentes à “prestação tributária e acréscimos legais” ou ao “montante dos benefícios indevidamente obtidos” imposta pelo artigo 14º, n.º 1, do RGIT tem suscitado divergências em sede doutrinária e jurisprudencial.
II- A problemática começou por colocar-se, desde logo, quanto à constitucionalidade da referida exigência legal, vindo o Tribunal Constitucional a pronunciar-se, reiteradamente, de modo uniforme, no sentido da conformidade daquela imposição com os comandos constitucionais independentemente da condição económica do condenado/responsável tributário.
III- Entretanto, surgiu o acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência n.º 8/2012, de 12.09, que, apesar de se debruçar sobre crime de abuso de confiança fiscal, é aplicável a todos os crimes fiscais – incluindo o de fraude fiscal contra a Segurança Social – em que esteja em causa a suspensão da execução da pena de prisão.
IV- Do aludido AUJ n.º 8/2012 resulta que apenas se impõe efetuar o juízo de ponderação sobre as condições económicas do condenado para satisfazer a condição obrigatória prevista no artigo 14º, n.º 1, do RGIT quando o crime tributário em causa for punível, alternativamente, com pena de prisão ou com pena de multa, devendo, nesse caso, seguir-se os passos ali enunciados.
V- Já os crimes tributários punidos somente com penas de prisão não estão abrangidos pela jurisprudência fixada pelo predito AUJ e, como tal, o princípio da legalidade impõe que se aplique a norma especial prevista no artigo 14º do RGIT, da qual decorre a obrigatoriedade da imposição da condição de pagamento ali prevista quando se decida suspender a execução da pena de prisão, abstraindo de qualquer juízo de prognose sobre a satisfação da mesma por parte do condenado tendo em conta a sua concreta situação económica.

Texto Integral

*
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. - RELATÓRIO

1. - No âmbito do processo comum n.º 1430/19...., do Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., com intervenção de tribunal singular, foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo [transcrição[1]]:
«Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido julgar a acusação procedente, por provada e, consequentemente:
A) Condeno a sociedade arguida “EMP01..., Unipessoal Lda., Lda.”, em co-autoria material e sob a forma consumada, na prática de um crime de burla tributária contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 7.º e 87.º, n.ºs 1, 2 e 4 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 500 (quinhentos) dias de multa, fixando – atendendo-se ao facto de a sociedade ainda ter actividade, o quantum diário de € 8,00 euros, o que perfaz a multa global de €4.000,00 (quatro mil euros).
B) Condeno a arguida AA, em co-autoria material e sob a forma consumada, na prática de um crime de burla tributária contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 87.º, n.ºs 1, 2 e 4 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, suspensa pelo período de 4 (quatro) anos, sujeita ao seguinte dever (que deverá comprovar nos autos): Pagar ao ofendido a quantia de €60.564,23 (sessenta mil, quinhentos e sessenta e quatro euros e vinte e três cêntimos) até ao final do prazo da suspensão.
C) Condeno a arguida BB, em co-autoria material e sob a forma consumada, na prática de um crime de burla tributária contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 87.º, n.ºs 1, 2 e 4 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa pelo período de 4 (quatro) anos, sujeita ao seguinte dever (que deverá comprovar nos autos): Pagar ao ofendido a quantia de €60.564,23 (sessenta mil, quinhentos e sessenta e quatro euros e vinte e três cêntimos) até ao final do prazo da suspensão.
D) Condeno os arguidos AA, BB e “EMP01..., Unipessoal, Lda.” no pagamento ao Estado do valor de €60.564,23 (sessenta mil, quinhentos e sessenta e quatro euros e vinte e três cêntimos), nos termos dos artigos 110.º n.ºs 1, al. b) e 4, do Código Penal.
E) Julgar procedente o pedido de indemnização formulado pelo demandante Centro Distrital de Segurança Social de ..., do Instituto de Segurança Social, IP e, consequentemente, condeno, solidariamente, os demandados AA, BB e “EMP01..., Unipessoal, Lda.” a pagar ao demandante I.S.S. a quantia de €60.564,23 (sessenta mil, quinhentos e sessenta e quatro euros e vinte e três cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da notificação do PIC até integral pagamento, absolvendo-se do demais peticionado.
F) Condeno as arguidas AA, BB e “EMP01..., Unipessoal Lda.” nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça individual em 2 (duas) UC e nas custas cíveis.»
 2. - Inconformadas com tal decisão, dela vieram as arguidas AA e BB interpor recurso, nos termos que constam do respetivo requerimento e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, sendo que, após a motivação, formularam as seguintes conclusões e petitório:
« Capítulo C.1 das alegações (artigo 9.º a 13.º):
i.«Limitando-se o tribunal a fazer uma súmula de declarações e depoimentos prestados em audiência, sem qualquer referência à credibilidade que cada um deles tenha merecido e às razões do respectivo merecimento, falta o exame crítico das provas».
ii.Lendo e relendo a autoproclamada «apreciação crítica» ensaiada na Douta Sentença – sobretudo a concernente aos factos provados, constata-se que o Tribunal a quo se limitou, a dizer que se baseou nas declarações da arguida AA, das testemunhas CC, DD, EE, FF e GG e HH e na documental, sem qualquer referência à prova que concretamente sustenta cada facto dado como provado, à credibilidade que cada depoimento mereceu nem a explicitação das respectivas razões para tal.
iii.Tanto basta para ancilosar a Douta Sentença de NULIDADE por insuficiente fundamentação, nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, alínea a), com referência ao n.º 2 do artigo 374.º do CPP.
Capítulo C.2 das alegações (artigos 14.º a 29.º):
iv.A Douta Sentença, com o devido respeito, não explica, fundamentadamente, como e porquê se consideraram provados os factos F), G), I), J), L) M) 0), P), S), T) U), W) e X).
v.Não se infere, porque não fundamentada, a conclusão extraída pelo Tribunal ad quo e plasmada na Douta Sentença da existência de um conluio entre as arguidas, através da qual criaram falsas carreiras contributivas com vista a locupletarem-se indevidamente de dinheiro da Segurança Social.
vi. Admitindo-se na Douta Sentença que a arguida AA teria direito às prestações se devidamente enquadrada como MOE e por um valor até superior aquele que foi pago, fica por esclarecer por que motivo o objectivo da mesma era locupletar-se indevidamente de dinheiro da Segurança Social, não se tendo explicado em que prova tal conclusão se alicerçou.
vii.Nem, salvo mais douta opinião, se fundamentou a razão por se levou aos factos provados J) e P) que as arguidas apresentaram junto do ISS requerimentos de prestações de doença, quando as arguidas não praticaram qualquer acto conducente ao dito pagamento (note-se que o médico ao emitir o CIT (certificado de incapacidade) transmite o mesmo automaticamente ao ISS, que, por sua vez, processa automaticamente o pagamento do subsídio de doença.  
viii.Por outro lado, a arguida BB trabalhando como professora (isso admite o facto provado HH), II), JJ) e KK)), também tinha direito a prestações de doença, sendo que, não se apurou nos autos que os pagamentos a que se reportam os autos, tenham sido todos eles do vínculo mantido com a EMP01..., Unipessoal, Lda.
ix.No que tange à declaração de remunerações, onde consta a arguida BB como MOE, o Tribunal ignora que a partir do momento que alguém é indicado como gerente de uma sociedade, ou consta da declaração de remunerações ou, não constando, tal facto é lançado oficiosamente pelo ISS.
x.De todo modo, ainda que se admitisse, por mera cautela de patrocínio, que a arguida BB constasse das declarações de remunerações, salvo mais douta opinião, de tal facto não se pode inferir, quase que automaticamente, que foi no âmbito de um conluio com o intuito de se apropriarem de dinheiro da Segurança Social. 
xi.Tudo isto não foi, salvo mais douta opinião, criticamente apreciado.
xii. Porque, quanto a estes factos F), G), I), J), L) M) 0), P), S), T) U), W) e X) dos factos provados), ficaram manifestamente por cumprir as exigências da fundamentação (a ser dada resposta negativa quanto à prova dos mesmos tal não poderá deixar de ter reflexos nos factos provados de a) a p)), tal torna a Douta Sentença, s.m.o., a resvalar para a nulidade, nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, alínea a), com referência ao n.º 2 do artigo 374.º do CPP, que aqui se argui.
Capítulo D.1 das alegações (artigo 30.º a 48.º):
xiii. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a [decisão]
xiv.Segundo o facto provado D), foi sempre a arguida AA que geriu, de facto, a sociedade arguida, por isso, a mesma deveria estar enquadrada como MOE (membro de órgão estatutário) e não como TCO (trabalhador por conta de outrem).
xv.Resulta da Douta Sentença (facto provado Z) e AA)) que se a arguida AA estivesse enquadrada como MOE teria direito à mesma às atribuições patrimoniais pelos períodos referidos em Q).  
xvi.Comparados os períodos e as respectivas atribuições patrimoniais dos factos provados Q) e AA) constata-se que, se a arguida estivesse enquadrada como MOE, teria direito a atribuições patrimoniais superiores (€ 31.486,42 contra € 36.316,67, respectivamente).
xvii.Os factos provados L) a X) referentes à falsa carreira contributiva da arguida AA, estão em contradição com os factos provados A) e ZZ).
xviii. No caso dos autos a Arguida AA foi condenada por ter uma falsa carreira contributiva, com o intuito de ter direito a atribuições patrimoniais que a Douta Sentença diz que não teria direito (facto provado P), quando do facto provado Z) e AA) resulta que se estivesse enquadrada como MOE teria direito a tais atribuições e por um valor superior (compare-se o valor referido em Q) com o referido em ZZ)).
xix. A arguida AA é condenada por estar mal enquadrada (como TCO) e ter recebido menos que aquilo que receberia se estivesse bem enquadrada (como MOE), o que é contraditório da tese guisada na Douta Sentença e avesso à normalidade das coisas.
xx.Razão pela qual, a matéria de facto dada como provada em L), X), U), V), W) e X), deve ser alterada de modo a não colidir com os factos provados Z) e AA), porque se contradiz.
Capítulo E das alegações (artigo 49.º a 53.º):
xxi.A decisão do Tribunal “ a quo” sobre a matéria de facto efectuou, s.m.o., uma incorrecta interpretação e apreciação da prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, sendo essencial que a decisão da matéria de facto seja alterada em consequência da impugnação ora efectuada dos factos provados  F), G), I), J), L) M) O), P), S), T) U), V) W) e X)).
xxii.As arguidas entendem que, salvo mais douta opinião, se deram como provados os factos F), G), I), J), L) M) 0), P), S), T) U), V, W) e X) dos Factos Provados, quando deveriam ter sido dados como não provados, pelo que que o considera incorretamente julgado, em face da insuficiência da matéria probatória.
Capítulo E.1.A das alegações (artigo 54.º a 65.º):
xxiii.Em relação aos factos provados f), g) i) e m), no que tange à existência do plano com vista a locupletar-se indevidamente com dinheiro pertencente ao ISS, não se produziu, salvo mais douta opinião, prova que permitisse atestar, com o grau de certeza exigido no processo penal, a existência de um conluio entre as arguidas, através da qual criaram falsas carreiras contributivas com vista a locupletarem-se indevidamente de dinheiro da Segurança Social.
xxiv.As declarações da arguida AA, salvo o devido respeito por opinião diversa, não permitem chegar à conclusão da existência de um plano para a criação de uma falsa carreira contributiva com vista à obtenção de atribuições patrimoniais.
xxv. Se é certo que das declarações da arguida AA, esta admitiu que a arguida BB nunca lá trabalhou, também resulta dessas declarações, gravadas de 00m00s a 04m05s, que a figuração da arguida BB como gerente da empresa resultou de ter tido outra empresa em que teve problemas e que a indicação da arguida BB como gerente, foi feita pelo técnico oficial de contas da sociedade.
xxvi.Salvo o devido respeito, não se pode igualmente inferir, como o faz a Douta Sentença, que por a arguida BB, figurar como MOE e não trabalhar na empresa, e a arguida AA, figurar como TCO quando deveria figurar como MOE, tal se deva a um plano para obter atribuições patrimoniais indevidas da Segurança Social e muito menos, com o devido respeito, se pode concluir dai que a arguida AA se conluiou com a BB no sentido de esta obter atribuições patrimoniais.
xxvii.A ser como sustenta a sentença, em todos os casos de gerência de direito, mas não de facto, e há muitos, em todos eles existirá um plano para obter atribuições patrimoniais da Segurança Social.
xxviii.Posto que, não se produziu prova suficiente que permitisse com toda a certeza atestar a existência do plano referido nos factos provados F), G), I) e M). 
xxix. Com efeito, face ao supra alegado, entendem as arguidas que sobejam razões para se proceder à alteração da resposta dada à matéria de facto dada como provada que supra se deixou impugnada, dando-se como não provado o facto F), amputando-se a menção «no seguimento deste plano» dos factos G) e M) e em relação ao facto provado I) amputando-se a menção de «com o objetivo de obterem prestações sociais».
Capítulo E.1.B das alegações (artigo 66.º a 71.º):
xxx.No que concerne ao facto provado J) e P), referente à entrega de requerimento para a atribuição de prestações de doença), não se produziu prova no sentido de dar-se por provado aquilo que se deu.
xxxi.Das declarações da testemunha  CC, gravadas de 02h45s a 05m00s, e da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, resulta que «os certificados de incapacidade são emitidos pelo médico de família e é automaticamente comunicado ao serviço da Segurança Social e depois este serviço analisa se se preenchem os demais requisitos, concluindo assim que o beneficiário não tem de fazer propriamente nenhum pedido».
xxxii. Se os CIT são comunicados, automaticamente, pelo médico de família, daqui resulta demonstrado, salvo mais douta opinião, que não existiu qualquer requerimento das arguidas para pagamento das prestações de doença.
xxxiii.Não foi apresentado qualquer requerimento pelas arguidas no sentido de serem atribuídas as prestações de doença.
xxxiv. Razão pela qual se impõe a alteração do Ponto J) e P) da matéria de facto dada como provada, nos termos acima exarados, amputando-se dos factos a menção relativa à entrega de requerimento junto da segurança social para atribuição de prestações de doença.
Capítulo E.1.C das alegações (artigo 72.º a 87.º):
xxxv.No que concerne  aos factos provados L), O), P) S), T), U), V), W e X), na parte referente ao locupletamento, pela arguida AA, das atribuições patrimoniais por prestação de doença a que não teria direito de outro modo e da alegada falsa carreira contributiva desta arguida, a resposta dada a esta matéria entra em contradição com a resposta dada aos factos provados D), Z) e AA), resultando destes, salvo mais douta opinião, a negação daqueles, de modo que se impõe a alteração daqueles factos, dando-os como não provados.
xxxvi.Resulta do facto provado D) que foi a arguida AA que sempre geriu a sociedade arguida e, por via disso, deveria estar enquadrada como MOE (membro de órgão estatutário) e não como TCO (trabalhador por conta de outrem).
xxxvii.Resulta da Douta Sentença (facto provado Z) e AA)) que se a arguida AA estivesse enquadrada como MOE teria direito à mesma às atribuições patrimoniais pelos períodos referidos em Q).  
xxxviii.Os factos provados D), Z) e AA) contrariam todos os factos provados referidos em L), O), P) S), T), U), V), W e X), no que concerne ao locupletamento, pela arguida AA, de atribuições patrimoniais por prestação de doença e que não teria direito de outro modo e, ainda, da alegada falsa carreira contributiva.
xxxix.Não fazendo sentido, em face dos factos provados D), Z) e AA), falar-se, em relação à arguida AA, de atribuições patrimoniais (prestações de doença) a que não teria direito não fosse o engano produzido e de falsa carreira contributiva.
xl.Os factos provados D), Z) e AA) contradizem os factos provados L), O), P) S), T), U), V), W e X), sendo tal bastante para se alterar a resposta à matéria de facto, dando-se como não provado nos factos acima indicados o locupletamento, pela arguida AA, de atribuições patrimoniais por prestação de doença a que não teria direito de outro modo e, ainda, da alegada falsa carreira contributiva desta.
Capítulo F.1 das alegações (artigo 89.º a 96.º):
xli.A arguida se estivesse correctamente enquadrada (como MOE ao invés de TCO), tinha direito à atribuição patrimonial feita (facto provado Z) e por um valor superior ao recebido (Q e AA).
xlii.A arguida AA ao estar erradamente enquadrada acabou por receber menos que aquilo que teria direito se estivesse bem enquadrada (factos provados Q), Z) e AA). 
xliii.Razão pela qual não se verificam os pressupostos objectivos do crime, mormente a determinação da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais de que resulte o enriquecimento do agente, como também não existiu qualquer engano por a mesma ter sempre trabalhado na empresa (facto provado D).
xliv.Pelo que, em relação à arguida AA não existe conduta crimonosa.
xlv.A Douta Sentença, ao decidir como decidiu, violou o disposto no artigo 87.º do RGIT.
Capítulo F.2 das alegações (artigo 97.º a 105.º):
xlvi.A comunicação do CIT (certificado de incapacidade para o trabalho), feita pelo médico, que automaticamente despoletou a atribuição patrimonial, não tendo existido qualquer acto das arguidas na comunicação dos CIT que, automaticamente, saliente-se, levou o ISS a fazer cada uma das atribuições patrimoniais, em cada um dos períodos relatadas nos autos, não se verifica o preenchimento do tipo objectivo de ilícito de determinação da administração da segurança social a fazer as atribuições patrimoniais.
xlvii.Se a atribuição patrimonial é automática, não foram as arguidas que determinaram a sua entrega.
xlviii.Faltando este pressuposto não se pode dar como preenchido o tipo legal objectivo de ilícito, pelo que, devem as arguidas serem absolvidas. 
xlix.A Douta Sentença, sempre com o devido respeito, ao decidir como decidiu, violou o disposto no artigo 87.º do RGIT.
Capítulo F.3 das alegações (artigo 106.º a 110.º):
l. A desconformidade de  enquadramento apenas dá in casu lugar a uma contra-ordenação (muito grave), mormente por violação ao disposto no artigo 22.º, al. a) do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
Capítulo F.4 das alegações (artigo 111.º a 117.º):
li.As atribuições patrimoniais que respeitam a cada um dos períodos catalogados em K) e Q) dos factos provados, estiveram dependentes da atribuição de um determinado Certificado de Incapacidade para o Trabalho que, ao ser automaticamente remetido ao ISS, determinou a automática atribuição de prestações por doença, dando assim origem à atribuição patrimonial a título de prestações de doença feita em cada dos períodos elencados em K) e Q) dos factos provados.
lii.Existe uma pluralidade de resoluções criminosas, uma por cada período de atribuição de prestações por doença, que deve ser unificada no quadro do crime continuado - artigo 30.º, n.º 2 e 79.º do CP.
liii.Nenhuma dessas atribuições excede as 200 UC, mas são em cada um desses hiatos temporais superiores a 50 UC (cremos ter sido por isso que na Douta Sentença se fez a subsunção jurídica dos factos ao n.º 2 do artigo 83.º do RGIT, quando a Douta Acusação Pública fazia o enquadramento pelo n.º 3 do artigo 87.º do RGIT).
liv. Posto que, com o devido respeito pela Douta Sentença, que é muito e devidamente merecido, os factos deveriam ter sido enquadrados como crime de burla agravado continuado, nos termos do artigo 87.º, n.º 1 e 2 do RGIT e artigo 30.º, n.º 2 e 79.º do CP, incorrendo, por conseguinte, na violação destas disposições normativas.
Capítulo G. das alegações (artigo 118.º a 141.º):
lv.Revelava-se mais ajustada a aplicação a cada arguida de uma pena não superior ao mínimo legal (1 ano de prisão).
lvi.Condenando as arguidas nas penas ante mencionadas, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal.
lvii. Clamorosa, portanto, a inobservância do princípio consagrado no n.º 2 do artigo 40.º do CP.
lviii.À luz dos preceitos legais que dispõem sobre a medida da pena, são manifestamente desproporcional, exagerada, desadequada, excessiva e desajustada a medida da pena de prisão fixada ao arguido, revelando-se ajustada pena nunca superior a 1 ano de prisão.
Capítulo H. das alegações (artigo 142.º a 173.º):
lix.As arguidas não se podem conformar com a pena aplicada: suspensão da pena de prisão fixadas, condicionada ao pagamento, no prazo de 4 anos, de € 60.564,23, pois claramente não tem capacidade para o fazer, atentos os parcos recursos (factos provados EE) e II) e KK), por tal importa a entregar de € 1.261,75 mensais.
lx.Considerando as condições socio-económicas do arguido, parece-nos que a suspensão da pena de prisão condicionada ao pagamento ao assistente equivale à aplicação às arguidas de uma pena efectiva, dado que as mesmas nunca conseguirão, salvo regresso de melhor fortuna, pagar a quantia determinada. 
lxi.A decisão e violadora do princípio da razoabilidade (previsto no artigo 51.º, n.º 2 do CP), que impõe que não devem ser fixadas, nessa sede, obrigações ao condenado seja, como in casu, previsivelmente, impossível cumprir.
lxii.A suspensão da pena, como alternativa à prisão, não pode ter como condição a concreta capacidade económica do agente – o que seria violador dos próprios princípios da culpa, que constitui corolário da essencial dignidade da pessoa humana, do direito à liberdade e da igualdade (artigos 1.º, 27.º, n.º 1 e 13.º da Constituição).
lxiii.Tal determinação é violadora do dos princípios da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade da pena consagrado nos artigos 13.º e 18.º, n.º 2 da Constituição, respectivamente.
lxiv.A obrigatoriedade do pagamento a que se condicionou a execução da suspensão, representa, quanto a nós, uma violação insustentável do princípio da proporcionalidade e como tal é inconstitucional.
lxv.Nesta conformidade, e considerando a violação dos princípios da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade da pena consagrados nos artigos 13.º e 18.º nº 2, da Constituição, respectivamente, consideraria inconstitucional a decisão em apreço.
lxvi.A sentença ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 50.º, 51.º, n.ºs 1 e 2, 52.º, 53.º, 1 e 2 do Código Penal e artigos 1.º, 13.º, 18.º, n.º 2, 27 da Constituição da República Portuguesa.
Capítulo I. das alegações (artigo 174.º a 178.º):
lxvii.As arguidas não se insurgem, como é óbvio contra a suspensão, mas sim quanto ao período da mesma que, no seu modesto entender, não deveria ultrapassar um ano.
lxviii.Ao ter decidido suspender por 4 anos, o Tribunal ad quo violou o disposto no artigo 40.º, n.º 2, 55.º, 70.º e 71.º do CP,com o que, menos pelo argumentário expendido do que pelo que os VENERANDOS DESEMBARGADORES aprimoradamente lhe saberão suprir, como é de Vosso mister e apanágio, com a sobriedade desejada e a erudição reconhecida, no integral provimento do presente recurso, V. Ex.ªs exercerão a mais afiligranada, vítrea, sublimada, serena e sã
JUSTIÇA.»

3. - A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu ao recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:

«I – A douta sentença encontra-se devidamente fundamentada não padecendo da nulidade prevista no art.º 379, n.º 1 al. a) do C.P.P.
II – Não se verificam os vícios das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do art.º 410 do C.P.P.
III – A matéria de facto encontra-se correctamente fixada.
IV – A matéria de facto dada como provada permite a imputação às recorrentes do crime pelo qual foram condenadas.
V- Não se verificam no caso em apreço os pressupostos do crime continuado.
VI– Em face dos elementos a ter em conta para a determinação da medida concreta da pena afigura-se-nos que se apresentam adequadas e justas, as penas de penas de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão e de 1 (um) ano e 6 ( seis) meses de prisão,  respectivamente, ambas suspensas pelo período de 4 (quatro) anos, sujeitas ao seguinte dever ( que deverão comprovar nos autos): Pagar ao ofendido a quantia de €60.564,23 ( sessenta mil, quinhentos e sessenta e quatro euros e vinte e três cêntimos) até ao final do prazo da suspensãopor serem consentâneas com a culpa das arguidas e  satisfazerem plenamente as exigências preventivas, gerais e especiais.
VII- O condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da totalidade das quantias em dívida ao ISS não viola os art. 50.º,  51º, ns.º 1 e  2, 52.º, 53.º n.º1, n.º2 do Código Penal e artigos 1.º, 13.º, 18.º n.º2, e 27.º da CRP.
VIII – Os M.ª juiz “a quo”, apreciou de forma correcta e de acordo com as regras da experiência comum toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, fixando a matéria de facto dada como provada de forma correcta, pelo que no final outra conclusão não pode ser extraída que não seja a da justeza da sua condenação pela prática dos crimes em que o foi.
Nestes termos e nos demais de direito, que os Venerandos Desembargadores se dignarão suprir, negando provimento ao recurso e, em consequência mantendo a douta sentença, far-se-á a já costumada justiça.»
4. - Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer consonante com a resposta apresentada em primeira instância, concluindo que o recurso não deve obter provimento.
5. - Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta.
6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
*
II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Decorre do preceituado no artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida.
Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[2]].
O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente, e, outras, de conhecimento oficioso[3].
Nos termos do disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito.
Da conjugação do disposto nos artigos 368º, 369º e 424º, n.º 2, todos do Código do Processo Penal e 608º, n.º 1, do Código de Processo Civil, este aplicável ex vi do estatuído no artigo 4º do Código de Processo Penal, ressuma que o tribunal ad quem deve conhecer das questões que constituem objeto de recurso, não perdendo de vista a ordem lógica das consequências da sua eventual procedência, pela seguinte sequência:
Em primeiro lugar, as que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, as questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação ampla, se deduzida, nos termos do artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, por ser passível de correção, nos termos previsto no artigo 431º, al. b), a que se segue a denominada revista alargada, atinente aos vícios enumerados no artigo 410º, n.º 2, uma vez que estes implicam o reenvio do processo à 1ª instância, em consonância com o estabelecido no artigo 426º, n.º 1, todos do mesmo código.
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.

No caso vertente, tendo em perspetiva o supra aduzido, as questões a decidir reconduzem-se essencialmente às seguintes:

1.1 - Nulidade da sentença por falta de fundamentação e exame crítico da prova;
1.2 - Impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal;
1.3 - Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão – artigo 410º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal
1.4 - Enquadramento jurídico dos factos;
1.5 - Determinação das penas.
           
2. – DECISÃO RECORRIDA
A sentença recorrida tem o seguinte teor, nas partes que relevam para a economia do presente recurso [transcrição]:
«II. Fundamentação de Facto
     
1. Factos Provados
                                                                                                        
Com relevância para a boa decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:   

Da acusação:
a) A arguida EMP01..., Unipessoal Lda. é uma sociedade por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial ..., ...26, constituída em 17/07/2007, com início de atividade e registo na Segurança Social da mesma data, e que tem como objeto social a “confeção de outro vestuário exterior em série”.
b) Desde a data da constituição da sociedade arguida, e até 28/09/2017, sempre figurou no pacto social, como gerente de direito, a arguida BB e, a partir desta data, a arguida AA.
c) A arguida BB é professora no Agrupamento de Escolas ..., e nunca desempenhou efetivamente qualquer ato de gerência em representação da sociedade arguida ou sequer alguma vez trabalhou para esta sociedade.
d) Efetivamente, sempre foi a arguida AA quem exclusivamente geriu, de facto, a sociedade arguida, tomando todas as decisões relacionadas com o seu normal funcionamento, incluindo as que se reportam à contratação e despedimento de trabalhadores, pagamentos de salários, aceitação de encomendas e sua execução e todas as demais inerentes ao seu normal giro comercial.
e) As arguidas AA e BB são mãe e filha, respetivamente.
f) As arguidas AA e BB, em data não concretamente apurada, mas sempre, pelo menos, contemporânea a 17/07/2007, com vista a locupletarem-se indevidamente com dinheiro pertencente à Segurança Social, em conjugação de esforços e intentos, decidiram forjar uma falsa carreira contributiva de BB, com o objetivo de obterem da Segurança Social atribuições patrimoniais indevidas, nomeadamente prestações por doença.
g) Assim, no seguimento deste plano, através do sistema de entrega de declarações de remunerações, as arguidas, ou alguém a mando destas, remeteram as declarações de remunerações à Segurança Social da arguida BB, como membro de órgão estatutário (MOE), desde 24/07/2007 até 28/09/2017, e como trabalhadora da referida empresa (TCO), entre esta última data, até 31/10/2018, com um vencimento mensal médio a rondar os 500,00 €.
h) Assim, a arguida BB esteve qualificada no Sistema de Informação da Segurança Social, como membro dos órgãos estatutários (MOE) da sociedade arguida, com registos de remunerações, entre 07/2007 a 07/2008, 04/2012 a 01/2013, 02/2016 a 10/2016 e 05/2017 a 06/2017, 01/2018, 04/2018, 05/2018, 06/2018, 09/2018 e 10/2018, e com registos de equivalências, por prestação de doença, desde 07/2008 a 08/2011, 01/2013 a 01/2016, 10/2016 a 01/2018, 07/2018 a 09/2018, 07/2019 a 09/2019.
i) As arguidas fizeram assim constar, nos períodos acima referidos, que a arguida BB era trabalhadora da aludida sociedade, o que sabiam não corresponder à realidade, atuando unicamente com o objetivo de obterem prestações sociais, em nome daquela, designadamente por doença, como efetivamente veio a obter..
j) No seguimento do plano gizado, e pese embora ser do conhecimento de ambas que, por não ser trabalhadora da empresa, não teria direito a tal, as arguidas entregaram na Segurança Social um requerimento para atribuição de prestações de subsídio por doença referente à arguida BB.
k) Deste modo, a arguida BB recebeu, a título de subsídio de doença, a quantia global de 29.077,80€, assim discriminada:
- de 07/07/2008 a 05/12/2008, recebeu o montante de 1.393,34€;
- de 13/01/2009 a 19/08/2011, recebeu o montante de 9.681,30€;
- de 15/01/2013 a 17/01/2016, recebeu o montante de 12.882,21€;
- de 18/10/2016 a 27/05/2017, recebeu o montante de 2.433,06€;
- de 27/06/2017 a 04/01/2018, recebeu o montante de 2.097,90€;
- de 12/07/2018 a 04/03/2018, recebeu o montante de 589,99€.
l) De igual modo, com vista a locupletarem-se indevidamente com dinheiro pertencente à Segurança Social, em conjugação de esforços e intentos, as arguidas AA e BB, em data não concretamente apurada, mas sempre, pelo menos, contemporânea a 17/07/2007, decidiram criar uma falsa carreira contributiva da arguida AA, como trabalhadora por conta de outrem (TCO), com o objetivo de obterem da Segurança Social atribuições patrimoniais indevidas, nomeadamente prestações por doença.
m) Assim, no seguimento deste plano, através do sistema de entrega de declarações de remunerações, as arguidas, ou alguém a mando destas, remeteram as declarações de remunerações à Segurança Social da arguida AA, como TCO, desde 01/08/2007, até 28/09/2017, com um vencimento mensal médio a rondar os 500,00 €, e como MOE, sem registo de remunerações, desde 28/09/2017.
n) A arguida AA esteve qualificada no Sistema de Informação da Segurança Social, na qualidade de trabalhadora por conta de outrem (TCO), desde 01/08/2007 a 28/09/2017, tendo registos de remunerações, entre 10/2007 a 12/2007, 04/2012, 06/2012 a 02/2013, 12/2013, 06/2016 a 02/2017, 06/2017, e desde 06/2018; tem ainda registos de equivalências por prestação de doença, na qualidade de TCO, desde 12/2007 a 12/2010, 02/2013 a 02/2016, 02/2017 a 04/2019, 06/2019 e 03/2020.  
o) As arguidas fizeram assim constar, nos períodos acima referidos, que a arguida AA era TCO da aludida sociedade, o que sabiam não corresponder à realidade, atuando unicamente com o objetivo de obterem prestações sociais, designadamente por doença, como efetivamente veio a obter.
p) Pese embora ser do conhecimento de ambas as arguidas que, por não ser TCO da empresa, não teria direito a tal, as arguidas entregaram na Segurança Social um requerimento para atribuição de prestações de subsídio por doença referente à arguida AA.
q) Deste modo, a arguida AA recebeu, a título de subsídio de doença, a quantia global de € 31.486,43, assim discriminada:
- de 06/12/2007 a 15/03/2008, recebeu o montante de 356,09€;
- de 18/03/2008 a 22/12/2010, recebeu o montante de 5.613,10€;
- de 25/02/2013 a 27/02/2016, recebeu o montante de 11.639,88€;
- de 06/02/2017 a 21/05/2019, recebeu o montante de 9.546,10€;
- em razão da prestação compensatória de férias: no ano de 2008 – 299,86€; no ano de 2009 – 300,00€; no ano de 2010 – 299,86€; no ano de 2014 – 291,00€; no ano de 2015 – 303,00€; no ano de 2018 – 318,90€;
- em razão da prestação compensatória de Natal: no ano de 2007 – 165,28€; no ano de 2008 – 299,86€; no ano de 2009 – 300,00€; no ano de 2010 – 299,86€; no ano de 2013 – 250,00€; no ano de 2014 – 303,00€; no ano de 2015 - 303,00€, no ano de 2017 – 278,64€; no ano de 2018 – 318,90€.
r) Nos Certificados de Incapacidade Temporária (CIT's) referentes à arguida AA, constava, para além do mais, a indicação de que aquela não estava autorizada a sair do domicílio.
s) Através do envio das declarações de remunerações remetidas pela entidade empregadora EMP01..., Unipessoal Lda., as arguidas AA e BB lograram constituir carreiras contributivas falsas, quer na qualidade de trabalhador por conta de outrem (TCO), quer na qualidade de membro de órgão estatutário (MOE), respetivamente.
t) Com a apresentação das Declarações de Remunerações (DR's), as arguidas criaram a aparência de um vinculo jurídico com a entidade empregadora, na qualidade de trabalhador por conta de outrem e de membro de órgão estatutário, que sabiam não corresponder à verdade.
u) As arguidas AA e BB, em conjugação de esforços e na execução de um plano comumente elaborado, apresentaram junto do Instituto de Segurança Social, I.P. documentos e declarações cujo teor sabiam serem falsos, por forma a garantir que iriam auferir prestações de doença, as quais não teriam direito se não fosse o engano produzido.
v) A Segurança Social apenas procedeu ao processamento e pagamento dos subsídios de doença requeridos por ambas as arguidas, nos termos suprarreferidos, no montante global de € 60.564,23, porque acreditou em todas as informações prestadas pelas arguidas, que estas bem sabiam serem falsas.
w) As arguidas sabiam não terem direito a receber tais prestações da Segurança Social; mais sabiam que o teor dos documentos e declarações que entregaram na Segurança Social para deste I.P. obterem prestações por doença não era verdadeiro, e que, ainda assim, decidiram entregá-los, para garantir que iriam auferir prestações de doença.
x) As arguidas agiram em execução de um plano por ambas delineado, simulando a qualidade de TCO e MOE, com vista a obterem prestações sociais que sabiam concretamente serem indevidas, o que efetivamente sucedeu.
y) As arguidas, por si e em representação da sociedade arguida, atuaram, no quadro de um único desígnio, sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram punidas por lei.

Da audiência de julgamento:
z) Caso a arguida AA estivesse qualificada no Sistema de informação da Segurança Social, na qualidade de membro dos órgãos estatutários (MOE), com vencimento mensal beneficiaria de prestações por doença.
aa) E caso o seu vencimento mensal médio rondasse os €500,00, na qualidade de membro dos órgãos estatutários (MOE), a arguida AA beneficiaria de prestações por doença nos períodos descritos na alínea q) dos factos provados nos seguintes termos:




(Factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido)
bb) A sociedade arguida tem, na presente data, actividade e a seu cargo cerca de 6 trabalhadores.
cc) A arguida AA, reside sozinha em moradia, propriedade de casal amigo que se encontra emigrado na ..., inserida em freguesia próxima à da sua de origem.
dd) A arguida AA possui o 6º ano de escolaridade; iniciou atividade laboral aos 16 anos de idade, estando o seu percurso profissional ligado principalmente à industria produtora de cabos e fios elétricos; em 2007, constituiu a empresa “EMP01..., Unipessoal Limitada”.
ee) Neste momento e desde fevereiro de 2022 que se encontra na situação de incapacidade temporária para o trabalho por doença, afirmando que desde essa data que não aufere qualquer tipo de rendimento; atualmente refere depender exclusivamente do apoio de casal amigo que lhe cede habitação e paga todas as despesas fixas relacionadas com a mesma (luz, água e gás).
ff) AA refere diversos problemas de saúde que afetaram o seu percurso profissional e os seus relacionamentos interpessoais. Verbalizou vários problemas do foro ortopédico (mãos e coluna), que obrigaram a diversas intervenções cirúrgicas, a última das quais 08/08/2022 e problemas do foro mental, estando a ser acompanhada no serviço de psiquiatria do Hospital ..., desde episódio de internamento em 2008, cuja origem remete para instabilidade emocional causada pela separação conjugal.
gg) A arguida BB, durante o período a que se reportam os factos, encontrava-se a frequentar o ensino superior, tendo concluído o Mestrado em 2º e 3º ciclo em 2011.
hh) A arguida BB tem um percurso profissional essencialmente ligado à sua área de formação, o ensino; leciona desde o ano letivo de 2012/13, altura em que integrou o programa de Atividades de Enriquecimento Curricular no 1º ciclo do ensino básico, no concelho ....
ii) Tem vivenciado alguma precariedade profissional, uma vez que ainda não integra o quadro de professores dos estabelecimentos de ensino dos 2º e 3º ciclos do ensino básico; no ano letivo de 2022/23 ficou colocada, em regime de substituição, no agrupamento de escolas ... em Guimarães.
jj) Neste momento e desde setembro de 2022 que se encontra na situação de incapacidade temporária para o trabalho por doença.
kk) O valor dos rendimentos líquidos da arguida BB é de cerca de €885,00 e o valor dos rendimentos líquidos do agregado é de cerca de €900,00 e o valor total das despesas/encargos fixos do agregado é de cerca de €950,00.
ll) À sociedade arguida são conhecidos os seguintes antecedentes criminais:
1. Por sentença datada de 05.07.2017, a sociedade arguida foi condenada, ao abrigo do processo n.º 11/16...., do JL Criminal - Juiz ... de ..., pela prática, em 17.08.2015, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de € 8,00.
2. Por sentença datada de 25.11.2021, a sociedade arguida foi condenada, ao abrigo do processo n.º 63/20...., do JL Criminal - Juiz ... de ..., pela prática, em 03.2016, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 480 dias de multa à taxa diária de € 7,00 (que englobou a pena aplicada no âmbito do processo n.º 2512/17....).
mm) À arguida AA são conhecidos os seguintes antecedentes criminais:
1. Por sentença datada de 05.07.2017, a arguida foi condenada, ao abrigo do processo n.º 11/16...., do JL Criminal - Juiz ... de ..., pela prática, em 17.08.2015, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 6,00.
2. Por sentença datada de 25.11.2021, a arguida foi condenada, ao abrigo do processo n.º 63/20...., do JL Criminal - Juiz ... de ..., pela prática, em 03.2016, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 290 dias de multa à taxa diária de € 6,00 (que englobou a pena aplicada no âmbito do processo n.º 2512/17....).
nn) À arguida BB não são conhecidos antecedentes criminais.
*
2. Factos Não Provados
                                                                                      
Não resultaram, com relevância para a decisão, provados os seguintes factos:
1. Os certificados mencionados em r) dos Factos Provados foram entregues por ambas as arguidas na Segurança Social para obterem as prestações por doença acima referidas.
2. Não obstante isto, a arguida AA, nos períodos abrangidos por esses CIT`s, sempre se apresentou com regularidade nas instalações da sociedade arguida, nomeadamente para a gerir de facto, incluindo dar ordens e instruções de trabalho aos seus trabalhadores.
3. Porquanto nunca tivesse estado efetivamente doente e impedida de se ausentar da habitação, pelo menos, durante todos aqueles períodos que constavam dos CIT`s apresentados, as arguidas sabiam que o teor destes documentos - CIT`s - era falso.
4. O descrito em s) dos Factos Provados apenas assim procederam as arguidas com vista ao preenchimento de um dos requisitos legais para a concessão de prestações de doença
5. As arguidas agiram, fingindo ainda a arguida AA encontrar-se doente, e impedida de se ausentar da habitação.
*
3. Fundamentação da decisão de facto
                                                                        
O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente:
- nos documentos juntos aos autos, nomeadamente, certidão de fls. 4 a 17, extratos de remunerações de fls. 47 a 69, 678 a 863, CIT`s de fls. 80 a 83, 86 a 123, 126 a 166, 169 a 197, 200, 201, 207 a 327, docs. de fls. 202 e 203, 344 a 362, 448 a 675, parecer fundamentado do ISS de fls. 864 e ss. e certidão permanente de fls. 33 a 38.
- nas declarações da arguida AA, a qual, em suma, admitiu ser ela a única gerente de facto da sociedade arguida, sendo que a sua filha, a co-arguida BB nunca exerceu qualquer acto de gerência na dita sociedade. Esclareceu que havia sido gerente numa outra empresa e perante alguns problemas que teve, pediu à sua filha para figurar como gerente de direito nesta sociedade arguida, sendo que a mesma aceitou. Também disse que a sua filha é professora. Quanto à sua doença, sempre adiantou que tais certificados de incapacidade que foram sendo apresentados são todos verdadeiros, pois efectivamente esteve nos aludidos períodos doente, tendo inclusive sido por diversas vezes sujeita a intervenções cirúrgicas. Sem prejuízo também disse que os certificados assim que emitidos pelo respectivo médico são automaticamente comunicados aos serviços da Segurança Social, não havendo por isso qualquer pedido formal por parte da arguida na atribuição dos respectivos subsídios. Por fim, disse também que em alguns dos períodos em que estava doente, mantinha-se na sua casa, sendo certo contudo que a sociedade arguida também labora no espaço da sua casa, pelo que por vezes as funcionarias iam ter consigo, a casa, para receberem orientações sobre o trabalho.
- a arguida BB não esteve presente na audiência de julgamento.
- nos depoimentos das testemunhas:
- CC, chefe de equipa do núcleo de doença SS, a qual prestou um depoimento coerente por si e quando conjugado com a demais prova, e em suma, relatou os valores pagos a titulo de subsídios de doença às arguidas AA e BB, confirmando assim os valores entregues pela SS e narrados no libelo acusatório. Mais referiu que os certificados de incapacidade são emitidos pelo médico de família e é automaticamente comunicado ao serviço da Segurança Social e depois este serviço analisa se se preenchem os demais requisitos, concluindo assim que o beneficiário não tem de fazer propriamente nenhum pedido.
- DD, EE, FF, GG, HH, costureiras e funcionárias da sociedade arguida, num registo sincero e objectivo, de forma unanime, referiram que a arguida AA era a única gerente de facto da sociedade arguida, era a única “patroa”, sendo apenas dela que recebiam ordens e instruções. Mais adiantaram que a arguida BB, filha da arguida AA, nunca esteve na sociedade arguida nem como trabalhadora nem como gerente, sendo que a conheciam por ser filha da arguida AA. Tais testemunhas, ainda que sem conseguirem concretizar com pormenor o período em que tal sucedeu, asseveraram de forma séria e descomprometida que a arguida AA esteve, longos períodos de baixa médica, sendo que foi até operada várias vezes e que, em alguns períodos, recebiam indicações/ordens da arguida AA da casa onde ela habitava, já que o local de trabalho era no mesmo local da casa dela.
Por fim,
- II e JJ, indicadas pelas arguidas, abonaram o comportamento pessoal e social das arguidas BB e AA.
*
Feita esta breve súmula da prova produzida, tem que se concluir no sentido de que os factos dados como provados, efectivamente, aconteceram e as arguidas foram os seus agentes.
Com efeito, no que concerne à factualidade referente à gerência de facto da empresa por parte da arguida AA, esta admitiu exercê-la desde a sua constituição até à presente data.
Já no que respeita à factualidade referente ao plano de forjar uma falsa carreira contributiva, da conjugação da prova produzida, não pode resultar outra conclusão. Vejamos: A arguida BB é filha da arguida AA. Das próprias declarações da arguida AA, quando referiu que, quando a filha ainda a estudar e lhe pediu para ser a gerente de direito da sociedade arguida, pois tinha tido uma empresa que lhe causou problemas financeiros e ela aceitou, cremos ser possível alcançar aquela conclusão.
Em conjugação, também dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD, EE, FF, GG, HH, costureiras e funcionárias da sociedade arguida, se percebe a mesma conclusão, já que foram unanimes em afirmar que nunca a arguida BB esteve na sociedade arguida nem como trabalhadora nem como gerente. 
Ora, da conjugação desta prova por declarações e testemunhal, não fica dúvida que a arguida BB não era gerente da sociedade arguida, porque não tinha funções especificas atribuídas, não emanava quaisquer ordens ou instruções a qualquer dos funcionários da sociedade arguida. Ao mesmo tempo, não fica igualmente qualquer dúvida que a arguida AA não era trabalhadora da sociedade arguida, mas sim gerente.
Há que ter em conta o que se explanou no douto Ac. STJ nº 07P4588, de 12-09-2007, in www.dgsi.pt “I - A prova do facto criminoso nem sempre é directa, de percepção imediata; muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios. II - “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” (J. M. Asencio Melado, Presunción de Inocência y Prueba Indiciária, 1992, citado por Euclides Dâmaso Simões, in Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 205). III - Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra. IV - A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. V - O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.”.
Atentando, assim, no explanado, verifica-se ser possível percorrer todo o plano delituoso das arguidas, desde o conluio para declarar remunerações que não existiam, bem como uma inexistente trabalhadora e gerente, e após o peticionar o subsidio de doença ao ISS. Extrai-se, pois, que as arguidas decidiram forjar uma carreira contributiva da arguida BB e, bem assim, uma falsa carreira contributiva da arguida AA, tudo com o objectivo de obterem da Segurança Social atribuições patrimoniais indevidas, o que efectivamente veio a ocorrer.
Neste jaez, foi produzida prova bastante, analisada à luz da experiência comum e do normal acontecer, para convencer o tribunal que as arguidas praticaram os factos dados como provados.
No que concerne ao aspecto subjectivo das condutas, ponderou-se o iter criminis das arguidas, ou seja, a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento.
As consequências da conduta das demandadas, estão explanadas de forma clarividente no depoimento da testemunha CC, chefe de equipa do núcleo de doença SS e nos documentos quanto aos danos patrimoniais.
Mais foi relevante o teor dos CRC’s juntos aos autos e ainda, quanto às condições pessoais e sócio-económicas das arguidas e da sociedade arguida, as declarações prestadas pela arguida AA e, bem assim, nos relatórios sociais juntos a fls. 1473 a 1475 e 1477 a 1479, sendo certo que não foi produzida qualquer prova que as infirmasse.
Quanto à matéria de facto dada como não provada, sempre cumpre referir que a mesma assim resultou, para além do que já resulta explanado supra, na insuficiente prova ter sido produzida sobre a mesma.
*
III. Fundamentação de Direito
                                                                                        
1. Enquadramento jurídico-penal
                                                                     
Vêm as arguidas acusadas da prática, em co-autoria material e sob a forma consumada, de um crime de burla tributária contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 87.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Regime Geral das Infrações Tributárias, por referência ao art.º 16.º, da Portaria n.º 196A/2015, de que a sociedade EMP01..., Unipessoal Lda. também é responsável ao abrigo do disposto no artigo 7.º do RGIT.
Dispõe o artigo 87.º n.º 1 do RGIT que “Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.”.
Esta moldura penal é agravada com uma pena de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e a de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas, sempre que a atribuição patrimonial for de elevado valor – artigo 87º nº 2 do RGIT. Valor elevado: €5.100,00.
Trata-se de um crime material, de dano, pelo que a efectiva atribuição patrimonial e o corresponde enriquecimento ilegítimo interessam à consumação.
Ou seja, o crime de burla tributária, aqui em consideração, está estruturado como um crime de resultado, aparecendo como um verdadeiro tipo de burla especial, em que o processo típico é de execução vinculada (e não livre), mas, simultaneamente, estabelece elementos integradores mais formais.
O bem jurídico protegido com a presente incriminação é o património tributário do Estado.

São elementos constitutivos deste crime de burla tributária:

- Uso de erro ou engano sobre os factos, provocado por meios fraudulentos, como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante;
- Que sejam aptos ou idóneos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.

Como escrevem Jorge Lopes de Sousa e M. Simas Santos, in Regime Geral das Infracções tributárias, Anotado, 2ª Edição, página 547, aproxima-se este tipo legal do crime de burla previsto no artigo 217º, do Código Penal, no entanto, não refere expressamente o erro ou engano provocado, elemento que, não obstante, estão presentes na referência aos meios fraudulentos, os susceptíveis de provocar astuciosamente o tal erro ou engano.
Também na burla tributária é exigido um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pela vítima, dos actos de diminuição do seu património e entre estes e o prejuízo patrimonial ocorrido. O meio enganoso tem de ser a causa efectiva pela qual a administração se encontra em erro.
Não se ignorando doutrina e jurisprudência contrárias, entendemos que de acordo com a configuração do tipo, exige-se o uso de um meio fraudulento “activo”, ou seja, uma conduta astuciosa comissiva que directamente induziu o erro ou engano e não uma mera conduta omissiva do agente.
Isto é, o tipo exige um meio fraudulento activo, e não uma mera conduta omissiva. É que, uma vez concedida a atribuição patrimonial, verificando-se uma alteração nas circunstâncias de vida do agente, as meras omissões neste são somente aptas à continuação do pagamento da prestação. Uma vez que a lei atribui relevo à conduta do agente em determinar a administração a efectuar essa disposição, se este omite factos posteriores a essa atribuição, poderá estar em causa o crime de fraude fiscal ou fraude contra a segurança social, mas não o crime de burla tributária.
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume 2, Universidade Católica Editora, página 414, ”… perfilhamos o entendimento da impossibilidade do crime de burla tributária ser cometido por omissão. De facto, o simples silêncio não configura, em nosso entender, um meio fraudulento, e a burla é um crime de execução vinculada. Por outro lado, este crime pressupõe uma conduta activa por parte do agente, que dirige a sua actuação no sentido de enganar a administração estadual. Acresce que a lei refere expressamente que a conduta do agente “determina” a atribuição da prestação. Ora, querendo abranger as condutas em que o agente omite circunstâncias modificativas supervenientes, o legislador teria de admitir que a conduta do agente era apta a “manter” a prestação já atribuída, o que não é o caso. Na burla tributária, o legislador concretizou a matriz dos meios fraudulentos e fê-lo com referência, unicamente, a condutas activas – declarar falsamente, falsificar, adulterar. Não comunicando estes factos novos, o agente aproveita-se do engano em que administração se encontra, não tendo, contudo, sido ele o autor desse logro. Não preenchendo esta a conduta a prática do crime de burla tributária, poderemos, contudo, estar perante os crimes de fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 103º, ou de fraude contra a segurança social, previsto e punido pelo artigo 106º, ou ainda perante as contra-ordenações previstas nos artigos 118º e 119º, todos do RGIT.”
Na jurisprudência, e no mesmo sentido, pode ver-se o Acórdão da Relação de Coimbra, de 26-01-2011, Acórdãos da Relação de Évora, de 28-01-2014 e 07-12-2012, publicados em www.dgsi.pt.
O elemento subjectivo da infracção em causa reconduz-se ao dolo genérico (artigo 14º, do Código Penal).
Ora, atentando-se na matéria de facto dada como provada, é manifesto que se encontram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito-típico em causa, pelo que devem as arguidas ser condenadas pelo crime de que vêm acusadas. Da referida matéria de facto, se conclui que as arguidas decidiram forjar uma carreira contributiva da arguida BB e, bem assim, uma falsa carreira contributiva da arguida AA, tudo com o objectivo de obterem da Segurança Social atribuições patrimoniais indevidas, o que efectivamente veio a ocorrer. Ainda que no caso da arguida AA, considerando que a mesma efectivamente era a gerente de facto da sociedade e não trabalhadora e, quanto a si sempre se poderia equacionar a possibilidade de não ter existido prejuízo patrimonial na esfera da Segurança Social, sempre a mesma arguida AA decidiu forjar uma carreira contributiva da arguida BB, sua filha, a par desta que anuiu.
Daí que cremos que apesar dos factos provados nas alíneas z) e aa), os mesmos se mostram irrelevantes à conclusão do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito-típico em causa.
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Como se retira do art.º 11.º CP a responsabilidade criminal das pessoas colectivas assume carácter excepcional, só sendo consagrada quando razões pragmáticas assim o aconselhem[4].

Como refere Costa Andrade[5], o art.º 11.º CP “quebrou a rigidez do princípio societas delinquere non potest, o que ficou a dever-se, em primeira linha, à pressão resultante da criminologia do white-collar crime, que cedo se deu conta da ineficácia de qualquer política de repressão ou prevenção criminal que não atinja directamente as organizações burocráticas e impessoais que entretanto se converteram nos principais operadores do mundo dos negócios. Não se estranhará, por isso, se a criminalidade económica (...) aparecer como o campo privilegiado da punição das pessoas colectivas”.
   
Nos termos do art.º 7.º n.º 1 do RGIT “As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo”, a qual, no entanto, “não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes” (n.º 3 do mesmo artigo).
Da leitura conjunta destes dois preceitos retira-se a “responsabilidade cumulativa dos agentes das pessoas colectivas com a responsabilidade destas últimas como co-autores dos factos que integram crimes fiscais”[6].
Como refere Manuel António Lopes Rocha[7], “... a responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas não tem carácter objectivo, já que pressupõe a prática de um facto criminoso pelos seus órgãos” por referência às pessoas físicas que actuam em nome ou em representação do ente colectivo e no seu interesse. E mais adiante “... a responsabilidade da pessoa colectiva só existirá quando a pessoa singular praticar o facto no exercício das suas funções, isto é, no quadro de uma actividade que interessa ao ente a que tal pessoa está ligada por uma relação funcional”.
Por outro lado, como refere Sofia de Vasconcelos Casimiro[8], depois de nos dar conta dos vários sistemas possíveis de efectivação da responsabilidade dos gestores, tendo por base os diversos sistemas tributários, e partindo de uma análise mais detalhada do sistema objectivo e suas limitações, para que se possa efectivar a responsabilidade do gestor exige-se que se trate não apenas de “um gestor nominal, formalmente investido desse cargo”, como também um gestor que efectivamente exerça as suas funções, ou seja, que a mesma pessoa reúna a gerência de direito com a gerência de facto, sendo que jurisprudencialmente se veio a entender que, verificada a gerência de direito, se presumia a gerência de facto, sendo, contudo, esta presunção ilidível[9].
Outra problemática que tem dividido a doutrina e a jurisprudência prende-se com a questão de saber se a responsabilidade do gestor se funda numa culpa efectiva ou se basta a culpa funcional, sendo que “a maioria das decisões judiciais e a maioria da doutrina repudiam a relevância de qualquer culpa efectiva por parte do gestor como requisito indispensável da efectivação da sua responsabilidade tributária pelas dívidas sociais. De acordo com esta posição, esta responsabilidade será uma responsabilidade ex lege e bastar-se-á com a verificação de uma mera culpa funcional que resulta de uma interpretação pessoal dos actos sociais. Esta culpa funcional é presumida e, sobretudo, inilidível uma vez reunidas a gerência de direito e a de facto”[10].

No caso em apreço, as arguidas BB e AA agiram sempre em nome e no interesse da sociedade arguida “EMP01..., Unipessoal Lda.”, pelo que, na qualidade de gerentes (de direito e de facto), a representava perante terceiros, exprimindo ou veiculando a sua vontade, com vista à satisfação dos seus interesses.
Assim sendo, também a identificada sociedade incorreu na prática de um crime de burla tributária, a qual se cumula com a responsabilidade individual das arguidas AA e BB, nos termos do disposto no artigo 87.º n.ºs 1 e 2 do RGIT.
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2. Escolha e determinação da medida concreta da pena                                                                                                                                
O crime em causa é punível com uma pena de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e a de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas, sempre que a atribuição patrimonial for de elevado valor – artigo 87º nº 2 do RGIT. Valor elevado: €5.100,00.
As finalidades das penas encontram actualmente consagração no art.º 40º do Código Penal, e visam em primeira linha a protecção dos bens jurídicos e a “estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada” (prevenção geral), e ainda a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
A prevenção de futuros crimes só pode assentar na combinação da prevenção geral positiva com a prevenção especial, isto é, por um lado assente na tutela dos bens jurídicos que se traduz na reposição da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada e por essa via no restabelecimento da paz jurídica posta em crise com o crime, (que se enquadra perfeitamente no art.º 18º, nº 2 da CRP) e por outro virada para a socialização do agente e para a sua advertência ou até em último recurso a sua inocuização.
Dispõe o nº 1 do artigo 71º do Código Penal, que a determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente, tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial.
Decorre do disposto no n.º 2 da referida norma, que na determinação da pena, o Tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
Atender-se-á assim, ao médio da ilicitude, atentas as consequências dos factos, nomeadamente o valor apropriado, o modus operandi, o dolo directo, porquanto as arguidas agiram com consciência da ilicitude das suas condutas e ainda assim persistiram em praticá-la, as suas condições sociais e pessoais, e a (in)existência de antecedentes criminais.
Também o facto da arguida BB não ter antecedentes criminais, e a arguida AA ter, mas pelo cometimento de crime de diferente natureza (embora conexo – crimes ficais), mas ser a principal beneficiária do facto delituoso.
Tudo visto e ponderado, entende-se justa, adequada e proporcional à culpa e às exigências de prevenção, a aplicação à arguida BB de uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, e à arguida AA de uma pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão.
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Da pena de substituição:
Chegados a este ponto, há que ajuizar da adequação e necessidade de aplicação de uma pena de substituição.
Este tribunal segue de perto a ordem de apreciação das penas substitutivas de prisão sugerida pelo Acórdão da Relação do Porto, de 20-04-2009, publicado em www.dgsi.pt, que refere “A ordem de apreciação das várias penas substitutivas da prisão é a seguinte: multa, suspensão da execução da pena, prestação de trabalho a favor da comunidade, regime de permanência na habitação, prisão por dias livres e regime de semidetenção.”
Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 50º, n.º 1 do C.P., o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição.
Em todos os casos, estão em causa exigências de prevenção, geral e especial. Só se não saírem abaladas as finalidades punição é que o tribunal pode optar pela aplicação de uma pena de substituição.
No caso concreto, como vimos, a arguida BB não é portadora de antecedentes criminais, e a arguida AA tem antecedentes criminais, mas pelo cometimento de crime de diferente natureza (embora conexo – crimes fiscais).
Por outro lado, sob pena de se ver gerado um sentimento de insegurança ou de impunidade, também a comunidade precisa de ver reafirmada a validade e a positividade da norma jurídica violada.
Aqui chegados, atendendo à inserção familiar, social e profissional das arguidas, entendemos que a suspensão da execução da pena de prisão – a censura do facto e a ameaça da execução da pena, ainda, serão suficientes para o afastar da prática do crime.
Estabelece o art.º 14º do RGIT que “1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.”
A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão da execução da pena de prisão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou - ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. Decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência» - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, páginas 343 e seguintes.
Para que se possa decidir pela suspensão da execução da pena de prisão é necessário que se formule um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido, ou seja, que se possa prever que aquele não cometerá no futuro outros crimes e que a ameaça da prisão realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Assim, decide-se, suspender a execução da pena de prisão, por um prazo de 4 anos (e não pelo período equivalente às penas de prisão, uma vez que a norma do artigo 14º do RGIT é especial e afasta, assim, a correspondência temporal da suspensão em função da medida concreta da pena de prisão fixada, conforme previsto no artigo 50º nº 5, do Código Penal) - atento que se segue o defendido no Ac. TRE, nº 118/09.4IDFAR.E2, de           21-06-2011, in  WW.DGSI.PT “Nos casos abrangidos pelo art. 14.º, nº1, do RGIT é esta a norma que estabelece o limite máximo aplicável ao período de suspensão da pena e não o art. 50.º, nº5, do C.Penal. II – O regime estabelecido no art. 50.º, nº5, do C.Penal, após a Lei 59/2007 de 4 de Setembro, é incompatível com o fixado no citado art. 14.º do RGIT, precisamente no que respeita ao prazo máximo de duração da suspensão da execução da pena, pois ao permitir que o pagamento possa fazer-se até ao limite de 5 anos, aquele último preceito pressupõe, necessariamente, que o período de suspensão da pena possa atingir aquele mesmo limite. (…) Por um lado, a Lei 59/2007 não a revogou expressamente. Por outro, o art. 14º nº1 do RGIT não pode considerar-se tacitamente revogado na parte em que prevê que o pagamento da dívida fiscal possa ocorrer até ao limite de 5 anos e, consequentemente, que o prazo de suspensão da pena seja fixado até ao máximo de 5 anos nos casos a que se aplica aquele mesmo art. 14º. Na verdade, o preceito não pode considerar-se tacitamente revogado pela lei 49/2007, mais recente, pois acolhe norma especial[1].face à norma do nº5 do art. 50º do C.Penal que rege para a suspensão da pena em geral e o nº3 do art. 7º do C.Civil, aplicável a todo o ordenamento jurídico, expressamente exceciona estas hipóteses do princípio da revogação tácita pela lei mais recente contido no nº2 daquele mesmo art. 7º.
Esta interpretação em nada é afetada pelas decisões do T. Constitucional que não julgaram «… inconstitucional a norma do artigo 14.° do RGIT, em conjugação com os artigos 50.º e 51.º do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão concretamente determinada, de prestação tributária e acréscimos legais; » -- cfr, por todos, Ac TC nº 556/2009 de 27.10.09, acessível em www.datajuris.pt.
Na verdade, como resulta deste mesmo acórdão (que cita ainda o Ac do TC 327/08 no mesmo sentido), o julgamento do tribunal constitucional abstrai-se da questão de saber se a posição assumida na decisão ordinária recorrida correspondia à exata interpretação da lei, limitando-se a formular um juízo de não inconstitucionalidade para as normas questionadas, quando interpretadas no sentido de o art. 50º nº5 em conjugação com o art. 14º do RGIT implicar – como se terá entendido nas decisões ali recorridas – que o prazo de pagamento da dívida fiscal imposto pelo art. 14º do RGIT como condição da suspensão, não poderia ser superior ao tempo de prisão determinado na sentença, de acordo com a redação do nº5 do art. 50º introduzida pela Lei 49/2007.
Concluímos, pois, que nos casos abrangidos pelo art. 14º nº1 do RGIT é esta a norma que estabelece o limite máximo aplicável ao período de suspensão da pena e não o art. 50º nº5 do C.Penal, pelo que se impõe revogar a decisão recorrida na parte em que fixou aquele período em 1 ano por imposição daquele mesmo art. 50º nº 5.” (negrito nosso).
A suspensão das penas de prisão serão, então, condicionadas, nos termos do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento do montante do beneficio indevidamente obtido (€60.564,23 (sessenta mil, quinhentos e sessenta e quatro euros e vinte e três cêntimos)), no prazo de 4 (quatro) anos, a contar do trânsito da condenação, devendo as arguidas comprovarem nos autos o referido pagamento em idêntico prazo.
Assim sendo, determina-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada às arguidas, sujeita ao dever acima aduzido.
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Resta ainda, no que tange à determinação da pena a aplicar, decidir relativamente à sociedade arguida, pois que a mesma, como já referimos, é penalmente responsável.                    
Dispõe o art.º 12º, nº 2, do RGIT, sob a epígrafe Penas aplicáveis aos crimes tributários que “Aos crimes tributários cometidos por pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas é aplicável a pena de multa de 20 até 1920 dias”, resultando do nº 3 do mesmo artigo que, sem prejuízo daqueles limites, os limites mínimo e máximo das penas de multa previstas quanto a cada tipo legal de crime, relativamente àquelas entidades, são elevados para o dobro.          
Por outro lado, de acordo com o art.º 15º, nº 1, do RGIT, o quantum diário deve ser fixado, quanto às pessoas colectivas, entre € 5 (cinco euros) e € 5000 (cinco mil euros).
A conduta da sociedade arguida é punível com pena de multa entre 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas, sempre que a atribuição patrimonial for de elevado valor – artigo 87º nº 2 do RGIT. Valor elevado: €5.100,00, determinando-se o quantum diário entre € 5 e € 5000 – vide arts. 12º, nºs 2 e 3, 15º, nº 1 do RGIT.           
Atenta a moldura penal em questão e considerando os elementos probatórios carreados para os autos relativamente à situação económico-financeira da sociedade arguida e, por outro lado, o montante do prejuízo causado à Segurança Social, entendo adequada a pena de 500 (quinhentos) dias de multa, fixando – atendendo-se ao facto de a sociedade ainda ter actividade, o quantum diário de € 8,00 euros, o que perfaz a multa global de €4.000,00 (quatro mil euros).
(…)».

3. - APRECIAÇÃO DO RECURSO, seguindo as supra elencadas questões:
3.1 - Nulidade da sentença por falta de fundamentação e exame crítico da prova

Começam as arguidas/recorrentes por alegar que a sentença padece de nulidade, nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, por violação do preceituado nos artigos 374º, n.º 2, do mesmo diploma, por duas ordens de razões: falta de exame crítico das provas e falta de fundamentação quanto a alguns dos factos que foram considerados provados.

Vejamos.
Estatui o artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que “[a]s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Densificando tal princípio em matéria processual penal, dispõe o artigo 97º, n.º 5, do Código de Processo Penal que “[o]s atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”, esclarecendo o n.º 1 do mesmo preceito que “[o]s atos decisórios dos juízes tomam a forma de: a) [s]entenças, quando conhecerem a final do objeto do processo; b) [d]espachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior”.
É, pois, inquestionável que, quer se trate de sentenças, quer de despachos [interlocutórios ou finais], os atos decisórios dos juízes têm que conter os respetivos motivos, de facto e de direito.
A inobservância do dever de fundamentação é cominada, no caso da sentença, com a nulidade, como decorre das disposições conjugadas dos artigos 374º e 379º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal e, no caso de despachos, apenas em casos muito pontuais [cfr., a título exemplificativo, o artigo 194º, n.º 6, do Código de Processo Penal].
Concretamente, estabelece o artigo 379º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Nulidade da sentença”:
“1 – É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no nº 2 (…) do art. 374º (…);
(,,,)
2 – As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 4 do artigo 414º.
3 – (…)”.
Por seu turno, o artigo 374º, do Código de Processo Penal, enunciando os requisitos da sentença, dispõe no seu n.º 2:
“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
A fundamentação constitui, sem dúvida, o segmento mais complexo da sentença, decompondo-se em três partes distintas: a enumeração dos factos provados e não provados; a exposição dos motivos que fundamentam a decisão; e a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal[11].
Em face do disposto no artigo 368º, n.º 2, a enumeração dos factos provados e não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua aprecia­ção e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização e, ainda, sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa, pois esta tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e, ainda, os que resultarem da prova produzida em audiência, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 339º[12].
E, nos termos do preceituado no artigo 124º do Código de Processo Penal, constituem objeto da prova “todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis” e, ainda, se houver pedido civil “os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil”.
Como decorrência, o juiz não está processualmente obrigado a elencar todos os factos alegados, mas apenas aqueles que têm interesse para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e são indispensáveis para a escolha da pena e determinação da medida concreta da mesma, bem como para a verificação dos pressupostos de que depende a responsabilidade civil.
Ademais, a lei impõe a fixação de factos, e não de conclusões ou de conceitos de direito, pelo que, caso estes sejam alegados nas peças processuais relevantes, não deve o juiz considerá-las, nem em sede de factos provados, nem não provados.
No que concerne à exposição dos motivos que fundamentam a decisão, são eles de facto e de direito. Os motivos de facto «…que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum), nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência[13]. E, no âmbito da decisão de direito, o juiz deve enunciar as normas legais que os factos convocam e que são determinantes do sentido da decisão.
Em sede de motivação da decisão factual, o juiz não está processualmente vinculado a efetuar uma enumeração mecânica de todos os meios de prova constantes dos autos ou indicados pelos sujeitos processuais, mas apenas a selecionar e a examinar criticamente os que serviram para fundamentar a sua convicção positiva ou negativa, ou seja, aqueles que serviram de base à seleção da matéria de facto provada e não provada.
A indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal consiste na «…enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.»[14]
Em suma, para além de dever conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova, a sentença tem que conter, também, «os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido»[15].
Com efeito, orientado pelo desiderato da descoberta da verdade material – escopo último do processo penal português –, vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, segundo o qual “[s]alvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Como decorrência de tal princípio, ressalvado o valor probatório específico do caso julgado (artigo 84º), da prova pericial (163º), dos documentos autênticos e autenticados (169º) e da confissão integral e sem reservas (344º), no processo de formação da convicção do julgador, as primeiras regras a observar são, naturalmente, as da lógica – que resultam da estrutura nomológica da realidade física e emergem, fundamentalmente, da intervenção do princípio da causalidade –, seguidas pelas regras da experiência – resultantes da acumulação de experiência do homem comum ao longo dos séculos sobre o normal acontecer das coisas.
Todavia, ainda que norteada pela lógica e pelas regras da experiência comum, a apreciação que o juiz do julgamento faz da prova não pode deixar de ser «... uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais –, mas em todo o caso, também ela (deve ser) uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.»[16]
O sistema da prova livre não se abre, por assim dizer, ao arbítrio, ao subjetivismo ou à emotividade. Antes exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não se pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça[17].
Em suma, o juiz é livre no que respeita ao ato de traçar a arquitetura do raciocínio que está obrigado a construir com as provas disponíveis, incluindo as indiciárias, o qual conduzirá à aquisição de uma convicção sobre a existência, inexistência ou dúvida insuperável quanto aos factos sob julgamento[18], desde que observe o quadro normativo sobre as regras referentes à valoração e proibição de certos meios de prova e as exigências de motivação transparente e clara desse raciocínio lógico de forma a ser apreensível pelos destinatários da decisão e pelo cidadão comum.
Daí que a fundamentação adequada e suficiente da decisão assuma um papel tão essencial, constituindo uma exigência do moderno processo penal e realizando uma dupla finalidade: em projeção exterior (extra processual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intra processual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão[19].
3.1.1 - Ora, no caso vertente, para invocarem a nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova, as arguidas/recorrentes limitam-se a alegar, em suma, que “[l]endo e relendo a autoproclamada «apreciação crítica» ensaiada na Douta Sentença – sobretudo a concernente aos factos provados, constata-se que o Tribunal a quo se limitou, a dizer que se baseou nas declarações da arguida AA, das testemunhas CC, DD, EE, FF e GG e HH e na documental, sem qualquer referência à prova que concretamente sustenta cada facto dado como provado, à credibilidade que cada depoimento mereceu nem a explicitação das respectivas razões para tal” [cfr. conclusão ii].
Porém, da análise da “Fundamentação da decisão de facto“, constante do ponto 3. da sentença, ressalta que o tribunal a quo procedeu ao exame crítico das provas que concorreram para a formação da sua convicção subjacente aos factos exarados como provados – elencados no ponto 1. [Factos provados] – e não provados – enumerados no ponto 2. [Facto não provados] – e expôs os respetivos motivos.
Começou por sinalizar que formou a sua convicção com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente aquela que salientou – prova documental, declarações da arguida AA e depoimentos testemunhais. Constando os documentos dos autos e sendo o seu teor objetivo, efetuou uma súmula das declarações da identificada arguida – assinalando que a arguida BB não esteve presente na audiência de julgamento – e dos depoimentos das testemunhas, especificando as razões pelas quais estes mereceram credibilidade. A titulo exemplificativo, atente-se que se sinaliza que a testemunha CC, chefe de equipa do núcleo de doença SS, «prestou um depoimento coerente por si e quando conjugado com a demais prova» e as testemunhas DD, EE, FF, GG, HH, costureiras e funcionárias da sociedade arguida, «num registo sincero e objectivo», de forma unanime, referiram […] asseveraram de forma séria e descomprometida». Subsequentemente, efetuou a análise de tais contributos probatórios segundo os imperativos da lógica e os ditames das regras da experiência comum e do normal acontecer, ponderando em que medida deles resultam factos que constituem indícios que permitem as inferências alcançadas.
É, pois, patente que o tribunal a quo efetuou a indicação das provas em que se baseou e efetuou o exame crítico das mesmas, de forma lógica e consentânea com as regras da experiência comum, explicitando de forma clara o raciocínio desenvolvido, permitindo a compreensão da avaliação que fez da credibilidade dos elementos probatórios disponíveis e o peso que tiveram na comprovação, ou não, dos factos objeto do processo em discussão e, em última análise, de como alcançou a convicção subjacente à decisão de considerar como provados a maioria daqueles e não provados outros.
3.1.2 - Também se mostra evidente que não se verifica a falta da fundamentação quanto a determinados factos – f), g), i), j), l) m) 0), p), s), t) u), w) e x)  [cfr. conclusão iv] – como invocado pelas arguidas/recorrentes, que alegam, em suma, neste conspecto, que «Não se infere, porque não fundamentada, a conclusão extraída pelo Tribunal ad quo e plasmada na Douta Sentença da existência de um conluio entre as arguidas, através da qual criaram falsas carreiras contributivas com vista a locupletarem-se indevidamente de dinheiro da Segurança Social» [cfr. conclusão v], em face dos argumentos sintetizados sob as conclusões vi a xii.
Convém, antes demais, salientar que a fundamentação do raciocínio lógico, motivado e objetivado na análise das provas, não implica a tomada de posição expressa e individualizada sobre todos os factos em discussão, bastando que o seja quanto ao âmago daqueles que têm relevância para aferir da responsabilidade criminal e civil dos arguidos.
Como se referiu, o tribunal a quo procedeu à análise crítica da globalidade dos factos em apreciação e, muito particularmente, daqueles que maior relevo assumiam na economia dos presentes autos – maxime, o conluio entre as arguidas, mediante o qual criaram falsas carreiras contributivas com vista a obterem da Segurança Social atribuições monetárias indevidas – e fundamentou a conclusão que alcançou e convicção que formou com base em prova indiciária, indireta ou por presunção, nos termos que explicitou.
A circunstância de as arguidas/recorrentes discordarem da análise crítica efetuada e das conclusões plasmadas pelo tribunal a quo na fundamentação da decisão de facto não legitima a invocação de nulidade da sentença, nos moldes em que o fizeram, sendo, antes, fundamento de impugnação de matéria de facto, que também promoveram e de que trataremos mais à frente.
Ante o exposto, conclui-se que a sentença recorrida não padece da nulidade invocada pelas arguidas/recorrentes, seja por falta de exame crítico da prova, seja por falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Improcede, pois, este segmento recursivo.

3.2 - Impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
As arguidas/recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto, invocando, expressamente, o erro de julgamento, alegando, em síntese, que o tribunal a quo efetuou uma incorreta interpretação e apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, pelas razões que desenvolvem na motivação.
Efetivamente, ocorre erro de julgamento quando a prova produzida, analisada e valorada pelo tribunal não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi, porquanto foi considerado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido dado como não provado ou, inversamente, quando foi tido como não provado um facto e a prova é clara e inequívoca no sentido da sua comprovação.
O mecanismo adequado para tentar reverter o erro de julgamento em sede de recurso é a denominada impugnação ampla da decisão da matéria de facto, prevista no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
Visa-se, através de tal mecanismo, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos «pontos de facto» que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida[20].
Contudo, cumpre sublinhar que, como vem reiteradamente assinalando a doutrina e a jurisprudência, «Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exatamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal:
3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
A referida especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados»[21].
Por seu turno, «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado[22].
Finalmente, «a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artº 430º, do CPP).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes»[23], em consonância com o estabelecido nos nºs 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal, que assim regem:
«Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação» (n.º 4).
Neste caso, «o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa» (n.º 6).
De acordo com o decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012[24], «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações».
É, assim, possível «distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, atualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do n.º 4 do citado artigo 412º»[25].
Significa isto, em termos práticos, que havendo declarações de arguidos, assistentes, partes civis, depoimentos de testemunhas e esclarecimentos de peritos ou consultores técnicos, o recorrente tem de individualizar, no conjunto das declarações e depoimentos prestados, quais as particulares passagens nas quais ficaram gravadas as frases que, por si só ou conjugadas com outros meios de prova, impunham decisão diversa quanto ao facto impugnado.
E, no final, é necessário que dessa indicação resulte comprovada a insustentabilidade lógica ou a arbitrariedade da decisão recorrida e que a versão probatória e factual alternativa proposta no recurso é a [única] correta.
Nesse caso, concluindo-se que o tribunal a quo não podia ter dado os concretos factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detetado, nos termos previstos no artigo 431º, al. b), do Código de Processo Penal.
No entanto, se a convicção do julgador for objetivável face ao princípio da livre apreciação da prova e aos critérios de apreciação da validade e do valor probatórios dos meios de prova produzidos e se a versão apresentada pelo recorrente for meramente alternativa e igualmente possível deverá manter-se a opção do julgador em 1.ª instância, por força da plenitude dos princípios da oralidade e da imediação da prova de que este beneficia.
Com efeito, importa ter presente que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar, o princípio norteador da formação da convicção do tribunal da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º Código de Processo Penal, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” , assim como a sua íntima conexão com os princípios da imediação e da oralidade, sobretudo quando tem de se analisar a valoração efetuada na 1ª instância da prova testemunhal ou por declarações [do arguido, do assistente, das partes civis].
Como decorrência do princípio da livre apreciação da prova, como antes referimos, ressalvado o valor probatório específico dos documentos autênticos e autenticados, do caso julgado, da confissão integral e sem reservas e da prova pericial, no processo de formação da convicção do julgador este deve avaliar as provas de acordo com as regras da experiência – resultantes da acumulação de experiência do homem comum ao longo dos séculos sobre o normal acontecer das coisas – e a sua livre convicção pessoal, nomeadamente quanto à credibilidade de alguns meios de prova, na qual intervêm, a par com a atividade cognitiva, elementos não racionalmente explicáveis e, mesmo, puramente emocionais, mas, ainda assim, objetivável e motivável.
É por demais consabido que, em particular nos casos de prova por declarações e depoimentos, em regra produzidos oralmente, a credibilidade dos mesmos está intimamente conexionada com o respetivo conteúdo, mas, também, com a forma como foram prestados, sendo, por isso, a imediação fundamental.
Atribuir, ou não, crédito ao que diz, ou não diz, uma pessoa convocada a prestar declarações ou depoimento é uma questão de convicção pessoal, condicionada por diversas circunstâncias.
Assim, importa, desde logo, ter em consideração que a declaração e o depoimento, quando realizados de boa fé, se traduzem no relato ao Tribunal da representação da realidade percecionada, interpretada e memorizada pelo declarante e pelo depoente, respetivamente, segundo as suas idiossincrasias. Quando o declarante e o depoente estão de má fé farão um relato adulterado do que percecionaram, interpretaram e memorizaram, em função do que é favorável aos interesses e objetivos que os movem.
Daí que, mais do que o declarante e o depoente dizem ou não dizem, importa o modo como o fazem, nomeadamente a postura corporal, os gestos e expressões fisionómicas, as hesitações nas respostas às questões que lhes são colocadas, o tom da voz, os olhares de cumplicidade trocados com um ou outro interveniente processual ou o desviar do olhar do interlocutor, enfim numa multiplicidade de pormenores que, a maioria das vezes, apenas a oralidade e a imediação permitem percecionar.
Como tal, tem de aceitar-se que existe uma impressão causada no julgador, um conhecimento de base subliminar, que só a imediação em primeira instância possibilita ao nível mais elevado e que, por isso, existirá sempre uma margem de insindicabilidade da decisão do juiz de primeira instância sobre a matéria de facto, em função de fatores que intervêm na apreciação da credibilidade de depoimentos que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto direto com os depoentes na audiência[26].
Nessa “margem de insindicabilidade” entram os elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais que fazem parte do processo de formação da convicção, como antes sinalizámos.
Porém, se é certo que há elementos do juízo de credibilidade das declarações e depoimentos que escapam à 2.ª instância – como são os pertencentes à linguagem não-verbal, que só a 1.ª instância está em condições de percecionar pela imediação –, outros há que podem ser retidos na gravação áudio da linguagem verbal e percecionados naquela instância de recurso – como é o caso do juízo sobre a razão de ciência, a espontaneidade, a fluência, a segurança, a verosimilhança e a plausibilidade da narrativa efetuada pelo declarante/depoente –, igualmente importantes para determinar a sua credibilidade, que não dependem da imediação, mas antes do raciocínio lógico que o julgador deve efetuar e espelhar na fundamentação da sua convicção.
Assim, se na motivação da decisão de facto o tribunal de 1.ª instância explicitou, como lhe compete, as razões pelas quais deu credibilidade a um depoimento ou a uma declaração, a margem de “insindicabilidade” desse juízo pela Relação restringe-se àqueles elementos que estejam exclusivamente dependentes da imediação, e já não àqueles que não o estejam, sob pena de esvaziamento da via de impugnação ampla da matéria de facto.
Importa, ainda, ter presente que, mesmo que não haja prova direta de determinados factos, o tribunal não está impedido de formular a sua convicção acerca dos factos em discussão, de acordo com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos, o que nos remete para o âmbito da prova indireta, indiciária, circunstancial ou por presunção, ou seja, a que se refere a factos diversos do tema da prova (prova direta), mas que permite, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto a esse tema.
Daí que se perante determinada situação as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o tribunal a quo – que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade –, fundamentada e justificadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente, ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso – que está limitado na apreciação que pode fazer nos sobreditos moldes –, que opte por ela. E se a atribuição de credibilidade ou de falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não é racional, se mostra ilógica e é inadmissível face às regras da experiência comum[27], nos termos antes sinalizados.
Ora, no caso em apreço, as arguidas/recorrentes não deram cabal cumprimento ao triplo ónus de especificação nos moldes supra explicitados.
Com efeito, as recorrentes indicaram os concretos pontos da matéria de facto que consideram incorretamente julgados – as alíneas f), g), i), j), l), m), o), p), s), t) u), v) w) e x) dos factos provados.
Contudo, em regra, não indicam os concretos meios de prova, nomeadamente, o teor dos documentos e dos concretos excertos das declarações da arguida AA e dos depoimentos das testemunhas que impunham decisão diversa quanto a cada facto ou grupo de factos que impugnam, fazendo-o apenas pontualmente, no que respeita à arguida e à testemunha CC, antes efetuando um exercício de análise crítica à forma como o tribunal a quo interpretou os elementos probatórios e as ilações que extraiu, explanando as razões da sua discordância. Na realidade, as recorrentes limitam-se, quanto a alguns dos factos, a indicar alguns excertos de certos meios de prova que, segundo a sua interpretação, inculcam sentido probatório contrário ao acolhido pelo tribunal a quo e a manifestar perplexidades sobre alguns aspetos probatórios em face das inferências que deles retiram e que são antagónicas com as alcançadas pelo tribunal a quo, mas sem respaldo na prova, e, quanto aos restantes factos, a invocar a sua contradição entre si e com outros que indicam, segundo a sua perspetiva analítica.
Concretizando:
- Relativamente aos factos provados exarados sob as alíneas f), g) i) e m), alegam as recorrentes, em síntese:
«No que tange à existência do plano com vista a locupletar-se indevidamente com dinheiro pertencente ao ISS, não se produziu, (…), prova que permitisse atestar, com o grau de certeza exigido no processo penal, a existência de um conluio entre as arguidas, através da qual criaram falsas carreiras contributivas com vista a locupletarem-se indevidamente de dinheiro da Segurança Social»; «As declarações da arguida AA, salvo o devido respeito por opinião diversa, não permitem chegar à conclusão da existência de um plano para a criação de uma falsa carreira contributiva com vista à obtenção de atribuições patrimoniais.»; «Se é certo que das declarações da arguida AA, esta admitiu que a arguida BB nunca lá trabalhou, também resulta dessas declarações, gravadas de 00m00s a 04m05s, que a figuração da arguida BB como gerente da empresa resultou de ter tido outra empresa em que teve problemas e que a indicação da arguida BB como gerente, foi feita pelo técnico oficial de contas da sociedade.»; «(..), não se pode igualmente inferir, como o faz a Douta Sentença, que por a arguida BB, figurar como MOE e não trabalhar na empresa, e a arguida AA, figurar como TCO quando deveria figurar como MOE, tal se deva a um plano para obter atribuições patrimoniais indevidas da Segurança Social e muito menos, com o devido respeito, se pode concluir daí que a arguida AA se conluiou com a BB no sentido de esta obter atribuições patrimoniais.»; «A ser como sustenta a sentença, em todos os casos de gerência de direito, mas não de facto, e há muitos, em todos eles existirá um plano para obter atribuições patrimoniais da Segurança Social»; «Posto que, não se produziu prova suficiente que permitisse com toda a certeza atestar a existência do plano referido nos factos provados F), G), I) e M).» 
Concluem que «sobejam razões para se proceder à alteração da resposta dada à matéria de facto dada como provada […], dando-se como não provado o facto F), amputando-se a menção «no seguimento deste plano» dos factos G) e M) e em relação ao facto provado I) amputando-se a menção de «com o objetivo de obterem prestações sociais».
Como sobressai com nitidez da alegação supra transcrita, as recorrentes limitam-se a expor as razões pelas quais divergem da convicção alcançada pelo tribunal a quo quanto à atuação concertada das arguidas em execução de plano previamente delineado e acordado entre ambas com o objetivo de obterem da Segurança Social vantagens patrimoniais, nomeadamente prestações por doença, não indicando, porém, quais as concretas provas que impõem, não apenas permitem, decisão diversa. Pela própria natureza dos factos em causa, como é óbvio, o plano delineado por ambas as arguidas, ou por uma com o acordo da outra, não foi reduzido a escrito nem foi presenciado por testemunhas, pelo que, não sendo admitido por aquelas arguidas, emerge da análise da sua atuação segundo a lógica e as regras da experiência comum e do normal acontecer, tal como, de resto, foi, assertivamente, considerado e explicitado pelo tribunal a quo, por recurso a prova indiciária. Efetivamente, todos os indícios apontam nesse sentido e as recorrentes não indicam quaisquer contraindícios comprovados que neutralizem ou enfraqueçam tais indícios, que são variados, precisos e concordantes. Além do mencionado na sentença, note-se que as recorrentes apenas ensaiam como explicação para o facto de a arguida BB figurar como gerente da empresa a alegação da arguida AA, mãe daquela, de que tal lhe foi aconselhado pelo contabilista da sociedade arguida por causa de ter tido problemas noutra empresa. Tal alegação, já de si inverosímil em face, nomeadamente, da juventude da arguida BB e da circunstância de se encontrar ainda a estudar, não foi corroborada por qualquer outro meio de prova e é, claramente, infirmada por outras incidências factuais. Com efeito, além do mais, atente-se que a arguida BB, depois de figurar como gerente entre 24.07.2007 até 28.09.2017, desde esta última data até 31.10.2018 passou a figurar como trabalhadora da sociedade arguida, sendo certo que nunca exerceu qualquer atividade, nem numa qualidade, nem noutra, tal como foi, aliás, expressamente admitido pela arguida AA. Outrossim, coincidentemente, naquela mesma data [28.09.2017], a arguida AA, que figurava como trabalhadora, quando, na realidade, desempenhava as funções de gerência que incumbiriam à filha, passou a figurar como gerente, mas sem registo de remunerações. Ou seja, as arguidas atuaram concertadamente visando criar uma carreira contributiva para a arguida BB, desde muito jovem, com inegáveis vantagens, nomeadamente, quer para beneficiar de prestações por doença, quer para reunir mais cedo condições para obter prestações por aposentação e, ao mesmo tempo, permitir que também a arguida AA usufruísse de idênticas vantagens mediante uma carreira contributiva na qualidade de trabalhadora quando, afinal, não o era, antes desempenhava efetivamente as funções de gerência, mesmo nos períodos em que se encontrava de baixa médica no domicílio, pois, como a própria explicou[28], as instalações da sociedade arguida eram na garagem da sua casa e as trabalhadoras iam dentro da habitação com frequência, até para ir à casa de banho, pelo que aí lhes dava instruções, não necessitando, por conseguinte, de se deslocar àquelas instalações, tendo sido sempre ela quem, exclusivamente, geriu a empresa.
Soçobra, pois, a argumentação expendida pelas recorrentes quanto aos identificados pontos da matéria de facto.
- No que concerne aos factos provados constantes das alíneas j) e p), referentes à entrega de requerimento para a atribuição de prestações de doença, alegam as recorrentes, em síntese:
“Das declarações da testemunha CC, gravadas de 02h45s a 05m00s, e da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, resulta que «os certificados de incapacidade são emitidos pelo médico de família e é automaticamente comunicado ao serviço da Segurança Social e depois este serviço analisa se se preenchem os demais requisitos, concluindo assim que o beneficiário não tem de fazer propriamente nenhum pedido»; «Se os CIT são comunicados, automaticamente, pelo médico de família, daqui resulta demonstrado, salvo mais douta opinião, que não existiu qualquer requerimento das arguidas para pagamento das prestações de doença.”; “Não foi apresentado qualquer requerimento pelas arguidas no sentido de serem atribuídas as prestações de doença.”
Razão pela qual, concluem, que se impõe a alteração da matéria de facto dada como provada, amputando-se das referidas alíneas a menção relativa à entrega de requerimento junto da segurança social para atribuição de prestações de doença.
Efetivamente, tal como assinalado na motivação da decisão de facto, a testemunha CC, chefe de equipa do núcleo de doença SS – que, conforme ali sublinhado, prestou um depoimento coerente por si e quando conjugado com a demais prova – referiu que «os certificados de incapacidade são emitidos pelo médico de família e é automaticamente comunicado ao serviço da Segurança Social e depois este serviço analisa se se preenchem os demais requisitos, concluindo assim que o beneficiário não tem de fazer propriamente nenhum pedido», mas, em resposta a questão colocada pela Ex.ma Juiz, não conseguiu asseverar se sempre assim foi, nomeadamente nos anos em que foram emitidos os primeiros CIT relativamente a ambas as arguidas. Ora, analisados as cópias dos CIT juntas aos autos constata-se que dos mesmos consta expressamente, no final, a seguinte menção: “Este formulário deve ser remetido pelo utente à Segurança Social no prazo de 5 dias úteis a contar da data da respetiva emissão no caso de incapacidade por doença do beneficiário”. Assim, as arguidas tiveram que proceder em conformidade, por si ou alguém a seu mando ou com o seu conhecimento e no seu interesse, nomeadamente a contabilista, e ainda que os certificados de incapacidade emitidos pelos médicos de família tenham sido automaticamente comunicados ao serviço da Segurança Social para atribuição de prestações de subsídio por doença, foram-no, no fundo, a pedido das arguidas, porque estas atuaram de modo a que, com o seu conhecimento e no seu interesse, assim sucedesse, desde logo, ao deslocarem-se ao médico e relatarem a situação de doença determinante da baixa médica.
Por conseguinte, de forma direta ou indireta, ao espoletarem o envio dos CIT à Segurança Social as arguidas formularam requerimento, no sentido de pretensão, para atribuição de prestações de subsídio por doença.
Improcede, assim, a pretendida alteração das alíneas j) e p) da factualidade provada.
- No que concerne aos factos elencados como provados nas alíneas l), o), p) s), t), u), v), w e x), «na parte referente ao locupletamento, pela arguida AA, das atribuições patrimoniais por prestação de doença a que não teria direito de outro modo e da alegada falsa carreira contributiva desta arguida», alegam as recorrentes, em síntese:
«A resposta dada a esta matéria entra em contradição com a resposta dada aos factos provados D), Z) e AA), resultando destes, (…), a negação daqueles, de modo que se impõe a alteração daqueles factos, dando-os como não provados»; «Resulta do facto provado D) que foi a arguida AA que sempre geriu a sociedade arguida e, por via disso, deveria estar enquadrada como MOE (membro de órgão estatutário) e não como TCO (trabalhador por conta de outrem).»; «Resulta da Douta Sentença (facto provado Z) e AA)) que se a arguida AA estivesse enquadrada como MOE teria direito à mesma às atribuições patrimoniais pelos períodos referidos em Q).»; «Os factos provados D), Z) e AA) contrariam todos os factos provados referidos em L), O), P) S), T), U), V), W e X), no que concerne ao locupletamento, pela arguida AA, de atribuições patrimoniais por prestação de doença e que não teria direito de outro modo e, ainda, da alegada falsa carreira contributiva.»; «Não fazendo sentido, em face dos factos provados D), Z) e AA), falar-se, em relação à arguida AA, de atribuições patrimoniais (prestações de doença) a que não teria direito não fosse o engano produzido e de falsa carreira contributiva.»
Concluem, assim, que os factos provados sob as alíneas d), z) e aa) contradizem os factos provados l), o), p) s), t), u), v), w e x), sendo tal bastante para se alterar a resposta à matéria de facto, dando-se como não provado naqueles factos o locupletamento, pela arguida AA, de atribuições patrimoniais por prestação de doença a que não teria direito de outro modo e, ainda, da alegada falsa carreira contributiva desta.
Como deflui da argumentação das recorrentes, estas sustentam a pretendida alteração da matéria de facto na alegada contradição entre os factos dados como provados que indicam, e não na existência de provas – documental, declarativa, testemunhal – que imponham decisão diversa, situação que se inscreve nos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal [que também invocaram e que trataremos de seguida], e não na impugnação ampla nos moldes previstos no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do mesmo código, de que ora cuidamos.
Ademais, ainda que assim não se entendesse, as recorrentes não indicam de forma clara em que termos deve cada um dos factos impugnados acima indicados ser alterado, limitando-se a peticionar que seja dado como não provado o locupletamento, pela arguida AA, de atribuições patrimoniais por prestação de doença a que não teria direito de outro modo e, ainda, da alegada falsa carreira contributiva, tarefa que se revela inviável se atentarmos no concreto conteúdo de algumas daqueles factos que nem sequer contêm tais menções.
Não, pode, pois, ser apreciada a impugnação das alíneas l), o), p) s), t), u), v), w e x) dos factos provados no âmbito do erro de julgamento sindicável nos moldes previstos no artigo 412º, n.ºs 2 e 4, do Código de Processo Penal.
Improcede, pois, totalmente a impugnação ampla da matéria de facto promovida pelas recorrentes.

3.3 - Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão – artigo 410º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal
Alegam as recorrentes, em apertada síntese, que «Segundo o facto provado D), foi sempre a arguida AA que geriu, de facto, a sociedade arguida, por isso, a mesma deveria estar enquadrada como MOE (membro de órgão estatutário) e não como TCO (trabalhador por conta de outrem).»; «Resulta da Douta Sentença (facto provado Z) e AA)) que se a arguida AA estivesse enquadrada como MOE teria direito à mesma às atribuições patrimoniais pelos períodos referidos em Q).»; «Comparados os períodos e as respectivas atribuições patrimoniais dos factos provados Q) e AA) constata-se que, se a arguida estivesse enquadrada como MOE, teria direito a atribuições patrimoniais superiores (€ 31.486,42 contra € 36.316,67, respectivamente).»; Os factos provados L) a X) referentes à falsa carreira contributiva da arguida AA, estão em contradição com os factos provados A) e ZZ).»;  «No caso dos autos a Arguida AA foi condenada por ter uma falsa carreira contributiva, com o intuito de ter direito a atribuições patrimoniais que a Douta Sentença diz que não teria direito (facto provado P), quando do facto provado Z) e AA) resulta que se estivesse enquadrada como MOE teria direito a tais atribuições e por um valor superior (compare-se o valor referido em Q) com o referido em ZZ)).»; «A arguida AA é condenada por estar mal enquadrada (como TCO) e ter recebido menos que aquilo que receberia se estivesse bem enquadrada (como MOE), o que é contraditório da tese guisada na Douta Sentença e avesso à normalidade das coisas.»
Razão pela qual, concluem, a matéria de facto dada como provada em L), X), U), V), W) e X), deve ser alterada de modo a não colidir com os factos provados Z) e AA), porque se contradiz.
Vejamos.
A designada revista alargada, de âmbito mais restrito que a impugnação ampla, contemplando os vícios da decisão recorrida previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, constitui outra via de impugnação da matéria de facto.
Dispõe o mencionado preceito legal que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.»
Os vícios discriminados nas alíneas do enunciado normativo legal têm – tal como ali assinalado de forma expressa – que resultar da própria decisão recorrida na sua globalidade, mais concretamente do texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam externos, para os fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes no processo, advindos do próprio julgamento[29]. Constituem defeitos estruturais e intrínsecos da decisão, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando, por isso, excluída a possibilidade de consideração de outros elementos extrínsecos ou exógenos, ainda que constem do processo.
Neste âmbito da análise dos vícios decisórios, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto, o tribunal de recurso não a aprecia – no sentido da reapreciação da prova –, limitando a sua atuação, num exercício de exegese hermenêutica, à deteção dos vícios que a decisão recorrida evidencia e, não sendo possível saná-los, determina a remessa do processo para novo julgamento, em consonância com o preceituado no artigo 426º do Código de Processo Penal.
Ainda que não sejam invocados, os assinalados vícios da decisão são de conhecimento oficioso – acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95[30].
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [alínea b)] – invocada no caso vertente – pode traduzir-se numa multiplicidade de situações[31]:
- Oposição na matéria de facto provada – v.g., dão-se como provados dois ou mais factos que estão, entre si, em oposição, sendo, por isso, logicamente incompatíveis;
- Oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada – v.g., dá-se simultaneamente como provado e como não provado o mesmo facto;
- Incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto – v.g., quando se dá como provado determinado facto e da motivação da decisão resulta, atenta a valoração das provas e o raciocínio lógico dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correta;
- Oposição entre a fundamentação e a decisão – v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final e, no dispositivo da sentença, consta decisão de sentido inverso.
Em qualquer das situações a contradição tem que se reportar aos elementos relevantes do caso e revelar-se insanável ou irredutível, ou seja, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Atentemos no caso vertente.
Os factos exarados como provados nas alíneas z) e aa) referem-se a uma situação hipotética, e não àquilo que resultou provado. Com efeito, o que ali se aventa é o seguinte:
“z) Caso a arguida AA estivesse qualificada no Sistema de informação da Segurança Social, na qualidade de membro dos órgãos estatutários (MOE), com vencimento mensal, beneficiaria de prestações por doença.
aa) E caso o seu vencimento mensal médio rondasse os €500,00, na qualidade de membro dos órgãos estatutários (MOE), a arguida AA beneficiaria de prestações por doença nos períodos descritos na alínea q) dos factos provados nos seguintes termos: (…)», perfazendo o montante global de 36.316,67 €
Ora, extrai-se da alínea m) que a arguida AA passou a figurar como MOE a partir de 28.09.2017 sem registo de remunerações, pelo que, muito provavelmente, caso assim se enquadrasse antes daquela data também não haveria remunerações [e correspondentes contribuições] e, se as houvesse, nada garante que fossem no valor mensal de aproximadamente 500,00 €.
Ou seja, trata-se de um exercício meramente hipotético e, como tal, não exclui aquilo que efetivamente se provou e que consta dos restantes factos provados.
Ademais, as condutas das arguidas não podem ser dissociadas uma da outra e têm que ser analisadas à luz do plano comum visando obter vantagens patrimoniais para ambas – a arguida BB, desde jovem idade e quando ainda era estudante, iniciou uma carreira contributiva, figurando como gerente da sociedade arguida até 28.09.2017 e como trabalhadora desde então, sem que alguma vez o tenha sido, não tendo qualquer ligação efetiva à sociedade arguida, razão pela qual não tinha direito a quaisquer prestações; por seu lado, a arguida AA, que exercia as funções de gerência que incumbiam à filha e que esta não exercia, figurava como trabalhadora da sociedade, que não era, e, desse modo, nos períodos de baixa médica recebia prestações por doença na qualidade de trabalhadora e continuava a fazer aquilo que efetivamente fazia, ou seja, gerir a sociedade arguida, assim logrando ambas obter vantagens patrimoniais da Segurança Social que de outro modo não conseguiriam.
Não se vislumbram, pois, as invocadas contradições, nem outros vícios decisórios.
Improcede, assim, a pretensão recursiva das recorrentes neste conspecto.

3.4 - Enquadramento jurídico dos factos
As recorrentes discordam da subsunção legal efetuada pelo tribunal a quo por várias ordens de razões.
3.4.1- Assim, sustentam, em síntese, que «a arguida AA, se estivesse correctamente enquadrada (como MOE ao invés de TCO), tinha direito à atribuição patrimonial feita (facto provado Z) e por um valor superior ao recebido (Q e AA), pelo que ao estar erradamente enquadrada acabou por receber menos que aquilo que teria direito se estivesse bem enquadrada (factos provados Q), Z) e AA), razão pela qual não se verificam os pressupostos objectivos do crime, mormente a determinação da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais de que resulte o enriquecimento do agente, como também não existiu qualquer engano por a mesma ter sempre trabalhado na empresa (facto provado D), pelo que, em relação ela não existe conduta criminosa, tendo sido violado o disposto no artigo 87.º do RGIT, sendo que a desconformidade de  enquadramento apenas dá lugar, in casu, a uma contra-ordenação (muito grave), mormente por violação ao disposto no artigo 22.º, al. a) do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
Mais invocam que a comunicação do CIT (certificado de incapacidade para o trabalho), feita pelo médico, que automaticamente despoletou a atribuição patrimonial, não tendo existido qualquer acto das arguidas na comunicação dos CIT que, automaticamente, levou o ISS a fazer cada uma das atribuições patrimoniais, em cada um dos períodos relatadas nos autos; se a atribuição patrimonial é automática, não foram as arguidas que determinaram administração da segurança social à sua entrega, faltando este pressuposto não se pode dar como preenchido o tipo legal objectivo de ilícito, pelo que devem ambas arguidas serem absolvidas.»
Atenta a caraterização do tipo de ilícito de burla tributária contra a Segurança Social, previsto e punível pelo artigo 87º do Regime Geral das Infrações Tributárias, efetuada na sentença, dispensamo-nos de tecer considerações adicionais a esse respeito, por se afigurarem supérfluas, impondo-se, tão somente, analisar os argumentos ora aduzidos pelas recorrentes.
Começando pelo último, dir-se-á, apenas, que se analisou já em termos factuais a argumentação expendida a esse respeito pelas arguidas, tendo-se concluído que, de forma direta ou indireta, estas adotaram comportamentos que espoletaram a emissão dos certificados de incapacidade temporária que foram transmitidos à Segurança Social, traduzindo-se essa atuação na formulação de pretensão de que lhes fossem atribuídas as prestações por doença, pelo que se manteve intocada a matéria de facto, carecendo, assim, de sentido a alegação de que nada fizeram nesse sentido e que tudo foi feito automaticamente, “à sua revelia”, quer pelos médicos, quer pelo próprio serviço da Segurança Social.
Ademais, conforme deflui da narrativa plasmada nos factos provados, toda a atuação das arguidas ali descrita foi no sentido de simularem que a BB era gerente da sociedade arguida e a AA trabalhadora desta, quando na realidade a primeira não desempenhava aquelas funções e não tinha qualquer relação efetiva com a sociedade, tendo sido sempre a segunda que desempenhou tais funções, não sendo trabalhadora da predita sociedade, diligenciando pela sua qualificação no sistema de Informação da Segurança Social como MOE e TOC, respetivamente, qualidades que não tinham, e pelo envio de documentação, nomeadamente declarações de remunerações e certificados de incapacidade temporária, com o objetivo de obterem atribuições patrimoniais a que sabiam não terem direito, nomeadamente prestações por doença, o que lograram alcançar, tendo recebido os montantes monetários discriminados na materialidade fáctica.
Para o preenchimento do tipo objetivo do crime de burla tributária basta que o comportamento enganoso do agente determine a Segurança Social a atribuir prestação patrimonial de que resulte o enriquecimento daquele ou de terceiro, pelo que no caso vertente aquele mostra-se claramente preenchido.
No que tange à argumentação invocada exclusivamente quanto à arguida AA, foi também suscitada e analisada no âmbito da impugnação da matéria de facto, que permaneceu inalterada, sendo ora repisada em sede de discussão da qualificação jurídica. Porém, mais uma vez, parte-se de uma premissa inexistente – que não houve atuação enganosa porquanto a referida arguida foi trabalhadora da sociedade arguida, o que não é verdade, conforme se provou [o facto descrito em D) afirma que que sempre foi a arguida AA quem, exclusivamente, geriu, de facto, a sociedade arguida, e não que foi trabalhadora desta, resultando de outros factos que nunca teve esta qualidade (cfr., a título exemplificativo, as als. l), o), p)].
Por seu lado, a alegação de que se estivesse enquadrada como MOE até teria direito a receber prestações de valor pecuniário superior às que recebeu na [falsa] qualidade de TOC assenta numa falácia porquanto não passa de um exercício hipotético, elaborado num pressuposto, também ele hipotético, de um vencimento mensal de 500,00 €, levado aos factos provados nas alíneas z) e aa). Inquestionável é que, na economia do plano comumente acordado e executado por ambas as arguidas, estas simularam, com óbvio intuito enganador, qualidades que não detinham para que uma, sem qualquer ligação efetiva com a sociedade, iniciasse uma carreira contributiva e outra, desempenhando na realidade as funções daquela, o que sempre fez, mesmo nos períodos de baixa médica por doença, fizesse carreira contributiva noutra qualidade, que não detinha, em ambos os casos visando obter futuras atribuições patrimoniais por parte da Segurança Social, que obtiveram e que de outro modo não teriam conseguido.
Está, pois, também quanto à arguida AA preenchido o elemento objetivo do crime de burla tributária.
Conquanto a atuação da arguida seja suscetível de integrar o tipo objetivo da contraordenação de falsas declarações, previsto e punível pelo artigo 22.º, als. a) e c), do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, como alega, prevê expressamente o n.º 4 do artigo 87º do RGIT que “[a]s falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou a utilização de outros meios fraudulentos com o fim previsto no n.º 1 não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber”.
De resto, o sancionamento simultâneo de uma conduta no âmbito penal e no âmbito contraordenacional, ou seja, a verificação de um concurso de infrações ideal efetivo porquanto o mesmo facto atinge bens jurídicos penais e contraordenacionais, determina a aplicação da regra prevista no artigo 2.º, n.º 3, do RGIT, que, reiterando o disposto no artigo 20.º do RGCO, estabelece que “[s]e o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente será punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contraordenação”. A preferência pela aplicação da sanção criminal foi a solução encontrada pelo legislador português, na certeza de que a punição a título de crime esgota o desvalor de todo o comportamento ilícito que se pretende sancionar, solução que assegura a coerência do sistema e a prevalência da tutela dos bens jurídicos que reclamam proteção mais intensa e que, por tal razão, assumem dignidade penal.
Ademais, a arguida AA atuou em coautoria com a coarguida BB, sua filha, no âmbito de um plano mais amplo que visava também o enriquecimento daquela, além do seu próprio.
Dúvidas não subsistem que se mostram preenchidos, quanto a ambas as arguidas, os elementos típicos [objetivo e subjetivo] do crime de burla tributária contra a Segurança Social previsto no artigo 87º do RGIT.
           
3.4.2- Prevenindo a eventualidade de este tribunal ad quem vir a concluir no sentido supra exposto, subsidiariamente, as recorrentes vêm defender que, então, deverá considerar-se estarmos perante crime de burla agravado sob a forma continuada. Alegam, neste âmbito, em suma, o seguinte:

«As atribuições patrimoniais que respeitam a cada um dos períodos catalogados em K) e Q) dos factos provados, estiveram dependentes da atribuição de um determinado Certificado de Incapacidade para o Trabalho que, ao ser automaticamente remetido ao ISS, determinou a automática atribuição de prestações por doença, dando assim origem à atribuição patrimonial a título de prestações de doença feita em cada dos períodos elencados em K) e Q) dos factos provados.»; «Existe uma pluralidade de resoluções criminosas, uma por cada período de atribuição de prestações por doença, que deve ser unificada no quadro do crime continuado - artigo 30.º, n.º 2 e 79.º do CP.»;«Nenhuma dessas atribuições excede as 200 UC, mas são em cada um desses hiatos temporais superiores a 50 UC (cremos ter sido por isso que na Douta Sentença se fez a subsunção jurídica dos factos ao n.º 2 do artigo 83.º do RGIT, quando a Douta Acusação Pública fazia o enquadramento pelo n.º 3 do artigo 87.º do RGIT).»: «Posto que  […] os factos deveriam ter sido enquadrados como crime de burla agravado continuado, nos termos do artigo 87.º, n.º 1 e 2 do RGIT e artigo 30.º, n.º 2 e 79.º do CP, incorrendo, por conseguinte, na violação destas disposições normativas.
De acordo com o disposto no artigo 30º, n.º 1, do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. O segmento normativo “crimes efetivamente cometidos” permite delimitar as situações de concurso efetivo, em que há uma pluralidade de crimes através da mesma conduta ou complexo de condutas compreendidas numa unidade natural de ação, daquelas em que, apesar de preenchidos vários tipos de crime, deve considerar-se que existe um desvalor jurídico social predominante e que impede a dupla valoração[32].
Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa. Estabelece, por isso, o artigo 79º, n.º 1, do Código Penal que ao crime continuado corresponde uma punição menos grave, no pressuposto de que a culpa se mostra diminuída, por o agente ter repetidamente deparado com uma situação exterior igual às que anteriormente o haviam solicitado para o comportamento criminoso.
O crime continuado integra, pois, uma unidade jurídica, construída sobre uma pluralidade efetiva de crimes. Ou seja, perante uma repetição de factos e de resoluções criminosas de significado penal equivalente, com um nexo de continuidade, a ordem jurídica considera essa continuação de delitos como um único facto no sentido jurídico penal, ou seja, como uma unidade jurídica de ação, a sancionar da mesma forma que o concurso ideal.
Segundo Eduardo Correia[33], a questão da unidade da conduta jamais poderia ser resolvida apenas à luz de critérios naturalísticos, antes tendo o número de ações de ser entendido teleologicamente, com a consequência de o número de infrações dever ser determinado pelo número de juízos de valor que, no mundo jurídico criminal, correspondem a uma certa atividade. Para estabelecer a medida desta unidade ou pluralidade de valores, haverá que recorrer ao conceito de tipo legal de crime, onde são descritas pelo legislador aquelas expressões da vida humana que, em seu critério, encarnam a negação de valores jurídico criminais, que violam, portanto, os bens ou interesses jurídico criminais. Assim, se uma única conduta preenche diversos tipos legais de crime, são necessariamente vários os valores jurídico criminais negados, ao passo que se um só tipo é realizado, um só valor é posto em causa pela atividade delituosa do agente.
Todavia, para a existência de uma infração não basta que a conduta seja tipicamente antijurídica, sendo necessário fazer intervir também o elemento da “culpa”, essencial ao conceito de crime. A culpa estrutura-se como um juízo de censura, de reprovação, dirigido ao agente pela realização duma atividade integradora de um facto típico. Ora, pode suceder, e sucede com frequência, que o momento psicológico correspondente a uma série de atividades subsumíveis a um mesmo tipo legal, se estruture de tal forma que esse concreto juízo de reprovação tenha de ser formulado várias vezes. O elemento culpa serve assim de limite ao critério segundo o qual a unidade ou pluralidade de infrações se deve aferir pela unidade ou pluralidade de tipos preenchidos. Deste modo, se vários são os juízos de censura e outras tantas vezes o tipo legal de crime é aplicável, deve, nesse caso, considerar-se existir uma pluralidade de crimes.
Mas, pode suceder que atividades unificadas do ponto de vista do valor jurídico violado sejam suscetíveis de vários juízos de censura. Para tornar tais situações explícitas, Eduardo Correia faz intervir o conceito de resolução, por tal entendendo o termo daquele específico momento do processo volitivo em que o “eu” pondera o valor e o desvalor, os prós e os contras dum projeto concebido. Tal conceito de resolução permite, portanto, afirmar que se diversas resoluções foram tomadas para o desenvolvimento da atividade criminosa, diversas vezes deixa a norma de alcançar concretamente a eficácia determinadora a que aspirava e vários serão os fundamentos para os juízos de censura em que a culpa se analisa.
Para aquilatar da existência da pluralidade de resoluções haverá que apelar ao modo como o acontecimento exterior se desenvolveu e à conexão temporal entre os vários momentos da conduta do agente. A pluralidade de atos corresponde a uma pluralidade de determinações, a não ser que cada um daqueles atos constitua um explodir automático do projeto querido. Todavia, se entre os diversos atos mediar um espaço temporal tal que possa afirmar-se, por apelo à experiência e às leis da psicologia, que a resolução que inicialmente os abrangia, se vai esgotar no intervalo da execução, os novos atos são necessariamente fruto dum novo processo deliberativo. A medida de conexão temporal, que tem especial relevo, exige, por vezes, um trabalho de reflexão, devendo ser admitida, por regra, a possibilidade de prova ou de que o agente não se determinou ao mesmo tempo a executar um certo número de atividades criminosas, conforme resultaria do critério da conexão temporal, ou de que, apesar de alguma separação temporal, a atividade resultou de uma única resolução. Nesta última situação, todavia, se vier a acontecer que a execução de certa atividade se encontre tão afastada temporalmente de outra que, segundo um critério de normalidade, a segunda tenha resultado dum novo processo resolutivo, não deve ser consentida prova do prolongamento no tempo da resolução, de modo a abranger as diversas fases da conduta. Assim o obrigam considerações de justiça e política criminal, pois admitir outra coisa levaria precisamente a punir como autor de um só crime – e, portanto, com menor severidade – o agente que em relação à normalidade dos indivíduos revela uma vontade criminosa mais intensa.
Em síntese, a realização plúrima do mesmo tipo de crime pode configurar uma de três situações: a) - um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou a resolução inicial; b) - um só crime na forma continuada, se toda a atuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por fatores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) - um concurso de infrações, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.
Assim, nos casos em que o propósito criminoso que está por detrás da repetição da atividade ilícita deriva de um quadro interior, endógeno, inerente ao próprio arguido, ou seja, naqueles em que estamos perante circunstâncias conscientemente procuradas e criadas pelo próprio para levar a cabo ou concretizar a sua intenção criminosa, e não de uma qualquer disposição exterior das coisas para o facto, que de forma considerável facilitou aquela repetição, não se justifica o tratamento unitário no quadro da continuação criminosa[34].
 Sucede que, no caso vertente, deflui da narrativa plasmada na factualidade provada que em data não concretamente apurada, mas sempre, pelo menos, contemporânea a 17.07.2017  [data da constituição da sociedade arguida], as arguidas AA e BB decidiram atuar pela forma ali descrita e que atuaram sempre em execução dessa resolução inicial, exarando-se expressamente na al. y) que “atuaram no quadro de um único desígnio”, não tendo resultado demonstrados quaisquer fatores externos que as arrastaram para a reiteração de condutas. Assim, forçoso é concluir que não foram as circunstâncias exteriores que conduziram as recorrentes a um repetido sucumbir, mas antes o propósito de, através de atos sucessivos, defraudar a Segurança Social.
Daí que estejamos perante um único crime, mas não sob a forma continuada como pretendido pelas recorrentes.
E, tratando-se de um único crime, cometido em coautoria por ambas as arguidas, o valor a considerar para efeito de agravação nos termos previstos no n.º 2 ou no n.º 3 do artigo 87º seria o valor global das atribuições patrimoniais[35], ou seja, € 60.564,23 –, pois inexiste qualquer normativo de teor idêntico ao n.º 3 do artigo 103º [relativo à fraude fiscal] ou ao n.º 7 do artigo 105º [referente ao abuso de confiança fiscal].
E, assim sendo, forçoso é concluir que a conduta das arguidas integraria o n.º 3 do artigo 87º, porquanto o valor global das atribuições patrimoniais preenche o conceito de valor consideravelmente elevado, definido no artigo 202º, al. b), do Código Penal, como aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto, ou seja, in casu, 20.400,00 € [200x102,00 €[36]].
Sucede, porém, que, na sentença, o tribunal a quo, desconsiderando, sem qualquer explicação, aquele n.º 3 – que constava da imputação jurídica efetuada na acusação e no despacho de pronúncia –, subsumiu a conduta das arguidas ao n.º 2 do artigo 87º, que se reporta ao valor elevado das atribuições patrimoniais, ou seja, superior a 5.100,00 €, face à definição da al. a) do referido artigo 202º [50x102,00 €].
E foi com base naquele n.º 2 do artigo 87º – que prevê uma moldura penal abstrata [prisão de 1 a 5 anos] substancialmente menos gravosa que a contemplada no n.º 3 [prisão de 2 a 8 anos] – que procedeu à escolha e determinação das penas aplicáveis às arguidas.
Assim, face ao princípio basilar de proibição da reformatio in pejus, consagrado no artigo 209º do Código de Processo Penal, não pode este tribunal ad quem alterar a qualificação jurídica efetuada pelo tribunal a quo, sendo à luz desta que têm que ser analisadas as demais questões, nomeadamente as que se seguem, que se prendem, precisamente, com as penas aplicadas.

3.5 - Determinação das penas.
3.5.1- Neste conspecto, as recorrentes começam por se insurgir contra a medida das penas de prisão que lhes foram irrogadas – 1 (um) ano e 6 (seis) meses quanto à arguida BB e 1 (um) ano e 10 (dez) meses relativamente à arguida AA –, sustentando, em resumo, que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, sendo clamorosa a inobservância do princípio consagrado no n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal e que à luz dos preceitos legais que dispõem sobre a medida da pena, é manifestamente desproporcional, exagerada, desadequada, excessiva e desajustada a medida da pena de prisão fixada às arguidas, revelando-se ajustada pena nunca superior a 1 ano de prisão.
Importa, antes de mais, sublinhar que vem sendo entendido pela jurisprudência maioritária que o tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, «apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato da pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.»[37]
Com efeito, em apertada síntese, neste domínio há que ter em perspetiva o princípio da necessidade e da proporcionalidade das penas consagrado no artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, as finalidades das penas previstas no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal, a preferência pela pena não privativa da liberdade em consonância com o comando do artigo 70º do mesmo diploma sempre que esteja prevista em alternativa à pena detentiva, os vetores determinantes do limite mínimo e do limite máximo da pena contemplados no n.º 2 do artigo 40º e no n.º 1 do artigo 71º e, ainda, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente, as exemplificativamente elencadas no n.º 2 do último preceito mencionado, sendo que as descritas nas alíneas a), b), c) e e), parte final, se referem à execução do facto, as referidas nas alíneas d) e f) à personalidade do agente e a referida na alínea e) à conduta anterior e posterior ao facto. Optando-se por pena de multa, há, ainda, que observar o disposto no artigo 47º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
Como deflui do cotejo da fundamentação da sentença, no âmbito do exercício de determinação da pena, o tribunal a quo teve presentes os princípios enformadores, os normativos legais e as linhas orientadoras da dosimetria penal que se impunham, tendo analisado os fatores pertinentes de forma concretizada e assertiva, merecendo a ponderação efetuada a nossa concordância e diferenciando justificadamente a concreta medida alcançada para cada uma das arguidas.
Não se vislumbra, pois, qualquer motivo que imponha a redução das penas de prisão aplicadas às recorrentes.
3.5.2- As recorrentes não se conformam também com o condicionamento da suspensão da execução das penas de prisão ao dever de pagamento da quantia monetária fixada [€ 60.564,23] e com a duração do período de suspensão [quatro anos].
Sustentam, a este respeito, em suma, que «não têm capacidade para o fazer, atentos os parcos recursos (factos provados EE) e II) e KK), por tal importar a entrega de € 1.261,75 mensais; considerando as condições socio económicas a suspensão da pena de prisão condicionada ao pagamento equivale à aplicação de uma pena efectiva, dado que nunca conseguirão, salvo regresso de melhor fortuna, pagar a quantia determinada; a decisão é violadora do princípio da razoabilidade (previsto no artigo 51.º, n.º 2 do CP), que impõe que não devem ser fixadas, nessa sede, obrigações ao condenado seja, como in casu, previsivelmente, impossível cumprir; a suspensão da pena, como alternativa à prisão, não pode ter como condição a concreta capacidade económica do agente – o que seria violador dos próprios princípios da culpa, que constitui corolário da essencial dignidade da pessoa humana, do direito à liberdade e da igualdade (artigos 1.º, 27.º, n.º 1 e 13.º da Constituição); tal determinação é violadora dos princípios da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade da pena consagrado nos artigos 13.º e 18.º, n.º 2 da Constituição, respectivamente, a obrigatoriedade do pagamento a que se condicionou a execução da suspensão, representa uma violação insustentável do princípio da proporcionalidade e, como tal, é inconstitucional; a sentença, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 50.º, 51.º, n.ºs 1 e 2, 52.º, 53.º, 1 e 2 do Código Penal e artigos 1.º, 13.º, 18.º, n.º 2, 27 da Constituição da República Portuguesa; o período da suspensão não deveria ultrapassar um ano, pelo que ao ter decidido suspender por 4 anos, o Tribunal ad quo violou o disposto no artigo 40.º, n.º 2, 55.º, 70.º e 71.º do Código Penal.»
Vejamos.
A suspensão da execução das penas de prisão nos crimes tributários esteve sempre sujeita a um regime específico, que extravasa os quadros do regime geral do direito penal clássico traçado pelo Código Penal. Desde a impossibilidade da suspensão condicional de pena (adotada pelo DL N.º 619/76, de 27.07) até ao atual R.G.I.T., o caminho foi-se fazendo no sentido de vir a ser admitida a suspensão da pena, embora com a exigência de pagamento das quantias tributárias em falta[38].
 Concretamente, estipula o artigo 14º do R.G.I.T., sob a epígrafe suspensão da execução da pena de prisão:
“1 -  A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.”
Não obstante a objetividade da letra da lei, a questão da obrigatoriedade de condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento dos valores mencionados no artigo 14º, n.º 1, do RGIT tem suscitado divergências em sede doutrinária e jurisprudencial, originando decisões que traduzem entendimentos dissonantes.
A problemática começou por colocar-se, desde logo, quanto à constitucionalidade da referida exigência legal de imposição do pagamento da prestação tributária em dívida como condição para aplicação da pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão imposta pelo artigo 14º, n.º 1, do RGIT.
O Tribunal Constitucional, de modo uniforme, pronunciou-se várias vezes pela conformidade daquela imposição com os comandos constitucionais, à margem da condição económica do condenado/responsável tributário, concluindo que não violam o estatuído nos artigos 1º, 13º e 18º da Constituição da República Portuguesa, apoiando-se, em essência, nos seguintes fundamentos: o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; sempre pode haver regresso de melhor fortuna; a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição; a revogação é sempre uma possibilidade e não dispensa a culpa do condenado; o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena.
Concretizando, atente-se nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 327/2008 – Não julga inconstitucional a norma que se extrai do art. 14º do RGIT, em conjugação com o n.º 5 do art. 50º do Código Penal, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão, concretamente determinada, a contar do trânsito em julgado da decisão, da prestação tributária e legais acréscimos –, 256/2003, 335/2003, 376/2003, 500/2005, 309/2006, 29/2007 – este conjuga o art. 14º, n.º 1, com o art. 9º do RGIT, que dispõe que o cumprimento da sanção aplicada não exonera do pagamento da prestação tributária e legais acréscimos –, 277/2007, 563/2008, 242/2009, 587/2009 – Não julga inconstitucional a norma constante do n.º 1 do art. 14º do RGIT quando interpretada no sentido de impor, em qualquer circunstância, a condição de pagamento do devido, para que possa ser decretada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada –, e 237/2011, entre outros[39].
A doutrina mais representativa tem defendido a obrigatoriedade da imposição da condição de pagamento das prestações referidas no artigo 14º do RGIT, apesar das críticas a tal opção legislativa. Assim, Germano Marques da Silva[40] afirma a obrigatoriedade da imposição do dever de pagamento da prestação tributária prevista no citado artigo 14º, n.º 1, do RGIT, que é uma lei especial face ao Código Penal, admitindo, como válvula de escape, a circunstância  de, em caso de incumprimento, só haver lugar à revogação caso se conclua que o mesmo é culposo.
Também Patrícia Naré Agostinho[41] entende que não deveria a condição de pagamento da prestação tributária ser prevista como obrigatória, mas sim como uma faculdade à semelhança do previsto no Código Penal e conclui que o artigo 14.º do RGIT não exclui a aplicação dos artigos 50.º a 57.º do Código Penal, afirmando que «quanto às condições económicas do condenado se as mesmas não desempenham qualquer papel na determinação da condição de pagamento da prestação tributária, terão, no entanto, a sua relevância na fixação do prazo para proceder a tal pagamento, prazo que inclusive, foi alargado pelo RGIT para 5 anos».
Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência, mediante o acórdão n.º 8/2012, de 12 de setembro[42], nos seguintes termos: “[n]o processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105º, n.º 1, do R.G.I.T., a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14º, n.º 1, do R.G.I.T., ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia”.
Apesar das condenações subjacentes ao conflito que tal decisão veio dirimir respeitarem ao crime de abuso de confiança fiscal, constitui atualmente entendimento pacífico que tal jurisprudência é aplicável a todos os crimes fiscais – por isso, também ao crime de fraude fiscal contra a Segurança Social –, em que esteja em causa a suspensão da execução da pena de prisão.
Conforme decorre do disposto no artigo 445º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ainda que os acórdãos de uniformização de jurisprudência não sejam vinculativos, a não ser no âmbito dos processos em que foram proferidos, apenas uma divergência substancial justificará um desvio à jurisprudência fixada e a sua explanação sempre imporá, não uma genérica fundamentação, mas o cumprimento de um dever especial de fundamentação destinado a explicitar as razões de tal desvio. E tal apenas poderá ocorrer quando houver «razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada», o que sucederá, por exemplo, quando «o tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), suscetível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada», ou «se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na atualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso», ou ainda «a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juízes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada». O que não sucede quando o tribunal judicial se limita a não acatar «a jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer argumento novo, sem perceção da alteração das conceções ou da composição do Supremo Tribunal de Justiça, baseado somente na sua convicção de que aquela não é a melhor solução ou a solução legal»[43].
Não se vislumbram motivos para nos desviarmos da jurisprudência fixada pelo mencionado acórdão uniformizador, sendo certo, ademais, que o entendimento subjacente tem sido acolhido pela doutrina mais representativa e pela maioria das decisões das instâncias, embora, por vezes, com interpretações distintas[44].
Com efeito, a singularidade da situação reclama que se atente na fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência (AUJ) para melhor compreensão da problemática em causa e dos específicos contornos da mesma, nomeadamente se a jurisprudência fixada se aplica a todos os crimes tributários ou apenas aos que são punidos com penas alternativas de prisão ou de multa.
Para dilucidar a questão, com relevo para o caso vertente – porquanto, como se analisou supra, a conduta das recorrentes foi subsumida ao disposto no artigo 87º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, que prevê a punição apenas com pena de prisão [de 1 a 5 anos] para as pessoas singulares –, impõe-se revisitar os fundamentos do sobredito acórdão, que de seguida transcreveremos nas partes que ora mais interessam:
““(…) Em ambos os casos em causa está a questão de saber se ao condenar por crime de abuso de confiança fiscal, escolhida a pena de prisão e determinada a suspensão da respetiva execução, sabido que esta está subordinada sempre ao pagamento do imposto em dívida e acréscimos legais, o juiz deve ou não ponderar a capacidade do condenado em pagar a quantia condicionante da suspensão da execução da pena de prisão e se a falta dessa ponderação gera nulidade por omissão de pronúncia.(…)
Em ambos os casos, em termos de subsunção jurídico-criminal da conduta de um e outro dos arguidos, foi considerado que tal omissão integrava um crime de abuso de confiança fiscal, tendo optado, uma e outra das decisões, perante a prevista alternativa pena de multa/pena de prisão, por aplicação de pena de prisão. Em ambos os casos, efetuada essa opção, e ultrapassado esse primeiro plano, foi considerado que na particular situação concreta submetida a juízo se impunha substituir essa decretada pena de prisão por pena suspensa na respetiva execução. (…)
A questão central em debate num e noutro dos processos em confronto gira em torno da questão de saber se, em caso de condenação por crime de abuso de confiança fiscal, que prevê, em alternativa, pena de prisão ou de multa, escolhida a pena de prisão, e optando-se depois pela substitutiva suspensão da execução de tal pena, o que acarreta face ao artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, incontornavelmente, necessariamente, a imposição de condição de pagamento da prestação em dívida e legais acréscimos, há que ponderar ou não a razoabilidade da condição imposta, na consideração de que, face ao concreto/real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, máxime, situação económica, será de exigir o cumprimento.(…)
(…) nos dois processos donde emergiram os acórdãos em oposição houve condenação dos arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 15 de Junho (…)”.
 (…)
No regime do RJIFNA, a partir de 1993, como agora no RGIT, a lei impõe obrigatoriamente a sujeição da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida; o n.º 7 do artigo 11.º daquele condicionava e o artigo 14.º, n.º 1, deste continua a condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das prestações em falta e legais acréscimos.
Em vez de se deixar ao critério do julgador a aplicabilidade caso a caso do cumprimento do dever de pagamento das quantias em dívida como condição da suspensão da execução da pena, a lei estabelece a obrigatoriedade da imposição desse dever, ou seja, aparentemente, sem se possibilitar a aplicação do artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal.
(…)
Nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confecção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o artigo 339.º, n.º 4, do CPP.
(…)
Ora, o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio; para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exactamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exactamente por isso a merecer maiores cuidados.
A suspensão está subordinada, ela própria, à verificação de pressupostos, carecendo de avaliação a situação presente. Como afirmar a presença do pressuposto material de suspensão sem atender à carga imposta?
(…) não é a suspensão que é imposta; uma vez eleita a solução de suspensão, sabido é que terá necessariamente aqueles contornos, aquela forma de reparação e não outra, a reposição na íntegra do devido (…)
A óbvia, patentemente expressa e declarada compressão da liberdade do julgador, levada em forma de lei no art. 14º, n.º 1, do RGIT (…)
A escolha da pena de substituição é um prius em relação à imposição da condição.
Prevendo a penalidade a alternativa prisão/multa, incidindo a opção sobre a pena de prisão, de duas, uma: ou é eleita a pena de prisão efectiva ou a pena de substituição, a pena suspensa. Mas porque no caso a suspensão ficará subordinada a condição com contornos pré-definidos, a opção não pode ser cega, tem que ser ponderada, avaliada, porque senão deixa de ser um poder dever, o exercício de um poder vinculado, sem necessidade de específica fundamentação.
(…)
A margem de liberdade do julgador situa-se no justo ponto e momento em que pode optar pela substituição, mas para o fazer tem de estar de posse do pleno das informações possíveis, de modo a bem fundamentar a opção. Feita a escolha, a adopção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é a impor a subordinação ao pagamento.
Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada como boa solução.
Por último, o julgador sempre terá uma palavra a dizer sobre o prazo de pagamento, para mais no âmbito de uma norma especial.(…).
Em jeito de súmula, o que resulta, de forma clara, do referido AUJ é o seguinte:
a) No caso de o crime fiscal ser punível, em abstrato, em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa, o julgador opta, perante as circunstâncias, por uma das penas;
b) Caso a opção seja a pena de prisão, após a determinação da pena em concreto, pondera a eventual aplicação de uma pena de substituição;
c) Se a opção incidir sobre a suspensão da execução da pena de prisão, tem o julgador de considerar, para a sua aplicação, a imposição obrigatória da condição prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT;
d) Nessa altura, deverá efetuar um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, sob pena de nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
e) Concluindo pela impossibilidade, presente e futura, de o condenado poder cumprir a condição, cuja aplicação é automática, deverá o julgador regressar ao primeiro passo da decisão relativa à determinação da sanção (escolha da pena a aplicar, prisão ou multa);
f) Se for de afastar a aplicação da pena de multa, por via do art. 70º do Código Penal, e concluir pela incapacidade do condenado de cumprir a condição de suspensão legalmente imposta pelo art. 14º, n.º 1, do RGIT, nem deva/possa ter lugar outra pena de substituição, terá o condenado de cumprir a pena de prisão[45].
Conclui-se, assim, que apenas se impõe efetuar o juízo de prognose a que alude o AUJ 8/2012 quando o crime tributário em causa for punível, alternativamente, com pena de prisão ou com pena de multa – sendo para esse efeito que é imposta a obrigação de o julgador sopesar as condições económicas do condenado para satisfazer a condição obrigatória prevista no artigo 14º, n.º 1, do RGIT, seguindo os passos ali enunciados. Já os crimes tributários punidos somente com penas de prisão não estão abrangidos pela jurisprudência fixada pelo predito AUJ.
E assim sendo, mostrando-se os crimes tributários sancionados apenas com pena de prisão – como o dos presentes autos – fora do âmbito de aplicação da jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 8/2012, como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.05.2022[46], que aqui seguimos de perto pela similitude das situações e do entendimento aí plasmado, que subscrevemos, o princípio da legalidade determinará que se dê aplicação à norma especial prevista no artigo 14º do RGIT, respeitando-se a imperatividade da imposição da condição que o mesmo consagra – expressa e claramente propugnada no predito AUJ – em caso de opção pela pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão. Por determinação de tal preceito legal – e independentemente da posição que entendamos assumir no plano dos princípios, com eventual relevância em sede de direito a constituir, sendo certo que o julgador não se pode substituir ao legislador  –, atendendo a que nos crimes a que agora nos reportamos [nos quais se inclui o dos presentes autos], de natureza mais gravosa decorrente do valor mais elevado das quantias em dívida, o julgador não pode optar entre a aplicação da pena de prisão e da pena de multa, não lhe é conferida a margem de liberdade a que acima aludimos consubstanciada na realização do juízo de prognose acerca da satisfação da condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica.
Outra não poderá ser, a nosso ver, a solução a adotar nas referidas situações, pois que, permitir-se a realização de tal juízo de razoabilidade em todos os crimes de natureza tributária – quer nos punidos alternativamente com prisão ou multa, quer nos punidos apenas com pena de prisão – conforme tem sido defendido em alguma jurisprudência[47], conduziria à não aplicação de lei expressa nos casos em que, estatuindo o tipo legal apenas a aplicação da pena de prisão, o tribunal concluísse pela irrazoabilidade da imposição da condição atendendo à formulação de juízo de prognose negativo. Tal conclusão conduziria à solução, a nosso ver inaceitável, consubstanciada na aplicação, nos crimes de natureza mais grave, da suspensão da execução da pena de prisão sem sujeição à condição de pagamento imposta imperativamente pelo artigo 14º do RGIT.
Ora, a não aplicação de normas legais de direito ordinário apenas encontra legitimação na sua natureza contrária à lei hierarquicamente superior, à qual aquelas devem obediência, a Constituição da República Portuguesa. Sucede que, conforme antes sinalizámos, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a confluir no sentido da não inconstitucionalidade do artigo 14º do RGIT, concretamente no que tange à interpretação segundo a qual a imposição da condição tem caráter imperativo e não depende da realização de qualquer juízo de razoabilidade por parte do julgador[48].
Assim, por contrariar lei especial e expressa, não pode a suspensão da execução da pena de prisão pela prática de crime previsto no RGIT deixar de ser condicionada ao pagamento das quantias correspondentes à “prestação tributária e acréscimos legais” ou ao “montante dos benefícios indevidamente obtidos” mencionadas no artigo 14º, os quais não podem ser alterados para valor inferior, independentemente da situação económica do condenado.
Por traduzir uma síntese impressiva da problemática que vimos tratando, transcreve-se o sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.06.2018:
«– Sobre a razoabilidade da imposição do pagamento dos valores referidos no art. 14.º, do RGIT, nas situações de incapacidade financeira do condenado, muitas têm sido as decisões dos tribunais das instâncias superiores que sobre aquela norma se vêm pronunciando, estando hoje assente, por um lado, que a mesma não padece de inconstitucionalidade, por outro, que se exige, da parte do julgador, um juízo sobre a razoabilidade da condição, conforme superiormente decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 8/2012 (in DR, I série, n.º 206, de 24/10/2012), que fixou jurisprudência no sentido já mencionado supra, que embora respeite ao crime de abuso de confiança fiscal, é aplicável a todos os crimes fiscais, por isso também ao crime de fraude fiscal, em que esteja em causa a suspensão da execução da pena de prisão.
– Quando o art. 14.º, do RGIT, foi aprovado, já existia o actual n.º 2 do art. 51.º, do CP, pelo que a opção feita pelo legislador foi plenamente consciente, tendo entendido que o pagamento dos valores ali referidos, pelo arguido condenado por crime fiscal, nas aludidas circunstâncias e dados os interesses em causa, constitui sempre uma exigência “razoável”, tratando-se, pois, de quantias cujo pagamento é sempre de exigir ao arguido, como causador do respectivo dano ao Estado.
– Além do mais, aquele n.º 2, do art. 51.º, introduzido pela reforma penal de 1995, visava dar satisfação à necessidade de impor limitações aos deveres e regras de conduta, para que os mesmos «sejam compatíveis com a lei, nomeadamente com todo o asseguramento possível dos direitos fundamentais do condenado; e a de que, além disso, o seu cumprimento seja exigível no caso concreto» e «quanto à exigibilidade de que, em concreto, devem revestir-se os deveres e regras de conduta, o critério essencial é o de que eles têm de encontrar-se numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos almejados», conforme se refere no aludido acórdão do STJ n.º 8/2012.
– O que importa, acima de tudo, é que a imposição da condição do pagamento, ao abrigo do art. 14.º, está em conformidade com a lei, trata-se de opção legislativa que não atenta contra os direitos fundamentais do condenado - é o que se conclui das várias apreciações acerca da constitucionalidade da respectiva norma -, o cumprimento da obrigação de pagamento é exigível no caso concreto, correspondendo a uma obrigação de indemnizar, que recai sobre o arguido ora recorrente, pelos danos causados ao Estado com a prática do crime fiscal pelo qual foi condenado, e está tal obrigação numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos almejados, quer na perspectiva do legislador, quer do julgador do caso ora em apreciação.
– As posições conhecidas, assumidas na doutrina bem como o afirmado no próprio acórdão de uniformização de jurisprudência, não deixam margem para quaisquer dúvidas, impondo a conclusão inequívoca de que, optando o julgador pela suspensão da execução da prisão imposta ao arguido pela prática de crime fiscal, é obrigatória a imposição da condição de pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, nos termos do art. 14.º, n.º 1, do RGIT.
– Os deveres a impor ao condenado no âmbito da suspensão da execução da pena destinam-se «a reparar o mal do crime», conforme refere o art. 51.º, n.º 1, do CP e um dos meios previstos para atingir tal objectivo é o pagamento, dentro de certo prazo, «no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado» - cfr. alínea a) do mesmo preceito legal sendo nesse espírito que se enquadra o art. 14.º, do RGIT, exigindo-se aqui, porém, o pagamento integral - e não só em parte - da prestação tributária em falta e acréscimos legais.»
Retornando ao caso dos autos, estando em causa apenas penas de prisão, não haveria que fazer o referido juízo de prognose sobre a viabilidade ou razoável exigibilidade da satisfação da condição da suspensão da pena por parte das recorrentes, ou seja, um juízo sobre a razoabilidade da prática da obrigação condicionante, correspondendo esta à exata medida das vantagens patrimoniais obtidas indevidamente por aquelas.
Outrossim, na linha do que supra se referiu quanto aos vetores que neste campo relevam, nenhuma censura merece o prazo da suspensão da execução da pena de prisão fixado pelo tribunal a quo, o qual se mostra proporcionado tendo em contas as concretas circunstâncias do caso, nomeadamente a duração das penas de prisão e o valor global da quantia monetária a ser paga durante o período da suspensão.
A decisão recorrida não violou, pois, qualquer comando constitucional ou normativo penal.
Improcede, pois, também este ponto da pretensão recursiva.
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III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto nos autos pelas arguidas AA e BB, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelas recorrentes, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 5 (cinco) unidades de conta (artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
*
*
(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelos signatários – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
*
Guimarães, 19 de dezembro de 2023

 Isabel Gaio Ferreira de Castro [Relatora]
Paulo Correia Serafim [1.º Adjunto]
Carlos Barbosa Gama da Cunha Coutinho[2.º Adjunto]



[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.
[2] Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[3] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[4] Neste sentido, o Ac. STJ de 15/01/1997, CJ Ano V, T1, p. 194.
[5] O Novo Código Penal e a Moderna Criminologia, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, p. 218, apud Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 14.ª Edição, 2001, p. 89.
[6] Alfredo José de Sousa, ob. cit., p. 58.
[7] A Responsabilidade penal das pessoas colectivas, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Volume I, Coimbra Editora, 1998, p. 465.
[8] A Responsabilidade dos Gerentes, Administradores e Directores pelas Dívidas Tributárias das Sociedades Comerciais, Almedina, 2000, p. 62.
[9] Neste sentido, por todos, o Ac. STA de 17/03/1993, AD ano XXXII, n.º 382, p. 1055.
[10]  Sofia de Vasconcelos Casimiro, ob. cit., p. 74.
[11] Vide Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol. III, pág.292.
[12] Cfr. acórdão nº 312/2012 do Tribunal Constitucional, disponível para consulta no sítio da internet com o endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos
[13] Marques Ferreira - Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 229/230.
[14] Cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-10-2008, citando o acórdão do mesmo Tribunal, de 03-10-2007, Proc. n.º 07P1779 -3.ª, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt.
[15] Cfr. o acórdão STJ de 13/02/92, CJ, Tomo I, pág. 36, e Ac. Tribunal Constitucional de 2/12/98, DR Ia Série de 5/03/99.
[16] Vide Figueiredo Dias, in "Direito Processual Penal", 1º volume, Coimbra, ed. 1974, págs. 203 a 205.
[17]  Cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 464/97, publicado no DR, II Série, de 12.01.1998
[18] Vide Alberto Ruço, “Prova Indiciária”, Coimbra, 2013, pág. 9
[19] Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2005, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[20] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.05.2007, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[21] Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1, acessível em disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[22] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[23] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.05.2015, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[24] In D.R. n.º 77, Série I, de 18-04-2012
[25] Cfr. citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.07.2017
[26] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23.02.2016, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[27] Vide acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2017 e de 09.01.2012 e do Tribunal da Relação de Évora de 21.04.2015, disponíveis em www.dgsi.pt.
[28] Procedemos à reprodução integral das declarações da arguida AA e de depoimentos testemunhais, nos termos previstos no n.º 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
[29] Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15.ª edição, página 822; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, Editorial Verbo, página 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, Rei dos Livros, página 77.
[30] Publicado no DR, I-A, de 28 de dezembro de 1995
[31] Vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.06.2016, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[32] Cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal”, pág. 984.
[33]  In A Teoria do Concurso em Direito Criminal”, pág. 156.
[34] Cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.07.2023 [processo 3330/20.1JAPRT.P1], disponível para consulta em http://www.dgsi.pt
[35] Neste sentido, cfr. o citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.07.2023
[36] Valor da unidade de conta (UC) à data da consumação do crime, de harmonia com o previsto nos Decretos-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, e n.º 181/2008, de 28 de a, 32372009, de 29 de dezembro, e artigo 182º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, que aprovou o orçamento de Estado para 2019.
[37] Cfr. acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 25.09.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[38] Cfr acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 08.02.2021 [proferido no processo 30/18.6T9VVD.G1], disponível para consulta em http://www.dgsi.pt
[39] Consultáveis no respetivo sítio da internet
[40] In Direito Penal Tributário, 2ª ed., Univ. Católica Editora, págs. 133 a 136
[41] «A relevância da reposição da verdade sobre a situação tributária e a regularização de dívidas tributárias no RGIT», in Revista do Ministério Público, n.º 109, ano 28, Janeiro-Março de 2007, pp. 97 a 145
[42] DR, I Série, n.º 206, de 24 de outubro de 2012.
[43] Vide Sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.02.2003, in http://www.stj.pt
[44] Que até originaram já recursos de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente nos processos 200/04.4IDAVR.P1-B.S1 e   4/03.1IDACB.C2.S1, que foram, porém, rejeitados.
[45] Cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.05.2021 [proferido no processo 30/19.9IDVIS-C1], disponível para consulta em http://www.dgsi.pt
[46] Proferido no processo 59/19.7T9SSB.E1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt. Em sentido idêntico, foi entendido e decidido nos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.05.2021 [processo 30/19.9IDVIS-C1], do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.09-2020 [processo 159/07.6IDLSB.L1-3], de 23.10.2018 [processo 18/10.5PFLRS.L2.5], de 05.06.2018 [processo 3912/12.5T3SNT.L1-5], do Tribunal da Relação do Porto de 11.09.2019 [processo 20/14.8IDAVR.P1] e do Tribunal da Relação de Guimarães de 03.07.2017 [processo 471/12.2IDBRG.G2].
[47] Cfr, a título exemplificativo, entre outros, os acórdãos deste Tribunal da Relação de Guimarães de 17.04.2023 [processo 5241/20.1T9BRG.G1], com voto de vencido, de 08.02.2021 [processo 30/18.6T9VVD.G1], DE 25.02.2019 [processo 64/15.2T9VNC.G1], do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.02.2016 [processo 949/14.3IDLSB.L1-9], de 26.02.2014, Processo n.º 1467/11.7IDLSB.L1, todos disponíveis para consulta em http://www.dgsi.pt
[48] Neste sentido decidiram os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 335/2003, 376/2003 309/2006, 327/2008, 587/2009 e, mais recentemente, as Decisões Sumárias nºs 312/2011, 522/2012, 68/2015 e 606/2016, todos disponíveis em tribunalconstitucional.pt