i. A Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, que decretou medidas de clemência de amnistia e perdão de penas, estabeleceu uma diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (os beneficiários dessas medidas de clemência) e os demais (excluídos da aplicação das medidas);
ii. Essa diferenciação surge ancorada, de modo razoável e materialmente fundado, na intenção de favorecer os cidadãos da faixa etária dos destinatários das Jornadas Mundiais da Juventude com as medidas que, sem o evento a eles especialmente dedicado, não seriam decretadas;
iii. Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger a categoria geral de pessoas abrangida pelas medidas de clemência e, fazendo-o em função de critérios objetivos, que determinam a aplicação das mesmas regras nas situações objetivamente iguais, não ocorre qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação do princípio da igualdade e da proibição da discriminação;
iv. O artigo 2.º, nº 1, da Lei n.º38-A/2023, de 2 de agosto, interpretado tal como o foi na decisão recorrida e em conformidade com o que supra concluímos, não viola quer o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, quer o artigo 21.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
I – RELATÓRIO
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1. No processo n.º 401/12.1TAFAR o arguido AA foi condenado por sentença proferida em 30 de outubro de 2015, transitada em julgado em 23.01.2017, nos seguintes termos:
“Pelo exposto, julga-se a acusação do apenso B improcedente, a pronúncia dos autos principais e as acusações dos apensos A e C totalmente procedentes e, em consequência, decide-se:
a) Absolver arguido AA da prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo art. 187.º do CP, que lhe vinha imputado (apenso B);
b) Condenar o arguido pela prática, em 09/02/2012, de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos arts. 180.º , nº 1 e 184.º , ambos do CP, na pena de 5 (cinco) meses de prisão (autos principais);
c) Condenar o arguido pela prática, em 21/02/2012, de três crimes de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181º nº 1 e 184º ambos do CP, na pena de 2 (dois) meses de prisão cada um (apenso A);
d) Condenar o arguido pela prática, em 05/09/2012, de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos arts. 180.º , nº 1 e 184.º , ambos do CP, na pena de 7 (sete) meses de prisão (apenso C);
e) Condenar o arguido pela prática, em 18/06/2012 e em 05/09/2012, respetivamente, de dois crimes de ofensa a organismo, servico ou pessoa coletiva, p. e p. pelo art. 187.º , nº 1 do CP, na pena de 4 (quatro) meses de prisão cada um (apenso C);
f) Em cúmulo jurídico, condená-lo na pena única de 1 (um) ano e 5 (cinco) meses de prisão;
g) Suspender a execução da pena pelo período de 1 (um) ano e 5 (cinco) meses;
h) Condenar o arguido nas custas do processo (taxa de justiça e encargos), fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Após trânsito:
Remeta boletim ao registo criminal;
Comunique ao Conselho Distrital de … da Ordem dos Advogados.”
2. Nesses autos, o arguido apresentou requerimento datado de 1 de setembro de 2023, em que peticionou que fosse determinada a aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto e, consequentemente, fossem declarados amnistiados os crimes de que foi condenado, com o imediato cancelamento do registo criminal dos mesmos. Para o efeito alegou (transcrição):
“Com a entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto, com a devida vénia, vimos expor e requerer tal como segue:
Os crime em que o arguido foi condenado nos presentes autos foram cometidos antes de 19 de Junho de 2023 e tratou-se de crimes puníveis com uma moldura penal até 1 ano de prisão.
Nos termos do disposto no artigo 4.º n.º 1 da dita Lei, as infracções penais a que o ora Requerente foi condenado, encontram-se amnistiadas – logo, extinto o respetivo averbamento no registo criminal. E não existia reincidência na condenação nesse crime. Ou seja
Objectivamente nada impede a aplicação da Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto.
Poderá ficar a aparência que o Requerente possa ser alvo de discriminação negativa pelo facto de não ter 30 ou menos anos de idade há data dos factos (artigo 2.º n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023), certo é que, tal entendimento torna inconstitucional a dita norma porque viola o princípio da igualdade e da não descriminação previstos no espírito artigo 13.º da CRP (nem se vislumbra em qualquer outro preceito ou princípio constitucional excepcionar os maiores de 30 anos da aplicação do perdão e amnistia em causa) e ainda, por via do artigo 8.º da CRP, e torna a dita norma legal ordinária também desconforme com o artigo 21.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Tudo sopesado, vimos requerer a Vossa Excelência, Meritíssimo Juiz, que se determine a aplicação da Lei n.º 38.º-A/2023, declarando-se amnistiados os crimes que vem o Requerente condenado com o imediato cancelamento do registo criminal dos mesmos.”.
3. Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho judicial, datado de 15 de setembro de 2023 (decisão recorrida):
“Veio o condenado AA requerer se declarem amnistiados os crimes pelos quais foi condenado nestes autos.
O MINISTÉRIO PÚBLICO pronunciou-se no sentido do indeferimento do peticionado, por falta de fundamento legal.
Cumpre apreciar e decidir.
Foi o ora requerente condenado nestes autos pela prática, em concurso efectivo, de dois crimes de difamação agravada, de três crimes de injúria agravada e de dois crimes de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva.
No que se refere aos crimes de injúria agravada e difamação agravada, resulta da decisão condenatória que a agravação dos mesmos se deve ao facto haverem sido cometidos contra funcionários e/ou forças policiais e de segurança, no exercício das suas funções, motivo pelo qual queda desde logo o requerido por legalmente inadmissível (dada a excepção prevista no artigo 7.º, n.º 2, da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08).
A acrescer, desta feita quanto a todos os crimes pelos quais o requerente foi condenado, a verdade é que o perdão e a amnistia previstos na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, pressupõem que o infractor tenha entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos (artigo 2.º, n.º 1), o que ostensivamente não sucede no caso dos autos, não se vislumbrando, de resto, que a norma legal que enuncia tal pressuposto padeça de qualquer inconstitucionalidade, dado o seu carácter geral e abstracto e, bem assim, por se entender que a delimitação feita em razão da idade do infractor não padece de irrazoabilidade, mostrando-se contida no espaço de liberdade de conformação do legislador.
Por tudo o exposto, indefere-se o requerido por inadmissibilidade legal.
Notifique.”
4. Não se conformando com tal decisão, dela veio o arguido interpor recurso, peticionando que seja “cassada a douta decisão impugnada, substituindo-se por outra que aplique o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 21.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, no sentido de ser inconstitucional, logo inaplicável, a limitação de idade imposta negativamente em relação ao Recorrente, apenas e só por este à data dos factos ter mais de 30 anos de idade” e “que se considere amnistiada a infração penal de que vem o arguido condenado”.
Extraiu da respetiva motivação as seguintes conclusões:
“I - A norma aplicada pelo Meritíssimo Juiz a quo para não amnistiar o Recorrente do crime de que vem condenado, o artigo 2.º n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, é uma norma inconstitucional por violar o princípio da igualdade e da proibição da descriminação negativa (a idade superior a 30 anos), sem qualquer suporte constitucional para o efeito.Sendo que,
II - A dita norma (limitação a menores de 30 anos), viola grosseira e inequivocamente direito internacional imperativo directamente aplicável no nosso ordenamento jurídico, como é o artigo 21.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ex vi, artigo 8.ºda Constituição da República Portuguesa.
III - O crime que o arguido vem condenado, é objectivamente elegível para ser objecto de amnistia nos termos do artigo 4.º da Lei n.º38-A/2023 de 2 de Agosto.
5. Admitido o recurso, veio responder o Ministério Público, pugnando pela rejeição do recurso. Formulou as seguintes conclusões:
“A.- O recorrente foi condenado no âmbito dos presentes autos pela prática de:
- dois crimes de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º n.º 1 e184.º, ambos do Código Penal;
- três crimes de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181.º n.º 1 e 184, ambos do Código Penal; e
- dois crimes de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p. e p. pelo artigo 187.º do Código Penal,
na pena única de 1 ano e 5 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período.
B.- Na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, o Recorrente solicitou que lhe fosse aplicada a amnistia, arguindo a inconstitucionalidade da Lei, concretamente a limitação da idade dos arguidos/condenados na aplicação da amnistia/perdão, prevista no artigo 2.º n.º 1 da Lei.
C.- Alega o Recorrente que a norma que limita em razão da idade a aplicação da amnistia ou perdão é inconstitucional por violação do artigo 12.º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, quer por violação do principio da igualdade, quer pela violação da proibição de discriminação.
D.- Quanto ao mérito do recurso, somos de nos pronunciar pela sua total improcedência, desde logo porque o crime de difamação agravada dos autos principais pelo qual foi condenado o recorrente foi praticado contra membro das forças policiais no exercício das suas funções (agente da PSP); os três crimes de injúria agravada pelo qual foi condenado pelo apenso A foram praticados contra três funcionários da Câmara Municipal de … em virtude das funções que exerciam; o crime de difamação agravada do apenso C foi praticado contra uma Magistrada Judicial no exercício das suas funções; pelo que nos termos do disposto no artigo 7.º n.º 2 da Lei 38-A/2023 estão excluídos da amnistia e perdão.
E.- Por outro lado:
- as lei de amnistia e perdão têm caracter de clemência, não é um direito dos cidadãos;
- o Estado goza de grande liberdade conformativa no conteúdo das leis de amnistia e perdão, sendo que as suas razões e objetivos não estão concretizadas em lei;
- não podendo ocorrer o arbítrio ou discriminação infundada, o Estado pode escolher o momento da entrada em vigor da amnistia/perdão, que tipos legais ou condutas serão passiveis de amnistia/perdão, qual a abrangência da amnistia/perdão (penal, contraordenacional, disciplinar …), que grupos de indivíduos amnistiar/perdoar (Lei 9/96, de 23 de Março, conhecida pela Amnistia às FP25), isto é, desde que justificada a sua restrição não existe inconstitucionalidade;
- sendo o motivo da amnistia/perdão a presença do Papa em território nacional no âmbito das Jornadas Mundiais da Juventude, o Estado Português decidiu por uma amnistia/perdão (à semelhança de 1967, 1982 e 1991, nas três presenças do Papa em território nacional) e fê-lo para os jovens;
- independentemente da bondade da restrição da aplicação da amnistia a menores de 30 anos de idade, a verdade é que inexiste qualquer inconstitucionalidade nessa restrição porque cabe no âmbito da discricionariedade atribuída ao Estado.
F.- Neste sentido vide Ac. TC. n.º 444/97, n.º 510/98 e 488/2008 de 7/10/2008, do qual se extrai o seguinte:
“Ora, cabendo a sua edição na competência do legislador ordinário, tomada no campo da política criminal, não pode deixar de se lhe reconhecer discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo. (…) “Neste domínio, o Tribunal Constitucional vem entendendo, com significativa reiteração, que, nos óbvios parâmetros do Estado de direito democrático, a liberdade de conformação legislativa goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d’Etat”.
Mas igualdade não é igualitarismo.
O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, “razoável, racional e objectivamente fundadas”, sob pena de, assim não sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes”, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J.C.VIEIRA DE ANDRADE – Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).”
G.- Inexiste qualquer discriminação na Lei 38-A/2023 atento o motivo para conceder amnistias/perdões, ou seja, se o Estado Português quis conceder perdão no âmbito das Jornadas Mundiais da Juventude, ao elaborar uma lei que se aplica de forma abstrata e geral a todos os indivíduos, restringindo os efeitos nos ilícitos de natureza penal apenas aos cidadãos com menos de 30 anos, não viola o artigo 12.º da Constituição da República Portuguesa.”.
6. Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos nos termos do artigo 416º do C.P.P. e consignou a sua concordância com a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª instância, manifestando acompanhá-la integralmente.
7. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o despacho judicial que rejeitou a aplicabilidade das medidas de clemência –, a questão a examinar e decidir é a de saber se os crimes por que foi condenado o arguido devem ser declarados amnistiados ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, por ser inconstitucional a restrição contida no respetivo artigo 2.º, n.º 1, por violar o princípio da igualdade e da proibição da descriminação e, por outro lado, por violar direito internacional imperativo diretamente aplicável no nosso ordenamento jurídico (a saber: o artigo 21.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ex vi do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa).
*
III – TRANSCRIÇÃO DOS SEGMENTOS RELEVANTES DA SENTENÇA CONDENATÓRIA PROFERIDA CONTRA O ARGUIDO.
A sentença que condenou o arguido tem, para além do mais, o seguinte teor:
- No relatório da sentença condenatória, o arguido vem identificado, para além do mais, como “AA (…) nascido em …/…/1972 (…)”;
- Foram considerados provados os seguintes factos:
“Com relevância para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:
Autos principais:
1. BB é agente da PSP de … e contra ele foi instaurado um processo disciplinar ao qual foi atribuído o nº ….
2. Para o defender no âmbito do referido processo disciplinar, BB contratou o arguido AA, advogado de profissão.
3. Finda a investigação, CC, oficial da PSP instrutor do referido processo, elaborou a acusação, a qual foi notificada.
4. BB foi acusado, em síntese, de, no dia 12 de julho de 2011, cerca das 19h40, ter abandonado o seu posto de serviço (sentinela, na porta principal do Comando Distrital de …), sem prévia autorização superior e de, noutra ocasião, aí descrita, não ter retribuído o cumprimento com aperto de mão da Chefe DD, deixando-a com a mão estendida.
5. Em 09 de fevereiro de 2012, o Dr. AA, agindo em nome e para benefício de BB, remeteu, via fax, uma peça processual de defesa. Tal peça foi remetida para o número geral de fax da PSP, pelo que diversas pessoas a puderam ler, para além daquelas que tinham acesso ao processo disciplinar à qual a mesma se destinava.
6. Tal peça processual foi rececionada pela central de comunicações do Comando Distrital de …, que a reencaminhou para o Núcleo de Deontologia e Disciplina, tendo chegado ao conhecimento de CC no dia seguinte.
7. Na referida peça processual, o Dr. AA, escreveu, além do mais, o seguinte:
«Notificados que fomos da iluminadíssima acusação proferida, por dela discordarmos, totalmente, vimos dizer o seguinte:
(…)
É com espanto que se verifica que os factos levados ao V conhecimento de que um graduado de serviço pode ordenar a um sentinela que se ausente do seu local de trabalho, sem que assegure a respectiva substituição e sem que isso traga para si qualquer consequência..- está tudo dito quanto à honradez, isenção e independência de quem se prepara para decidir, ainda que em sede de mera promoção. A palhaçada de fls. 29, afinal, significa o quê? O "criminoso" é o Arguido?!
(…)
Ainda que, mesmo com recurso a meios de prova ilegais e criminosos, se vierem a demonstrar os factos alegados na acusação, o que é certo é que os mesmos não preenchem qualquer conduta típica ilícita culposa e punível do arguido ora Contestante» - sublinhado nosso.
8. A fls. 29 do processo disciplinar, consta uma informação entregue nos autos por BB, datada de 12 de julho de 2011, na qual o mesmo descrevendo o sucedido nesse dia, refere, além do mais, que lhe foi ordenado pela Chefe DD para que fosse abrir o portão do Comando de Polícia de ….
9. As expressões acima transcritas a negrito, dirigidas a CC, visaram pôr em causa a sua honradez e independência profissionais, tendo causado transtorno ao mesmo, tendo o arguido atuado de forma livre, deliberada e consciente da censurabilidade penal da sua conduta.
10. O arguido não demonstrou arrependimento.
Apenso A:
11. O arguido exerce a profissão de advogado e no âmbito das suas funções teve conhecimento que, no dia 21 de fevereiro de 2012, um dos funcionários da Câmara Municipal de … havia contactado telefonicamente a sua cliente, EE, para que a mesma procedesse ao pagamento da coima e custas em prestações, no âmbito do processo de contraordenação n.º ….
12. Assim, na referida data, pelas 11h00, o arguido, muito exaltado, dirigiu-se à secção de contraordenações da Câmara Municipal de …, área da competência desta comarca, a fim de obter informações referentes ao mencionado processo.
13. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido, dirigindo-se a FF, GG e HH, em voz alta, de forma que todos os presentes pudessem ouvir, apelidou-os de "incompetentes", "parasitas" e "corruptos"
14. Dirigindo-se a FF, em voz alta, e de forma que todos os presentes pudessem ouvir, o arguido disse-lhe que os livros por onde ela tinha estudado não foram os mesmos que os dele e que duvidava que a mesma tivesse o curso de Direito.
15. O arguido agiu com o propósito concretizado de ofender a honra, bom nome e consideração de FF, GG e HH, bem sabendo que os mesmos eram funcionários da Câmara Municipal de … e que, naquele momento, se encontravam em exercício de funções, com o objetivo de os vexar publicamente e assim colocar em causa o seu bom nome e competência profissional.
16. Com a conduta do arguido, FF, GG e HH sentiram-se ofendidos na sua honra e consideração profissional.
17. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
18. Em 14/12/2012, deu entrada, no referido processo de contraordenação, um recurso de impugnação judicial da decisão administrativa, subscrito pelo ora arguido, na qualidade de advogado, que protestou juntar procuração.
19. Em 15/12/2012, deu entrada, no referido processo, um requerimento subscrito por EE, no qual a mesma peticionou o pagamento da coima e custas em prestações.
20. FF, instrutora do processo, elaborou uma informação no sentido de dar prevalência ao requerimento de pagamento em prestações, por ter sido posterior à impugnação judicial e de o Advogado não ter junto procuração.
21. Nessa sequência, foi deferido o pagamento em prestações, tendo EE sido notificada do plano de pagamentos.
22. O telefonema referido em 11. surgiu na sequência do não pagamento das prestações.
23. E foi neste contexto, que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas, o arguido se dirigiu à secção de contraordenações da Câmara Municipal de ….
24. 0 arguido juntou procuração ao processo de contraordenação através de fax remetido nesse mesmo dia 21 de fevereiro de 2012, após o sucedido na secção de contraordenações.
25. O arguido não demonstrou arrependimento.
Apenso B:
26. No dia 03 de maio de 2012, o arguido enviou, através do seu endereço de e-mail profissional, …, um requerimento dirigido à Direção de Finanças de … — Autoridade Tributária e Aduaneira (AT, que tinha como Diretor II), enviado para o e-mail …, na qualidade de mandatário do contribuinte reclamante JJ, e no âmbito do processo de reclamação graciosa no …, após ter sido notificado para exercer o direito de audição, o qual deu entrada nesses serviços no dia seguinte, 04/05/2012.
27. Nesse requerimento, o arguido, referindo-se aos referidos serviços, escreveu, além do mais, o seguinte:
«(...) Directrizes, "direito circulatório" para justificar o saque e a engorda do FETE
(…)
A doença mental e gula pelo FETE é tal que até se entende que o Contribuinte é que tinha de demonstrar o contrário do que consta numa decisão de liquidação. Era o que mais faltava! O fundamento da reclamação aqui em causa é a falta de fundamento para a liquidação impugnada. Logo, nenhum facto há que ser provado pelo Reclamante. (…)
Bem informamos as saqueadoras do fisco de que os elementos contabilísticos referentes a 2008 estavam na posse de quem estavam. (…)
(…)
A "investigação" levada a cabo por via do "convite" ao mandatário do Reclamante, é de manifesta má-fé Pois que[m] a levou a cabo, foi informada sobre a concreta identidade de quem tinha na sua posse todos os elementos contabilísticos referentes ao ano de 2008. E, mesmo após essa pessoa lhe ter confirmado que tinha efectivamente a documentação em causa, fez questão de nunca a notificar formalmente para que esta entregasse esses documentos... preferiu tentar extorquir mais uma coima através de uma falsificação de um auto de notícia que enviou ao …, dando origem ao processo de Contra-Ordenação fiscal n.º (…) Mas isso também já comunicamos ao Ministério Público.
(…)
Muito gostava eu de perceber porque motivo … e …, mantêm os aparelhos de fax inoperacionais...com tanto dinheiro que cada vez mais se rouba ao contribuinte...”.
28. Quando falou em "FETE", o arguido referia-se ao Fundo de Estabilização Tributária (FET).
29. Quando escreveu "preferiu tentar extorquir mais uma coima através de uma falsificação de um auto de notícia", o arguido referia-se ao auto de notícia por contraordenação levantado em 22/03/2012 contra JJ, entendendo que a Sr. a Inspetora Tributária o falsificou ao fazer constar do mesmo que o seu constituinte, JJ, foi notificado pessoalmente para apresentar os documentos contabilísticos.
30. No referido auto de notícia, a Sr. a Inspetora Tributária fez constar que JJ foi notificado para apresentar a contabilidade, não tendo feito constar que aquele, para tal, tenha sido notificado pessoalmente.
31. No âmbito do referido processo de reclamação graciosa, em 01/03/2012, JJ foi notificado, na pessoa do ora arguido, na qualidade de seu Mandatário, para facultar a contabilidade, os livros de escrita, os documentos auxiliares e outros documentos relacionados com a atividade referente ao ano de 2008, na Direção de Finanças de …, no dia 13 de março de 2012, pelas 10h00, não o tendo feito.
32. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.
33. Sabia que a Direção de Finanças de … - Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) era um serviço da administração direta do Estado que exerce autoridade pública.
Apenso C:
34. No ano de 2012, AA era advogado e foi mandatário da sociedade «KK», no âmbito do processo de contraordenação n.º … do ano de 2012, que correu termos na Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.
35. O processo em causa teve origem na elaboração de auto de contraordenação efetuado por um soldado da Guarda Nacional Republicana.
36. Desse auto consta que, no dia 30 de maio de 2012, pelas 14h00, na Rua …, em …, o veículo de matrícula … se encontrava estacionado na via pública, não ostentando qualquer dístico válido de seguro de responsabilidade civil, tendo sido verificado posteriormente que o mesmo não possuía seguro de responsabilidade civil obrigatório por lei.
37. Devido a esta infração a sociedade «KK» foi notificada, tendo o Dr. AA remetido, no dia 18 de junho de 2012, uma mensagem eletrónica dirigida a vários departamentos da GNR situados no …, designadamente Comando Territorial de …, Destacamento de … e Posto Territorial de …, na qual, se pode ler, designadamente, o seguinte:
«Notificada que foi a Nossa Constituinte do ofício em "Assunto" referenciado, kk vem dizer o seguinte:
Bem se compreende que um crescente número de gangues de macacos fardados e fortemente armados, cada vez mais puxe pela imaginação para levar a cabo sistemáticos assaltos à mão armada aos escravos trabalhadores e automobilistas deste país. Nem que para isso seja preciso defender a tese de que uma viatura a trabalhar ao rallenti dentro de uma propriedade privada e ao ar livre, constitui objectivamente uma situação de perigo iminente, ao ponto de justificar um assalto à mão armada a uma propriedade privada (...).
Como pode também haver quem queira fazer de conta que não sabe ler, que o artigo 171.º n.º 5 do CE não diz expressa e inequivocamente o que lá se prescreve, segue a completa transcrição — sic:
«Quando o agente da autoridade não puder identificar o autor da contra-ordenação e verificar que o titular do documento de identificação é pessoa colectiva, deve esta ser notificada para proceder à identificação do condutor, no prazo de 15 dias, sob pena de o processo correr contra ela, nos termos do n.º 2».
Se precisarem de alguém que lhes ensine a ler português, estejam à vontade para o pedir, pois há por aí muito professor desempregado q ue lhes podemos indicar gratuitamente.
Não, por muito que alguém queira, a Nossa Constituinte não é mesmo titular do documento de identificacão da viatura com a matrícula n. 0 …, muito menos o era em 30.05.2012.
Por todo o exposto, sugere-se que determinem aos Vs subalternos que se comece a cumprir a lei do país, designadamente a norma constante do artigo 171.º, n.º 5 do CE (…) Até se aconselhava desde já a lerem com atenção o disposto no artigo 150.º n.º 1 do CE, designadamente o que quererá dizer «transitar na via pública», mas pronto, a seu tempo. Cumpra-se a lei e não o capricho de alguém que se julgue acima desta e do direito, lá porque anda na via pública com uma arma de guerra a intimidar os cidadãos - eles não vão andar sempre desarmados! A extorsão ou tentativa de extorsão também é crime».
38. Por ofício datado de 04/07/2012, o Comandante do Posto Territorial da GNR de … informou a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) da anulação do auto de contraordenação n. …, que havia sido remetido àquela entidade, com fundamento na ocorrência de lapso do autuante na pesquisa do proprietário do veículo.
39. No âmbito do Processo Comum Singular n.º …, que correu termos no …º Juízo Criminal desta comarca, o Dr. AA foi mandatário de LL.
40. Por sentença datada de 15 de junho 2012, LL foi condenado pela prática, em concurso efetivo, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal e um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo a sentença sido elaborada pela Drª MM, Juiz de Direito, na altura em funções nesta comarca.
41. Os factos que fundamentaram a condenação de LL basearam-se, entre outros elementos, no depoimento de dois soldados da GNR e respetivo expediente elaborado pelos mesmos, sendo certo que a intervenção destes teve uma importância determinante para a condenação do cliente do arguido.
42. LL não se conformou com o teor da sentença supra mencionada e o Dr. AA interpôs recurso no dia 05 de setembro de 2012, dirigido ao Tribunal da Relação de Évora.
43. O recurso incidiu sobre a matéria de facto fixada na sentença e valoração da prova a ela subjacente.
44. No recurso mencionado, o Dr. AA referiu o seguinte:
“(…)
As testemunhas elementos da GNR em julgamento, mais não fizeram que demonstrar que estão habituados a cometer crimes contra os cidadãos com absoluto sentimento de impunidade (…)
(…)
Enfim, é o vale tudo até por demasiadas vezes o assassínio a tiro gratuito perpretado em nome da segurança rodoviária e do seque ao condutor. Desta vez não atiraram a matar, mas lá decidiram privar o arguido da liberdade porque,..estava-se a querer ausentar do local!!! (…)
Antes de ser abatido a tiro pelos assassinos que andam a fiscalizar o trânsito em nome dum cada vez mais corrupto poder instituído há 38 anos, ou espancado porque sim, é óbvio que o arguido nem sequer disse mais nada que não fosse limitar-se a fazer o teste de álcool porque um potencial assassino lhe ordenou. É que não deve haver nenhum país democrático onde tantos utentes da via pública (condutores e passageiros) são abatidos e tiro pelas autoridades policiais, como nesta corrupta república das ( e dos ) bananas”.
45. Tendo, ainda, afirmado:
«A seriedade intelectual da sentença aqui trazida ao Alto Desembargo de Vossas Excelências, em termos de seriedade intelectual por aqui se queda.
(…)
Vejamos a testemunha NN, a explicar como se comete um crime de rapto e sequestro (...) com uma Magistrada Judicial e um Procurador do MP a assistir impávidos e serenos.
[N]em sequer nos admira que a Mm.ª Juiz tenha descoberto a figura da prova indirecta para condenar o arguido. Enfim, também nos presentes autos parece que se terá pretendido cooperar com o saque levado a cabo à Rés Pública e ao zé-povinho, in casu a um Zé chamado LL. Tudo em nome de uma gamela sempre recheada para os mesmos abutres (...).
Vejamos outro flagrante exemplo da exemplar seriedade intelectual de quem proferiu a sentença aqui impugnada (...).
Ora, vejamos então o que a Mm. a Juiz não quis ouvir, ou fez de conta que não ouviu:
(…)
Salvo erro, ou muito nos enganamos ou nem a PIDE conseguia por Juízes a fazer estas habilidades nas sentenças, mesmo considerando os célebres plenários da Boa Hora do tempo da outra Senhora!
Em boa técnica jurídica uma sentença com estas características tem um nome: Falsificação de documentos - fez-se constar factos juridicamente relevantes cuja falsidade não se podia desconhecer!
(…)
Isto não é aplicação do Direito. Isto é abastardar todo um ordenamento jurídico.
(…)
[N]em estávamos à espera que o Tribunal concedesse a possibilidade de uma lide leal entre Ministério Público e defensor, outrossim,
Que houvesse a honestidade intelectual de não permitir leitura de declarações discrepantes de uma testemunha (…). Pelo andar da carruagem,
Não andaremos longe de haver tribunais a validar confissões de arguidos assinadas pelas polícias. a PIDE não certificava confissões orais, de mortos?! E os tribunais não aceitavam essas provas como válidas?! (...)».
46. O recurso e respetivas alegações têm 107 páginas.
47. O recurso subiu ao Tribunal da Relação de Évora, tendo tomado conhecimento do teor do mesmo a Juiz de Direito Dra. OO (que admitiu o recurso), o Procurador-Adjunto PP (que respondeu ao mesmo), o Procurador-Geral Adjunto QQ e os Juízes Desembargadores RR, SS e TT.
48. Por acórdão proferido em 17/09/2013, transitado em julgado em 25/10/2013, o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso, confirmando, integralmente, a sentença recorrida.
49. O arguido quis dirigir-se a terceiro e escrever expressões suscetíveis de ofenderem a honra e consideração da Dra. MM, bem sabendo que a mesma era Magistrada Judicial e se encontrava no exercício das suas funções e por causa das mesmas, o que conseguiu.
50. O arguido quis, sem fundamento, em duas ocasiões distintas, afirmar factos falsos, que ofendiam a credibilidade e o prestígio da GNR, bem sabendo que se tratava de uma instituição que exerce autoridade pública, o que efetivamente conseguiu.
51. Agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo da censurabilidade da sua conduta e que a mesma era proibida pela lei penal.
52. Em consequência da atuação do arguido, a Exm. a Sr. a Juiz de Direito, Dr.ª MM, sentiu-se ofendida na sua honra e consideração pessoal e profissional.
53. O arguido não demonstrou arrependimento.
***
54. O arguido é casado, mas encontra-se separado de facto.
55. Tem dois filhos, com … e … anos de idade.
56. Tanto o arguido como a sua mulher são advogados.
57. O arguido reside sozinho, numa pensão, pertencente ….
58. Os seus filhos residem a com sua mulher.
59. O arguido aufere, mensalmente, entre €400 e €500, a título de serviços de advocacia prestados em território nacional.
60. Aufere, anualmente, entre €7.500 a € 10.000, a título de serviços de advocacia prestados em … e na ….
61. Não possui veículo automóvel.
62. Despende, mensalmente, a quantia de €1.000 (mil euros)
63. Relativamente ao ano de 2013, o arguido declarou ao Serviço de Finanças rendimentos do trabalho independente, no montante ilíquido de € 1.040,60 (mil e quarenta euros e sessenta cêntimos).
64. Por decisão de 14/07/2011, transitada em julgado em 04/10/2011, proferida no processo nº …, do …º Juízo do Tribunal Judicial de …, o arguido foi condenado pela prática, em 28/06/2006, de um crime de denúncia caluniosa, na pena de 115 (cento e quinze) dias de multa, à taxa diária de €7 (sete euros), num total de €805 (oitocentos e cinco euros).”.
*
IV – FUNDAMENTAÇÃO.
O recorrente AA, não obstante ter completado 40 anos de idade à data em que os factos da condenação foram por si praticados (em 09.02.2012, 21.02.2012, 18.06.2012 e 05.09.2012), pretende que se declarem amnistiados os crimes por que foi sentenciado em 30 de outubro de 2015 no âmbito do processo ….
Pretende beneficiar da medida de clemência decretada pela Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto. Como consta do clausulado dessa Lei:
“A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
Artigo 2.º
Âmbito
1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º
(…)”.
Considera o recorrente que a exclusão da aplicação da medida de clemência baseada apenas na circunstância de o arguido ter já mais de 30 anos de idade, viola a Constituição da República Portuguesa e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Estão em causa os princípios da igualdade e da não discriminação.
Na Constituição da República Portuguesa, estabelece o artigo 13º:
Artigo 13.º
(Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
No âmbito de aplicação do direito da União Europeia, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (1) estabelece, de forma juridicamente vinculativa e diretamente aplicável nos Estados Membros (i. e., vincula as instituições, os órgãos e organismos da União Europeia em toda a sua atuação e, por outro lado, vincula os Estados-membros quando apliquem direito da União):
Artigo 20.º
Igualdade perante a lei
Todas as pessoas são iguais perante a lei.
Artigo 21.º
Não discriminação
1. É proibida a discriminação em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual.
2. No âmbito de aplicação do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Tratado da União Europeia, e sem prejuízo das disposições especiais destes Tratados, é proibida toda a discriminação em razão da nacionalidade.
É precisamente de desconformidade com estes princípios fundamentais que o recorrente acusa a interpretação subjacente ao despacho recorrido, quanto ao alcance das medidas de clemência decretadas pela Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto.
Cumpre apreciar, sendo que, para isso, não nos poderemos olvidar da natureza das medidas decretadas pela Lei nº 38-A/2023 – medidas de Direito de Graça ou Clemência.
Tais medidas têm, como já há muito se vem referindo, um carácter subversivo de princípios do moderno Estado de Direito, incidindo sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais e permitindo a intromissão de outros poderes na administração da justiça. Mas esse carácter subversivo não pode ultrapassar limites intransponíveis do Estado de Direito Democrático, estando o Direito de Graça igualmente submetido aos princípios da igualdade e da proibição do arbítrio.
A explicação da afirmação que deixamos pode ser encontrada no texto do Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2001, de 14 de Novembro (publicado no Diário da República n.º 264/2001, Série I-A de 2001-11-14), onde se lê:
“2 - Amnistia significa, tal como o vocábulo grego que lhe serviu de étimo, esquecimento. É a abolição da incriminação de um facto passado.
Embora inexistindo, actualmente, na lei, uma definição de amnistia, é aquela uma ideia assumida pela jurisprudência e pela generalidade da doutrina, nacional e estrangeira. A amnistia aniquila os factos já ocorridos como objecto da incriminação, «de sorte que aos olhos da justiça, por uma ficção legal, considera-se como se nunca tivessem existido, salvos os direitos de terceiro com relação à acção civil para a reparação do dano», conforme as considerações de N. Paiva e de L. Osório, apud Notas, 2.ª ed., p. 425 (extracto do estudo «As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão», de M. Maia Gonçalves, in RPCC, ano 4, fasc. 1, p. 13).
Concepção que, segundo o Prof. Figueiredo Dias (in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, p. 689), embora tenha uma longa tradição, não se apresenta, todavia, à luz da «estadualidade de direito» subjacente à Constituição da República Portuguesa, como a mais rigorosa ou mesmo aceitável, pois, na verdade, «o direito de graça só pode ter a ver, em qualquer dos casos, com a consequência jurídica, não com o facto ou o crime praticados», pelo que «o que distingue os vários institutos abrangidos por aquela realidade é o carácter geral da amnistia (dirigida a grupos de factos ou agentes, na qual se inclui o perdão genérico, que deve ser considerado, para todos os efeitos, uma verdadeira amnistia) em contraposição ao carácter individual do indulto (dirigido a pessoas concretas)».
Numa breve resenha histórica da evolução dos conceitos em causa, que cremos ser relevante para a dilucidação da questão sub judice, seguindo de perto os ensinamentos daquele ilustre mestre (cf. declaração de voto no parecer 13/79 da Comissão Constitucional, in Pareceres, 8.º vol., pp. 107 e segs.), dir-se-á que:
Nos períodos da monarquia absoluta e do Estado de polícia a amnistia fazia parte - conjuntamente com o perdão de pena, o indulto e a comutação, dos quais, teórica e praticamente mal se distinguia - do acervo de actos indiferenciados de graça ou de clemência, que exclusivamente cabiam na indulgentia principis: só o soberano, como supremo e em rigor único titular do poder do Estado, tinha competência para os actos que constituíam a expressão pura do arbítrio real.
Contra esse estado de coisas reagiu, compreensivelmente, a Revolução Francesa e todas as correntes de pensamento coevas, dominadas pelos desejos de legalidade e igualdade estritas. Todavia, se, por um lado, era indiscutível a função política que em certas circunstâncias os actos de clemência ou de graça cumpriam (temperar a dureza da justiça, quando particulares circunstâncias políticas, económicas e sociais houvessem tornado aquele rigor aberrante e iníquo), era, por outro, inestimável a oportunidade deles quando se destinassem a corrigir efeitos legislativos ou de aplicação do direito ou erros judiciários. Por último, era conveniente o seu uso quando se propusessem finalidades político-criminais ligadas à reabilitação dos delinquentes.
Por tais razões, o Estado de direito liberal acolheria tais medidas no seu seio, imputando a competência para a prática de tais actos ao rei, como «poder moderador», em compatibilização com o princípio básico da separação dos poderes, situação de que foi exemplo o nosso Código Penal de 1852, onde tanto o poder de amnistiar como o de perdoar constituíam «actos reais.»
Não deixaram, porém, as assembleias legislativas de reivindicar pelo menos uma parte dessa competência, tornando-se então largamente dominante a distinção entre amnistia em sentido amplo, que caberia no poder das assembleias, e um perdão, indulto ou graça, cujo exercício caberia ao chefe de Estado ou equivalente.
Aquela, abrangendo tanto a amnistia própria (anterior à condenação) como a imprópria (a posterior à condenação), era entendida como medida jurídica (pertencente ao mundo do direito e portanto sujeita ao controlo jurisdicional), distinguia-se basicamente do perdão ou indulto, entendido, pelo contrário, como medida graciosa, pré-jurídica (portanto, jurisdicionalmente incontrolável).
Com a institucionalização do Estado de direito social e democrático, todos os actos de graça são actos que se movem no mundo do direito, desde logo no do direito constitucional, pelo que estão sujeitos ao seu império, portanto ao controlo jurisdicional. O que se reflectiu nos próprios termos da distinção entre amnistia e indulto, evidenciando que na primeira se trata sempre de uma medida formalmente legal (competindo às câmaras legislativas) e, deste modo, dotada das características de objectividade, generalidade e impessoalidade, enquanto no indulto se trata de intervenções executivas através das quais, no caso concreto, são afastadas, reduzidas ou suspensas as consequências jurídicas de uma condenação penal, transitada em julgado.
É assim que a Constituição dispõe hoje que «compete à Assembleia da República [...] conceder amnistias e perdões genéricos» - artigo 161.º, alínea f) -, competindo ao Presidente da República «na prática de actos próprios [...] indultar e comutar penas, ouvido o Governo» - artigo 134.º, alínea f).
Em ambos os casos fica derrogado o sistema legal punitivo; daí o intitular-se, por vezes, o regime das medidas de graça como um jus non puniendi. O direito de graça é, no seu sentido global e abrangente, «a contraface do direito de punir estadual» (Figueiredo Dias, Direito Penal ..., parte geral II, 1993, p. 685).
Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.
Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.
É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).”.
Igualmente esclarecedores são os contributos que se acham no ainda recente Acórdão Unificador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2023 (2), de 1 de Fevereiro, onde se lê:
“C. Do Direito de Graça e afins
6 - Ora, o direito de graça, em que se integra o perdão de penas, consubstancia a "contraface do direito de punir estadual", consubstanciando um caminho "para obviar incorrecções legislativas ou a erros judiciários [...] como para propiciar condições favoráveis a modificações profundas da legislação de carácter penal, ou [...] à socialização do condenado"(…).
Assim, as medidas de graça ou de clemência são uma "reminiscência do direito de graça que o soberano detinha quando concentrava em si todos os poderes estatais, incluindo os de castigar e de perdoar", subvertendo os "princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça"(…).
Os atos de graça abrangem, assim, a amnistia, o perdão genérico e o perdão individual ou particular, em que se integram o indulto e a comutação(…). A distinção entre as várias medidas de graça efetua-se conforme o ato respeite ao facto praticado ou à pena concretamente aplicada, bem como consoante abranja um caso concreto ou um grupo de situações, em função das características do facto praticado ou do agente(…).
Assim, "[...] o Estado-de-Direito metamorfoseou o direito de graça, passando a encará-lo através de outro prisma, e aproveitou-o como instrumento útil na realização de uma autêntica justiça. Criteriosamente administrado, o direito de graça pode servir para a realização da justiça nos casos em que a aplicação da lei, na sua generalidade a abstracção, dá lugar a decisões concretas materialmente injustas ou político-criminalmente inadequadas"(…).
Tais medidas de graça não estão expressamente previstas a se no âmbito da Constituição da República Portuguesa, encontrando-se apenas mencionadas aquando da referência aos poderes do Presidente da República (indulto e comutação da pena, nos termos do artigo 134.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa) e do Parlamento (amnistia e perdão genérico, previstos no artigo 161.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa).
"O que verdadeiramente distingue os institutos é o carácter geral da amnistia (dirigido [...] a grupos de factos ou de agentes, em contraposição ao carácter individual do indulto (dirigido a pessoas concretas)"(…).
"A amnistia é, pois, uma instituição de clemência da competência da Assembleia da República. Os seus efeitos podem ser a extinção do processo penal ou, no caso de já existir uma condenação, a extinção da pena e dos respectivos efeitos. No primeiro caso estamos perante uma amnistia própria (em sentido próprio), e no segundo caso perante uma amnistia imprópria (em sentido impróprio).
O perdão genérico é uma figura próxima da amnistia. Trata-se de uma medida de carácter geral, que tem como efeito a extinção de certas penas (pelo que a doutrina o qualifica como verdadeira amnistia imprópria).
Designa-se por amnistia a medida de graça, de carácter geral, aplicada em função do tipo de crime, e perdão genérico a medida de graça geral aplicada em função da pena.
Visto que o perdão genérico é, como se disse, aplicado em função da pena, ele tem a particularidade de poder ser total ou parcial, conforme seja perdoada a totalidade ou apenas uma parte da pena"(…).
Nesta medida, enquanto a amnistia respeita às infrações abstratamente consideradas, "apagando" a natureza criminal do facto, o perdão implica que a pena ou a medida de segurança não sejam, total ou parcialmente, cumpridas.
"A amnistia serve para libertar o agente de um processo penal ainda em curso ou do cumprimento de uma pena, devida à prática de determinado crime. Significa isto que alguns bens jurídicos, protegidos pela legislação penal, são considerados menos importantes, em determinados contextos (por exemplo, em caso de necessidade de pacificação social), razão pela qual a sua protecção pode ser sacrificada reotractivamente. Contudo, tal não significa que a amnistia implique a ausência de dignidade punitiva do acto ilícito.”.
Tendo presente tudo isto, importa encontrar resposta para a questão a decidir: a solução normativa vertida na Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, estabelece uma diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto e os demais, reservando a aplicação das medidas de clemência decretadas para os primeiros e delas excluindo os últimos – deverá entender-se que tal diferenciação passa o crivo do princípio da igualdade a que as soluções normativas relativas às chamadas medidas de graça ou de clemência não estão subtraídas?
As sucessivas leis que têm decretado amnistias e perdões genéricos têm suscitado a apreciação de inúmeras questões que se prendem com a observância das exigências do princípio da igualdade pelas medidas de clemência.
Sobre o tema é já vasta a jurisprudência do Tribunal Constitucional, como se pode colher do respetivo Acórdão nº 488/2008 (3): “Reflectindo o estado actual da compreensão do princípio da igualdade, tanto na jurisprudência como na doutrina, nacionais e estrangeiras, afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da República 1.ª série-A, de 17 de Junho de 2003), assumindo em diversos passos da sua fundamentação abundante argumentação de jurisprudência anterior: [...] Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da "atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição) (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990). [...] 1.2 - O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, «razoável, racional e objectivamente fundadas», sob pena de, assim não sucedendo, «estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes», no ponderar do citado Acórdão n.º 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299). Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como «princípio negativo de controlo» ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos n.º s. 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados n.º s. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial («tertium comparationis»). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão n.º 330/93). Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da «diferença» de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação. [...] [...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos n.º s 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16.º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2.ª ed., 1993, p. 213 e ss., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6.ª ed., 1993, pp. 564-5, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.]. [...] Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade. Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma "fundamentação razoável" (vernünftiger Grund), tal como sustentou o "inventor" do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. f. Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: «[E]stando em causa [...] um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela ratio do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A ratio do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério» (cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido?, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma Autora: «[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a ratio do tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar, e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adoptado e a ratio do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada sociedade» (ob. cit., pp. 31-32).
[...]”. A busca de resposta para a questão a decidir remete-nos, pois, para a indagação acerca da ratio da diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto e os demais, consagrada pela Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, para se apurar se a mesma é “razoável, racional e objectivamente fundada” ou se, pelo contrário, como pretende o recorrente, é irrazoável e arbitrária. Vejamos o que pretendeu o Legislador. Na sua génese, o diploma em apreço surge duma iniciativa legislativa do Governo que apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei nº 97/XV/1ª, com a seguinte exposição de motivos:
“A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo. Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens. Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.
Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.
Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação.
Adicionalmente, é fixado um regime de amnistia, que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda € 1.000, exceto as que forem praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, as infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar e as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa.”.
Desde o início da iniciativa legislativa, a previsão da diferenciação de tratamento entre cidadãos com idade compreendida entre os 16 e os 30 anos de idade e os demais suscitou alguma apreensão sobre se estaria assegurada a conformidade com o princípio da igualdade, constitucionalmente garantido (4)
Também no parecer emitido pelo Conselho Superior da Magistratura (5) sobre a iniciativa legislativa foram expostas reservas quanto à compatibilidade da diferenciação estabelecida com o princípio da igualdade (6).
No Parecer emitido pelo Conselho Superior do Ministério Público (7) exarou-se uma proficiente resenha da jurisprudência do Tribunal Constitucional referente à matéria, aí se consignando que: “Questionado o Tribunal Constitucional sobre a observância do princípio da igualdade a propósito das anteriores Leis de Amnistia adotou como regra uma interpretação bastante flexível, que encontra limite no arbítrio. Recuperamos (…) a argumentação tecida nos seguintes Acórdãos: i. A questão mereceu aturado desenvolvimento no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 42/95, proferido no Processo nº 372/943 a propósito da norma contida no artigo 9º, nº3, alínea d) da Lei nº 15/94, de 11 de maio que exclui do número dos beneficiários do perdão concedido pela alínea d) do nº 1 do artigo 8º da Lei (perdão de "um oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resulte mais favorável ao condenado") "os condenados pela prática de crimes contra as pessoas a pena de prisão superior a 10 anos, que já tenha sido reduzida por perdão anterior". Com referências doutrinárias efetuadas por apelo aos ensinamentos de J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 650); FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 1993, páginas 688 e seguintes); MAIA GONÇALVES ("As medidas de graça no Código Penal e no Projecto de Revisão", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, 1, 1994, páginas 8 e seguintes), o Tribunal Constitucional concluiu que a norma não violava o artigo 13º da CRP, porquanto: - “A ideia de igualdade, com efeito, só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis.” No caso, “a dita norma, de um lado, trata por igual todos os que se encontram nas mesmas condições; e, de outro, a distinção que estabelece entre os que já beneficiaram de um perdão anterior (aos quais, agora, o recusa) e os restantes condenados, inclusive aqueles que, havendo sofrido o mesmo tipo de punição, não tenham sido objecto de perdão (aos quais ele é agora concedido) assenta num critério objectivo e materialmente fundado.” ii. A mesma interpretação foi vertida no Acórdão nº 152/95, proferido no Processo nº 519/944, de 15 de março de 1995, onde se considerou: “É sabido que a igualdade, em sentido material (e é esta a igualdade que o artigo 13º. expressa), pressupõe tratamento igual do que é igual e tratamento diferente do que é diferente, de acordo com a medida da diferença. Daí que, seguindo uma linha jurisprudencial constante que já remonta à Comissão Constitucional, este Tribunal afirme (por exemplo no Acórdão nº. 231/94, publicado no DR-I-A de 28/4/94) que uma diferenciação de tratamento fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória do princípio da igualdade. Por outras palavras, utilizando uma formulação do Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerf GE 1,14 (52), citada por Alexy, Theorie der Grundrecht, Suhrkamp-Verlag, 1986, pág. 370) tratamentos legais diferentes, traduzem uma diferenciação arbitrária "quando (...) não é possível encontrar um motivo razoável decorrente da natureza das coisas, ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível", para essa diferenciação. No caso da exclusão do perdão aqui em causa, sendo colocados como são, em plano de igualdade todos aqueles que, como o aqui recorrente, foram condenados pela prática de crimes contra as pessoas em pena de prisão superior a 10 anos, que já tenha sido reduzida por anterior perdão, não existe tratamento diverso de quem se encontra em situação idêntica (v. Rui Pereira, O Princípio da Igualdade em Direito Penal, o Direito, 1988/I-II, pág. 151). Da mesma forma não comporta a exclusão tratamento arbitrário, sendo como é explicável e racionalmente compreensível por razões de política criminal expressas numa acrescida necessidade de efectividade da pena, nas situações excluídas. (…) Sobre este tema, já se escreveu (José de Sousa e Brito, "Sobre a Amnistia", Revista Jurídica, 6/1986, pág. 44): "o princípio da igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são alargados – como são restringidos pela aplicação das sanções -, impede desigualdades de tratamento (...). A delimitação dos factos amnistiados tem que ser feita segundo critérios susceptíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias, mas razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito". iii. A matéria foi objeto de uma relevante e aprofundada reflexão no Acórdão nº 444/97, proferido no Processo nº 784/96, de 25 de junho de 1997, jurisprudência de referência e de citação em vários arestos posteriores deste Tribunal Superior, que se debruçou sobre a Lei nº 9/96, de 23 de março. Circunscrevemo-nos, em razão do objeto da presente análise, à fundamentação tida por relevante quanto à eventual violação do princípio da igualdade. Considerou então o Tribunal Constitucional que a causa do acto amnistiante explica a oportunidade do diploma no seu conjunto. Citando o Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerfGE, 10, 234 [246]; cf. BVerfGE, 2, 213 [224-5]; 10, 340 [354]): - "Ao decretar uma lei de amnistia o legislador não está obrigado, do ponto de vista do artº 3º, secção 1ª, da Lei Fun-damental, a conceder amnistia a todas as acções puníveis e em medida igual. Não só pode excluir inteiramente da lei de amnistia certos tipos de crime, como pode também sujeitar tipos determinados num regime especial. Só a ele cabe decidir em relação a que infracções se verifica em especial medida um interesse geral de pacificação. Também é uma questão da sua liberdade de conformação legislativa em que âmbito e a que crimes quer conceder amnistia. O Tribunal Constitucional Federal não pode controlar uma lei de amnistia quanto à questão de saber se as regras que nela se consagram são necessárias ou convenientes, e só pode, em vez disso, verificar se o legislador ultrapassou o extremo limite do largo campo de discricionariedade que se lhe abre.
E nessa lei de amnistia só há uma violação do princípio da igualdade quando a regulamentação que o legislador deu a certos factos típicos não está manifestamente orientada por princípios de justiça, ou seja, quando não se encontram para ela quaisquer considerações racionais, que derivem da natureza das coisas ou sejam de qualquer outro modo evidentes". Relativamente à delimitação dos beneficiados pela Lei o Tribunal acabou por concluir: - “Quanto à afirmada limitação aos membros das FP-25, ela foi expressamente negada pela maioria da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, em vista do conteúdo objectivo da Lei, tendo essa negação sido retomada pelos defensores dela na discussão parlamentar (Diário da Assembleia da República, I Série, 203, 1996, pp. 1197 ss). A limitação não corresponde portanto à intenção da lei, que é determinante para julgamento da questão da conformidade com o princípio da igualdade, nem à intenção do legislador. É, aliás, normal que na votação das leis da amnistia se tenham em vista casos determinados de pessoas determinadas, sem prejuízo da definição através de conceitos gerais desses casos e dessas pessoas. Esta doutrina foi claramente afirmada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão num caso em que se teve em vista historicamente um conjunto determinado de cerca de 40 pessoas, nomeadamente um certo jornalista Dr.Platow, seus colaboradores e editores e vários funcionários («grupo Platow») todos envolvidos na divulgação de informações económicas confidenciais, e os crimes de corrupção activa e passiva e violação de segredo pelos mesmos praticados (BverfGE, 10, 234 [243-245]). (…) Não havendo restrição aos membros das FP-25 também não há discriminação pelas convicções políticas ou ideológicas dos mesmos”. Decidindo conceder provimento ao recurso por considerar que a Lei não se mostrava ferida de inconstitucionalidade, “devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o juízo sobre a questão de constitucionalidade ora proferido”. * Ainda que não recaiam sobre Leis de Amnistia, também as mais recentes Decisões do Tribunal Constitucional têm vindo a manter esta interpretação ampla sobre o princípio da igualdade. No Acórdão nº 809/2021, proferido no Processo nº 516/20, de 26 de outubro, o Tribunal Constitucional entendeu, sobre uma eventual violação do princípio da igualdade: 7. O princípio da igualdade constitui um verdadeiro princípio estruturante da ordem jurídica constitucional, sendo mesmo uma exigência do princípio do Estado de Direito. Trata-se de um princípio que vincula diretamente todos os poderes públicos – particularmente o legislador –, que estão assim obrigados a tratar de modo igual situações de facto essencialmente iguais e de modo desigual situações intrinsecamente desiguais, na exata medida dessa desigualdade, desde que esse tratamento desigual tenha uma justificação razoável, racional e objetivamente fundada. O âmbito de proteção do princípio da igualdade abrange, na ordem constitucional portuguesa, diversas dimensões: proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição revista, Coimbra Editora, 2007, pág. 339). Este Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o princípio da igualdade, particularmente na dimensão da proibição do arbítrio, firmando uma jurisprudência reiterada no sentido de que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, sem fundamento material bastante, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º (veja-se, neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 39/88, 157/88, 86/90, 187/90, 1186/96, 353/98, 409/99, 245/2000, 319/2000, 187/2001 e 232/2003). Assim, constitui jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal que a Constituição só proíbe o tratamento diferenciado de situações quando o mesmo se apresente arbitrário, sem fundamento material. A este respeito e em particular sobre o sentido da igualdade jurídica, pode ler-se no Acórdão n.º 565/2018: «15. Numa perspetiva material ou substantiva, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da diferença. Com efeito, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88: «A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29). O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º. Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados. O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.” Na sua mais recente orientação em matéria de controlo da liberdade de conformação do legislador à luz do princípio da igualdade, tem este Tribunal separado dois níveis de análise e graus diferenciados quanto à intensidade do escrutínio. Segundo a síntese do Acórdão n.º 157/2018: “No primeiro nível, o princípio da igualdade surge convocado como condição da possibilidade de estabelecer a distinção introduzida pela norma questionada, decorrendo a sua violação da ausência de um «fundamento racional» suficientemente justificativo da própria opção de diferenciar […]. No segundo nível, resultante da integração na estrutura do princípio da igualdade de dimensões típicas do princípio da proibição do excesso, tem-se especialmente em vista o escrutínio da medida ou da extensão em que a diferenciação estatutária entre [as] duas categorias [em causa] surge concretizada [no regime diferenciador: assumindo a respetiva ratio, importará verificar se o legislador não demonstra] que a prossecução de tal desiderato tornasse necessário o afastamento integral [do regime comum]. [A configurar-se] uma medida menos diferenciadora, propiciadora de um tratamento mais igualitário entre as duas categorias […] sob comparação, e suscetível de alcançar o mesmo desiderato, a extensão em que a diferenciação surge concretizada no [regime em análise] será, em vista dos próprios fins que lhe subjazem, desnecessária, tornando-se, nesta aceção, incompatível com o “princípio da proporcionalidade, enquanto decorrência do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição)”. 10. Na base do n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, e comum a todos os corolários, mais ou menos exigentes, que dele se podem retirar, encontra-se a ideia de igualdade enquanto proibição do arbítrio. Fornecendo o patamar mínimo do controlo jurisdicional proporcionado pelo princípio da igualdade e acentuando-lhe a função de limite externo da liberdade de conformação do legislador ordinário, a conceção da igualdade como proibição do arbítrio vem sendo desde há muito perfilhada na jurisprudência deste Tribunal. [Na síntese do Acórdão n.º 750/95, o “princípio da igualdade reconduz-se (…) a uma proibição de arbítrio sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais”. […] Segundo se extrai ainda da jurisprudência constitucional, a ausência de fundamento material bastante em que se baseia o juízo de censura por violação do princípio da igualdade tanto pode dizer respeito à própria opção de estabelecer um tratamento diferenciado, como à medida em que tal diferenciação surge em concreto concretizada. […] [O]perando essencialmente enquanto proibição do arbítrio, [o princípio da igualdade] enseja um controle externo das opções do legislador ordinário baseado num escrutínio de baixa intensidade. Partindo do reconhecimento de que é ao legislador democraticamente legitimado que cabe ponderar, dentro da ampla margem de valoração e conformação de que dispõe, “os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica” (Acórdão n.º 231/94) – definindo ou qualificando “as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente” (Acórdão n.º 369/97) –, assinala-se ao princípio da igualdade a função de invalidar as escolhas do poder legislativo quando a desigualdade de tratamento que nelas se contém for, quanto ao seu fundamento ou quanto à medida, extensão ou grau em que surge concretizada, à evidência irrazoável.»7 Há de assim questionar-se se a escolha do legislador encontra uma justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo e constitucionalmente relevantes, se encontra uma justificação do ponto de vista dos fins do Estado de Direito capaz de justificar uma limitação, em razão da idade, para os cidadãos abrangidos na Proposta de Lei: - aqueles que tenham entre 16 e 30 anos de idade, à data da prática do facto. Tal delimitação em razão da idade tem que ser feita em função de circunstâncias não arbitrárias e razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito.”. Aproveitando este transcurso sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional acerca da incidência do princípio da igualdade sobre a atividade do Legislador, e sempre tendo presente que será a este, porque democraticamente legitimado, que cabe ponderar, dentro da ampla margem de valoração e conformação de que dispõe, quais os interesses e valores que pretende tutelar, cumpre apreciar se a diferenciação estabelecida na Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, tem fundamento material bastante, por assentar em justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes.
A justificação apresentada pelo Legislador é a de beneficiar com as medidas de clemência os jovens a partir da maioridade penal e até perfazerem 30 anos, por serem os destinatários centrais do evento Jornada Mundial da Juventude (JMJ), sendo essa a idade limite do evento. As medidas de clemência surgem motivadas pela realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, “que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal”. Sendo a iniciativa do Legislador motivada pela realização em Portugal do evento JMJ, as medidas de clemência focam-se na faixa etária dos destinatários centrais do evento. Esta opção do Legislador trata por igual todos os que se encontram nas mesmas condições e, por outro lado, opera distinção que assenta num critério objetivo e materialmente fundado – as medidas de clemência são decretadas por ocasião da realização da JMJ e visam beneficiar os jovens. A pretensão de beneficiar os jovens surge como expressão da margem de discricionariedade do Legislador para delimitação do universo dos destinatários das medidas, surgindo essa delimitação em conformidade com critérios suscetíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias, razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de Direito. A opção de estabelecer um limite máximo que não é coincidente com aqueloutro que o Legislador escolheu para a definição do universo dos cidadãos abrangidos pelo Regime Penal Especial para Jovens (sendo este aplicável aos jovens até aos 21 anos de idade - Dec-Lei nº 401/82, de 23 de setembro), não constitui fundamento para se concluir pela arbitrariedade na delimitação operada. Aliás, sendo as JMJ destinadas a jovens até aos 30 anos de idade, e sendo a sua realização em Portugal o mote para o decretamento das medidas, surgiria como muito dificilmente justificável uma diferenciação de tratamento entre um jovem com 20 anos e outro com mais de 21, sendo certo que ambos estariam do mesmo modo incluídos no target das Jornadas. Recordemos que a iniciativa foi expressamente justificada por reporte à realização das JMJ, sendo afirmado: “justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina”. A iniciativa inclui todos aqueles que se compreendem na faixa etária dos protagonistas das Jornadas. A diferenciação entre os que tenham e os que não tenham mais de 30 anos de idade, à data da prática do facto, surge ancorada, assim, de modo razoável e materialmente fundado, na intenção de favorecer os cidadãos da faixa etária dos destinatários das JMJ com as medidas que, sem o evento a eles especialmente dedicado, não seriam decretadas. Deverá notar-se que a opção legislativa pela idade máxima de 30 anos não constitui uma completa originalidade, podendo encontrar-se na ordem jurídica portuguesa outros exemplos em que tal idade máxima surge como limite diferenciador. Assim, por exemplo, a Lei nº 23/2006, de 23 de junho, que estabelece o regime jurídico do associativismo jovem, bem como os programas de apoio ao desenvolvimento da sua atividade, prevê que “São grupos informais de jovens, para efeitos do disposto na presente lei, os grupos que sejam constituídos exclusivamente por jovens com idade igual ou inferior a 30 anos, em número não inferior a cinco elementos.” (artigo 2º , nº 2), e que “São associações juvenis: a) As associações com mais de 75% de associados com idade igual ou inferior a 30 anos, em que o órgão executivo é constituído por 75% de jovens com idade igual ou inferior a 30 anos;” (artigo 3º, nº 1, al. a), assim dando relevância jurídica a tal limite de idade. Por outro lado, e também a título exemplificativo, o Regulamento nº 412/2023, de 3 de abril (publicado no DR nº 66/2023, Série II) que aprovou o “Regulamento do Programa «Voluntariado Jovem para a Natureza e Florestas», prevê a sua aplicabilidade, na qualidade de voluntários, a “jovens residentes em Portugal, com idade compreendida entre os 14 e os 30 anos, com condições de idoneidade para o voluntariado ambiental” (artigo 4º, nº 1).
Também na Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, o Legislador escolheu o limite máximo dos 30 anos de idade e fê-lo no uso da liberdade de conformação legislativa quanto à definição do universo de destinatários das medidas de clemência. Não se divisa aí qualquer violação do princípio da igualdade, posto que a opção legislativa se mostra assente em considerações racionais e que derivam da natureza das coisas. Como supra se assinalou, o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo, porém, a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, sem fundamento material bastante, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa (nas quais não figura, sublinhamos, a idade).
Aqui chegados, concluímos que a escolha do legislador ao definir a diferenciação subjacente à Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, encontra uma justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo e constitucionalmente relevantes, justificação compatível com os fins do Estado de Direito e, por isso, capaz de justificar uma limitação, em razão da idade, para os cidadãos abrangidos na Proposta de Lei: aqueles que tenham entre 16 e 30 anos de idade, à data da prática do facto. Neste sentido se decidiu no recentíssimo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de novembro de 2023, onde se lê: “(…) a lei aqui em causa reveste carácter geral e abstracto, pois ela aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado.
Por outro lado, a delimitação do âmbito de aplicação da lei está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável.
Não padece, por isso, da apontada inconstitucionalidade (…)”8.
No mesmo sentido se decidiu, também, em Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de novembro de 2023 onde se lê:
“A Jurisprudência do Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da C.R.P. não é impeditivo da existência de regras especiais, dirigidas a categorias específicas de pessoas, em função de critérios objectivos, apenas obsta à existência de regras diversas para situações objectivamente iguais (por todos ver Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 42/95, de 1.2.1995, e nº 152/95, de 15.3.1995).
Conforme se decidiu no Acórdão do S.T.J. de 15.7.1987, “a proibição de discriminação nos termos do artigo 13º, nº 2, da Constituição da República, não significa uma igualdade absoluta em todas as situações, mas apenas exige que as diferenças de tratamento sejam materialmente fundadas e não tenham por base qualquer motivo constitucionalmente impróprio. As diferenciações de tratamento podem ser legítimas quando se fundam numa distinção objetiva e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à realização da respectiva finalidade” (disponível em www.dgsi.pt).
Ora a ideia que a menor juventude dos infractores justifica um tratamento diverso precisamente por esse motivo e por considerações de reintegração social encontra já respaldo no regime aplicável aos jovens delinquentes com idades compreendidas entre os 16 e 21 anos consagrado no Dec. Lei nº 401/82, de 23.9.
Aliás a determinação do universo de pessoas abrangidas pela amnistia e pelo perdão em função da idade nem sequer constitui opção inédita do legislador, que na Lei nº 29/99, de 12.5, já limitara aso infractores com menos de 21 anos e com mais de 70 anos o perdão das penas de prisão até três anos aí previsto.
No caso de perdão importa ter em conta que “o legislador da clemência tem liberdade de estabelecer os critérios e a forma de determinar o perdão, mantendo uma significativa discricionariedade, de forma a cumprir os objectivos que lhe estão subjacentes” (Acórdão do S.T.J. de 1.2.2023, disponível em www.dgsi.pt).
Fazendo apelo ao decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 488/2008, de 7.10.2008, “cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger a medida do perdão de penas – o quantum do perdão – quer em princípio, as espécies de crimes e infrações a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou nõ a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis”.
Como tal não impunha o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da C.R.P. que fosse aplicado ao Recorrente, que não reunia os pressupostos estatuídos pelo artigo 2º, da Lei nº 38-A/2023, de 2.8., o perdão previsto no artigo 3º desse diploma legal.” (9)
Somos, deste modo, uma vez mais, confrontados com o que se explicou no acórdão do Tribunal Constitucional nº 510/98, publicado no Diário da República, II Série, nº 242, de 20 de Outubro de 1998, em matéria de amnistia e de delimitação do seu campo de aplicação - se o legislador "pode demarcar esse campo em função de quaisquer fins admissíveis do Estado de direito, então também a sua discricionariedade é máxima".
É que, mesmo perante a incursão, pelos demais, em idênticos crimes e dentro do quadro de molduras penais sensivelmente iguais, pode compreender-se que se tivesse querido favorecer com a concessão das medidas de clemência os arguidos jovens, todos os pertencentes à faixa etária dos destinatários do evento internacional motivador da iniciativa de Graça. Favorecer os jovens arguidos e condenados, concedendo-lhes amnistia e perdão genérico, assenta em objetivos de facilitação da reintegração social daqueles agentes de crime, associando-se a medida legislativa ao mote de otimismo e esperança na Juventude que as Jornadas assinalam.
A diferenciação não é arbitrária. E tanto basta para não dar como violados os princípios da igualdade e da proibição da discriminação. Em conclusão: i. A Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, que decretou medidas de clemência de amnistia e perdão de penas, estabeleceu uma diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (os beneficiários dessas medidas de clemência) e os demais (excluídos da aplicação das medidas); ii. Essa diferenciação surge ancorada, de modo razoável e materialmente fundado, na intenção de favorecer os cidadãos da faixa etária dos destinatários das Jornadas Mundiais da Juventude com as medidas que, sem o evento a eles especialmente dedicado, não seriam decretadas; iii. Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger a categoria geral de pessoas abrangida pelas medidas de clemência e, fazendo-o em função de critérios objetivos, que determinam a aplicação das mesmas regras nas situações objetivamente iguais, não ocorre qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação do princípio da igualdade e da proibição da discriminação; iv. O artigo 2.º, nº 1, da Lei n.º38-A/2023, de 2 de agosto, interpretado tal como o foi na decisão recorrida e em conformidade com o que supra concluímos, não viola quer o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, quer o artigo 21.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
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Nestes termos, o recurso improcede, devendo manter-se, por bem fundada, a decisão recorrida.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
D.N.
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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).
Évora, 18 de dezembro de 2023
Jorge Antunes (Relator)
Laura Goulart Maurício (1ª Adjunta)
Margarida Bacelar (2ª Adjunta)
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1 Proclamada solenemente em Nice, em dezembro de 2000, a Carta é, desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em dezembro de 2009, juridicamente vinculativa (cfr. artigo 6.º do Tratado da União Europeia).
2 Acessível em: https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/2-2023-206800919
3 Acessível em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080488.html
4 Na nota de admissibilidade (lavrada para efeitos de despacho do Senhor Presidente da Assembleia da República, nos termos do disposto na alínea c. do nº 1 do artigo 16º do respetivo Regimento), o Assessor parlamentar lançou as seguintes observações: “Segundo o artigo 2.º da proposta de lei, o seu âmbito subjetivo é restringido a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da praticado um crime ou contraordenação, até dia 19 de junho de 2023. A diferenciação entre as pessoas penalmente imputáveis – todos os maiores de 16 anos (cfr. artigo 19.º do Código Penal) – em função da idade, à data da prática de um facto ilícito, ainda que o tipo de ilícito cometido tenha sido o mesmo, poderá justificar a ponderação da conformidade desta norma com o princípio constitucional da igualdade, previsto no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição. Nos termos da alínea f) do artigo 161.º da Constituição, compete à Assembleia da República “conceder amnistias e perdões genéricos”. Em comentário a esta norma, Rui Medeiros e Jorge Mirada defendem que “a decisão de amnistiar assenta na pura discricionariedade política, seja qual for a sua finalidade [celebrativa de certo evento (…), etc]. Por isso, é insindicável, salvo quando vedada a respeito de certa categoria de crimes (…), mas não o seu conteúdo, que deve ser aferido à luz dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.” A presente proposta de lei tem como causa política a Jornada Mundial da Juventude de 2023. Conforme se refere na exposição de motivos, pretende adotar “medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento”, que “abarca jovens até aos 30 anos”. Conforme se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 444/97, “o princípio de igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são alargados - como são restringidos pela aplicação das sanções -, impede desigualdades de tratamento. O problema então não se põe relativamente à constitucionalidade do acto amnistiante total dada a sua causa, mas relativamente à configuração concreta de cada norma de amnistia. A delimitação dos factos amnistiados tem que ser feita segundo critérios suscetíveis de generalização (…) em função de circunstâncias não arbitrárias, mas razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito”. Francisco Aguilar ressalva que, formalmente, as leis de amnistia configuram “necessariamente uma derrogação ao princípio da igualdade. É que, por força da amnistia, apenas alguns dos factos que correspondam à previsão normativa da lei incriminadora irão ser efetivamente punidos.” Não obstante, “uma lei de amnistia será (…) inconstitucional quando viole o princípio da igualdade (materialmente entendido)”. O referido Acórdão TC n.º 444/97 sustentou que o “princípio da igualdade não significa proibição de normas especiais ou excecionais relativas a categorias de interessados, mesmo se já individualizáveis em concreto, como nas leis retroativas, mas sim proibição de normas diversas para situações objetivamente iguais, com o corolário de que normas diversas regulam situações objetivamente diversas do ponto de vista da razão da norma”. Conforme é referido em decisões concretas do mesmo tribunal: - “A ideia de igualdade, com efeito, só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis. Ora, a dita norma, de um lado, trata por igual todos os que se encontram nas mesmas condições” (Acórdão TC n.º 42/95); e - “Entre os princípios, cujo respeito se impõe ao legislador ordinário competente para dispor sobre o perdão genérico das penas, contam-se o invocado pela recorrente, o princípio da igualdade perante a lei e na lei (…). No que importa à primeira dimensão, importa reconhecer que o legislador do perdão genérico não o desrespeitou. Na verdade, o perdão foi concedido a todos condenados que houvessem praticado os mesmos crimes” (Acórdão TC n.º 488/2008). De referir que a exposição de motivos menciona, ainda, “leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios”. No entanto, consultando as disposições das leis de perdão ou amnistia, apenas detetámos normas específicas que estabeleciam que determinadas penas de prisão fossem substituídas por penas de multa, quando aplicadas a menores de 18 ou 21 anos de idade ou a maiores de 70 anos de idade – Leis n.ºs 29/99, de 12 de maio, 15/94, de 11 de maio, e 17/82, de 2 de julho. Quanto a antecedentes legais que tenham efetuado uma discriminação subjetiva, destacamos a Lei n.º 31/81, de 25 de agosto, que amnistia diversos crimes referentes a veículos automóveis, quando hajam sido praticados por desalojados das ex-colónias ou por emigrantes, ou as Leis n.ºs 17/85, de 17 de julho, e 5/95, de 20 de fevereiro, relativas a infrações disciplinares de determinados sujeitos. Nestes atos normativos parece existir uma estreita ligação entre o âmbito subjetivo e os ilícitos previstos, que fundamentam a discriminação. Assim, salvo melhor opinião, poderão ser analisados os critérios que justificam que o artigo 2.º da proposta – e não o motivo que a causou a iniciativa – discrimine entre agentes que tenham praticado o mesmo crime ou a mesma contraordenação, consoante tivessem, no momento da prática do facto, por exemplo, 30 ou 31 anos de idade.”.
6 Nesse Parecer do CSM pode ler-se: A presente proposta visa estabelecer, em virtude e por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), a realizar entre os dias 2 e 6 de agosto de 2023, perdão de penas e amnistia de infrações praticadas até às 00:00 horas do dia 19 de junho de 2023, praticadas por jovens entre os 16 e 30 anos de idade.
Na exposição de motivos que precede a presente iniciativa legislativa, considera-se que «a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana» justifica «adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento».
A divergência com o conceito de jovem consagrado em vários diplomas do nosso ordenamento jurídico (que abrange pessoas que tiverem completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos) justifica-se na exposição de motivos com a idade limite das JMJ (30 anos), moldando-se «as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina».
(…)
A opção legislativa assumida na presente proposta quanto aos destinatários do diploma justifica-se, como se viu, na exposição de motivos, com a idade limite das Jornadas Mundiais da Juventude (30 anos), moldando-se «as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina».
Embora se trate de opções legislativas que cabem na competência do legislador ordinário, tomadas no âmbito da política criminal, às quais, como se refere no aresto acima mencionado, não pode deixar de se reconhecer «discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo», a verdade é que, como aí também se sublinha, a «discricionariedade normativo-constitutiva do legislador ordinário não é ilimitada: ela tem de respeitar as normas e os princípios constitucionais. Estas normas e princípios constitucionais surgem sempre como um limite à actividade legiferante do órgão constitucionalmente competente para dispor sobre a matéria».
Entre esses princípios, «cujo respeito se impõe ao legislador ordinário competente para dispor sobre o perdão genérico das penas, contam-se o princípio da igualdade perante a lei e na lei».
Ora, a diferenciação de tratamento entre pessoas que praticaram idênticas infrações com base unicamente na idade que possuíam no momento da sua prática, ainda que amparada na faixa etária dos principais destinatários de um evento, suscita as maiores reservas quanto à sua conformidade constitucional.
Na verdade, trata-se de uma discriminação (positiva) em função da idade, que não se mostra devidamente justificada.
Segundo o ensinamento de Gomes Canotilho e Vital Moreira, as diferenciações só podem ser legítimas quando se baseiem numa distinção objetiva de situações, tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objetivo.
A discriminação para ser legítima terá, pois, que ser proporcional, necessária e adequada, não podendo, de modo algum, ser arbitrária. As medidas das diferenças que estabelecem terão que ser proporcionais.
As JMJ não são um valor constitucional que justifique a discriminação de pessoas, sendo, pois, duvidoso que esta discriminação se considere não arbitrária, considerando que a discriminação que é feita tem que se justificar para fins constitucionalmente legítimos. Por outras palavras: é necessário que a discriminação seja constitucionalmente legítima e que a diferença de tratamento estabelecida pelo legislador seja adequada e proporcional nessa perspetiva.
Se é fácil legitimar constitucionalmente que a lei sob escrutínio não abranja infrações futuras ou englobe somente as praticadas até as 00:00 horas do dia 19 de junho de 2023, afigura-se-nos, ao invés, impossível de descobrir um motivo constitucional que seja para que uma pessoa de 31, 40 ou 70 anos de idade à data da prática do facto fique arredada dos benefícios do perdão e da amnistia.
Afigura-se, pois, que poderemos estar perante uma situação de discriminação em função da idade, sem qualquer justificação objetiva, que dificilmente passará no crivo do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da Constituição.”
7 O Parecer do Conselho Superior do Ministério Público está acessível em: https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c63793959566b786c5a793944543030764d554e425130524d5279394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c3259554e7662576c7a633246764c32566c596d59774e5746694c544d3559324d744e4755774d6930355a4441794c54466d4e6a68694e47497a597a466b596935775a47593d&fich=eebf05ab-39cc-4e02-9d02-1f68b4b3c1db.pdf&Inline=true
8 Cfr. Ac. Relação de Coimbra de 22 de novembro de 2023 – Relator: João Abrunhosa – acessível em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/d2762142f201fda180258a830039c6f0?OpenDocument
9 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de novembro de 2023, proferido no Recurso Penal nº 170/23.0PBVFX.L1 – Relatora: Maria Carlos Calheiros – decisão, ao que cremos, não publicada, proferida em processo em que o arguido completara, à data dos factos da condenação, 33 anos de idade.