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NULIDADE DA SENTENÇA
ERRO DE JULGAMENTO
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
Sumário
I – Enquanto fundamento de nulidade da sentença (cf. art, 615.º, n.º 1, do CPCivil), a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória, só releva quando gera ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1, ambos do CCivil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar. II – Não enferma de erro de julgamento a decisão da matéria de facto que se apresenta sustentada num juízo de maior probabilidade do acontecer, dotado de racionalidade, objetividade e inteligibilidade bastantes, e alcançado por via da livre apreciação das provas produzidas sob favorecimento da imediação. III – Configura um contrato de mandato sem representação o negócio jurídico por via do qual o autor se comprometeu ante o réu, a adquirir um veículo automóvel a terceiro, com recurso a financiamento bancário subscrito pelo próprio autor, reembolsável em prestações, comprometendo-se o réu a entregar ao autor os valores das prestações bancárias, previamente ao respetivo vencimento, ficando o réu na posse do veículo para sua utilização exclusiva, e com a obrigação de o autor operar a transferência do registo de propriedade do veículo em favor do réu, após integral cumprimento por este das prestações de pagamento assumidas ante aquele.
Texto Integral
PROCESSO N.º 280/22.0T8VFR.P1
[Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira - Juiz 2]
Relator: Fernando Vilares Ferreira 1.ª Adjunta: Lina Castro Baptista 2.ª Adjunta: Anabela Dias da Silva
SUMÁRIO:
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EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto: I. RELATÓRIO 1. AA intentou a presente ação declarativa de condenação em processo comum contra BB e CC. Alegou, em síntese, que, por os Réus não conseguirem obter crédito bancário para si, acabou por adquirir um veículo automóvel para aqueles com recurso a crédito bancário; os Réus ficaram com a posse do veículo automóvel e obrigavam-se a entregar mensalmente ao Autor o valor correspondente às prestações bancárias; todavia, nada foi pago pelos réus, vindo o Autor a ser executado e, mais tarde, pago ao exequente a quantia de €17.500,00; a esta quantia acrescem as quantias relativas a impostos que os réus se obrigaram a pagar e não pagaram, mas que o autor foi obrigado a liquidar junto das Finanças; invocou ainda ter sofrido danos não patrimoniais decorrentes da conduta dos Réus. Pediu a condenação dos Réus a indemnizarem-no na quantia de 18.276,31€, por danos patrimoniais, e na quantia de 2.500,00€, por danos não patrimoniais, acrescidas dos respetivos juros à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento, a título de responsabilidade contratual por incumprimento do acordado; e, subsidiariamente, a condenação dos Réus a indemnizarem-no por se terem locupletado sem causa, na quantia de 77.040,00€, acrescida dos juros de mora à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento. 2.
A Ré CCcontestou, invocando, em síntese, que não interveio no negócio a que se refere o Autor; que o Réu era seu marido, mas já não tinham qualquer relação conjugal, e que a alegada dívida foi em proveito exclusivo do Réu, pelo que é exclusivamente da responsabilidade dele; entregou 4 mil euros ao Autor, mas apenas por força de pressão deste; os serviços que o Réu prestava ao Autor eram descontados no valor do carro; o documento assinado por si, junto com a petição inicial, foi assinado em branco.
O Réu BB também contestou, alegando que acordou com o Autor por este lhe ter criado a expectativa de que iriam criar uma sociedade; por força do acordo, entregou 1050 euros ao Autor, assim como lhe prestou serviços que eram descontados no valor do carro; deixou de usar o automóvel em 4.8.2013, data em que o mesmo foi penhorado; invocou ainda abuso do direito por parte do Autor, por ter criado fundada expectativa de que a reclamação do pagamento dos valores das prestações em falta não iria ser exercitada; impugnou o enriquecimento sem causa e invocou a respetiva prescrição. 3.
Teve lugar audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho saneador que julgou válida e regular a instância; procedeu-se à enunciação do objeto do litígio e à fixação dos temas da prova (Apurar se a Ré também se vinculou ao acordo supra referido e, em caso negativo, se se trata de uma dívida exclusiva do réu; Apurar se os Réus pagaram alguma quantia ao autor e se os serviços prestados pelo Réu ao Autor eram descontados no valor do carro; Apurar se o Autor pagou ao exequente da execução supra identificada a quantia de €17.500,00; Apurar se o Autor pagou impostos relativos ao carro e que os Réus tinham que pagar; Apurar se o Autor sofreu danos não patrimoniais por força da conduta dos Réus; Apurar o período temporal em que o veículo foi usado pelos Réus e qual o custo diário de um veículo semelhante; Apurar se o Autor criou no Réu uma fundada expectativa de que não iria reclamar do Réu o pagamento dos valores relativos àquele acordo). 4.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi prolatada sentença, com o seguinte DISPOSITIVO: [Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido: a) Condenar os réus a pagar ao autor a quantia de €17.612,13, acrescida de juros civis vencidos e vincendos desde a data da citação até integral e efectivo pagamento; b) Absolver os réus do demais peticionado; c) Condenar o autor e os réus nas custas do processo, sendo aquele na proporção de 16% e estes na proporção de 84%.] 5.
Inconformado com a sentença, o Réu BB interpôs o presente recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, versando matéria de facto e de direito, assente nas seguintes CONCLUSÕES: 1.ª A douta sentença enferma de fundamentação que está em oposição com a decisão proferida, bem de ambiguidade e da obscuridade, o que torna a decisão ininteligível e, consequentemente, leva à respectiva nulidade, nos termos e para efeitos do art. 615º nº 1 al. c) do CPC. Isto porque: 2.ª Como pode a Douta sentença recorrida decidir, como o fez, nos termos supra exposto no ponto II -1., quando não dá como provada qualquer data referente aos factos dados como provados, nomeadamente em 1. a 8.?
Ou seja, sem tais datas, como concluiu pela condenação do recorrente no pagamento da quantia de €17.500,00, por violar o contrato a que estava vinculado? 3.ª Mas mais, dados como provados os factos 11 e 12, como pode o Tribunal a quo condenar o recorrente no pagamento da quantia de €17.500,00, sem ser efectuada a respectiva subtração do valor pago pelo Réu? 4.ª Mais ainda, analisada a motivação exposta a fls. da Sentença recorrida sobre a factualidade dada como provada em 15. 16. 17. e 18., não se compreende, nem se aceita, como pode ser dada como não provada a factualidade descrita em f), g), i), j), k, l, m), e n), tornando ininteligível como se pode “condenar os Réus a pagarem ao autor a quantia de €17.500,00, por violarem o contrato a que estavam vinculados”! 5.ª Acresce que se atendermos ao facto dado como provado em 12., nada considerou provado o Tribunal que as prestações tenham sido entregues pelo recorrido ao Banco 1...,S.A. - sendo certo que em 15º da sua PI aquele alega que os réus nunca lhe fizeram qualquer entrega de dinheiro para pagamento de qualquer prestação - pelo que, perante esta realidade, não pode, porque contraditório, afirmar o Tribunal a quo, simultaneamente, que “ Ora, seria essa a quantia a pagar ao autor, pois foi o que as partes estipularam no âmbito das suas relações internas. Todavia, uma vez que os réus não pagavam ao autor, este entrou em incumprimento perante o Banco, vindo a ser executado” 6.ª Ainda mais, dá o Tribunal a Quo provada a factualidade em 13. Mas desde quando, pergunta-se? É que não se dá como provada qualquer data quer de pagamento, quer ao período a que respeitam tais impostos, e é com base neste facto dado como provado que os Réus são condenados no pagamento €112,13, a título de Imposto Único de Circulação. A propósito de tal factualidade pronuncia-se o Tribunal recorrido na respectiva fundamentação, de fls, donde se afere que os €112,13 a título de Imposto Único de Circulação a que os Réus foram condenados a pagar referir-se-ão, alegadamente, ao período de 2016 e de 2018, período em que para além do veículo já estar penhorado e de si desapossado desde Agosto de 2013, conforme facto 14 dado como provado, também não lhe eram exigíveis porque “era o autor quem pagava o seguro e os impostos relativos ao veículo”, conforme assentada lavrada em acta datada de 10.02.2023. 7.ªÉ, pois, manifesta a oposição de fundamentos com a decisão proferida, bem como a sentença ambígua e obscura, o que leva à respectiva nulidade, nos termos e para efeitos do art. 615º nº 1 al. c) do CPC. 8.ª Acresce que a decisão proferida sobre a matéria de facto e direito enferma de incorrecta interpretação e apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, razão pela qual vai impugnada, visando-se a respectiva alteração nos termos e para efeitos dos artigos 638º, nº 7, 639º e 640º, todos do CPC. 9.ª Desde logo quanto à omissão de factos que deveriam ser dados como provados na sequência da motivação sobre a factualidade dada como provada em 15. 16. 17. e 18., exposta a fls. da Sentença recorrida, uma vez que dela resulta manifesto que “Autor e esposa não tinham conhecimento na área ou experiência na área, pelo que o objectivo era que o Réu fizesse parte do projecto, já que era o detentor do know-how necessário.” (art. 662º nº1 e art. 640º CPC) 10.ª Pelo que deverá, em conformidade, acrescentar-se um novo facto dado como provado: “19. Autor e esposa não tinham conhecimento na área ou experiência na área, pelo que o objectivo era que o Réu fizesse parte do projecto, já que era o detentor do know-how necessário.” 11.ª Das declarações de parte do Recorrido resulta que “era o Autor quem pagava o seguro e os impostos relativos ao veículo”, conforme assentada lavrada em acta datada de 10.02.2023. 12.ª Pelo que, e com manifesto interesse para a boa decisão da causa, deverá tal facto ser acrescentado como facto dado como provado: “20. Era o Autor quem pagava o seguro e os impostos relativos ao veículo”. 13.ª De igual modo se impõe a alteração da resposta dada aos pontos f), g), i), j), k, l, m), n) e o) dados como não provados pelo Tribunal a Quo. 14.ª E impõe-no não só o facto de terem sido dados como provados os factos 15. 16. 17. e 18., como também a respectiva motivação a fls. da Sentença recorrida. 15.ª Que outra interpretação pode dar- se a “o objectivo era que o Réu fizesse parte do projecto, já que era o detentor do know-how necessário” que não aquela que sempre foi feita pelo recorrente, ou seja, a de vir a ser sócio do recorrido e que só convicto da futura concretização da aludida parceria é que cessou o contrato de trabalho com a sua entidade patronal DD, é que aceitou tal negócio sobre o veículo e a consequente responsabilização pelo pagamento das prestações, sempre na legítima expectativa que lhe foi criada pelo recorrido, acalentada em Janeiro de 2007 quando a esposa EE fez cessar o contrato de trabalho na convicção da formalização da aludida parceria?! 16.ª De igual forma o impõe, também, a 2ª parte do facto 10 dado como provado e o facto dado como provado em 13. 17.ª Finalmente também a prova testemunhal e documental produzida em audiência de julgamento, o impõe, designadamente as Declarações de parte do Autor (cfr. CD com gravação datada de 15.02.2023, entre as 09:54:02 e as 10:29:23, ao minuto 00:18:00), Declarações/depoimento de parte do Réu (cfr. CD com gravação datada de 15.02.2023, entre as 10:48:50 e as 11:15:43, minutos 00:09:10: a .00:10:59 e minutos 00:23:18: a .00:23:58 ) e Depoimento da Testemunha EE (cfr. CD com gravação datada de 15.02.2023, entre as 11:21:28 e as 11:36:41, minuto 00:03:40 a 00:04:45 e minuto 00:13:00 a 00:13:45). 18.ª Considerando tais depoimentos, bem como o facto dado como provado em 15. e os valores habituais e usualmente cobrados, comummente conhecidos, é perfeitamente admissível que a alegada dívida que o recorrente alegadamente pudesse ter com o recorrido também fosse paga em espécie e como o dito valor de €1.050,00 foi alcançado. 19.ª E sendo tema da prova “Apurar se o autor criou no réu uma fundada expectativa de que não iria reclamar do réu o pagamento dos valores relativos àquele acordo [art. 6-9 e 12-16 da contestação do réu]”, cremos que de toda a prova produzida, bem como da motivação apresentada pelo Tribunal recorrido, essa fundada expectativa verificou-se. 20.ª Não só porque atendendo às regras da experiência e ao bom senso do cidadão comum, do homem médio, saber-se porque o fez: pela legítima expectativa que o recorrido criou no recorrente de este tornar-se seu sócio, já que era o detentor do know-how necessário para o negócio pretendido por aquele e pela sua esposa. 21.ª Como também porque é exemplo manifesto disso mesmo o facto do recorrido nunca ter interpelado o recorrente para o alegado pagamento em falta, nunca lhe ter retirado o veículo automóvel da sua posse, nunca lhe ter comunicado qualquer interpelação para pagamento por parte do Banco 1..., S.A ou citação para a execução em causa, nem dado conhecimento dos termos do acordo ali alcançado. 22.ª E há, ainda, de atendermos às incoerências entre recorrido e esposa relativamente às suas reais capacidades económicas, que ao contrário do alegou aquele nas suas declarações de parte, não seriam tão boas em 2006, nem a sua vida financeira estável, uma vez que no final desse mesmo ano, janeiro do ano seguinte terão desistido do aludido negócio de serviços da rectroescavadora por incapacidade económica. 23.ª Concluindo: dúvidas não persistem que ficou provada a defesa do Recorrente, que pode concluir-se desta forma: “Uma vez que o recorrente prestava alguns serviços ao recorrido, quer através da sua entidade patronal à data, quer por si próprio fora do horário de trabalho, este propôs-lhe sociedade pois iria adquirir uma máquina de retroescavadora, bem como um contrato de trabalho até formalização daquele negócio, tendo sido nesse contexto que o recorrido entendeu pedir um empréstimo para aquisição da viatura ..-..-TC para o recorrente utilizar, tendo sido ele próprio que o levou a um Stand de um conhecido seu, e perante essa legítima expectativa que criou no recorrente este entendeu aceitar. Pelos mesmos motivos o recorrente cessou o contrato de trabalho com a sua entidade patronal DD e em Novembro de 2006 passou a trabalhar sob as ordens, direção e fiscalização do Recorrido mas através de contrato de trabalho firmado com a esposa deste EE. Vários pagamentos mensais foi efectuando o recorrente ao recorrido, quer através dos trabalhos que o Réu lhe prestava fora dos horários de trabalho, nos seus terrenos, num total mínimo de €1.050,00, quer através de entregas num valor de pelo menos €2.044,00. Em finais de Janeiro de 2007 o recorrido, através da sua esposa EE, fez cessar o contrato de trabalho convencendo o recorrente que seria para formalizarem a aludida parceria, o que não veio a concretizar-se desconhecendo ainda hoje o recorrente os verdadeiros motivos da recusa por parte do recorrido, não obstante o motivo invocado ter sido o de falta de capacidade financeira/económica., tendo-lhe permitido continuar a fazer uso do veículo sem qualquer contrapartida. Nunca o recorrido interpelou o recorrente quanto à alegada falta de pagamento das demais prestações do financiamento, nem para devolução do veículo, nem lhe deu a conhecer qualquer interpelação extrajudicial ou judicial por parte da financeira. Só em 04 de Agosto 2013 é que o recorrente tomou conhecimento do incumprimento por parte do recorrido relativamente ao pagamento das prestações com a penhora do automóvel, através da GNR, que foi apreendido de imediato, nunca mais tendo sido por si usado a partir dessa data. Relativamente ao imposto de circulação também não lhe eram exigíveis porque “era o autor quem pagava o seguro e os impostos relativos ao veículo”, sendo que os €112,13 a título de Imposto Único de Circulação a que o recorrente foi condenado a pagar referem-se, alegadamente, ao período de 2016 e de 2018, período em que o veículo já se encontrava penhorado e de si desapossado desde Agosto de 2013. O recorrido criou, assim, no recorrente confiança razoável de que o contrato de parceria se iria concluir, criando nele legítimas expectativas de consumação do mesmo e, posteriormente, recusou a sua conclusão sem justo motivo”. 24.ª Pelo exposto, impõe-se que sejam dados como provados, os pontos pontos f), g), i), j), k, l, m), n) e o) dados como não provados pelo Tribunal a Quo. (art. 662º nº1 e art. 640º CPC) 25.ª E nada se provou para que se conclua, como o fez o Tribunal a Quo “que o réu nada demonstrou quanto a uma suposta excepção de não pagamento”, e que, com base no entendimento por si perfilhado, perante o contrato de mandato sem representação em causa, “condenar os réus serão condenados a pagar ao autor a quantia de €17.500,00, por violarem o contrato a que estavam vinculados.” 26.ª Entende o Recorrente que dúvidas não subsistem que se provou que o Requerido fez surgir nele confiança razoável de que o contrato de parceria se iria concluir, criando-lhe legítimas expectativas de consumação do mesmo e, posteriormente, recusou a sua conclusão sem justo motivo. 27.ª Daí que na senda do que sempre perfilhou continue agora a defender que não há qualquer incumprimento da sua parte para com o recorrido, mas sim a violação por parte deste dos princípios da boa fé negocial, quer através da frustração das legítimas expectativas do recorrente quanto ao negócio acordado entre as partes, quer, depois, ao ter criado nele nova e fundada expectativa de que a reclamação do pagamento dos valores das prestações em falta não iria ser exercitada revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável. 28.ª Foi o Recorrido quem frustrou, assim, com o seu comportamento, aquelas legítimas expectativas do Recorrente, valendo dizer que não actuou segundo os princípios da boa fé negocial - art. 227º nº1 do Código Civil 29.ª Como também com o seu comportamento posterior criou no Recorrente uma fundada expectativa de que a reclamação do pagamento dos valores das prestações em falta não iria ser exercitada revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável. 30.ª Dispõe o artigo 334º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. 31.ª Decidindo em contrário das conclusões anteriores, violou a douta sentença recorrida o disposto nos artigos 227.º, 334º, 341.º, 342.º, 762.º, todos do Código Civil e 615º nº1 al. c) CPC pelo que é ilegal, como tal devendo ser declarada e substituída por outra que absolva o recorrente da totalidade do pedido, 6.
O Recorrido contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso. II. OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil).
Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, o que importa apreciar e decidir é, em primeira linha, se a sentença recorrida padece de vício de nulidade, seja por contradição entre os fundamentos e a decisão, seja por ininteligibilidade da decisão, decorrente de ambiguidade ou obscuridade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPCivil; depois, se há razões válidas para operar a alteração da decisão da matéria de facto, nos termos preconizados pelo Apelante; e, por fim, se se justifica a adoção de solução jurídica diversa da alcançada pela 1.ª instância. III. FUNDAMENTAÇÃO 1. Da invocada nulidade da decisão recorrida
O Apelante arguiu a nulidade da sentença, por alegada oposição entre os fundamentos e a decisão, e ininteligibilidade (cf. al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPCivil).
Vejamos.
Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPCivil, a sentença padece de vício de nulidade quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
No que concerne à oposição entre os fundamentos e a decisão, lembrando as palavras de ALBERTO DOS REIS[1], “o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.
E citando LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE[2]: “Entre os fundamentos da decisão não pode haver contradição lógica: se na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro de subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial (art. 186-2-b)”.
Por outro lado, a ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, que antes constituía fundamento de esclarecimento da sentença (artigo 669.º, n.º 1, do CPCivil pregresso), ganhou espaço no elenco das nulidades da sentença.
Segundo LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE[3]: “No regime actual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória, só releva quando gera ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236-1 CC e 238-1 CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar. Sendo assim, se o vício não for corrigido, a sentença não poderá aproveitar-se, sendo nula, nos termos dos art. 280-1 CC e 295 CC”.
Ora, no caso dos autos, no que respeita à parte estritamente decisória da sentença, difícil é conceber maior clareza do que a que encerra, não deixando dúvidas para um “declaratário normal” quanto ao seu sentido.
Inapropriados se apresentam, pois, os argumentos esgrimidos pelo Apelante em torno desta questão, desde logo por não se referirem à decisão em sentido estrito, que, reafirmamos, assume um sentido claro e unívoco.
Também no que se refere à invocada contradição entre os fundamentos e a decisão, os argumentos do Apelante movem-se num plano que nada tem a ver com irregularidades formais da decisão, como são todas as elencadas no cit. art. 615.º, n.º 1, do CPCivil, desembocando antes em alegado “erro de julgamento”, assente em saber se os fundamentos devem ou não ser acolhidos ante os factos provados e o direito aplicável (questão de mérito). Improcede, pois, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, a arguida nulidade da sentença recorrida. 2. OS FACTOS 2.1. Factos julgados provados pela 1.ª instância 1) O Autor adquiriu no stand denominado “A..., Ldª”, sito na Avª. ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, o veículo da marca Renault, modelo ..., matrícula ..-..-TC. 2) Para o efeito, através do referido stand, o Autor solicitou crédito que lhe foi concedido pelo Banco 1..., S.A., tendo outorgado o contrato de mútuo número ... no valor do veículo adquirido de €15.000,00. 3) Nos termos do clausulado no referido contrato de mútuo, seria pago pelo mutuário em 72 prestações mensais e sucessivas de €292,42 cada, acrescida de €1,82 de prémio mensal de seguro e de €1,21 de porte mensal. 4) No mesmo ato e no referido stand, ficou ainda acordado que, previamente ao vencimento de cada uma das prestações e até final do contrato, os Réus entregariam ao Autor a quantia necessária para o mesmo poder fazer o pagamento das referidas prestações. 5) Por sua vez, o Autor comprometeu-se a, no final da liquidação do contrato de mútuo com o pagamento de todas as prestações, fazer a entrega da declaração modelo 2 devidamente assinada por si, para que os Réus pudessem averbar para o seu nome a propriedade da aludida viatura. 6) O Réu, desde o dia da compra, ficou na posse do veículo adquirido, e passou a utilizar e fruir do referido veículo automóvel, conjuntamente com a ré, indo às compras com o mesmo, limpando-o, procedendo às respetivas reparações e demais intervenções, tratando e cuidando do mesmo. 7) O Réu, na qualidade de único possuidor e condutor habitual do referido veículo, subscreveu e entregou ao Autor termo de responsabilidade pelos prejuízos quaisquer que sejam e seja qual for a sua causa, que o mencionado veículo possa eventualmente ter, sofrer e/ou causar ao condutor, ocupantes e a terceiros, bem como por qualquer multa/coima que possa ser aplicada por transgressão/contraordenação do referido veículo. 8) Os Réus tinham que entregar previamente ao Autor o que este tinha que entregar ao Banco mutuante, e bem assim suportar os encargos legais, nomeadamente com Imposto de Selo ou IUC. 9) Foi instaurada contra o Autor e sua esposa, EE, execução para pagamento de quantia certa, que correu termos pelo Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis - Juiz 1 com o nº 4615/09.3TBVFR, para cobrança do valor das prestações em dívida, juros e custas, em que era exequente “B..., S.A.” por entretanto ter adquirido o crédito ao Banco 1..., e cujo valor peticionado, à data de 03/03/2021, perfazia a quantia de €30.415,11, acrescida de despesas e honorários de agente de execução, no montante de €843,41. 10) No âmbito de tal processo de execução, foi penhorada a casa de habitação do Autor, sendo que este foi citado para a ação executiva vinda de aludir em 10/05/2013. 11) O Autor e sua esposa celebraram com o ali exequente o acordo de pagamento através do qual com o pagamento da quantia de €17.500,00, a execução seria extinta, o que fizeram, tendo pago aquela quantia, e a execução extinguiu-se. 12) O Réu pagou ao autor, pelo menos, 7 prestações de 292,00€, cada uma, referentes ao veículo. 13) O Autor pagou o montante global de €112,13 à Autoridade Tributária e Aduaneira, a título de Imposto Único de Circulação referente ao veículo com matrícula ..-..-TC. 14) Este automóvel foi apreendido pela GNR em 4 de agosto de 2013. 15) O Réu prestou serviços de terraplanagem ao Autor, quer através dos serviços contratados por este à sua entidade empregadora, quer a título individual, em alguns sábados. 16) O Autor, juntamente ou através da sua mulher, pretendia criar uma empresa dedicada a serviços de terraplanagem. 17) Foi prometido ao Réu, pelo Autor e pela mulher deste, que aquele iria colaborar naquele projecto. 18) O Réu trabalhou para a mulher do Autor entre novembro de 2006 e janeiro de 2007. 2.2. Factos julgados não provados pela 1.ª instância a) Os Réus nunca tiveram intenção de cumprir e enganaram o autor fazendo-o acreditar no contrário. b) O aluguer de um veículo automóvel similar e com as mesmas características, cifra-se numa quantia nunca inferior a €30,00, por dia. c) Com a penhora da sua casa, o Autor sentiu-se humilhado e com vergonha. d) Antes do acordo mencionado em 4), os Réus tinham as suas economias e despesas em separado. e) A Ré assinou em branco o documento n.º 2 junto com a p.i. e por imposição do Réu, a quem teve de ceder, pois sempre que o Réu era contrariado, a Ré era objeto de maus tratos físicos. f) O Réu tinha acordado com o A. que o trabalho que aquele ia realizando como manobrador demáquinas nos terrenos do A., ia sendo descontado no pagamento do valor do carro. g) Nessa sequência, através dos trabalhos que o Réu lhe prestava fora dos horários de trabalho, abateu-se ao valor em dívida a quantia de €1.050,00. h) A Ré, por conta do acordo supra mencionado, entregou, em 2011, 4 mil euros ao Autor. i) Uma vez que o Réu prestava alguns serviços ao Autor, quer através da sua entidade patronal à data, quer por si próprio fora do horário de trabalho, este propôs-lhe sociedade. j) E foi nesse contexto que o Autor entendeu pedir um empréstimo para aquisição da viatura ..-..-TC para o Réu. k) O Réu só aceitou tal negócio sobre o veículo e a consequente responsabilização pelo pagamento das prestações, sempre na legítima expectativa que lhe foi criada pelo Autor, nos termos supra expostos. l) E foi convicto da futura concretização da aludida parceria, que o Réu cessou o contrato de trabalho com a sua entidade patronal DD. m) Em finais de janeiro de 2007, o Autor, através da sua esposa, EE
, fez cessar o contrato de trabalho, convencendo o Réu que seria para formalizarem a aludida parceria. n) O que não veio a concretizar-se. o) Questionado o Autor sobre a situação do automóvel, apenas lhe disse “não te preocupes, continua a usá-lo”. 2.3.
Da impugnação da decisão em matéria de facto 2.3.1.
Segundo dispõe o art. 662.º, n.º 1 do CPCivil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
À luz deste preceito, “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”[4].
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância, nos termos consagrados pelo art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, sem olvidar, porém, os princípios da oralidade e da imediação.
A modificabilidade da decisão de facto é ainda suscetível de operar nas situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 662.º do CPCivil. 2.3.2.
A prova é “a atividade realizada em processo tendente à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos”[5], tendo “por função a demonstração da realidade dos factos” (art. 341.º do CCivil) – a demonstração da correspondência entre o facto alegado e o facto ocorrido.
Sendo desejável, em prol da realização máxima da ideia de justiça, que a verdade processual corresponda à realidade material dos acontecimentos (verdade ontológica), certo e sabido é que nem sempre é possível alcançar semelhante patamar ideal de criação da convicção do juiz no processo de formação do seu juízo probatório.
Daí que a jurisprudência que temos por mais representativa acentue que a “verdade processual, na reconstrução possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica”, não podendo sequer ser distinta ou diversa “da reconstituição possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos e princípios e regras estabelecidos”, os quais são muitas vezes encontrados nas chamadas “regras da experiência”[6].
Movemo-nos no domínio do que a doutrina considera como standard de prova ou critério da suficiência da prova, que se traduz numa regra de decisão indicadora do nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira[7].
Para LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “pese embora a existência de algumas flutuações terminológicas, o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:
(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.
Em primeiro lugar, este critério da probabilidade lógica prevalecente – insiste-se – não se reporta à probabilidade como frequência estatística mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.
Em segundo lugar, o que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis”[8].
Os meios de prova, enquanto “modos por que se revelam os factos que servem de fonte das relações jurídicas”[9], encontram no Código Civil os seguintes tipos: a confissão (arts. 352.º a 361.º); a prova documental (arts. 362.º a 387.º); a prova pericial (arts. 388.º e 389.º); a prova por inspeção (arts. 390.º e 391.º); e a prova testemunhal (arts. 392.º a 396.º). O art. 466.º do CPCivil acrescenta a “prova por declarações de parte”.
Nos termos do preceituado no art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
O cit. normativo consagra o chamado princípio da livre apreciação da prova, que assume carácter eclético entre o sistema de prova livre e o sistema de prova legal.
Assim, o tribunal aprecia livremente a prova testemunhal (art. 396.º do CCivil e arts. 495.º a 526.º do CPCivil), bem como os depoimentos e declarações de parte (arts. 452.º a 466.º do CPCivi, exceto na parte em que constituam confissão; a prova por inspeção (art. 391.º do CCivil e arts. 490.º a 494.º do C.PCivil); a prova pericial (art. 389.º do CCivil e arts. 467.º a 489.º do CPCivil); e ainda no caso dos arts. 358.º, nºs 3 e 4, 361.º, 366.º, 371.º, n.ºs 1, 2ª parte e 2, e 376.º, n.º 3, todos do CCivil.
Por sua vez, estão subtraídos à livre apreciação os factos cuja prova a lei exija formalidade especial: é o que acontece com documentos ad substantiam ou ad probationem; também a confissão quando feita nos termos do art. 358.º, nºs 1 e 2 do CCivil; e os factos que resultam provados por via da não observância do ónus de impugnação (art. 574.º, n.º 2, do CPCivil).
O sistema de prova legal manifesta-se na prova por confissão, prova documental e prova por presunções legais, podendo distinguir-se entre prova pleníssima, prova plena e prova bastante”[10].
A prova pleníssima não admite contraprova nem prova em contrário. Nesta categoria integram-se as presunções iuris et de iure (art. 350.º, n.º 2, in fine do CCivil).
Por sua vez, a prova plena é aquela que, para impugnação, é necessária prova em contrário (arts. 347.º e 350.º, n.º 2, ambos do CCivil). Assim será com os documentos autênticos que fazem prova plena do conteúdo que nele consta (art. 371.º, n.º 1, do CCivil), sem prejuízo de ser arguida a sua falsidade (art. 372.º, n.º 1, do CCivil), e também com as presunções iuris tantum (art. 350.º, n.º 2, do CCivil).
Por último, a prova bastante satisfaz-se com a mera contraprova para a sua impugnação, ou seja, a colocação do julgador num estado de dúvida quanto à verdade do facto (art. 346.º do CCivil). Assim se distingue prova em contrário de contraprova – aquela, mais do que criar um estado de dúvida, tem de demonstrar a não realidade do facto[11]. 2.3.3.
O Apelante defende que a factualidade vertida no elenco dos factos não provados, sob as als. f) – “O Réu tinha acordado com o A. que o trabalho que aquele ia realizando como manobrador de máquinas nos terrenos do A., ia sendo descontado no pagamento do valor do carro”, g) – “Nessa sequência, através dos trabalhos que o Réu lhe prestava fora dos horários de trabalho, abateu-se ao valor em dívida a quantia de €1.050,00”, i) – “Uma vez que o Réu prestava alguns serviços ao Autor, quer através da sua entidade patronal à data, quer por si próprio fora do horário de trabalho, este propôs-lhe sociedade” –, j) – “E foi nesse contexto que o Autor entendeu pedir um empréstimo para aquisição da viatura ..-..-TC para o Réu” –, k) – “O Réu só aceitou tal negócio sobre o veículo e a consequente responsabilização pelo pagamento das prestações, sempre na legítima expectativa que lhe foi criada pelo Autor, nos termos supra expostos” – l) – “E foi convicto da futura concretização da aludida parceria, que o Réu cessou o contrato de trabalho com a sua entidade patronal DD” –, m) – “Em finais de janeiro de 2007, o Autor, através da sua esposa, EE, fez cessar o contrato de trabalho, convencendo o Réu que seria para formalizarem a aludida parceria” –, n) – “O que não veio a concretizar-se” – e o) – “Questionado o Autor sobre a situação do automóvel, apenas lhe disse “não te preocupes, continua a usá-lo” – deve antes ser julgada provada, desde logo como decorrência de se ter julgado provada a factualidade descrita sob os respetivos pontos 10), 2.ª parte, 13) e 15) a 18), mas também com base na devida valoração da prova pessoal produzida, designadamente declarações de parte do Autor, declarações/depoimento de parte do Réu, e ainda no depoimento da testemunha EE, mulher do Autor, na parte que especifica e transcreve com referência à respetiva gravação áudio.
Em primeiro lugar, afigura-se-nos por demais evidente que da decisão de julgar provada a factualidade descrita sob os pontos 10), 2.ª parte – “No âmbito de tal processo de execução, foi penhorada a casa de habitação do Autor, sendo que este foi citado para a ação executiva vinda de aludir em 10/05/2013” –,13) – “O Autor pagou o montante global de €112,13 à Autoridade Tributária e Aduaneira, a título de Imposto Único de Circulação referente ao veículo com matrícula ..-..-TC” –, 15) – “O Réu prestou serviços de terraplanagem ao Autor, quer através dos serviços contratados por este à sua entidade empregadora, quer a título individual, em alguns sábados” –, 16) – “O Autor, juntamente ou através da sua mulher, pretendia criar uma empresa dedicada a serviços de terraplanagem” -, 17) – “Foi prometido ao Réu, pelo Autor e pela mulher deste, que aquele iria colaborar naquele projecto” – e 18) – “O Réu trabalhou para a mulher do Autor entre novembro de 2006 e janeiro de 2007” – não decorre sem mais, com toda a lógica, a formulação de juízo probatório no sentido de julgar provada a factualidade vertida sob as cit. als. f), g), i), j), k, l, m), n) e o).
Para decidir como o fez, nesta parte, o Exmo. Juiz de Direito justificou assim:
[Alíneas f) e g): resulta inequívoco que incumbia ao réu demonstrar este facto. Nomeadamente que a dívida que tinha para com o autor também era paga em espécie. O autor não reconheceu isso. Restavam assim as declarações do réu e da ré. Quanto às declarações desta, supra já se explicitaram as enormes reservas que suscitaram ao tribunal. Por outro lado, as declarações do réu, a nosso ver, mostraram-se insuficientes. Afinal, as partes assinaram um contrato. E no mesmo nada se diz a respeito desta modalidade de pagamento. Aliás, nem se compreende como o réu alcançou o dito valor de 1050 euros. Deste modo, afiguraram-se insuficientes estas declarações para persuadir o tribunal. Por fim, o irmão do réu apenas depôs, quanto a esta parte, de ouvir dizer. Alíneas i) a o): repita-se aqui o que se disse supra: o irmão do réu apenas depôs, quanto a esta parte, de ouvir dizer. Para além disso, as declarações do autor e da sua mulher não suportaram esta versão. Assim, restavam as declarações do réu e da ré. Incumbindo ao réu demonstrar este facto, estas declarações mostraram-se insuficientes para rebater o documento assinado pelas partes.]
Escrutinada a prova pessoal produzida em audiência de julgamento, em especial na parte chamada à colação pelo Apelante, importa dizer que o juízo probatório que formulamos não diverge em nada do que se apresenta como essencial à convicção alcançada pela 1.ª instância, tendo por base o princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal.
À luz do cit. princípio, apenas a constatação de erro manifesto de valoração dos meios probatórios produzidos poderia justificar intervenção da nossa parte no sentido de operar modificação da decisão, o que no caso não se verifica seguramente.
É certo que a convicção formada pelo tribunal diverge radicalmente da tese que o Recorrente apresenta, mas é sem qualquer dúvida uma convicção objetiva, alicerçada numa perspetiva eminentemente “universalista” da prova produzida, ao invés da formada pelo Apelante, compreensivelmente subjetiva e ancorada em fragmentos de prova tidos por convenientes à afirmação dos seus interesses.
Mantém-se, por isso, na parte em apreço, o decidido pela 1.ª instância. 2.3.3.
O Apelante veio ainda defender a inclusão de outros factos no elenco da factualidade provada, por relevante para a decisão, acrescentando-se os pontos 19) e 20), com a seguinte redação: [19. Autor e esposa não tinham conhecimento na área ou experiência na área, pelo que o objectivo era que o Réu fizesse parte do projecto, já que era o detentor do know-how necessário. 20. Era o Autor quem pagava o seguro e os impostos relativos ao veículo.]
Relativamente ao proposto “ponto 19)”, a respetiva matéria nenhuma utilidade evidencia para a decisão da causa, desde logo porque nada de verdadeiramente relevante acrescenta ao facto julgado provado e descrito sob o ponto 17) – “Foi prometido ao Réu, pelo Autor e pela mulher deste, que aquele iria colaborar naquele projecto”.
Quanto ao “ponto 20)”, defende o Apelante que a respetiva factualidade, “com manifesto interesse para a boa decisão da causa”, deve considerar-se provada, por resultar de confissão do Autor, “conforme assentada lavrada em ata de 10.02.2023”.
Ora, analisada a ata de audiência de julgamento do dia 10.02.2023 (Ref.ª Citius 125885317), o que se mostra exarado em torno das declarações de parte do autor, limita-se ao que passamos a transcrever:
[Declarações de Parte do autor
AA, Rua ..., ..., ... ....
O Mmº Juiz informou-o que deveria depor e com verdade, sob pena de, não o fazendo, incorrer em responsabilidade criminal.
Prestou juramento legal e o seu depoimento, de 35:20min., ficou gravado.
Findo o depoimento, o Mmº Juiz ditou para a acta a seguinte assentada: Pelo autor foi dito que o réu lhe terá pago, pelo menos, 7 prestações de 292,00€ cada uma, referentes ao veículo.
Lida a assentada, a mesma não foi objecto de qualquer reclamação.] (realce e sublinhado nossos).
Fácil é ver que o teor da “assentada” não comporta de modo algum a concreta materialidade que o Apelante pretende acrescentar ao elenco dos factos provados, e daí que também neste segmento não possa a pretensão do Apelante obter o nosso acolhimento. 2.3.4.
Concluímos, assim, pela total improcedência do recurso em matéria de facto, pelo que mantemos inalterada a corresponde decisão proferida pelo Tribunal a quo. 3. OS FACTOS E O DIREITO 3.1.
Em jeito de introdução, começamos por transcrever o que se deixou abundantemente desenvolvido na sentença em torno da qualificação jurídica do negócio jurídico celebrado entre as partes:
[1
Atenta a factualidade provada, encontramo-nos perante um contrato de mandato sem representação (ao contrário do que se aventou na audiência prévia, embora no início do julgamento se tenha alertado para esta figura), através do qual se vincularam autor e réus. Senão vejamos: 2 Em síntese, o autor adquiriu, através de financiamento subscrito pelo próprio para o efeito, um automóvel. Assim, ficou vinculado a pagar o automóvel através de um plano prestacional. Por sua vez, e simultaneamente, os réus entregavam ao autor, todos os meses, a quantia que o autor estava vinculado a pagar à financeira. Além disso, o automóvel passava no imediato a ser utilizado, em exclusivo, pelos réus. Concluído o plano financeiro e, simultaneamente, o plano entre as partes, o autor estava obrigado a transmitir a propriedade do veículo para os réus.
É certo que este acordo poderia subsumir-se à figura genérica do contrato de prestação de serviço, o qual surge definido na lei como aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição – art. 1154.º, do CC.
No art. 1155.º, do CC, o legislador identificou expressamente três modalidades do contrato de prestação de serviço: o mandato; o depósito; a empreitada. Contudo, a estas três modalidades importa acrescentar o contrato de prestação de serviço atípico (não regulado especialmente) que abrange uma enorme variedade de vínculos jurídicos, desde os vários contratos de prestação de serviço realizados por profissionais liberais (p. ex. médicos, advogados, arquitectos), a prestações de serviços de limpeza, de cedência de mão-de-obra ou de angariação e mediação de negócios (neste sentido ROMANO MARTINEZ, Da cessação do contrato, 2.ª edição, Almedina, 2006, p. 521). Em qualquer um destes casos, e não existindo regulamentação específica na lei, determina o art. 1156.º, do CC, que lhe são aplicáveis as disposições do mandato (art. 1157.º e 1184.º, do CC). Por isso que JANUÁRIO DA COSTA GOMES, “Contrato de mandato” in Direito das obrigações, III, p. 267 e ss., org. MENEZES CORDEIRO, AAFDL, p. 315, escreve que o mandato se apresenta, na paisagem dos tipos contratuais, como o protótipo dos contratos de prestação de serviço.
No entanto, mais do que aplicação subsidiária, autor e réus num contrato de mandato sem representação. Vamos por partes: 3
Nos termos do art. 1157.º, do CC, mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra. Segundo JANUÁRIO DA COSTA GOMES, op. cit., p. 271-282, são elementos essenciais deste contrato:
i. A obrigação de praticar um ou mais actos jurídicos (acto jurídico em sentido amplo, assim se incluindo os actos jurídicos em sentido estrito e os negócios jurídicos. Como se sabe, os actos jurídicos são considerados, para efeitos de eficácia, como manifestações de vontade humana. São actos jurídicos em sentido estrito os que postulam mera liberdade de celebração e são negócios jurídicos os que assentam na liberdade de celebração e na liberdade de estipulação – cfr. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, t. 1, 2000, 2.ª edição, Almedina, p. 293 e 297-298. Óbvio que o mandatário pode praticar também actos materiais. Essencial é que os mesmos se encontrem numa relação de acessoriedade ou dependência em relação aos actos jurídicos – assim JANUÁRIO DA COSTA GOMES, op. cit., p. 277);
ii. Actuação do mandatário por conta do mandante (todavia, a lei admite que o mandato possa ser conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro – cfr. art. 1170.º e 1175.º, do CC).
Do mandato deve distinguir-se a figura da representação. Pela representação o representante age em nome do representado e os efeitos jurídicos dos negócios por aquele realizados, nos limites dos seus poderes, produzem-se directamente na esfera jurídica do representado – art. 258.º, do CC. Pelo mandato simples os efeitos do acto jurídico praticado pelo mandatário repercutem-se na sua própria esfera jurídica – art. 1180.º, do CC; quando o mandato seja representativo, repercutem-se na esfera jurídica do mandante nos mesmos termos em que os actos praticados pelos representantes se repercutem directamente na esfera do representado – art. 1178.º, do CC (assim JANUÁRIO DA COSTA GOMES, op. cit., p. 298-299).
No mandato com representação existem duas relações: uma relação interna, entre mandante e mandatário, não relevante para com terceiros, dirigida a conferir ao mandatário o encargo depraticar o acto ou actos jurídicos por conta do mandante e da qual resulta, para o mandatário, a obrigação correspondente; uma relação externa, essencialmente relevante para com terceiros, que tem a sua fonte na procuração e o seu objecto na concessão de poderes representativos ao mandatário. Em virtude destas duas relações, o mandatário age por conta e em nome do mandante, obrigando-o e fazendo-o adquirir, por via directa e imediata, os direitos para com o terceiro contratante. Por isso, através da sua actividade, o mandatário modifica directamente a esfera jurídica do mandante (RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código Civil, IV, Rei dos livros, 1995, p. 285).
Em síntese, o mandato é um contrato que obriga o mandatário a desenvolver uma tarefa jurídica, mas não envolve poderes de representação; estes advêm de um negócio unilateral – a procuração – que, só por si, a nada obriga. Pode, pois, haver mandato com e sem representação e representação com e sem mandato (MENEZES CORDEIRO, Manual de direito comercial, I, Almedina, 2001, p. 464).
Atento o quadro factual apurado, conclui-se pela existência de um contrato de mandato, pois o autor comprometeu-se a adquirir o automóvel que, mais tarde, cumpridas as obrigações, teria de transmitir aos réus, pelo que, manifestamente, se subsume à prática de actos jurídicos, em sentido amplo, mais propriamente negócios jurídicos.
Avancemos. 4
A situação dos autos distingue-se da simulação. Como ensinava GALVÃO TELLES, Manual dos contratos em geral, refundido e actualizado, 4.ª edição, Coimbra editora, 2002, p. 169-170, a propósito da simulação relativa e parcial e do caso de interposição de terceiro: esta ajusta-se ao conceito de simulação relativa; há dois contratos, o simulado e o dissimulado que objectivamente coincidem, porque têm o mesmo conteúdo, mas subjectivamente se distinguem, porquanto um dos contraentes que participa no primeiro não figura no segundo, onde a sua posição é ocupada por outrem. A simulação traduz-se, aqui, na intervenção de um estipulante de fachada (vulgo testa de ferro). Pedro e Paulo celebram entre si, efectivamente, uma venda, mas dissimulam-na, fazendo figurar como comprador, em vez de Paulo, Joaquim. Desfeita a aparente venda a Joaquim, vem à superfície, como venda real, a efectuada a Paulo. (…) Aparentemente há duas transmissões, mas na realidade existe uma só, porque as transmissões ostensivas são simuladas, e transmissão real é uma só, dissimulada, que tem como sujeitos o transmitente inicial e o adquirente final. Abstrai-se da interposta pessoa, que colabora na simulação e cuja intervenção é contrária à lei. Trata-se de uma simulação de pessoas ou simulação subjectiva. Além disso, a simulação de pessoas ou simulação subjectiva pode consistir, não em fazer figurar um sujeito aparente, como no exemplo dado, mas em suprimir um sujeito real. Por exemplo, A finge vender directamente a C determinado prédio quando na verdade o vende a B, que por sua vez o revende a C, procedendo-se a uma venda única para pagar só uma sisa, em vez das duas que são legalmente devidas.
Desta situação se distingue os casos de interposição real. Regressando aos ensinamentos de GALVÃO TELLES, op. cit., p. 425, quando isto acontece desenha-se uma figura que, não se identificando com a representação, todavia se aproxima dela por dar satisfação, até certo ponto, às mesmas necessidades que justificam este instituto. A interposição de terceiros é a antítese da substituição, como figura autónoma que deixámos caracterizada. Na substituição o agente produz efeitos jurídicos para outrem em proveito próprio; na interposição produz efeitos jurídicos para si em proveito alheio. A interposta pessoa age para si, os efeitos jurídicos projectam-se no seu património; adquire direitos, torna-se devedor, em face do outro estipulante. Mas, por um contrato anterior e subjacente, assumiu perante este o dever de tornar seu o resultado do negócio jurídico; e cumpre esse dever transmitindo-lhe os direitos e obrigações, ou fazendo dalgum modo reflectir no respectivo património o resultado económico da própria actuação - v. g., quanto às obrigações, pela novação delas ou pelo embolso do que em seu cumprimento tiver pago ou houver de pagar. Se o interposto, nas relações internas com o real interessado, deixar de cumprir o dever de lhe transmitir os efeitos jurídicos, tais efeitos permanecem na sua órbita, e ele, traindo a confiança do interessado, fica sujeito a responsabilidade civil pelos prejuízos que lhe causar.
No mesmo sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito civil – Teoria geral, II, 2.ª edição, Coimbra editora, 2003, p. 221-222: A simulação deve-se manter cuidadosamente distinta de figuras afins. Não se confunde com a dupla reserva mental. Se Óscar e Paulo, sem estarem combinados, declaram o que não querem, não há simulação. Basta a falta do pactum simulationis. Não se confunde com a interposição de pessoas. Esta dá-se quando surge alguém a tomar realmente para si os efeitos do negócio, mas em beneficio de terceiro. Suponhamos que um milionário está interessado num terreno, mas manda um empregado comprar para que não lhe exijam preço muito alto, devendo esse empregado revender-lho depois. Não há simulação, mas dois negócios verdadeiramente conexos. A interposição de pessoas, mesmo real, pode, porém, ser usada para fraudar proibições legais de dispor e então é inválida. E a p. 247: a figura da interposição real de pessoas é assim qualificada para a distinguir dos casos em que há simulação. Vasco incumbe Xavier de comprar a casa da vizinha Zélia, porque receia que esta, sabendo do seu interesse, exija um preço muito superior. O negócio é válido, mas não há aqui representação. Se Xavier agir em nome próprio a propriedade fica a caber-lhe. Será então necessário posteriormente um segundo negócio transmissivo, de Xavier para Vasco, para que o objectivo final seja atingido. (…) Integram-se nesta categoria hipóteses de mandato sem representação. O mandatário pratica actos por conta do mandante, mas não em seu nome; para que os negócios revertam para o mandante terá de haver depois um segundo acto de transmissão (sublinhado nosso).
Por fim, na doutrina, cite-se MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil, II, Parte geral/Negócio jurídico, Almedina, 4.ª ed., 2017, p. 891, para quem a simulação, na sua modalidade interposição fictícia de pessoas, não se confunde com a interposição real de pessoas. Na interposição real, seja ela fiduciária ou assente em mandato sem representação, uma pessoa contrata com outra (apenas) para que esta, depois, transfira para o verdadeiro destinatário da operação aquilo que adquiriu: aqui é vontade das partes percorrer todo este circuito, não havendo divergências entre a vontade manifestada e a vontade real (sublinhado nosso).
Por seu turno, na jurisprudência, no sentido supra referido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 02B1342, de 9-5-2002 (ao confrontar a interposição fictícia de pessoas versus a interposição real de pessoas, ensina o Prof Manuel de Andrade, in " Teoria Geral da Relação Jurídica ", vol II, Coimbra, Almedina 1960, págs. 186-187 o seguinte: " Em toda a interposição há três pessoas : por ex. : A transmite certos bens a B para ele depois os transmitir a C . Ora, a diferença entre as duas modalidades de interposição traduz-se no seguinte: se houver conluio entre «todas» estas pessoas, estamos em face de uma interposição fictícia; se apenas entre A e B existiu um acordo no sentido da ulterior transferência para C, o caso será de interposição real. Esta analisa-se num mandato ... pois o mandatário (B interposto entre A e C ) deverá agir em nome próprio e não em nome do mandante ... . Deve salientar-se ainda a possibilidade duma interposição real fundada em acordo entre B e C. Também este acordo se traduzirá num mandato, que, no caso, serve para adquirir e não para alienar. Conclui-se, portanto, que na interposição fictícia o interposto é um simples presta nome (homem de palha, testa de ferro); mas não assim na interposição real onde o interposto será verdadeira parte no ulterior negócio em face do respectivo contratante " (sic). Excluída se encontrava pois, à partida, qualquer hipótese de simulação, quer absoluta, quer simplesmente relativa, atentos os requisitos exigidos para o preenchimento de tais vícios da declaração negocial contemplados nos arts. 240 e 241 do C. Civil, e desde logo, a existência de um qualquer "pactum simulationis" entre o declarante (alegado interposto adquirente) e o real declaratário alienante. O negócio, tal como foi realizado, foi realmente o querido, nos sues precisos termos, quer pela A. na qualidade de «mandatária», quer pela Ré na qualidade de mandante); Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 424/2001.P1, de 26-09-2011; e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 7157/05.2TCLRS.L1-2, de 14-02-2013: Na situação de facto a que os autos respeitam, a prova apenas permite concluir pela existência de um conluio entre a R. e o sócio gerente da vendedora, nenhum elemento da mesma permitindo que se conclua pela intervenção nesse conluio da A. Daí que esteja em causa uma interposição real de pessoas e não uma interposição fictícia de pessoas. Na interposição fictícia há um conluio entre os dois sujeitos reais da operação e o interposto, sendo este um simples “testa de ferro”. Na interposição real, o interposto actua em nome próprio, mas no interesse e por conta de outrem, por força de um acordo entre ele e um só dos sujeitos, não existindo conluio entre os três sujeitos. Nessa situação, não há uma simulação, como naquela, mas um mandato sem representação. 5
Prosseguindo quanto ao mandato sem representação.
No mandato sem representação, o mandatário actua em nome próprio (art. 1180.º, do CC).
Podemos definir o contrato de mandato sem representação como aquele pelo qual uma pessoa (mandante) confia a outra (mandatário) a realização, em nome desta mas no interesse e por conta daquela, de um acto jurídico relativo a interesses pertencentes à primeira, assumindo a segunda a obrigação de praticar esse acto; ou, dada a noção de interposição de pessoas, como o contrato pelo qual alguém se obriga para com outrem a intervir, como interposta pessoa, na realização de um acto jurídico que ao segundo respeita – assim PESSOA JORGE, O mandato sem representação (reimpressão), Almedina, 2001, p. 411.
O art. 1180.º, do CC, diz que se o mandatário agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes.
Trata-se de uma interposição real de uma pessoa num acto jurídico (por contraposição a fictícia ou aparente, como normalmente sucede nos casos de simulação), que esta realiza em nome próprio mas no interesse de outrem. Esta interposição pode ser conhecida ou desconhecida dos intervenientes do acto e tem-se como lícita no ordenamento jurídico.
O papel de interposição do mandatário é reforçado com o disposto no art. 1183.º, do CC, que determina que ele não é responsável para com o mandante pela falta de cumprimento das obrigações assumidas pelos terceiros, recaindo o risco no mandante, em cujo interesse foi realizado o acto jurídico.
Acresce que o legislador não consignou qualquer exigência quanto à forma do mandato sem representação.
Já sobre o reflexo dos negócios celebrados pelo mandatário na esfera do mandante apresentam-se duas posições: a primeira é a tese da projecção imediata, pela qual os efeitos do negócio se repercutem imediatamente na esfera do mandante (defendida por PESSOA JORGE); a segunda é a tese da dupla transferência, pela qual os efeitos do negócio só se repercutem na esfera do mandante com um acto autónomo de transferência dos mesmos (sobre isto cfr. MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil, XII, Contratos em especial (2.ª parte), Almedina, 2018, p. 700-701).
O CC acolheu a tese da dupla transferência, vertendo-a no art. 1181.º, cujo n.º 1 determina que, para a plena execução do mandato, o mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato,
Com efeito, o mandatário que age em nome próprio fica sendo titular dos direitos adquiridos em execução do mandato, sendo já num segundo momento que, e, em cumprimento das suas obrigações contratuais com o mandante, deve transferir para este a titularidade desses direitos. Se adquiriu coisas, deve entregá-las ao mandante, transferindo simultaneamente os respectivos direitos reais; se adquiriu créditos, deve cedê-los (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Dezembro de 2014, proc. 448/07.0TBRMR.L1-2).
Em síntese, e nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2012, proc. 987/06.0TBFAF.G1.S1, o mandato sem representação pressupõe:
i. o interesse de certa pessoa na realização de determinado negócio sem intervenção pessoal própria ou por intermédio de representante;
ii. a interposição de outra pessoa para esse efeito por incumbência não aparente do titular daquele interesse;
iii. a celebração do negócio pela pessoa interposta com exclusão de qualquer referência ao verdadeiro interessado na produção dos efeitos conseguidos por essa pessoa;
iv. a transmissão para o mandante dos direitos adquiridos pelo mandatário na execução do mandato.
Por outro lado, dispõe o art. 1182.º, do CC, que o mandante deve assumir, por qualquer das formas indicadas no n.º 1 do artigo 595.º, as obrigações contraídas pelo mandatário em execução do mandato; se não puder fazê-lo, deve entregar ao mandatário os meios necessários para as cumprir ou reembolsá-lo do que este houver despendido nesse cumprimento.]
Lúcida a nosso ver a qualificação vinda de citar, que por isso acolhemos sem necessidade de acrescentar o quer que seja, de resto não questionada pelo Apelante.
Apesar de se manter inalterada nesta instância de recurso a factualidade apurada em 1.ª instância, importa dar aqui resposta a questões postas pelo Apelante, com expressão desde logo nas conclusões 2., 3., 5. e 6., assim:
[2. Como pode a Douta sentença recorrida decidir, como o fez, nos termos supra exposto no ponto II -1., quando não dá como provada qualquer data referente aos factos dados com provados, nomeadamente em 1. a 8.? Ou seja, sem tais datas, como concluiu pela condenação do recorrente no pagamento da quantia de €17.500,00, por violar o contrato a que estava vinculado.?
3. Mas mais, dados como provados os factos 11 e 12, como pode o Tribunal a quo condenar o recorrente no pagamento da quantia de €17.500,00, sem ser efectuada a respectiva subtração do valor pago pelo Réu?
5. Acresce que se atendermos ao facto dado como provado em 12., nada considerou provado o Tribunal que as prestações tenham sido entregues pelo recorrido ao Banco 1..., S.A. - sendo certo que em 15º da sua PI aquele alega que os réus nunca lhe fizeram qualquer entrega de dinheiro para pagamento de qualquer prestação - pelo que, perante esta realidade, não pode, porque contraditório, afirmar o Tribunal a quo, simultaneamente, que “Ora, seria essa a quantia a pagar ao autor, pois foi o que as partes estipularam no âmbito das suas relações internas. Todavia, uma vez que os réus não pagavam ao autor, este entrou em incumprimento perante o Banco, vindo a ser executado”.
6. Ainda mais, dá o Tribunal a Quo provada a factualidade em 13. Mas desde quando, pergunta-se? É que não se dá como provada qualquer data quer de pagamento, quer ao período a que respeitam tais impostos, e é com base neste facto dado como provado que os Réus são condenados no pagamento €112,13, a título de Imposto Único de Circulação. A propósito de tal factualidade pronuncia-se o Tribunal recorrido na respectiva fundamentação, de fls, donde se afere que os €112,13 a título de Imposto Único de Circulação a que os Réus foram condenados a pagar referir-se-ão, alegadamente, ao período de 2016 e de 2018, período em que para além do veículo já estar penhorado e de si desapossado desde Agosto de 2013, conforme facto 14 dado como provado, também não lhe eram exigíveis porque “era o autor quem pagava o seguro e os impostos relativos ao veículo”, conforme assentada lavrada em acta datada de 10.02.2023.]
Lembramos, antes de mais, que ante um pedido de condenação no pagamento de indemnização no montante global de 20.776,31€, a sentença condenou e absolveu assim: [a) Condenar os réus a pagar ao autor a quantia de €17.612,13, acrescida de juros civis vencidos e vincendos desde a data da citação até integral e efectivo pagamento; b) Absolver os réus do demais peticionado]
O dito montante mencionado em “a)” corresponde ao somatório de duas verbas (17.500,00€ + 112,13€), justificadas pela decisão recorrida nos termos que passamos a transcrever:
[6
[O] autor adquiriu o automóvel e vinculou-se ao Banco. Todavia, os réus não lhe pagaram as prestações. Melhor, apenas pagaram 7 prestações no valor de 292 euros. Isto é, pagaram 2044 euros. Não lhe pagaram, assim, 65 prestações no valor global de €18.980,00. Ora, seria essa a quantia a pagar ao autor, pois foi o que as partes estipularam no âmbito das suas relações internas. Todavia, uma vez que os réus não pagavam ao autor, este entrou em incumprimento perante o Banco, vindo a ser executado. E no âmbito desse processo executivo liquidou a quantia de €17.500,00, e a execução foi considerada extinta (a relação externa ficou liquidada). Ora, é esta a quantia peticionada pelo autor, o que se afigura conforme, já que se estivesse a peticionar a outra quantia (€18.980,00, a estipulada nas relações internas), o autor estaria a lucrar com o mandato, situação que as partes não pretenderam.
Por outro lado, deve mencionar-se que o réu nada demonstrou quanto a uma suposta excepção de não pagamento. Nem a ré demonstrou o pagamento de qualquer outra quantia.
Deste modo, os réus serão condenados a pagar ao autor a quantia de €17.500,00, por violarem o contrato a que estavam vinculados.
A esta quantia acresce os juros civis a contar da data da citação como peticionado.] 7
No que respeita ao Imposto Único de Circulação, apenas ficou demonstrado que o Autor despendeu a quantia de €112,13, com o seu pagamento.
Este imposto é devido pelas “pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos”, sendo a propriedade o factor gerador da responsabilidade tributária. (cfr. artigos 3.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, do Anexo II aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho). Por conseguinte, tendo o Autor adquirido a propriedade do veículo automóvel com a matrícula ..-..-TC, na sequência da execução do mandato, enquanto a mesma não fosse transferida para os Réus, mandantes, estava aquele obrigado a proceder à liquidação do imposto. Por sua vez, nos termos dos artigos 1167.º, al. c), e 1182.º, 2.ª parte, do CC, estavam os Réus obrigados a entregar ao Autor o respectivo valor, pelo facto de o mesmo traduzir uma despesa inerente ao cumprimento das obrigações assumidas pelo Autor no âmbito da execução do mandato.
Assim sendo, e uma vez que, a este título, nada foi pago pelos Réus, é devida ao Autor a quantia de €112,13.
A esta quantia acresce os juros civis a contar da data da citação como peticionado.]
Não colhem, as objeções do Apelante em torno da falta de explicitação, em sede factual, das concretas datas respeitantes ao incumprimento das prestações contratuais assumidas pelos Réus.
Resultando da factualidade julgada provada, com toda a clarividência, que o Autor assumiu perante terceiros, o pagamento de certas prestações pecuniárias que, em última linha, por força do acordado entre as partes, lhe seriam reembolsadas pelos Réus, reembolso esse que não resultou provado, exceto na parte respeitante a 7 prestações do valor unitário de 292,00€, correspondente ao valor global de 2.044,00€, nada mais se vê como necessário a concluir pelo incumprimento contratual dos Réus no que concerne ao remanescente das prestações.
Ao invés do que parece defender o Apelante, a decisão sob recurso não deixou de considerar no cálculo do montante devido o valor das 7 prestações pagas pelos Réus, no montante global de 2.044,00€. Como se fez constar na sentença, os Réus não pagaram de qualquer modo 65 prestações, em violação do que se comprometeram ante o Autor, no valor global de €18.980,00€.
E a decisão não condenou no pagamento daquele valor, mas sim em valor inferior, mais exatamente 17.500,00€, correspondente ao efetivo prejuízo sofrido pelo Autor, em resultado do acordo obtido pelo mesmo no processo de execução, que lhe foi movido com base no incumprimento prestacional ante a entidade bancária, tendo como causa adequada a falta de pagamento prévio dos Réus ao Autor, em violação do contratualmente estabelecido.
Relativamente à verba correspondente a IUC, o que resultou provado é o que consta sob o respetivo ponto 13) – “O Autor pagou o montante global de €112,13 à Autoridade Tributária e Aduaneira, a título de Imposto Único de Circulação referente ao veículo com matrícula ..-..-TC” –, montante que, conforme muito bem se concluiu na sentença, se traduziu numa despesa inerente ao cumprimento das obrigações assumidas pelo Autor no âmbito da execução do mandato, resultando para os Réus a obrigação de reembolso, nos termos dos artigos 1167.º, al. c), e 1182.º, 2.ª parte, ambos do CCivil.
Impõe-se-nos, assim, que concluamos pela improcedência do recurso também em matéria de direito e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida que consideramos solidamente fundamentada. 3.2.
Tendo dado causa às custas do recurso, o Apelante é por elas responsável, sem prejuízo de poder beneficiar da dispensa de efetivo pagamento, por via do instituto do apoio judiciário (cfr. arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil, e 1.º do RCProcessuais). IV. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, julgamos o recurso improcedentee, em consequência, decidimos:
a) Manter a decisão da 1.ª instância; e
b) Atribuir ao Apelante a responsabilidade pelas custas do recurso, sem prejuízo da dispensa de efetivo pagamento, por via do benefício do apoio judiciário.
***
Porto, 7 de novembro de 2023
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Vilares Ferreira
Lina Baptista
Anabela Dias da Silva
_________________ [1] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. V, pág. 141. [2] Código de Processo Civil Anotado, Almedina, vol. II, 3.ª edição, pág. 736-7. [3] Idem. [4] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, Coimbra, 2020, p. 332. [5] Cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, Lex, 1995, p. 195. [6] Cf. Ac. do STJ de 06.10.2010, relatado por HENRIQUES GASPAR no processo 936/08.JAPRT, acessível em www.dgsi.pt. [7] Cf. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, O Standard de Prova no Processo Civil e no Processo Penal, janeiro de 2017, acessível em http://www.trl.mj.pt/PDF/O%20standard%20de%20prova%202017.pdf. [8] Ob. cit. [9] Cf. TOMÉ GOMES, Um olhar sobre a prova em demanda da verdade no Processo Civil, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 3, 2005, p. 152. [10] Cf. CASTRO MENDES, Do Conceito de Prova em Processo Civil, Ática, 1961, Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 413. [11] Cf. PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 12.ª edição, Almedina, 2015, p. 293.