AMNISTIA
PERDÃO
LEI ESPECIAL
DIREITOS FUNDAMENTAIS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
JOVEM
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I – Se o perdão de um determinado crime não estiver excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, que prevê a aplicação de perdão de penas e amnistia certas infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, o benefício do perdão depende das demais condições de aplicação daquela lei, sendo relevante, desde logo, a medida da pena, a data da prática dos factos e, depois, a idade do agente nessa mesma data.
II – O texto da lei é inequívoco a tal respeito, sendo que desde há muito que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentado que, como providências de excepção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.
III – Por outro lado, dúvidas não existem de que eventuais normas legais que atentem contra preceitos ou princípios constitucionais não podem ser aplicadas pelos tribunais, sendo que tais preceitos, se respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, são directamente aplicáveis.
IV – O que o princípio constitucional da igualdade impõe é que tenha igual tratamento o que é efectivamente igual e tratamento diferenciado o que é realmente diferente, mas o mesmo não tem uma amplitude absoluta e ilimitada, isto no sentido de que não podem existir normas que abranjam somente certos grupos de cidadãos.
V – O Tribunal Constitucional tem vindo a pronunciar-se sobre o âmbito do princípio da igualdade nesse sentido, sustentando que a constituição não veda a adopção de medidas que estabeleçam distinções, somente proibindo aquelas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional, sublinhando, frequentemente, que igualdade não é, porém, igualitarismo.
VI – A idade como factor de diferenciação, quer positiva, quer negativa, está constantemente presente nos mais variados aspectos da regulação da vida em sociedade.
VII – A ideia subjacente à publicação da referida lei, além de assinalar o evento histórico que constitui a realização das JMJ em Portugal, é reduzir o tempo de prisão para os mais jovens condenados, num sinal de clemência da sociedade, esperando que os mesmos aproveitem tal gesto para reflectir no mal cometido através do crime e que não voltem a delinquir.
VIII – Ora, sendo a amnistia e o perdão uma medida de excepção, o órgão legiferante goza de uma certa discricionariedade, nada exigindo que seja destinada a todo e qualquer cidadão e que abranja a multiplicidade dos crimes, sendo-lhe permitido limitar o seu campo de aplicação.
IX – A violação do princípio da igualdade somente ocorreria se, estando o recorrente dentro da faixa etária estabelecida pela norma, fosse recusada a aplicação da amnistia ou perdão em virtude de alguma das situações enunciadas no n.º 2 do artigo 13.º da CRP.

Texto Integral

Proc. n.º 24/21.4PEPRT-B.P1



PUBLICAÇÃO EM 27-11-2023. (Despacho que considerou não ser aplicável a Lei n.º 38-A/2023, de 02-08 (Lei de amnistia), devido à idade do arguido / Recurso do arguido, invocando a inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.º 1, dessa Lei, por violação do princípio da igualdade, na parte em que limita a aplicação a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos / Improcedência).

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Decisão sumária (arts. 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. a), do CPP):
Nos autos de Processo Comum Colectivo n.º 24/21.4PEPRT, do Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 10, em que é arguido AA, foi proferido despacho, em 01-09-2023, pelo qual se decidiu não ser ao mesmo aplicável, em função da sua idade à data dos factos, o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02-08 (ref.ª 451258787).
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Descontente com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido AA, tendo apresentado a respectiva motivação, com conclusões, as quais se sintetizam na seguinte questão:
- Aplicação do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, invocando o recorrente a inconstitucionalidade do estatuído no n.º 1 do artigo 2.º da mesma Lei, na parte em que limita a sua aplicação a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos, por violação do disposto nos artigos 13.º, 18.º e 204.º da CRP (ref.ª 452547979).
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Admitido o recurso, foi apresentada resposta pelo Ministério Público, o qual, em síntese, referiu não assistir razão ao recorrente, pois que o mesmo não se encontra dentro do escalão etário previsto naquela Lei para poder beneficiar do perdão, não padecendo a norma em causa de inconstitucionalidade, pelo que deverá ser negado provimento ao recurso (ref.ª 37169026).
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Autonomizados e remetidos os autos a este Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, referindo aderir à fundamentação vertida na resposta do Ministério Público em 1.ª instância, não sendo, no caso, violado o princípio da igualdade, pelo que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se o despacho recorrido (ref.ª 17427439).
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O recorrente apresentou resposta a tal parecer, dizendo que o motivo aí apontado para o limite de idade estabelecido na lei da amnistia / perdão – “a faixa etária dos destinatários centrais do evento” – não constitui fundamentação razoável, objectiva e racional, não tendo, por isso, qualquer dimensão constitucional (ref.ª 375065).
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Cumpre apreciar.
A lei processual penal estabelece que o relator profere decisão sumária sempre que, além do mais, o recurso dever ser rejeitado, o que ocorrerá, designadamente, quando for manifesta a sua improcedência, limitando-se tal decisão a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão (arts. 417.º, n.º 6, alínea b), e 420.º, n.ºs 1, alínea a), e 2 do CPP).
Embora a lei não apresente qualquer definição para o que deva entender-se por manifesta improcedência do recurso, é entendimento generalizado que tal será o caso em que, através de uma avaliação sumária da sua fundamentação, se pode concluir, com segurança, que o mesmo está claramente votado ao insucesso, isto é que os seus fundamentos são inatendíveis. Atente-se, a este propósito, no Acórdão do STJ de 19/12/2007 (Proc. n.º 07P4201, acessível em www.dgsi.pt, citando também o Ac. d STJ de 16-06-2005 – Proc. n.º 2104/05), em cujo sumário se exarou que o recurso é manifestamente improcedente “quando no exame meramente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da jurisprudência sobre as questões suscitadas, que aquele recurso está votado ao insucesso.”
Não se descortinando questões de conhecimento oficioso, passa a apreciar-se os argumentos apresentados pelo recorrente, para o que importa ter presente o despacho recorrido, o qual é do seguinte teor:
“Em 1 de setembro de 2023, entra em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
A Lei é aplicável aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (ou seja, um minuto depois das 23:59 do dia 18 de Junho de 2023).
No caso, o arguido AA nasceu a .../.../1984 (cfr. acórdão de 10.09.2021, tendo sido condenado por factos ocorridos em 07.06.2021, pelo que a presente lei não se lhe aplica, nada havendo a ordenar.”
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Vejamos.
Como é sabido, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (art. 428.º do CPP).
Relativamente ao recurso de direito, como é o caso, a lei impõe que sejam indicadas, além do mais, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP).
Os recursos constituem um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou vícios nelas contidos, através da sua análise por outro órgão jurisdicional, representando, assim, um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).
Mas a decisão de interpor recurso, não sendo o mesmo obrigatório, é em si mesma uma opção responsabilizante, pois que o recorrente - no caso do arguido através do seu Defensor -, tem o ónus de apresentar a motivação, ou seja, invocar as concretas razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida, bem como de condensar estas nas respectivas conclusões, enunciando as questões que pretende ver reapreciadas, aí resumindo “as razões do pedido” (n.º 1 do citado art. 412.º).
Nessa medida, a apreciação da justeza ou da validade da decisão judicial é balizada pela fundamentação apresentada pelo recorrente na motivação, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios enunciados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP.[1]
Resulta dos presentes autos que o arguido AA, ora recorrente, foi condenado, por acórdão de 10-09-2021, transitado em julgado, na pena de 3 (três) anos de prisão efectiva, pela prática, em 07-06-2021, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal (ref.ª 427973565).
A dita Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, veio estabelecer “um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.” (art. 1.º).
Relativamente ao seu âmbito de aplicação, estabeleceu-se que “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.” (n.º 1 do art. 2.º).
No seu artigo 3.º refere-se, no que agora releva, que “Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.” (n.º 1).
O artigo 4.º estabelece a amnistia das infracções penais “cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou 120 dias de multa.”
Por sua vez, no artigo 7.º enunciam-se os tipos de crimes que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos nessa Lei.
O crime de furto pelo qual o recorrente foi condenado não está excluído da aplicação de tal diploma, podendo, por isso, os seus agentes vir a beneficiar do referido perdão, desde que verificadas as demais condições de aplicação da dita Lei n.º 38-A/2023.
Desde logo, é relevante a medida da pena, a data da prática dos factos e, depois, a idade do agente nessa mesma data.
A pena aplicada está abrangida pelo n.º 1 do artigo 3.º.
Os factos dos presentes autos foram praticados, como se referiu, em 07-06-2021, pelo que manifestamente o ilícito está temporalmente abrangido pelo referido n.º 1 do artigo 2.º.
Mas já não o seu agente, pois que o arguido AA, ora recorrente, nasceu em .../.../1984, tendo completado 30 anos em .../.../2014. Ou seja, na data da prática dos factos tinha 37 anos de idade.
O texto da lei é inequívoco a tal respeito, sendo que desde há muito que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentado que, como providências de excepção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.[2]
Assim, o recorrente, atenta a sua idade à data dos factos, não reúne, em face da letra da lei, as condições objectivas para poder beneficiar de 1 (um) ano de perdão da respectiva pena, o que o mesmo não contesta, pois que (somente) invoca a inconstitucionalidade dessa norma, por violação dos referidos preceitos constitucionais.
Apreciando a questão recursiva nessa vertente, importa ter presente, com relevo para o caso, o invocado n.º 1 do artigo 13.º da CRP, o qual estabelece que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”
Por sua vez, o artigo 18.º da Lei Fundamental estabelece no seu n.º 1 que “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.”
E no seu n.º 2 dispõe que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
Finalmente, dispõe o artigo 204.º da mesma Lei Fundamental que “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”
Dúvidas não há, por isso, que eventuais normas legais que atentem contra preceitos ou princípios constitucionais não podem ser aplicadas pelos tribunais, sendo que tais preceitos, se respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, são directamente aplicáveis.
Contudo, o referido princípio constitucional da igualdade não tem uma amplitude absoluta e ilimitada, isto no sentido de que não podem existir normas que abranjam somente certos grupos de cidadãos.
Efectivamente, a delimitação, pela negativa, dessa mesma amplitude encontra-se desenhada no n.º 2 do mesmo artigo 13.º ao estabelecer que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
Trata-se, como resulta do seu teor, de uma norma de enunciação taxativa e não exemplificativa, pois que refere especificamente quais os aspectos que não podem ser considerados para a discriminação relativa entre pessoas.
Efetivamente, nessa norma não estão previstos, nem são admitidos, outros aspetos que podem distinguir as pessoas, como seja a idade.
A idade é, na realidade, um factor levado em conta em vários domínios das sociedades actuais, distinguindo o legislador, por essa via, grupos específicos de cidadãos, como seja, por exemplo, no acesso gratuito ou a menor custo a cuidados de saúde e a transportes públicos, bem como na atribuição de prestações e benefícios sociais e ainda em programas de tratamento e vacinação ou atendimento prioritário em serviços públicos, sendo também a idade um factor condicionante no acesso e candidatura a certas profissões e cargos públicos electivos.
A idade como factor de diferenciação, quer positiva, quer negativa, está constantemente presente nos mais variados aspecto da regulação da vida em sociedade.
O que a Lei Fundamental na verdade impõe, ao estabelecer o princípio da igualdade, é que tenha igual tratamento o que é efectivamente igual e tratamento diferenciado o que é realmente diferente. É que só assim obtém efectiva concretização o princípio da igualdade.
O Tribunal Constitucional tem vindo a pronunciar-se sobre o âmbito do princípio da igualdade nesse sentido, sustentando que a constituição não veda a adopção de medidas que estabeleçam distinções, somente proibindo aquelas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional, sublinhando, frequentemente, que igualdade não é, porém, igualitarismo.[3]
Como é sabido e resulta do seu artigo 1.º (acima transcrito), a referida Lei n.º 38-A/2023 foi elaborada no contexto da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, constando da respectiva Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, apresentada na Assembleia da Republica pela Senhora Ministra da Justiça, a sua exposição de motivos, que ajuda a perceber o seu alcance, dela constando o seguinte:
“A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo.
Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens.
Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.
Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina. Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação. (…).».
Verifica-se, assim, que a justificação para a adopção de medidas de clemência destinadas a pessoas até aos 30 anos de idade tem a ver com a faixa etária dos destinatários centrais desse evento, ainda que outros, de diferentes idades, pudessem nelas participar.
Essa opção encontra-se, pois, fundamentada de forma razoável, objectiva e racional, como bem assinala a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta no seu Parecer.
E como também resulta da transcrita exposição de motivos, nem sequer se tratou de uma novidade na limitação da aplicação da amnistia e perdão de penas aos “jovens”, pois que já em anteriores leis de amnistia isso mesmo tinha ocorrido, tendo-se, então, estabelecido um regime especial de clemência aplicável a “delinquentes com menos de 21 anos de idade, à data da prática do crime, ou com 70 ou mais anos”, conforme disposto no artigo 10.º da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, e no artigo 3.º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio.
E não se tem conhecimento que alguma dessas normas haja sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional.
Importa também referir que, no nosso ordenamento jurídico, os jovens imputáveis são beneficiários de um regime penal especial, que foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, dando-se concretização ao enunciado no artigo 9.º do Código Penal, sendo considerado jovem para tal efeito “o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos de idade sem ter ainda atingido os 21 anos.” (art. 1.º, n.º 2).
Conforme resulta do preâmbulo deste diploma, esse regime tem subjacente a ideia de que “o jovem imputável é merecedor de um tratamento penal especializado”, tendo-se instituído “um direito mais reeducador do que sancionador” (§§ 2. e 4.).
Neste contexto, a ideia subjacente à publicação da Lei n.º 38-A/2023, além de assinalar o evento histórico que constitui a realização das JMJ em Portugal, é reduzir o tempo de prisão para os mais jovens condenados, num sinal de clemência da sociedade, esperando que os mesmos aproveitem tal gesto para reflectir no mal cometido através do crime e que não voltem a delinquir.
As pessoas que podem beneficiar da amnistia e perdão encontram-se ainda numa fase de formação da personalidade e de desenvolvimento do carácter, podendo manifestar indecisão e vulnerabilidade na opção pro direito quando confrontados na dialéctica entre o comportamento lícito e o ilícito, residindo também em tal medida de clemência uma preocupação de ressocialização dos jovens, no caso entre os 16 e os 30 anos de idade.[4]
Tal como afirmou o STJ no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2023, de 15-12-2022 (in DR I Série N.º 23, de 01-02-2023), pronunciando-se sobre a Lei n.º 9/2020, de 10-04 (que estabeleceu o “Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19”), citado na resposta do Ministério Público, “Qualquer medida de amnistia, entendida em sentido amplo, pode remeter, necessariamente, para uma certa derrogação do princípio da igualdade (ao menos num seu entendimento não complexivo, que abranja ou integre já essas excepções, aliás clássicas), uma vez que há sempre um grupo limitado de delitos que deixa de ser punido, ou um conjunto de penas que deixam de ser cumpridas, mantendo-se os demais.” (pág. 38).
E na verdade, sendo a amnistia e perdão, uma medida de excepção, o órgão legiferante goza de uma certa discricionariedade, nada exigindo que seja destinada a todo e qualquer cidadão e que abranja a multiplicidade dos crimes, sendo-lhe permitido limitar o seu campo de aplicação.
Ademais, importa ter presente, como sublinhou o Exm.º Magistrado do Ministério Público na resposta ao recurso, que a amnistia e o perdão não constituem um direito dos cidadãos, representando, sim, uma medida de clemência, por natureza excepcional e de âmbito limitado.
A violação do princípio da igualdade somente ocorreria se, estando o recorrente dentro da faixa etária estabelecida pela norma, fosse recusada a aplicação da amnistia ou perdão em virtude de alguma das situações enunciadas no n.º 2 do artigo 13.º da CRP. Mas tal não é manifestamente o caso.
Em conclusão, não se mostram violados, no caso concreto, os preceitos e princípio constitucionais invocados pelo recorrente, nem quaisquer outros, pois que se considera que o n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, não enferma de inconstitucionalidade na parte em que imita o âmbito da sua aplicação a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos à data da prática do facto ilícito.
Impõe-se, assim, a rejeição do recurso, por ser manifesta a sua improcedência.
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São devidas custas pelo arguido no caso de “decaimento total” no recurso, com taxa de justiça a fixar entre 3 e 6 UC, não havendo lugar às mesmas apenas em caso de procedência, mesmo que somente parcial (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).
Por sua vez, a rejeição do recurso, designadamente por manifesta improcedência, implica a condenação do recorrente ao pagamento de uma importância entre 3 e 10 UC (n.º 3 do art. 420.º do CPP).[5]
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Pelo exposto, decide-se:
a) Rejeitar, por manifesta improcedência, o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se o despacho recorrido.
b) Condenar o recorrente nas custas respectivas, com taxa de justiça de 3 (três) UC.
c) Condenar ainda o recorrente na quantia correspondente a 4 (quatro) UC, nos termos do n.º 3 do artigo 420.º do CPP.
Notifique.
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Porto, 27-11-2023.
Raúl Cordeiro
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[1] Cfr. Ac. do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995.
[2] Vejam-se, designadamente, os Acs. do STJ de 11-06-1987, TJ n.º 31, pág. 30; de 16-01-1990, BMJ 393.º, pág. 262; de 21-07-1987 – Proc. 039119, in www.dgsi.pt, bem como os Acs. da RP de 22-02-1995 – Proc. 9410809, e de 29-03-2000 – Proc. 0040247, e ainda os Acs. do STA de 17-02-1999 – Proc. 023675, e de 08-06-1995 – Proc. 037923, todos estes disponíveis in www.dgsi.pt. [3] Neste sentido podem ver-se, entre outros, os Acs. do TC n.ºs 39/1988, 437/2006, 546/2011, 362/2016 e 379/2021, in www.dgsi.pt. [4] O início nos 16 anos tem a ver, como é evidente, com o facto de os menores de 16 anos serem penalmente imputáveis (art. 19.º do C. Penal).
[5] Este sancionamento é cumulativo com as custas, pois que têm diferentes finalidades (cfr. Pereira Madeira, Código de Processo Penal comentado, 3.ª edição revista, 2021, Almedina, pág. 1341, e Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, pág. 1164), sendo este o procedimento adoptado nas decisões dos Tribunais Superiores (cfr. Acs. da RL de 19-02-2002, Proc. 0003425, e de 16-06-2004, Proc. 4589/2004-3; da RC de 11-02-2015, Proc. 3/12.2PBCTB.C1, bem como do STJ de 15-10-2003, Proc. 03P1870, e de 04-05-2023, Proc. 130/12.6TELSB.P1.S1, e a Decisão Sumária da RL de 20-06-2023, Proc. 8/20.0GDMTJ.L1-9, in www.dgsi.pt).