RECURSO DE REVISÃO
PORNOGRAFIA DE MENORES
METADADOS
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
DECLARAÇÃO COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I- O artigo 282.º, n.º 3, da CRP afasta, em regra, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade perante o caso julgado, limitando-se a admitir que o TC possa, casuisticamente, afastar essa limitação, caso a norma inconstitucional respeite a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.

II- A interpretação da al. f) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, no sentido de ser admissível revisão de sentença sempre que norma respeitante a matéria penal fosse declarada inconstitucional, com f.o.g., violaria aquele mesmo art. 282.º, n.º 3, da CRP, pois tornaria automático o afastamento da regra geral da ressalva do caso julgado contra norma constitucional expressa que faz depender tal afastamento de decisão expressa do TC.

III- No caso presente, tendo o Ac. do TC n.º 268/2022 ( de 19-04-22) sido publicado na 1.ª série do DR de 03-06-2022, o acórdão condenatório (transitado em julgado a 23.11.2020) cuja revisão o arguido pretende, havia já transitado em julgado quando se tornou eficaz a declaração de inconstitucionalidade com f.o.g..

IV- Assim, uma vez que este acórdão do TC não afastou a ressalva do caso julgado, nos termos do art. 283.º, n.º 3, da CRP, não se mostra preenchida a previsão da al. f) do n.º 1 do art. 449.º CPP, pelo que não é admissível a revisão da sentença condenatória do arguido com tal fundamento.

Texto Integral


Recurso de revisão nº 2766/11.3TABRR-F.S1


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I Relatório


1.O arguido, AA, melhor identificado nos autos principais, vem interpor o presente recurso extraordinário de revisão ao abrigo do disposto no art. 449º, nº 1, al. f) do Código de Processo Penal, da sentença proferida em 18-12-2018, pelo Juízo Local Criminal do ... (J... .) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e transitada em julgado em 23-11-2020, conforme certidão emitida em 18.07.2022 pelo tribunal de condenação, que condenou o arguido na prática de um crime de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176.°, n.°4, do Código Penal, na redação anterior à Lei n.º 103/2015, de 24/08, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 1 (um) ano, na condição de, em 6 (seis) meses após o trânsito em julgado da decisão, o arguido depositar a quantia de 2.000,00 (dois mil euros) à A.P.A.V..


2. Para fundamentar a sua pretensão, o arguido extrai da sua motivação as seguintes


« CONCLUSÕES:


1. O presente recurso é interposto, tendo em conta o disposto no artigo 449.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, "A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando: f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;"


2. Sendo que, foi proferido pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 268/2022, de 03 de junho publicado em Diário da República (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 I DRE) veio decidir o seguinte: "Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei; declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros."


3. Ora, a sentença colocada em crise, confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa veio condenar o arguido na prática de um crime de pornografia de menores, nos termos do artigo 176.º n.º 4 do Código Penal, sendo que, tal condenação teve por base o acesso a dados ao abrigo do disposto nos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei 32/2008.


4. A pretensão assim deduzida inscreve-se no âmbito da obtenção de dados de tráfego e de localização celular conservados pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes pública de comunicações, nos termos previstos na Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15-03, relativa ao acesso e conservação dos dados de tráfego e de localização das comunicações para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades e que estabelece um regime processual privativo da referida matéria.


5. E para efeitos do mencionado diploma, entende-se por dados os dados de tráfego, os dados de localização e os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador [artigo 2.º, n.º 1, alínea a)]. Na linha do que sustentam os Acórdãos da Relação de Lisboa de 22-06-2016 (processo n.º48/16.3...-A.Ll-9), 07-03-2017 (processo n.º 1585/16.5...-A.L1-5) e 25-10-2016 (processo n.º 223/16.0...)[3], o regime estabelecido na citada Lei n.º 32/2008 refere-se à obtenção dos dados de comunicações já ocorridas e que se encontram preservados ou conservados. Já o artigo 189.º, n.º 2 do CPP e a extensão do regime das escutas telefónicas nele consagrada tem em vista os dados recolhidos em tempo real.


6. Os requisitos de acesso aos dados previstos num e noutro regime são, no essencial, os mesmos, como também é ponto assente que ambos se traduzem em meios de obtenção de prova restritivos do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, tutelado no artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa {doravante CRP) e, mais directamente, do sigilo das telecomunicações (cf. artigo 34.º, n.ºs 1 e 4 da CRP), devendo enquanto tais obedecer às exigências de adequação, necessidade e proporcionalidade consagradas no artigo 18.º da Lei Fundamental.


7. No caso vertente do aqui Recorrente, a condenação deste na prática do ilícito criminal de pornografia de menores teve por base o recurso a metadados, sem que tenham sido respeitadas as normais legais e em especial os prazos de conservação e manutenção dos mesmos tendo em conta a legislação vigente em Portugal e ainda o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 03 de junho.


8. Assim sendo, importa respeitar a decisão do Tribunal Constitucional e reconhecer que a investigação criminal não pode fazer-se à margem do Estado de Direito, não sendo assim permitida a recolha generalizada de metadados da população e a sua utilização para fins de investigação criminal sem que o visado tenha sequer disso conhecimento.


9. Os direitos fundamentais à privacidade e à proteção dos dados pessoais, constitucionalmente reconhecidos, têm que ser defendidos no nosso país, sob pena de este deixar de ser um Estado de Direito.


10. Pelo que, deverá a sentença proferida ser revista e deve ser remetida para o Tribunal da l.ª instância para que sejam expurgados todos os elementos probatórios que consistem em metadados e em consequência ser a sentença revista, com base exclusivamente nos demais elementos de prova existentes no processo e daí serem retiradas as conclusões para a condenação ou absolvição do arguido do ilícito criminal que lhe foi imputado.


Termos em que, e nos melhores em direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso e respetivas alegações ser aceites por tempestivas, concedendo a douta decisão provimento ao presente Recurso Extraordinário de Revisão, revogando sentença revidenda.»


3. O MP junto do tribunal de 1ª instância apresentou resposta ao recurso nos seguintes termos:


« III - Conclusões

Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

I - O Recorrente interpôs recurso da sentença proferida nos presentes autos, confirmada pelo Tribunal da Relação, que o condenou pela prática de 1 (um) crime de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176.°, n.° 4, do Código Penal, na redação anterior à Lei n.° 103/2015, de 24/08, na condição de, em 6 (seis) meses após o trânsito em julgado da decisão, depositar a quantia de 2.000,00 (dois mil euros) à A.P.A.V.., invocando que tal condenação teve por base o acesso de dados, ao abrigo do disposto no artigo 4.°, 6.° e 9.°

da Lei n.° 32/2008, de 17 de Julho, normas que foram declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.°268/2022.

II. - O artigo 282.º, da CRP, sob a epígrafe "Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade" preceitua que, "1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado. 2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infração de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última. 3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido (...) ".

III. - Na decisão que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas contidas no artigo 4.°, conjugado com o artigo 6.°, e do artigo 9.° da Lei n.° 32/2008, de 17-6, o Tribunal Constitucional não declarou, de forma expressa, que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade se estendem ao caso julgado, pelo que não existindo essa declaração, o Ministério Público entende que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade não serão aplicáveis no caso vertente, impondo-se por isso a ressalva do caso julgado, constitucionalmente consagrada, e com ela a imutabilidade da decisão condenatória nos autos, aos quais o presente recurso corre por apenso (cfr. artigo 282.°, n.° 3, da CRP).

IV. - Por outro lado, não existe qualquer ilegalidade na prova obtida, com fundamento na declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.° da Lei n.° 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 9.° da Lei n.° 32/2008, de 17 de julho, uma vez que a prova foi voluntariamente entregue pelo Recorrente às autoridades de investigação, no formato de uma pen. De facto, não foram utilizados na investigação os resultados obtidos a partir dos metadados.

V. - Ainda que assim não se entendesse, solicitar a uma operadora que forneça a identificação do titular do IP não consubstancia uma interceção de uma comunicação, no entanto, mostra-se informação essencial para a descoberta do(s) autor(es) do crime, sendo indispensável para a descoberta da verdade material.

VI - A interação com o Recorrente iniciou-se a partir de uma informação das autoridades
luxemburguesas, que originou a investigação da chamada "Operação Charly II", que
concluiu que não existiam indícios suficientes de que o arguido tivesse adquirido ou
detivesse as imagens e vídeos, determinando o encerramento do inquérito, com a prolação
de despacho de arquivamento, datado de 27-09-2013.

VII - Sucede que, apenas razões incidentais, da responsabilidade do próprio Recorrente,
que para o efeito fez sucessivos requerimentos para acelerar a recolha de informação de
interesse pessoal e profissional que tinha nos computadores portáteis, apresentando uma
pen para esse efeito, determinaram a reabertura de um inquérito.


VIII - O Recorrente e o seu Mandatário sempre tiveram conhecimento da prova de
investigação criminal, pelo que não colhe o argumento invocado de desconhecimento da
recolha de metadados e sua utilização para fins de investigação criminal, não obstante
salientar-se que é entendimento do Ministério Público que na investigação dos presentes
não foram utilizados na investigação os resultados obtidos a partir dos metadados. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, deve o Recurso interposto improceder e, consequentemente, manter-se na íntegra a decisão recorrida.»


4. Na sua informação sobre o mérito do pedido (artigo 454º CPP), a senhora juíza titular do processo em 1ª instância pronunciou-se no sentido da improcedência do pedido de Revisão por considerar, atentos os elementos dos autos, “… que não existe qualquer ilegalidade na prova obtida, com fundamento na declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, uma vez que a prova essencial foi voluntariamente entregue pelo Recorrente às autoridades de investigação, no formato de uma pen, a qual continha ficheiros de pornografia envolvendo menores, não tendo sido utilizados na investigação os resultados obtidos a partir dos metadados, tal como melhor é explanado na resposta do Ministério Público que antecede…”


5. O MP no STJ pronunciou-se também (artigo 455º nº1) no sentido de ser negado o pedido de revisão, essencialmente pelas seguintes razões:


- “ Entendemos, igualmente, pela não verificação de elementos que permitam a revisão da decisão condenatória transitada em julgado. Na verdade:


Tal como o recorrente refere e resulta da decisão recorrida, foi determinante para a sua condenação a obtenção, junto da operadora de Telecomunicações ‘Cabovisão’ da identificação do seu titular, tendo em conta o IP que se encontrava referenciado no processo, por via de informação anterior prestada pela Interpol (e que havia determinado a instauração de inquérito).


O recorrente refere que em causa estão os dados que revelam a todo o momento aspetos da vida privada e familiar dos cidadãos, permitindo rastrear a localização do indivíduo ao longo do dia, todos os dias (desde que transporte o telemóvel ou outro dispositivo eletrónico de acesso à Internet), e identificar com quem contacta (chamada - inclusive as tentadas e não concretizadas - por telefone ou telemóvel, envio ou receção de SMS, MMS, de correio eletrónico, ou de comunicações telefónicas através da Internet), bem como a duração e a regularidade dessas comunicações.


Mas o caso dos autos não se inscreveu neste âmbito – apenas foram solicitados à operadora os dados de identificação do assinante a que correspondia o IP anteriormente fornecido pela Interpol. Nada mais foi pedido.


Assim, não estamos perante a utilização da norma julgada inconstitucional.


Tal como entendido por este STJ em 08.11.2022, no processo 107/13.4P6PRT-D.S1 [Relatora – Conselheira Conceição Gomes] « O art. 189.º, n.º 2, do CPP permite aceder a dados de tráfego, neste caso, dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações e, por maioria de razão [in eo quod plus est, semper inest et minus (no que é mais está sempre compreendido o que é menos)], a dados de base relacionados, neste caso, com a identificação dos titulares dos cartões de telemóvel [nos quais, como salienta o acórdão do TC n.º 268/2022, «o grau de agressão ao direito à intimidade da vida privada (…) é menos gravoso do que os demais metadados elencados no artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho (pois apenas identificam o utilizador do meio de comunicação em causa)»], aos quais o MP sempre poderia aceder por via do disposto no art. 14.º, n.os 1 e 4, al. b), da Lei n.º 109/2009, de 15-09 (Lei do Cibercrime) quando se investiguem os crimes previstos no n.º 1 do art. 187.º, nomeadamente, crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.»


O mesmo, no Acórdão de 06.09.2022 [Relatora – Conselheira Teresa de Almeida], no processo 4243/17.0T9PRT-K.S1: «[…] tratando-se de elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os respetivos registo e fornecimento à autoridade judiciária competente, ao abrigo dos art.ºs 187º, 189º e 269º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, não importam desproporcionalidade ou desadequação face ao fim em vista, nem a afetação do direito fundamental à autodeterminação informativa. Nem demanda comunicação específica ulterior da sua solicitação e utilização, assemelhando-se, do ponto de vista da natureza e do regime, à obtenção, em processo penal, de outros dados pessoais, mormente, de identificação.»


E foi isso que sucedeu – o Ministério Público, no decurso do inquérito, solicitou apenas a identificação do titular do contrato, e ao abrigo da chamada «Lei do Cibercrime» (Lei nº 109/2009, de 15.9), nomeadamente do seu artº 14º, nºs 1 e 4, als. a) a c), disposições estas que não foram declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional.


Ou seja, nunca houve recurso à Lei nº 32/2088, de 17.07.


….


No caso ainda outra ‘especialidade’: O facto de a prova que levou à sua condenação ter sido entregue às autoridades pelo próprio arguido, ao fornecer um suporte no qual se encontravam os ficheiros que integravam a prática do crime. Para além da originalidade da situação, a mesma importa ainda a conclusão de que os elementos probatórios nem tiveram de ser solicitados qualquer fornecedor de serviços de dados, afastando-se assim de forma completa qualquer dúvida quanto a estar-se perante atividade que possa integrar-se na previsão da norma declarada inconstitucional.


….


Mas se já não bastasse isto para afastar o fundamento para a pretendida revisão, há a lembrar que nunca a declaração de inconstitucionalidade utilizada como fundamento para o pedido da revisão da decisão não pode afetar decisões já transitadas em julgado, como é a que condenou o ora recorrente. Isto porque o artº 282º da Constituição da República Portuguesa, visando a salvaguarda do princípio da segurança jurídica, dispõe, para os casos de declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral, que a mesma produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado, mas ficando (nº 3) «ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido».


Sucede que o acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, não excecionou a ressalva do caso julgado, pelo que – mesmo a ser a matéria dos autos abrangida pela previsão da norma declarada inconstitucional – não teria qualquer efeito.


Nesse sentido, unanimemente entenderam já os Acórdãos deste STJ que acerca da questão já se debruçaram – dos quais se referem – a título meramente exemplificativo – os que o foram em 21.9.2022, no Processo 79/13.5JBLSB-C.S1 [Relator – Ernesto Vaz Pereira]), em 12.10.2022, no Processo 83/03.1TAOER.A.S1 [Relatora Teresa Féria], em 12.10.2022, no Processo 2909/18.6JAPRT-A.S1 [Relatora – Ana Barata de Brito]; em 10.11.2022, no Processo 35/15.9PESTB-Z.S2 [Relatora – Maria do Carmo Silva Dias]; e em 13.04.2023, no processo 4778/11.8JFLSB-B.S1 [Relator – Lopes da Mota]..


Todos eles, com larga referência a doutrina a propósito da matéria, que nos dispensamos aqui de reproduzir, sem dúvidas chegaram à conclusão da não aplicação da declaração de inconstitucionalidade ora em causa a casos já transitados em julgado, como é o aqui tratado.


E daqui que terá de naufragar o pedido de revisão ora formulado, pois que só se se entendesse pela aplicação ao caso da doutrina emanada pelo TC se poderia – e ainda assim, cumprindo verificar outros elementos (que não ocorrem, como atrás se viu) – colocar a possibilidade de ser determinada a revisão, atentas as exigências desta figura (nomeadamente a existência de elementos que, em nome da Justiça, levassem a ultrapassar os princípios da segurança e certeza jurídica decorrentes do caso julgado).»


6. Cumpridos os vistos legais teve lugar a conferência, que decidiu o presente recurso de revisão nos seguintes termos.


II.


FUNDAMENTAÇÃO


1. Delimitação do objeto da peticionada revisão.


O recorrente fundamenta a pretendida revisão da sentença condenatória na alínea f) do nº1 do art. 449º do CPP, alegando que:


- O «… Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 268/2022, de 03 de junho publicado em Diário da República (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 I DRE) veio [declarar] “… a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei; declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros.";


- A sentença colocada em crise, confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa., veio condenar o arguido na prática de um crime de pornografia de menores, nos termos do artigo 176.º n.º 4 do Código Penal, sendo que, tal condenação teve por base o acesso a dados ao abrigo do disposto nos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei 32/2008;


- No caso vertente do aqui Recorrente, a condenação deste na prática do ilícito criminal de pornografia de menores teve por base o recurso a metadados, sem que tenham sido respeitadas as normais legais e em especial os prazos de conservação e manutenção dos mesmos tendo em conta a legislação vigente em Portugal e ainda o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 03 de junho;


- Assim sendo, importa respeitar a decisão do Tribunal Constitucional e reconhecer que a investigação criminal não pode fazer-se à margem do Estado de Direito, não sendo assim permitida a recolha generalizada de metadados da população e a sua utilização para fins de investigação criminal sem que o visado tenha sequer disso conhecimento;


- Pelo que, deverá a sentença proferida ser revista e deve ser remetida para o Tribunal da l.ª instância para que sejam expurgados todos os elementos probatórios que consistem em metadados e em consequência ser a sentença revista, com base exclusivamente nos demais elementos de prova existentes no processo e daí serem retiradas as conclusões para a condenação ou absolvição do arguido do ilícito criminal que lhe foi imputado.


2. Apreciação dos fundamentos da presente revisão.


2.1.O direito a revisão de sentença, que atualmente é conferido ao cidadão injustamente condenado (no que agora importa) pelo artigo 29º nº6 da CRP, nos termos que a lei prescrever, tem natureza excecional, ditada pela proteção do caso julgado, cabendo ao art. 449º CPP a previsão taxativa dos fundamentos da revisão em processo penal, entre os quais se contam os estabelecidos na alínea f), ora invocada pelo recorrente, a qual foi introduzida pela Lei 48/2007 de 29.08 e cujo teor é o seguinte:


- - «1. A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:


(…)


f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação.


(…)».


É este o preceito invocado pelo recorrente, alegando no essencial que a sua condenação pela prática do ilícito criminal de pornografia de menores teve por base o recurso a metadados, sem que tenham sido respeitadas as normais legais e em especial os prazos de conservação e manutenção dos mesmos tendo em conta a legislação vigente em Portugal e ainda o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 03 de junho, pelo que, importando reconhecer a decisão do Tribunal Constitucional e reconhecer que a investigação criminal não pode fazer-se à margem do Estado de Direito, não sendo assim permitida a recolha generalizada de metadados da população e a sua utilização para fins de investigação criminal sem que o visado tenha sequer disso conhecimento; conclui que a sentença proferida deve ser revista e deve ser remetida para o Tribunal da l.ª instância para que sejam expurgados todos os elementos probatórios que consistem em metadados e em consequência ser a sentença revista, com base exclusivamente nos demais elementos de prova existentes no processo e daí serem retiradas as conclusões para a condenação ou absolvição do arguido do ilícito criminal que lhe foi imputado.


Vejamos.


2.2. O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/22 «… declar[ou] a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.»;


Entende o arguido que em resultado daquela declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (f.o.g.) deve a referida sentença condenatória ser revista para que sejam expurgados todos os elementos probatórios que consistem em metadados e em consequência ser a sentença revista, com base exclusivamente nos demais elementos de prova existentes no processo e daí serem retiradas as conclusões para a condenação ou absolvição do arguido do ilícito criminal que lhe foi imputado.


Pretende, pois, o recorrente, que a mera declaração de inconstitucionalidade com f.o.g. ora transcrita implica a revisão da sentença condenatória para que dela sejam expurgadas as provas aí produzidas ao abrigo do disposto do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, seguida da apreciação dos demais elementos de prova existentes no processo para daí serem retiradas as devidas conclusões com vista à condenação ou absolvição do arguido relativamente ao ilícito criminal que lhe foi imputado e pelo qual foi entretanto condenado.


2.3. Porém, para que pudesse ser assim impunha-se estarmos perante declaração de inconstitucionalidade com f.o.g. de norma de conteúdo penal menos favorável aplicável à sentença que condenou o arguido, o que, antes mesmo de aferir se a norma declarada inconstitucional servira de fundamento à condenação do requerente - conforme dispõe a al. f) do nº1 do art. 449º CPP - , depende de saber se a declaração de inconstitucionalidade do Ac TC 268/22 abrange decisão já transitada em julgado no momento em que foi proferida, que é o caso dos presentes autos como melhor veremos.


3.3.1.. Com efeito, o artigo 282º nº3 CRP afasta, em regra, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade perante o caso julgado, limitando-se a admitir que o TC possa, casuisticamente, afastar essa limitação no caso de a norma inconstitucional respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido – sobre esta questão pode ver-se, por todos, J.M. Cardoso da Costa, Ainda Sobre O Artigo 282º nº3, Segunda Parte, da Constituição da República in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Vol. I, Gestlegal, 2022, pp 1017 a 1038.


Assim, interpretação da al. f) do nº1 do artigo 449º do CPP no sentido de ser admissível revisão de sentença sempre que norma respeitante a matéria penal fosse declarada inconstitucional com f.o.g., violaria aquele mesmo artigo 282º nº3 CRP, pois tornaria automático o afastamento da regra geral da ressalva do caso julgado contra norma constitucional expressa que faz depender tal afastamento de decisão expressa do TC.


Não pode, pois, deixar de interpretar-se restritivamente a letra da alínea f) do nº1 do art. 449º CPP considerando-se que ali se abrangem apenas as situações em que o TC tenha afastado expressamente a ressalva do caso julgado, podendo dizer-se que, objetivamente, a introdução daquela alínea f) pela Lei 48/2007 de 29 de agosto vem suprir a inexistência de um meio processual de executar os acórdãos do TC que ao declararem inconstitucional norma respeitante a matéria penal afastem expressamente a ressalva do caso julgado - vd., por todos, Paulo Freitas Belo, O Recurso de Revisão e a Reforma Penal, Revista Julgar, nº 234, 2014, especialmente pp. 103 e 104 e P. Albuquerque, CPP/2007, p. 1217; a jurisprudência do STJ tem decidido uniformemente neste sentido, podendo ver-se, entre outros, os acórdãos citados no parece do MP neste tribunal e ainda o Ac STJ de 19.01.2023, deste relator.


3.1.2. No caso presente, importa ter especialmente em conta que o Ac TC n.º 268/2022, proferido em 19.04.22, foi publicado na 1ª série do DR de 3.06.2022, pelo que adquirindo eficácia jurídica apenas com a sua publicação (cf. artigos 1º, nº 1, e 3º, nº 2, al. h), da Lei nº 74/98, de 11 de novembro, e artigo 3º, nº 1, al. a), da Lei nº 28/82, de 15 de novembro) é aquela última a data da sua entrada em vigor, momento em que já transitara há muito a sentença condenatória cuja revisão o recorrente pretende, trânsito em julgado que ocorreu em 23-11-2020, conforme certidão de 18.07.22 emitida pelo tribunal da condenação.


Assim sendo, uma vez que este acórdão 268/2022 do TC, com f.o.g., não afastou a ressalva do caso julgado nos termos do artigo 283º nº3 da CRP, não é o mesmo aplicável à sentença condenatória proferida nos presentes autos, pelo que in casu não se mostra preenchida a previsão da al. f) do nº1 do artigo 449º, interpretada restritivamente em conformidade com a norma do mesmo artigo 283º nº3, como referimos. Deste modo, não é de admitir a revisão da decisão condenatória proferida em 18-12-2018, contra o arguido, AA, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação e transitada em julgado em 23-11-2020, com fundamento na al. f) do nº1 do artigo 449º do CPP.


III


Dispositivo


Por todo o exposto, acorda-se em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revisão de sentença peticionada pelo arguido condenado, AA, com fundamento na alínea f) do nº1 do artigo 449º CPP.


Custas pelo requerente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça – cf. artigo 456º e 513º do C.P.P. e art. 8.º n.º 9, do RCP, e Tabela III, anexa.


Lisboa, 7.12.2023


Os Juízes Conselheiros


António Latas (Relator)


Orlando Gonçalves (Adjunto)


José Eduardo Sapateiro (Adjunto)


Helena Moniz (Presidente da secção)