ACIDENTE DE VIAÇÃO
OMISSÃO DE AUXÍLIO AO LESADO
DIREITO DE REGRESSO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Sumário

I - A omissão de auxílio ao lesado, por parte do condutor de um veículo interveniente no acidente de viação, consubstancia um desvio, grave e censurável, do padrão ético-jurídico do cidadão médio, que justifica a atribuição à seguradora do direito de regresso após ter cumprido a obrigação de indemnização, em substituição do lesante, dos danos causados àquele.
II - O prazo de prescrição do direito de regresso da seguradora, no caso de pagamento parcelar da indemnização, inicia-se, em regra, após a data em que se concretiza o último pagamento ao lesado.

Texto Integral

Processo n.º 3830/20.3T8AVR.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunto: Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira
Adjunto: Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira

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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
“A... S.A.”, com sede na Rua ..., ... Porto, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, residente na Rua ..., ... Aveiro, pedindo a condenação no pagamento do valor de 32.766,80€, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, até efetivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que no dia 6 de junho de 2014, na Rua ..., ..., ..., ocorreu um acidente de viação, envolvendo o veículo seguro, conduzido pela Ré, e um motociclo. Tal acidente ocorreu em virtude da Ré ter efetuado uma manobra de mudança de via, sem verificar que a mesma podia ser executada em condições de total segurança e sem causar perigo para os demais condutores, embatendo no referido motociclo, que circulava na via contrária, e, após, abandonando o local do sinistro, sem prestar auxílio ao condutor do motociclo, o qual havia sofrido ferimentos graves.
Mais alegou que do acidente resultaram danos físicos no condutor do motociclo, bem como danos materiais nesse veículo, tendo a autora despendido com a regularização do sinistro o montante total de 32.766,80€. Concluiu assistir-lhe direito de regresso sobre a Ré.
A Ré contestou invocando a exceção da prescrição e alegando que o acidente não se deveu a culpa sua, porquanto foi o condutor do motociclo que invadiu a sua via de trânsito, embatendo contra o seu veículo. Mais alegou que imobilizou o veículo por si conduzido, que o condutor do motociclo não aparentava ter ferimentos graves, que foi assistido por diversas pessoas que se encontravam nas imediações e que, por a autora apresentar ferimentos na mão, precisava de assistência médica, razão pela qual se ausentou do local.
A Autora respondeu sustentando a improcedência da exceção de prescrição.
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Proferiu-se sentença que julgou a exceção perentória de prescrição e a ação parcialmente procedentes e, consequentemente:
a) declarou prescrito o direito da Autora no que respeita aos danos referentes ao motociclo, no valor de 2.800,00€ (dois mil e oitocentos euros);
b) condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de 29.966,80€ (vinte e nove mil, novecentos e sessenta e seis euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa prevista para os juros civis, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
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Inconformada com a sentença, a Ré interpôs recurso finalizando com as seguintes
Conclusões
1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida nos autos supra e à margem referenciados, por entender a Apelante que a mesma promove uma errada interpretação e aplicação do Direito vigente, que redunda numa solução materialmente injusta e injustificada, que se impõe seja alterada;
•Da exceção de prescrição
2. A natureza (e a liquidação) dos danos a que aludem os pontos 20) e 23) da decisão relativa à matéria de facto de nenhum modo se confunde, inexistindo qualquer motivo atendível que leve a considerar incindível a sua reclamação e, designadamente, que justifique que a Autora (ora Apelada) não tenha reclamado da Ré (ora Apelante) o reembolso das despesas relacionadas com a regularização do acidente de trabalho (que restituiu à sua congénere logo em 31.08.2017) no prazo de 3 (três) anos do pagamento efetuado;
3. Tomando por bom o princípio adotado pelo Tribunal recorrido na apreciação da prescrição, impunha-se considerar todas as despesas relacionadas com a regularização do acidente de trabalho, no valor de 7.466,80€ (ponto 23º), como um núcleo indemnizatório, autónomo e juridicamente diferenciado, relativamente ao qual se iniciou e correu, de modo também autónomo, o prazo de prescrição do direito de regresso da Autora;
4. Tendo o pagamento das despesas relacionadas com a regularização do acidente de trabalho sido feito em 31.08.2017, necessário se torna concluir que o direito de reclamar o respetivo reembolso da Ré (aqui Apelante) já se encontrava prescrito à data em que a presente demanda foi intentada (27.11.2020);
5. Decidindo de forma distinta, a douta decisão ora em crise violou o disposto no citado art. 498º do C.C. e, bem assim, o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, como emanação do princípio do Estado de Direito previsto no art. 2º da Constituição da República Portuguesa;
Sem prescindir,
•Da inexistência de dolo
6. O exercício do direito de regresso por via do disposto na al. d) do art. 27º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08, pressupõe que a conduta do agente do abandono aí referido seja gravemente censurável, sendo mesmo praticada com dolo, e não apenas por negligência;
7. “Aderindo inteiramente ao decidido pelo STJ, por exemplo, nos acs. de 4/4/95 (in BMJ446, 239) e de 13/2/96 (BMJ454, 726), considera-se que este conceito pressupõe necessariamente o dolo do condutor, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência: a existência daquele direito de regresso pressupõe que tenha havido o abandono doloso da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência.
(…) podendo a assistência devida aos lesados ser prestada pelo próprio ou por terceiros, não comete o facto doloso de abandono de sinistrado o condutor que, apesar de infringir aquela obrigação de estrita permanência no local, não chegou a formar e consumar a vontade de omitir a prestação da assistência devida aos lesados -afastando-se do local do acidente, nomeadamente por fundadas razões de receio, segurança ou perturbação (…).
(…) face à delimitação do conceito de abandono de sinistrado a que se procedeu –concluindo que só cabem no seu âmbito factos dolosos do condutor, envolvendo a formação e consumação de uma vontade deliberada de omitir a prestação da assistência devida à vítima” (vide douto Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 02.07.2015 proc. nº 620/12.0T2AND.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt);
8. Impunha-se à Autora (ora Apelada) que alegasse e demonstrasse qualquer intuito volitivo da Ré no sentido de omitir o auxílio ao lesado, tudo o que a Autora não fez;
9. Os autos patenteiam diversos factos indiciários – acima elencados – de que, ao ausentar-se do local do acidente, a Ré (ora Apelante) não teve qualquer intenção de prejudicar o auxílio ao outro sinistrado;
10. Ao dispensar a alegação e prova do dolo da conduta imputada à Ré e, bem assim, ao desprezar os factos que indiciam a inexistência da mesma intencionalidade, a douta Sentença em crise violou o disposto na al. d) do art. 27º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08, na redação aplicável, bem como a previsão do art. 341º, nº 1 do C.C.;
Ainda sem prescindir,
• Da desproporcionalidade e desadequação do direito exercido
11. O direito de regresso exercido nos termos e para os efeitos do disposto na al. d) do art. 27º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08, na redação aplicável, tem ainda – e mesmo quando verificados todos os restantes pressupostos – de se mostrar adequado e proporcional à gravidade da infração praticada pelo visado;
12. “Finalmente, importa ainda atentar no princípio estruturante da adequação e da proporcionalidade, não podendo admitir-se em face do mesmo que infracções muito pouco relevantes no plano ético jurídico, cometidas em circunstâncias que justificariam um reduzido ou francamente atenuado juízo de censura, possam conduzir a drásticas perdas patrimoniais, que ponham em causa a sobrevivência económica do obrigado em via de regresso.” (vide douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 16.06.2016, proc. nº 49/14.6T8FAR.E1, disponível em www.dgsi.pt);
13. É gritante a desadequação do reconhecimento do direito de regresso in casu, assim como a desproporção entre a respetiva conduta e a condenação de que foi alvo;
14. Os factos que o Tribunal logrou apurar patenteiam que a saída do local por parte da Ré não só não deixou o outro sinistrado desamparado e/ou desprovido de auxílio, como não criou nem agravou os danos pelo mesmo sofridos, deixando igualmente claro que também a Ré se assustou com o embate – em consequência do qual também sofreu ferimentos – e, em todo o caso, que a sua permanência no local nada alteraria em benefício do outro sinistrado e/ou da seguradora Autora;
15. A conduta da Ré não assumiu uma gravidade adequada a justificar a sua condenação no ressarcimento das despesas suportadas pela seguradora, tanto mais atendendo a que estas, pelo expressivo montante fixado em Sentença, necessariamente comprometem o futuro financeiro da própria Ré caso a condenação se mantenha;
16. O pagamento mencionado no Ponto 20) dos factos provados foi feito pela seguradora no cumprimento de uma obrigação sinalagmática que assumiu perante a Ré, no âmbito de um contrato a que esta última sempre deu pontual cumprimento, sendo de elementar justiça – sim – que aquela acomode o prejuízo sofrido na respetiva responsabilidade contratual;
17. Ao não excluir o reconhecimento do direito de regresso com base na sua absoluta desadequação e desproporção, a douta sentença em crise violou, ainda, o princípio estruturante da adequação e da proporcionalidade, prescrito no art. 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
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A Autora apresentou resposta com as seguintes
Conclusões
1) A Apelada intentou a presente acção alicerçada no direito de regresso consagrado na al. d) do nº1 do art 27 do dl 291/2007.
2) À indemnização pretendida pela Apelada, aplica-se, o prazo de prescrição de três anos, legalmente previsto para o exercício do direito de regresso entre os responsáveis da indemnização nos termos do nº2 do artº 498º do CPC, contado do cumprimento e exigível, depois de conhecida toda a sua dimensão.
3) A Apelada procedeu aos seguintes pagamentos: 30 de janeiro de 2015, da quantia de 2.800,00€, a título de perda total do motociclo GM (ponto 24.º); 31 de agosto de 2017, de todas as despesas relacionadas com a regularização do acidente de trabalho, no valor de 7.466,80€ (ponto 23.º); 10 de setembro de 2020, dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo condutor do motociclo, no montante de 22.500,00€ (ponto 20.º).
4) O facto do pagamento decorrente do acidente de trabalho não ter sido efetuado diretamente pela Recorrida ao sinistrado, não é motivo bastante para o diferenciar da indemnização paga pela Recorrida ao sinistrado.
5) Ambos os pagamentos são consequência direta do sinistro e ambos os pagamentos resultam de danos patrimoniais e/ou não patrimoniais sofridos diretamente pelo sinistrado em consequência do sinistro.
6) O facto de uma parcela dos pagamentos, corresponder a despesas relacionadas com a regularização do acidente de trabalho, não resulta na sua autonomização, pois todos os pagamentos derivam da regularização do sinistro, decorrente do acionamento da apólice de seguro contratada.
7) Não se concede que os pagamentos colocados em crise pela Apelante, possam ser considerados juridicamente autónomos e diferenciados, razão pela qual, não existe fundamento para julgar o pagamento de 7.466,80€ prescrito.
8) Nos termos do artigo 27º/1, alínea d), do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o condutor quando, além do mais, haja abandonado o sinistrado.
9) Da factualidade provada, apenas se verificou que a Recorrente imobilizou o veículo NX, ponto 14 dos factos provados, mas imediatamente a seguir, abandonou o local, ponto 15 dos factos provados, não prestando auxílio ao condutor do motociclo GM.
10) Independentemente, da faceta do dolo que esteja em causa, o abandono é, salvo prova em contrário, sempre reprovável, não sendo necessária a consciência de causar prejuízos a outrem, bastando a consciência do carácter danoso do facto.
11) Ao contrário do alegado pela Recorrente, para exercer o direito de regresso com fundamento no abandono do sinistrado, à Recorrida, só lhe é exigido que prove que a condutora do veículo seguro abandonou o sinistrado, o que logrou fazer, conforme ponto 15 dos factos provados, aceite pela mesma.
12) É à Recorrente que cabe fazer prova de que não agiu com dolo, justificando o seu abandono do local do sinistro e afastando a sua culpa.
13) A Recorrente não requer a alteração da matéria de facto, pelo que, não ficou demonstrado que a Recorrente se ausentou do local porque teve a perceção de que não havia ferido o sinistrado com gravidade e, por isso, o mesmo não precisava do seu auxílio, como vem alegar em sede de Recurso.
14) Incumbindo-lhe a prova dessa matéria, de natureza excetiva, sobre ela recaem as desvantagens da sua falta de prova, em conformidade com o artigo 342º/2 do Código Civil.
15) Os mencionados factos são resultado direto da prova produzida e do contacto com as testemunhas em sede de Audiência de Julgamento, tendo a Mmª Juiz do Tribunal a quo formado a sua convicção com profundo respeito ao princípio da imediação e da livre, e crítica, apreciação da prova.
16) Perante os factos dados como provados nomeadamente, o ponto 14 e 15, decidiu corretamente a Mm.ª Juiz que a Apelante agiu com dolo ao abandonar o sinistrado, depois de o abalroar, não podendo ignorar que o mesmo poderia estar ferido e a necessitar de cuidados médicos.
17) Atenta a manifesta falta de fundamento da Recorrente para afastar o dolo, no que a aplicação do Direito diz respeito, o Tribunal a quo fez a correta subsunção dos factos ao direito, concluindo pela verificação dos pressupostos do Direito de Regresso nos termos 27º/1, alínea d) Dl 291/2007.
18) A Recorrente alega a desproporcionalidade e desadequação das consequências do direito de regresso, fundamentando que o abandono do local, não agravou os danos sofridos pelo sinistrado, uma vez que, o mesmo não ficou desprovido de auxílio, sendo, a sua presença no local indiferente.
19) A conduta da Recorrente é ético-juridicamente censurável.
20) O legislador concede, à seguradora, o direito de regresso do valor despendido com a regularização do sinistro, a fim de, punir a atuação do condutor que deliberadamente abandona o local do sinistro, sem verificar, efetivamente, o estado do sinistrado, e sem providenciar ajuda médica.
21) A Recorrente não saiu do veículo, não falou com ninguém no local, não averiguou o estado em que se encontrava o sinistrado, nem contactou qualquer entidade para prestar apoio hospitalar ao sinistrado, tendo-se conformado com a situação e abandonado o sinistrado.
22) Atenta a matéria de facto assente na Sentença a quo, não resultam motivações para que este douto Tribunal, não considere o exercício do direito de regresso da Recorrida adequado e proporcional à gravidade da infração e culpa da Recorrente, condenando a mesma nos valores peticionados.
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Apresentou ainda recurso subordinado, concluindo da seguinte forma:
A Apelante não aceita a interpretação que a MMª Juiz do Tribunal a quo perfilha quanto ao prazo de prescrição aplicável, designadamente no que à autonomização dos danos diz respeito.
24) A MM.ª Juiz do Tribunal a quo considerou que o 1.º pagamento pela perda total do motociclo GM, efetuado a 30 de janeiro de 2015, na quantia de 2.800,00€, se encontrava prescrito.
25) A Apelante efetuou mais dois pagamentos:
- em 31 de agosto de 2017, de todas as despesas relacionadas com a regularização do acidente de trabalho, no valor de 7.466,80€ (ponto 23.º);
- em 10 de setembro de 2020, dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo condutor do motociclo, no montante de 22.500,00€ (ponto 20.º).
26) A presente ação deu entrada a 27 de novembro de 2020.
27) A Recorrente não pode concordar com a autonomização de pagamentos considerada pelo Tribunal a quo, o qual distingue os últimos dois pagamentos do primeiro pagamento, considerando que se tratam de núcleos distintos e autónomos, correndo para cada núcleo, um prazo prescricional.
28) Não se vislumbra qual a destrinça técnico-jurídica operada pela MMª Juiz do Tribunal a quo, quanto à autonomização dos núcleos indemnizatórios denominados por perda total do motociclo GM, despesas de regularização do acidente de trabalho e indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo condutor do motociclo.
29) O Tribunal a quo aplicou o prazo de prescrição de três anos, legalmente previsto para o exercício do direito de regresso entre os responsáveis da indemnização nos termos do nº2 do artº 498º do CPC, contado desde o cumprimento e exigível, depois de conhecida toda a sua dimensão.
30) O Tribunal a quo considerou que, apenas o pagamento efetuado pela Recorrida para regularização das despesas decorrentes do acidente de trabalho não estava prescrito, por não se poder autonomizar da indemnização paga a 10 de setembro de 2020.
31) A natureza normativa do pagamento para regularização das despesas decorrentes do acidente de trabalho, e do pagamento efetuado pela perda total do motociclo GM, é patrimonial.
32) A indemnização paga ao sinistrado por todos os danos decorrentes do sinistro, tem, também, uma vertente patrimonial.
33) A indemnização paga pela perda total do motociclo GM, constituiu um dano patrimonial, que decorreu, igualmente, da eclosão do sinistro e que, por essa razão, tem a mesma natureza normativa que os demais pagamentos efetuados pela Recorrida e considerados não prescritos na Sentença a quo.
34) O último pagamento, não prescrito, tem natureza patrimonial e não patrimonial, e os demais pagamentos têm natureza patrimonial, não se justificando a destrinça efetuado pelo Tribunal a quo, não havendo por isso qualquer fundamento para juridicamente os considerar autónomos.
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Foi determinada, nesta sede de recurso, a junção da petição da acção judicial que o lesado intentou contra a seguradora, aqui Autora, por forma a se saber quais os danos reclamados, os quais foram aditados na fundamentação.
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II - Delimitação do Objecto do Recurso
As questões principais decidendas, delimitadas pelas conclusões dos recursos, consistem em saber, em primeira linha, se assiste à Autora o direito de regresso relativamente à indemnização que suportou, em substituição da lesante, em razão do contrato de seguro automóvel e na hipótese afirmativa se tal direito se encontra prescrito relativamente a dois dos pagamentos parcelares da indemnização.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS (elencados na sentença)
1.º A autora celebrou um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel com BB, titulado pela apólice n.º ...77, relativo ao veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca BMW, com a matrícula ..-..-NX (NX) – cfr. apólice junta como documento n.º 1 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
2.º No dia 6 de junho de 2014, pelas 05h46, na Rua ..., em ..., ..., Aveiro, ocorreu um acidente de viação, no qual estiveram envolvidos:
a) o veículo NX, conduzido pela ré;
b) o motociclo com a matrícula ..-GM-.. (GM), conduzido por CC.
3.º O local onde o acidente ocorreu configura uma reta.
4.º A faixa de rodagem é composta por duas vias de circulação, uma no sentido .../Aveiro e outra no sentido contrário.
5.º Atento o sentido .../Aveiro, a faixa de rodagem é marginada do lado direito por passeio e do lado esquerdo por estacionamento.
6.º As vias de circulação são separadas por um traço longitudinal contínuo.
7.º O pavimento da faixa de rodagem é asfaltado.
8.º A faixa de rodagem permite a visualização em toda a sua largura, numa extensão de, pelo menos, 50 metros.
9.º Momentos antes do embate referido em 2.º, o veículo NX encontrava-se parado, na berma da estrada, aguardando a entrada de um passageiro.
10.º Depois de recolhido o passageiro, a ré iniciou a marcha, entrando na via de trânsito, no sentido .../Aveiro.
11.º Logo após, a ré mudou de direção à esquerda, passando a ocupar parte da via contrária, alheia ao trânsito que se fazia sentir nessa via.
12.º Acabando por embater com a frente esquerda do veículo NX na lateral esquerda do motociclo GM, que circulava no sentido contrário.
13.º Após sofrer o embate, o condutor do motociclo GM manteve a circulação do veículo por alguns metros, fazendo-o aos ziguezagues, até ao momento em que caiu para o chão.
14.º Após o embate, a ré imobilizou o veículo NX.
15.ºMas imediatamente a seguir abandonou o local, não prestando auxílio ao condutor do motociclo GM, que apresentava ferimentos, nomeadamente na perna esquerda.
16.º O condutor do motociclo GM estava em deslocação para o trabalho.
17.º O condutor do motociclo GM fraturou a perna esquerda, tendo sido sujeito a intervenção cirúrgica.
18.º Correu termos no Juízo Central Cível de Aveiro – Juiz 3, a ação de processo comum n.º 1280/17.8T8AVR, movido pelo condutor do motociclo GM contra a autora, com vista a ser ressarcido de todos os danos decorrentes do embate em apreço – cfr. ata de audiência junta como documento n.º 4 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
18.º-A Na petição da mencionada acção o condutor do motociclo alegou os seguintes danos:
“32. Em consequência directa do acidente o Autor sofreu graves lesões, que se encontram descritas no relatório que segue abaixo se junta como Doc. nº2, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos. Na verdade.
33.O Demandante sofreu fractura multiesquirolosa distal dos ossos da perna esquerda,
34. O sinistrado, após o acidente, foi transportado, para o Hospital de Aveiro.
35. Tendo aí permanecido internado pelo período de 20 dias, tendo tido alta médica no dia 23 de Junho de 2014.
36. Durante este período, o autor, foi operado duas vezes à sua perna esquerda.
37. A primeira intervenção cirúrgica ocorreu dias depois do acidente devido ao edema formado na perna.
38. E que não permitia a internação cirúrgica imediata.
39. Assim, o Autor foi intervencionado no dia 13-6-2014
40. Sendo novamente intervencionado, cirurgicamente, em 14-6-2014.
41. Ora, no espaço temporal compreendido em 24 horas o autor foi submetido a duas anestesias gerais.
42. A fortes dores
43. E a todo um processo que, psicologicamente, o deixou bastante afectado.
44. O autor teve alta no dia 23-06-2014.
45. Tendo regressado a casa com medicação,
46. E indicações terapêuticas que seguiu à risca.
47. Depois das operações a que foi submetido, o autor teve de iniciar o processo de reabilitação.
48. Processo esse que se mostrou e mostra, ainda hoje, muito exigente.
49. O Autor iniciou um primeiro ciclo de tratamentos de fisioterapia, por indicação médica, durante cerca de 3 meses.
50. Foi seguido em consulta externa de Ortopedia no Centro hospital do Baixo-Vouga.
51. Bem como, posteriormente, pelos serviços clínicos da Seguradora “B...” uma vez que o presente acidente foi também um acidente de trabalho.
52. Tendo sido a “B...” a única preocupada em assistir o Autor relativamente aos danos sofridos.
53. Bem como em acautelar eventuais sequelas corporais mais graves.
54. Fazendo um acompanhamento clínico.
55. No final do ano de 2014, foi novamente submetido a uma intervenção cirúrgica para retirar parafusos da perna.
56. Acontece que o durante todo este período o autor sofreu dores colossais.
57. Tanto no pós acidente,
58. Como nos pós-operatórios a que foi sujeito.
59. Alias, ainda hoje o autor sofre dores tremendas.
60. E vê-se impedido de realizar algumas actividades, designadamente actividade física.
61. O Autor não consegue saltar.
62. Sentido imensas dores, designadamente no tornozelo esquerdo,
63. Bem como no Joelho esquerdo
64. A perna incha bastante, devido ao corte dos vasos sanguíneos
65. Havendo má circulação
66. Provocando dores,
67. Acrescidas de um enorme desconforto.
68. Em virtude disso mesmo foi-lhe arbitrada uma IPP para o trabalho de 2%. (doc. Nº 3 auto de exame médico que se junta e se da por integrado).
69. O autor faz, hoje em dia, um esforço enorme para conseguir suportar as dores que continua a sentir diariamente.
70. E manter uma qualidade de vida mínima e digna.
71. Nomeadamente, para as exigências do seu trabalho.
72. Importa dizer que, à data do acidente o Autor trabalhava na empresa “C..., S.A”
73. Local para o qual se deslocava quando ocorreu o acidente,
74. No entanto, e em virtude do acidente que sofreu, o autor viu-se incapaz de permanecer na referida empresa.
75. Num trabalho que exigia muito esforço físico,
76. E o qual não era mais compatível com o seu estado de saúde.
77. Em virtude desse facto, o Autor passou a trabalhar na empresa “D...,Lda”
78. Uma empresa de aluguer de som e luz, que faz montagem de equipamentos e palcos, para concertos musicais.
79. Tendo, no entanto, que voltar a despedir-se por ser incapaz de suportar e realizar as tarefas profissionais que lhe eram exigidas devido ao seu estado de saúda actual.
80. Impedindo o Autor de exercer, a totalidade das suas tarefas laborais.
81. Não podendo, designadamente, pegar em pesos.
82. Fazer as cargas e descargas do material de áudio e de luz.
83. Bem como todas as tarefas que importassem a realização de esforços físicos, designadamente esforços sobre a sua perna esquerda.
84. Actualmente trabalha na empresa “E..., Lda”.
85. Desempenhando as funções de Técnico de Som.
86. E aufere um salário mensal base de € 557,00 euros.
87. Vendo-se no entanto impedido de exercer, na totalidade, as funções laborais para as quais está habilitado, em virtude do seu estado de saúde.
88. Mais propriamente em virtude das limitações de que ficou a padecer em consequência do acidente que sofreu por culpa exclusiva da Segurada da ora Ré.
89. O que se repercute, efectivamente, no vencimento que aufere no final do mês.
90. Na verdade, os seus colegas de trabalho, com o mesmo posto de trabalho e na mesma entidade patronal, auferem o dobro do salário que o autor consegue auferir.
91. Pois que, o autor tem imensas limitações físicas, apesar dos conhecimentos técnicos.
92. O que se repercute na sua capacidade de ganho.
93. Importando na presente situação não uma eventual perda de ganho.
94. Mas já uma perda, efectiva, de ganho.
95. Uma vez que o Autor, aquando da sua contratação, havia acertado o ordenado base de €1.200,00 euros.
96. Estando a auferir, hoje, um ordenado de cerca de € 800,00 em virtude de não poder exercer todas as tarefas para as quais havia sido contrato, por impossibilidade física.
97. Impossibilidade esta com que o autor se vê confrontado apenas e só depois do acidente.
98. Pois que, antes do acidente, o autor era pessoa saudável,
99. E sem qualquer limitação de que tipo fosse.Mais ainda,
100. No dia 6 de Junho de 2014, data do sinistro, o Autor fazia-se acompanhar de uma mochila.
101. Na qual transportava o seu computador “MacBook Pro 15” no valor de € 2.049,00 euros.
102. Bem como um “IPhone 5S” de 16 GB, no valor de € 699,00 euros.
103. Tendo estes bens ficado totalmente destruídos e inoperáveis após o acidente.
104. Importa ainda referir que o Autor, a par da sua actividade laboral na “C... S.A.”, à data do acidente, dava aulas de música na “F... - Escola de Música” da qual era, igualmente, co-proprietário.
105. O Autor leccionava 10 aulas semanais na referida escola,
106. Leccionava aulas de guitarra clássica.
107. Auferindo, em virtude disso, € 15,00 euros por cada aula.
108. Ora, em consequência do acidente, o Autor não consegui dar estas aulas que deveria ter leccionado até ao final do mês de Julho.
109. Deste modo, e tendo o acidente ocorrido a 6 de Junho de 2014, o autor perdeu 8 semanas de trabalho na “F... – Escola de Musica”.
110. Nestas 8 semanas o Autor teria auferido € 1.200,00 euros.
111. Sendo que, também estes valores terão de ser ressarcidos ao Autor, enquanto lucros cessantes. Mais ainda,
112. O autor viu-se na estrita necessidade de encerrar a escola de Musica uma vez que não estava capaz de assegurar a sua continuidade, em virtude do seu estado de saúde.
113. O que o impediu não só de leccionar as aulas agendadas.
114. Como também de dar seguimento às lições,
115. E angariar novos estudantes.
116. Aumentando, consequentemente, o leque de aulas.
117. Também este lucro cessante deverá ser tido em conta, e por isso mesmo deverá ser indemnizado na modesta quantia de € 2.500,00 euros.
118. Acresce a tudo isto, ainda, o facto do Autor se dedicar ao aluguer de diversos aparelhos de som e Luz.
119. Para a realização de espetáculos e eventos.
120. Tendo na altura do acidente já acordado o aluguer a diversas instituições e eventos.
121. Nestes alugueres o autor não se limitava a ceder os aparelhos.
122. Na verdade, estes alugueres incluíam o transporte, a montagem e desmontagem dos aparelhos.
123. Alugueres estes que, o autor, também não conseguiu concretizar, em virtude do seu estado de saúde devido ao acidente em apreço.
124. Assim, e em virtude do acidente, o Autor não conseguiu auferir as quantias seguintes:
Aluguer de Som em ... – € 1.400,00 euros. Aluguer de Som... – € 2.000,00 euros. Aluguer de Som... – € 600,00 euros. Aluguer de som … – € 1.200,00 euros.
Aluguer de som em diversos casamentos – € 2.250,00 euros.
Concertos musicais onde teve de ser substituído na “Banda ...” nos dias (7,8,9,10,11,12,13,14 e 19 de Julho, 2 de Agosto e 20 de Setembro) – €4.300,00 euros
125. Nos supra citados concertos musicais com a “Banda ...” o autor intervinha como musico sendo que nestes concertos o Cache variava.
126. Assim, o autor teve 4 concertos em que o valor de cache era de €500,00 euros,
127. Valor este a que acrescia ainda o valor de €400,00 euros de aluguer de material de som.
128. O que perfaz um total de € 3.600,00 euros.
129. Os restantes dias, ou seja, 7 concertos, o autor estaria no Casino da Figueira da Foz e encaixaria um montante de €100,00 euros por cada concerto.
130. Perfazendo um total de € 700,00 euros.
131. Chegando desta forma ao valor supra referido de €4.300,00 euros.
132. Além de ter perdido todos estes alugueres e concertos, o Autor perdeu ainda, mercado desta área.
133. Dano este que também deverá ser computado a titulo de lucro cessante num valor nunca inferior a €5.000,00 euros.
134. Pois, se não fosse o acidente, o Autor não só teria concretizado os alugueres e realizado os concertos, como teria, certamente, permanecido no mercado e angariado outros potenciais clientes que, tinha já, em vista.
135. Acresce a tudo isto ainda a roupa que o autor levava vestida na altura do acidente
136. E que ficou, totalmente, danificada, com a aparatosa queda que o Autor sofreu, após o embate.
137. O autor levava vestidas umas calças da marca LEVIS no valor de €120,00 euros
138. E um casaco de cabedal no valor de €320,00 euros. 139.
Casaco esse que evitou, inclusivamente muitas escoriações ao nível dos braços e do peito.
140.Mas tendo o referido casaco ficado, completamente, inutilizado.
141. Ora, face a tudo o que acaba de se dizer, a vida do Autor mudou drasticamente.
142. A sua qualidade de vida diminui significativamente.
143. Apresenta ainda, e como consequência das intervenções cirúrgicas a que foi submetido, cicatrizes cirúrgicas localizadas na face anterior do joelho com cerca de 7cm.
144. Todas estas sequelas conferiram, ao Demandante, uma Incapacidade Permanente Parcial de 2%, que implica esforços acrescidos no exercício da actividade profissional do Autor.
145. E se por um lado a IPP já se encontra ressarcida em sede de Processo de acidente de Trabalho.
146. A verdade é que o Autor viu a sua capacidade de ganho afectada.
147. Bem com a sua liberdade de escolha de profissão restringida. 148. Tudo o que se vem dizendo implica uma diminuição significativa da capacidade de trabalho do Autor.
149. Que, não consegue realizar a sua actividade laboral a 100%, como era seu apanágio.
150. E com a dedicação e afinco que lhe são próprios.
151. Pois não pode permanecer de pé por tantas horas.
152. Nem fazer grandes esforços físicos, como de resto, tantas vezes lhe é exigido pelo seu trabalho.
153. Devido às dores que sente diariamente no joelho e no tornozelo.
154. Na altura do acidente e nos momentos subsequentes, o Demandante sofreu fortíssimas dores, esteve internado durante 20 dias, sofreu Incapacidade Temporária Geral e Profissional durante 172 dias. (CFR. Doc 4, discriminação das incapacidades, que se junta e se da por integrado)
155. E hoje em dia o Demandante sente menor entusiasmo no convívio social, receio de andar de mota e do trânsito automóvel em geral.
156. Necessita de maior esforço anímico para manter a capacidade de concentração exigida pela sua actividade profissional,
157. O Demandante era uma pessoa saudável, não lhe sendo conhecida qualquer doença física ou mental,
158. E nunca teve problemas de saúde que o limitassem fosse de que forma fosse.
159. Praticava desporto de forma bastante regular
160. Hoje em dia, por força das lesões sofridas no acidente, o Demandante está limitado na sua capacidade física,
161. Necessita de maior esforço na sua actividade profissional, o que lhe causa um desgaste acrescido e o impede de trabalhar ao ritmo que possuía antes do acidente.
162. Sendo que, além da repercussão laboral e salarial, esta circunstância causa no autor uma grande frustração e desanimo.
163. O autor vê-se, por conta do acidente, privado de continuar a realizar as tarefas que fazia anteriormente,
164. Viu-se privado de continuar com a sua banda que tanto prazer lhe dava.
165. Todas estas situações de que se vê privado causam ao Autor, além dos danos patrimoniais que se vêm invocando um grande desgosto, frustração e desanimo.
166. O autor viu-se obrigado a desistir de diversos projectos na sua vida, designadamente a escola de musica que estava a iniciar e a banda onde estava inserido.
167. O autor sente-se excluído do seu mundo.
168. Acresce a isto as dores e padecimentos de que o autor sofreu.
169. Após o embate o autor ficou ali sozinho com a perna partida.
170. Teve de ser ele próprio a pedir socorro, uma vez que a condutora do BMW não parou a sua viatura.
171. Seguindo a sua marcha, bem sabendo o que tinha feito.
172. Até a ambulância chegar o autor teve um sofrimento atroz
173. Sofreu dores incomensuráveis.
174. Viu-se totalmente sozinho e desamparado.
175. Sentiu muito medo de perder a sua perna.
176. Teve de ser intervencionado cirurgicamente várias vezes.
177. Tendo ficado internado pelo período de 20 dias no Hospital de Aveiro.
178. Período esse onde foi submetido a tratamentos dolorosos para tentar recuperar a mobilidade da perna.
179. Ainda hoje sofre dores diariamente em virtude das lesões sofridas na sua perna.
180. Tudo o que vem de se dizer configura um dano não patrimonial do Demandante, merecedor da tutela do direito e, como tal, susceptível de reparação indemnizatória em montante que, modestamente, se computa em €15.000,00 euros (quinze mil euros).
181. O Demandante, como se referiu supra, trabalha actualmente na empresa na “E..., Lda”.”, onde aufere o salário mensal de €818,26 euros líquidos. (cfr. Recibo de vencimento que se junta sob o Doc. Nº 5 e se dá por integrado)
182. Sendo que neste valor esta já integrado os duodécimos do subsidio de Natal, bem como os duodécimos de subsidio de férias, subsidio de alimentação e gratificações.
183. Por causa do acidente e das sequelas físicas com que ficou, o autor acaba por não conseguir desempenhar as suas funções como o fazia antes do acidente.
184. Vendo-lhe ser vedada, em virtude disso mesmo, qualquer possibilidade de progressão e de um eventual aumento salarial.
185. Muito pelo contrário,
186. O Autor vê de dia para dia a sua importância dentro da empresa diminuir.
187. Pois não se vê capaz de desempenhar as funções laborais para as quais está qualificado.
188. Sente terríveis dores diariamente.
189. Que se agudizam com o decorrer das horas do dia.
190. E do esforço que o Autor faz para se manter no seu posto de trabalho.
191. O seu rendimento laboral teve assim um decréscimo significativo após o acidente,
192. Pois que a autor teve inclusivamente de deixar o seu posto de trabalho à data do acidente.
193. Continuando a tentar adaptar-se a outras actividades.
194. Revelando, no entanto, grandes dificuldades, em todas elas.
195. Pois que, em todas elas, o autor é obrigado a realizar esforços físicos.
196. Designadamente com carregamentos e descarregamentos de material.
197. Que na maioria das vezes não consegue concretizar devido às inúmeras limitações de que padece.
198. O que se traduz numa diminuição competitiva no mercado de trabalho, tanto mais grave quanto a grave crise que se instalou em Portugal.
199. O que leva, por outro lado a um aumento da dificuldade do autor em arranjar um novo trabalho, mesmo que numa área diferente.
200. Como de resto vem acontecendo.
201. Pois que as suas limitações físicas se mantêm e são importantes, na sua área de trabalho.
202. Em consequência directa e necessária do acidente de que foi vítima por parte do veículo seguro na Ré, ficou o autor a padecer de uma incapacidade permanente parcial (IPP) de, pelo menos, 2% que já se encontra ressarcida.
203. Ficando no entanto a padecer de um dano biológico.
204 .Dano esse que pretende ver ressarcido nesta sede.
205. O que aliado ao salário médio mensal médio liquido auferido de €818,26 euros, pagos 12 vezes por ano,
206. O que lhe confere direito a uma indemnização não inferior a €35.000,00 (trinta e cinco mil euros).
207. Isto porque, o Demandante entende que a indemnização deve ser calculada em atenção ao tempo provável da sua vida activa, aos seus rendimentos e à incapacidade sofrida, de forma a representar um capital produtor de rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior a actual até ao fim desse período, segundo as tabelas financeiras usadas para determinação do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente a uma taxa de juros – neste sentido, entre outros, Acs. do STJ de 6-7-00, Col. Jur., 2000, II, 144 e da Relação de Coimbra de 4-5-1995, Col. Jur. 1995, II, 26, bem como Ac. do STJ de 7-2-2008, Col. Jur. 2008, Tomo I, págs. 91 e segs.).
208. (…)
209. Na presente situação estamos perante relevantes limitações funcionais do Autor/lesado que, de nenhum modo, se podem perspectivar como pequenas invalidades permanentes, geradoras de um mero «dano de complacência”
210. Em abono da verdade se refira que as sequelas incapacitantes de que padece o Autor já têm, no momento, um imediato reflexo no nível de remuneração auferida na concreta actividade profissional do lesado,
211. Não se podendo deixar de dizer, também, que estas sequelas já se revelam e plenamente pois que, o Autor viu-se obrigado a alterar o decurso da sua vida profissional.
212. (…)
213. (…)
214. Assim, reclama o Demandante da Ré as seguintes quantias indemnizatórias:
➢€23.638,00 (vinte e três mil seiscentos e trinta e oito euros), a título de danos patrimoniais;
➢€15.000,00 (quinze mil euros), a título de danos não patrimoniais;
➢€35.000,00 euros (trinta e cinco mil euros), a título de dano biológico (…)”
19.º No âmbito desse processo judicial, foi celebrada uma transação, homologada por sentença transitada em julgado, nos termos da qual a autora se obrigou ao pagamento da quantia de 22.500,00€, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, presentes e futuros, decorrentes do embate - cfr. mesmo documento.
20.º Em 10 de setembro de 2020, a autora liquidou o referido montante de 22.500,00€ - cfr. declaração bancária junta como documento n.º 5 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
21.º O embate foi participado à “B..., S.A.”, no âmbito da apólice de acidentes de trabalho n.º ...00, contratada pela “G... - Recursos Humanos, Empresa de Trabalho Temporário, S.A.”, entidade empregadora do condutor do motociclo GM – cfr. missiva junta como documento n.º 6 com a petição inicial e elementos clínicos constantes do e-mail de 07-04-2022, referência 12852514, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
22.º Aquela seguradora assumiu a regularização dos danos no âmbito laboral – cfr. mesmo documento.
23.º Em 31 de agosto de 2017, a autora pagou à “B..., S.A.” todas as despesas que esta suportou com a regularização do acidente de trabalho, no valor de 7.466,80€ - cfr. recibo junto como documento n.º 7 com a petição inicial e informação constante do e-mail de 07-04-2022, referência 12852514, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
24.º Em 30 de janeiro de 2015, a autora procedeu ao pagamento da quantia de 2.800,00€, a título de perda total do motociclo GM – cfr. cheque junto como documento n.º 9 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
25.º Em consequência do embate, o espelho retrovisor esquerdo do veículo NX estilhaçou.
26.º A ré circulava com o vidro do seu lado aberto, pelo que ficou ferida na mão esquerda.
27.º No local, data e hora do acidente, encontravam-se pessoas que foram em auxílio do condutor do motociclo.
ii) Factos não provados
a) A ré efetuou a manobra de mudança de direção para se desviar de uma tampa de saneamento básico.
b) O condutor do motociclo GM invadiu a via de trânsito por onde seguia a ré, embatendo contra o veículo NX.
c) A ré estava convencida de que o condutor do motociclo não havia sofrido ferimentos relevantes.
d) A ré retomou a sua marcha, ausentando-se do local, para obter os cuidados de saúde urgentes de que carecia, em momento em que o condutor do motociclo já estava a ser acudido pelas pessoas presentes no local.
*
IV - DIREITO
A Autora pretende exercer o direito de regresso contra a Ré, condutora do veículo interveniente no acidente de viação em causa, por ter, em substituição desta, com fundamento no contrato de seguro do ramo automóvel, indemnizado o lesado, condutor do motociclo.
A condenação da aqui Autora na acção judicial interposta pelo lesado, baseou-se na culpa da condutora do veículo, aqui Ré, por ter mudado de direção à esquerda, passando a ocupar parte da via contrária, alheia ao trânsito que se fazia sentir nessa via, acabando por embater, com a frente esquerda do seu veículo, na lateral esquerda do motociclo, que circulava no sentido contrário.
Após sofrer o embate, o condutor do motociclo manteve a circulação do veículo por alguns metros, fazendo-o aos ziguezagues, até ao momento em que caiu para o chão.
A Ré imobilizou o veículo após ter ocorrido o dito embate mas imediatamente a seguir, abandonou o local, não prestando auxílio ao condutor do motociclo GM, que apresentava ferimentos, nomeadamente na perna esquerda que ficou fraturada, tendo sido sujeito a intervenção cirúrgica.
Quadro Legal
Do Direito de Regresso
Nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o condutor quando haja abandonado o sinistrado.
O direito de regresso, presente nas obrigações solidárias e emergente da lei no caso da seguradora, é um direito considerado ex novo que lhe assiste.
“A atribuição à seguradora do direito de regresso sobre quem, em primeira linha, beneficiou da cobertura do seguro obrigatório surge, pois, no plano funcional e teleológico, como forma de compensação da seguradora pela impossibilidade de – no campo do seguro obrigatório –invocar e fazer valer, de modo amplo, cláusulas de exclusão livremente convencionadas–repercutindo os valores pecuniários que teve de satisfazer para protecção primacial dos lesados no património dos causadores do acidente a quem seja também imputável algum dos factos tipificados no art. 19º (e que, deste modo, se não forem insolventes, acabarão por ter de suportar definitivamente o sacrifício patrimonial decorrente do pagamento das indemnizações às vítimas).”[1]
A primeira questão suscitada pela Apelante coloca em causa justamente o direito de regresso invocado pela Seguradora no presente litígio argumentando que esse direito pressupõe uma conduta do agente do abandono gravemente censurável, praticada com dolo, e não apenas por negligência.
Neste particular, o Acórdão desta Relação (e secção), de 27/04/2017,[2] analisando a questão da (des)necessidade de uma conduta dolosa explicou claramente que “o citado comando normativo, estabelecendo o direito de regresso da seguradora contra o condutor que abandonar o sinistrado, não referencia expressamente que, para fundar o direito de regresso daquela, a conduta do abandonante deve ser dolosa, mas entende-se que a mera referência ao abandono já transporta essa intencionalidade do condutor de não acompanhar nem prestar assistência às vítimas, criando um risco acrescido para os danos das vítimas ou o seu agravamento. É que o abandono encerra a presunção natural ou judicial de que o abandonante quis diretamente realizar o facto ilícito -dolo direto-, ou previu-o como uma consequência necessária, segura da sua conduta - dolo necessário -, ou, ainda, previu a produção do facto ilícito como uma consequência possível, eventual, da sua conduta – dolo eventual. (…)”
Por outro lado, a censura dirigida ao abandonante do sinistrado em acidente de viação por aquele provocado, pode ser afastada desde que prove causas justificativas da culpa (art. 342.º, n.º 2 do CC).[3]
No caso em apreço, ficou provado que a Ré imobilizou o veículo que conduzia após ter embatido no motociclo, mas, imediatamente a seguir, abandonou o local, não prestando auxílio ao condutor do motociclo, que apresentava ferimentos e tinha caído ao chão.
O abandono do lesado, nestas específicas circunstâncias, merece um juízo de censura a título de dolo pois a Ré decidiu sair do local sem prestar a devida assistência ao lesado ferido, caído no chão.
Não se pode concordar com a tese de que a Ré agiu de uma forma apenas negligente uma vez que se apercebeu do embate no motociclo, e que, por força desse embate, o condutor caiu ao solo, sendo de prever que necessitaria de urgente auxílio atendendo aos ferimentos que apresentava; e que ao abandonar o sinistrado, sem o fazer, praticava uma conduta deveras grave.
Importa reconhecer que, ao ter abandonado o local do acidente após ter embatido no motociclo, a Ré decidiu omitir o dever de auxílio que era devido ao lesado que apresentava ferimentos, sendo tal atitude considerada muito censurável e grave.
O Acórdão do STJ, de 07/02/2015[4], salienta que o abandono da vítima é fortemente censurável por revelador, de uma indiferença ou hostilidade relativamente ao cumprimento das regras estradais básicas e à solidariedade e aos direitos fundamentais dos outros utentes da via pública.
Acrescentando, com interesse para a questão que nos ocupa, que o abandono do sinistrado é um facto necessariamente doloso do condutor.
Em suma, a omissão de auxílio ao lesado por parte da condutora do veículo interveniente no acidente de viação, consubstancia um desvio grave e censurável do padrão ético-jurídico do cidadão médio, que justifica a atribuição à seguradora do direito de regresso.
Consequentemente, nesta linha de raciocínio também não podemos concordar com a ideia propugnada pela Recorrente sobre a desproporcionalidade entre a conduta praticada (consubstanciada no abandono e consequente falta de prestação de assistência) e a responsabilização pelo pagamento à Seguradora dos montantes pecuniários, por si despendidos, no ressarcimento dos danos causados ao lesado, inexistindo qualquer violação do art.º 18.º, n.º 2 da CRPortuguesa.
Da Prescrição do Direito de Regresso
A Ré foi condenada a reembolsar a Autora dos montantes pecuniários destinados a ressarcir as despesas apuradas e fixadas no processo de acidente de trabalho e os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo condutor do motociclo, tendo sido absolvida quanto ao valor pago pela perda total do motociclo, por se ter considerado que, nesta parte, o direito de regresso prescreveu.
Ambas as partes não se conformaram com a decisão: a Autora defende que o pagamento do dano referente à perda do motociclo não é autonomizável dos restantes danos patrimoniais e a Ré sustenta exactamente o oposto, pugnando ainda que prescreveu o direito de regresso das despesas do acidente laboral.
Segundo o artigo 298.º, n.º 1 do C.Civil estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.
A prescrição extintiva é o instituto por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados durante certo tempo fixado na lei e que varia conforme os casos.[5]
A prescrição, apesar de constituir uma das causas de extinção das obrigações civis pelo decurso do tempo, pode ser interrompida pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence (cfr. art.º 323.º, n.º 1 do CC.).
No domínio da responsabilidade extracontratual o art.º 498.º, n.º 2 do C.Civil estabelece que o direito de regresso entre os responsáveis prescreve no prazo de três anos, a contar do cumprimento.
A referência ao cumprimento, como dies a quo a partir do qual se inicia a contagem do prazo prescricional de três anos, tem suscitado controvérsia nas situações (frequentes) de pagamento parcelar da indemnização por parte da seguradora.
Existem três correntes sobre esta questão a saber: o cumprimento a atender para esse efeito prescricional conta-se a partir do primeiro pagamento, de cada uma das parcelas ou do último pagamento.
A orientação maioritária do Supremo Tribunal de Justiça, pelo menos a partir do Acórdão de 04/11/2010, e complementada no Acórdão de 07/04/2011[6], propugna que o cumprimento da obrigação deve ser contado, em regra, a partir do último pagamento, embora esta regra deva ser temperada com a "autonomização da indemnização que corresponda a danos normativamente diferenciados".[7] Ou seja, “Admite-se que a regra possa ser temperada nos casos em que seja possível a "autonomização da indemnização", para evitar que se prolongue injustificadamente o prazo para o exercício do direito. Mas esta autonomização é apenas admissível em relação a “danos normativamente diferenciados”, a “danos autónomos e consolidados”.[8]
No percursor Acórdão do STJ, de 04/11/2010, a questão foi esclarecida nestes termos: “Por regra, sendo a obrigação una e simples, quando se fala em cumprimento, está-se a reportar ao cumprimento integral.
E também aqui há que ponderar os efeitos práticos daquela posição de cisão das datas dos pagamentos para os efeitos que vimos abordando.
Por cada pagamento ou grupo de pagamentos, a seguradora poderia ter de intentar uma acção e vir sucessivamente com acções relativamente a cada pagamento ou grupo de pagamentos posteriores, o que só complicaria a apreciação judicial do caso, correndo-se mesmo o risco de, numa das acções, se condenar o lesado e noutra ou noutras se absolver (de acordo, por exemplo, com a prova ou não da relação de causalidade entre o grau de alcoolémia e a verificação do acidente). As regras de elasticidade do processo civil (nomeadamente quanto a apensação de processos) já constituiriam um mero remendar do que, à partida, com outro entendimento, corresponderia a uma tramitação linear.
Decerto que esta posição pode ter uma razão de ser nos casos em que o fraccionamento resulta do próprio regime de satisfação da obrigação. Estamos a pensar na indemnização em forma de renda, caso em que passaria a compreender-se muito mal o início do prazo prescricional só com o pagamento da última renda, sendo aqui de ponderar a aplicação do artigo 307.º do Código Civil.
Mas, nos casos vulgares, o próprio fraccionamento é ditado por razões de protecção do próprio lesado (em ver satisfeitas, de imediato, certas despesas), por razões de conveniência de pagamento, de índole burocrática, de prontidão de exigência dos hospitais, etc.
No limite, a contagem do início do prazo de prescrição com a data de cada fracção do pagamento levaria até as seguradoras a protelarem este, com prejuízo dos lesados, correndo menor risco as menos cumpridoras.”
Esta ideia de fazer corresponder o início do prazo prescricional com o acto do último pagamento parcelar da indemnização foi complementado, como se referiu, no Ac. Unif. Jurisp. de 07/04/2011 no qual se concluiu que “(…)se não parece aceitável a autonomização do início de prazos prescricionais, aplicáveis ao direito de regresso da seguradora, em função de circunstâncias puramente aleatórias, ligadas apenas ao momento em que foi adiantada determinada verba pela seguradora, já poderá ser justificável tal autonomização quando ela tenha subjacente um critério funcional, ligado à natureza da indemnização e ao tipo de bens jurídicos lesados, com o consequente ónus de a seguradora exercitar o direito de regresso referentemente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, de modo a não diferir excessivamente o contraditório com o demandado, relativamente à causalidade e dinâmica do acidente, em função da pendência do apuramento e liquidação de outros núcleos indemnizatórios, claramente cindíveis do primeiro.
Porém, é importante salientar que concluiu-se, no sumário desse relevante aresto que “3.Não se inicia, nem corre autonomamente, o referido prazo prescricional quando os documentos a que se reporta a prescrição invocada se conexionam com o ressarcimento antecipado e faseado de danos exclusivamente ligados às lesões físicas sofridas pelo sinistrado–reparação dos períodos de incapacidade temporária, despesas médicas e de tratamentos clínicos, custo das deslocações para estabelecimento hospitalar – sendo tais pagamentos parcelares insusceptíveis de integrar um núcleo indemnizatório, autónomo e juridicamente diferenciado dos demais danos, de idêntica natureza , globalmente peticionados na acção de regresso.
4. Neste caso, o prazo de prescrição do direito de regresso apenas se inicia no momento em que estiver cumprida a obrigação da seguradora de ressarcir o lesado de todos os danos que lhe advieram da lesão dos bens da personalidade e respectivas sequelas, ainda que tal núcleo indemnizatório tenha originado pagamentos faseados ao longo do tempo.” (sublinhado nosso)
Perante a interpretação (menos rigorosa) deste aresto noutras decisões sobre casos similares, o Supremo Tribunal de Justiça, no mencionado Acórdão do STJ, de 03/07/2018 teve o cuidado de clarificar este ponto: “Esta autonomização de núcleos da indemnização, para este efeito de contagem do prazo de prescrição, será admissível apenas em relação a danos autónomos e consolidados, de natureza claramente diferenciada e inteiramente ressarcidos.-”. "Essa autonomização não pode, como por vezes se vê, cindir danos da mesma natureza, relativos a um mesmo lesado, em função do que parecer razoável ao julgador, sob pena de cairmos numa situação de inaceitável incerteza, absolutamente contrária a uma das razões – a certeza e segurança jurídicas – que está na base da prescrição.” (sublinhado nosso)
Aqui chegados, cumpre reapreciar a decisão tomada sobre a prescrição do direito de regresso da Autora que foi impugnada, como sabemos, por ambas as partes.
Concretamente, estão em causa três pagamentos referentes a danos causados ao lesado pelo embate do veículo conduzido pela Ré:
- em 30 de janeiro de 2015 a Autora pagou a quantia de 2.800,00€, a título de perda total do motociclo GM (ponto 24.º);
- em 31 de agosto de 2017 pagou todas as despesas relacionadas com a regularização do acidente de trabalho, no valor de 7.466,80€ (ponto 23.º);
- em 10 de setembro de 2020 ressarciu os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo condutor do motociclo, no montante de 22.500,00€ (ponto 20.º).
O pagamento desta última parcela obedeceu ao cumprimento da transacção que as partes celebraram no âmbito da acção que o lesado intentou contra a seguradora, aqui Autora, sendo que os danos patrimoniais e não patrimoniais estão acima descritos na petição que obtivemos da Autora, junta aos autos.
Nesta acção o lesado reclamou da Seguradora (aqui A.) (com excepção da indemnização da IPP (Incapacidade permanente parcial) satisfeita no processo laboral) o pagamento das seguintes quantias indemnizatórias:
➢€23.638,00 (vinte e três mil seiscentos e trinta e oito euros), a título de danos patrimoniais;
➢€15.000,00 (quinze mil euros), a título de danos não patrimoniais;
➢€35.000,00 euros (trinta e cinco mil euros), a título de dano biológico.
A quantia de 2.800,00€, paga a título de perda total do motociclo GM consubstancia um dano patrimonial que não pode ser autonomizável dos danos patrimoniais reclamados na acção judicial pelo lesado.
O entendimento diferente que a este respeito foi exposto na sentença baseou-se, segundo nos parece, num pressuposto que não era correcto pois a indemnização acordada na acção judicial destinou-se a ressarcir os danos patrimoniais e não patrimoniais reclamados pelo lesado e não apenas as lesões sofridas em consequência do acidente. Este lapso de apreciação deveu-se, segundo cremos, à falta da petição daquela acção nos presentes autos.
Não seria razoável exigir que a Seguradora reclamasse judicialmente a quantia de 2.800,00€, a título de perda total do motociclo no prazo de três anos a contar desse pagamento quando a mesma se integra, sem qualquer dúvida, no núcleo mais alargado dos danos patrimoniais e constitui até uma parte pouco significativa dos danos dessa natureza sofridos em consequência do embate.
No que concerne aos danos (IPP) que foram ressarcidos no processo laboral também nos parece evidente que não os podemos diferenciar dos demais, por não serem normativamente autónomos, já que na acção judicial, fazendo referência às limitações físicas a que ficou sujeito, foi reclamada uma indemnização pelo designado dano biológico.
Devemos sublinhar que se exige ao julgador/intérprete um rigor particular nesta matéria: apenas em situações que não deixem a mínima dúvida quanto à autonomização normativa de determinados danos é que será legítimo considerá-los excluídos do instituto da prescrição, sob pena de se introduzir um grau de incerteza na aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.
Na verdade, sem esse rigor na aplicação do direito, o sistema judicial poderia ser confrontado, como se alertou no referido Acórdão do STJ, de 04/11/2010, com várias acções judiciais propostas pela seguradora contra o lesante em consequência de cada pagamento efectuado ao lesado, correndo-se o risco de tomada de decisões não coincidentes, com o inerente prejuízo para os intervenientes face designadamente à necessidade de repetição de actos processuais.
Numa palavra, todos estes danos, patrimoniais e não patrimoniais, indemnizados parcelarmente pela Autora ao lesado não são normativamente autonomizáveis, e, por isso, não estão prescritos atendendo à data em que o último pagamento foi efectuado e à entrada da petição em juízo.
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V - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso da Autora e improcedente o recurso da Ré, e em consequência, alterando a sentença, condenam a Ré a pagar à Autora a quantia de 2.800,00€ (dois mil e oitocentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa prevista para os juros civis, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, mantendo-se no mais o decidido.

Custas a cargo da Ré.

Notifique.




Porto 7/11/2023.
Anabela Miranda
Artur Dionísio Oliveira
Alberto Taveira
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[1] Ac. STJ Uniformizador de Jurisprudência sobre o direito de regresso no caso de condução sob o efeito do álcool, de 07/04/2011, disponível em www.dgsi. pt
[2] Disponível em www.dgsi.pt e citado na sentença.
[3] Neste sentido v. Ac. Rel. Guimarães, de 08/10/2020, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Disponível em www.dgsi.pt
[5] Pugliese, La prescrizione extintiva, citado por Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Coimbra, 1983, pág. 445.
[6] Disponíveis em www.dgsi.pt
[7] Como se concluiu no sumário do Ac. STJ, de 03/07/2018, disponível em www.dgsi.pt
[8] Ac. STJ de 02/04/2019 disponível em www.dgsi.pt