DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
ESTRANGEIRO
Sumário


Não é necessário, para a ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge prosseguir os seus termos, que o autor junte aos autos o assento de transcrição do casamento celebrado entre ele e a ré na Embaixada Consular de Cabo Verde em Portugal, tendo ambos nacionalidade cabo-verdiana, por não se mostrar obrigatória nesse caso a transcrição, o que resulta, designadamente, do disposto nos artigos 6º, nº 4 e 53º, nº 1, al. d), do Código do Registo Civil.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA instaurou contra BB, a presente ação especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, pedindo que seja decretado o divórcio entre ambos, com efeitos a partir da data da sua separação de facto, em janeiro de 2019, e com a privação da ré do direito de usar o apelido Vieira.
Alega, em síntese, que autor e ré contraíram casamento civil, sem convenção antenupcial, na Chancelaria da Embaixada de Cabo Verde em Lisboa, em ….06.2014, tendo escolhido como casa de morada de família a habitação da Rua …, Ponte de Sor, sucedendo que por razões diversas desentenderam-se, na sequência do que a ré abandonou o lar conjugal e foi viver para a Rua …, Loures, não querendo nem ponderando o autor reatar a vida conjugal com a ré.
Conclusos os autos, pela Sr.ª Juíza a quo foi proferido o seguinte despacho liminar:
«Por força do regime previsto nos art.os 6º e 53º do Código do Registo Civil, o casamento celebrado no estrangeiro, assim sendo considerado, igualmente, o casamento celebrado perante a Embaixada Consular de qualquer país, só pode ser dissolvido perante os tribunais portugueses se tiver sido previamente transcrito para Portugal, pois só assim produz efeitos jurídicos na ordem jurídica portuguesa.
Por todo o exposto, e sob pena de indeferimento liminar, por impossibilidade da lide, nos termos do art.º 277º, al. e) do C.P.C., notifique a A. para, no mesmo prazo de 10 dias, juntar certidão do assento de transcrição do seu casamento com o R. para a ordem jurídica portuguesa.
Notifique.»
O autor nada disse, tendo subsequentemente sido proferida a seguinte decisão:
«Por força do regime previsto nos art.os 6º e 53º do Código do Registo Civil, o casamento celebrado no estrangeiro, assim sendo considerado, igualmente, o casamento celebrado perante a Embaixada Consular de qualquer país, só pode ser dissolvido perante os tribunais portugueses se tiver sido previamente transcrito para Portugal, pois só assim produz efeitos jurídicos na ordem jurídica portuguesa.
Devidamente notificado, sob pena de indeferimento liminar, por impossibilidade da lide, nos termos do art.º 277º, al. e) do C.P.C., para, no prazo de 10 dias, juntar certidão do assento de transcrição do seu casamento com a R. para a ordem jurídica portuguesa, o A, nada veio dizer ou requerer aos autos.
Por todo o exposto, declaro extinta a instância por impossibilidade da lide, nos termos do art.º 277º, al. e) do C.P.C..
Custas do incidente pelo A., com taxa de justiça que se fixa 1 UC - art.º 539º, n.º 1 do C.P.C..
Fixo o valor da ação em €30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo) – art.os 296º, 303º, n.º 1 e 306º, n.os 1 e 2 do C.P.C..
Registe e dê baixa estatística.
Notifique.»
Inconformado, o autor apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem.
«1. Em Portugal e sem prejuízo pelo reconhecimento dos efeitos de casamento, que se destina a produzir, o casamento de estrangeiros celebrado no estrangeiro ou perante embaixada estrangeira no país, só será admitido à transcrição mediante a demonstração pelo requerente da legitimidade do interesse nessa transcrição (artº 6º nº 4 do Código de Registo Civil), não estando sujeito a registo civil obrigatório.
2. A ação dos autos, apresentada pela petição inicial da ref. 2216891, de 19.01.2023, aqui dada por reproduzida, respeita a divórcio sem o consentimento do outro intentado, nas condições indicadas, pelo recorrente AA contra a mulher BB e ao seu casamento, perante a Embaixada de Cabo Verde em Portugal, de 26.06.2014, quando ambos só tinham cidadania cabo-verdiana e esse seu casamento era permitido pelo artº 165º do Código de Registo Civil, sem sujeição ao ingresso no registo civil português (artº 6º nº 4 CRC), como, em igualdade de circunstâncias, o Código de Registo Civil de Cabo Verde permitia o casamento de português encontrado em Cabo Verde. Pelo que, como o dito, pelas conclusões nºs 1 e 2, jamais haveria impedimento à sua admissão e seguimento até final.
3. A situação referida em 2, mostra-se reforçada pelo Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária Entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde aprovado pela Resolução da Assembleia da República nº 6/2005, de 15/02 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 10/2005, de 15/02 e a que respeita o Aviso n.º 281/2005, de 09/08, subsidiário do nº 2 do dito artº 8º da Constituição da República e cujo nº 1 do artº 4º sob a epígrafe “Acesso aos Tribunais” é no sentido de que “Os nacionais de cada um dos Estados Contratantes têm acesso aos tribunais do outro nos mesmos termos e condições que os nacionais deste” e o nº 1 do artº 81º, sob a epígrafe “Registo civil”, é no sentido de que “Os Estados Contratantes obrigam-se a permutar entre si trimestralmente, por intermédio das autoridades competentes dos Ministérios da Justiça dos dois Estados Contratantes, certidões de cópia integral, ou de modelo que entre eles venha a ser acordado, dos actos de registo civil lavrados no trimestre precedente, no território de um e relativos aos nacionais do outro, bem como cópia das decisões judiciais transitadas em julgado, proferidas em acções sobre o estado civil, em que sejam partes os nacionais do Estado destinatário.”
4. Na situação referida em 1 a 3, não há nada a impedir acção judicial de divórcio judicial sem o consentimento do outro, relativo a casamento de marido e mulher cabo-verdianos celebrado perante a Embaixada de Cabo Verde, em Portugal, como nada havia a obrigar à alegação da existência ou da não existência de filho menor não referido pela petição inicial. Pelo que a sentença recorrida, no sentido “(...) declaro extinta a instância por impossibilidade da lide, nos termos do art.º 277º, al. e) do C.P.C.”, sob a invocação de que, “o casamento celebrado no estrangeiro (...) só pode ser dissolvido perante os tribunais portugueses se tiver sido previamente transcrito para Portugal, pois só assim produz efeitos jurídicos na ordem jurídica portuguesa (...)” é indevida, como indevida já foi o despacho da referência nº 32300819, de 26.01.2023, nela referido, na parte em que, sem lei, apareceu a exigir que, pela ação, o A esclarecesse “(...) se existem filhos menores do casamento com o R., o que é legalmente imposto” (sic), que, no caso, não era pressuposto processual e nem estava entre os fundamentos do divórcio em causa e a que respeitava qualquer dos artºs 1773º nºs 1 e 3 e 1781º als) a e d) do Código Civil ou entre as condições da ação a que respeitava o artº 931º CPC.
5. Sem invocação de falta de pressuposto, supostamente inexistente, ou de falta de condições de ação, também inexistente, a declaração da “impossilidade superveniente da lide”, sob a invocação do artº 277º nº 1 al. e) CPC e a consideração de que “(...) o casamento celebrado no estrangeiro (...) só pode ser dissolvido perante os tribunais portugueses se tiver sido previamente transcrito para Portugal, pois só assim produz efeitos jurídicos na ordem jurídica portuguesa” (sic.), deve-se a erro. Pelo que, só por isso, a sentença será de revogar e substituir, por outra, que permita o seguimento da causa, até final, como a bem da verdade e da justica e do direito pede.»

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir é a de saber se o casamento celebrado entre autor e ré, nacionais de Cabo Verde, na Embaixada deste país em Portugal, só pode ser dissolvido por sentença a proferir por um tribunal português, se tiver sido previamente transcrito em Portugal.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos e a dinâmica processual são os que constam do relatório que antecede, havendo ainda a considerar o seguinte:
- o casamento celebrado entre autor e ré em ….06.2014, na Chancelaria da Embaixada da República de Cabo Verde em Portugal, está registado na Conservatória dos Registos Centrais de Cabo Verde – cfr. Assento de Casamento nº …/2014 junto com a petição inicial.

O DIREITO
Entendeu-se na decisão recorrida que em face do regime estabelecido nos arts. 6º e 53º do Código do Registo Civil[1], o casamento celebrado entre o autor e a ré na Embaixada Consular de Cabo Verde em Portugal, por ser um casamento celebrado no estrangeiro, «só pode ser dissolvido perante os tribunais portugueses se tiver sido previamente transcrito para Portugal, pois só assim produz efeitos jurídicos na ordem jurídica portuguesa».
Como o autor/recorrente, na sequência de convite para o efeito, não juntou certidão do assento de transcrição do seu casamento com a ré no registo civil em Portugal, a Sr.ª Juíza declarou «extinta a instância por impossibilidade da lide».
Invocam-se na decisão recorrida os normativos dos art. 6º e 53º do CRC, sem curar, porém, de se dizer qual a situação aí prevista à qual seria subsumível o caso dos autos.
Dispõe-se no art. 6º do CRC, sob a epígrafe “Atos lavrados pelas autoridades estrangeiras”:
«1 - Os atos de registo lavrados no estrangeiro pelas entidades estrangeiras competentes podem ingressar no registo civil nacional, em face dos documentos que os comprovem, de acordo com a respetiva lei e mediante a prova de que não contrariam os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português.
2 - Os atos relativos ao estado civil lavrados no estrangeiro perante as autoridades locais que devam ser averbados aos assentos das conservatórias são previamente registados, por meio de assento, nas conservatórias do registo civil ou na Conservatória dos Registos Centrais, de acordo com as regras de competência previstas nos artigos 10.º e 11.º
3 - Excetuam-se do disposto no número anterior os casos previstos no artigo 190.º e o registo de óbito de estrangeiro que dissolva casamento registado em Portugal.
4 - Se os atos respeitarem a estrangeiros, o seu ingresso no registo apenas é permitido quando o requerente mostre legítimo interesse na transcrição.»
Ao caso importa o disposto no nº 4, uma vez que estamos perante um casamento de pessoas com nacionalidade cabo-verdiana, pelo que o seu ingresso no registo em Portugal apenas é permitido quando o requerente mostre legítimo interesse na transcrição.
Ora, lida a petição inicial, em momento algum diz o autor pretender que o divórcio a decretar produza efeitos na ordem jurídica portuguesa, o que bem se compreende, diga-se, pois vigorando o casamento na ordem jurídica de Cabo Verde, será neste país, observados os respetivos trâmites legais, que a sentença que venha a decretar o divórcio em Portugal há de produzir os seus efeitos.
Por seu turno, sob a epígrafe “Assentos lavrados por transcrição”, dispõe o nº 1 do art. 53º do CRC:
«1 - São lavrados por transcrição:
a) Os assentos lavrados na Conservatória dos Registos Centrais, com base em declaração prestada em conservatória intermediária;
b) Os assentos lavrados com base nos autos ou nas comunicações a que se referem os artigos 106.º e 203.º;
c) Os assentos de casamento católico, de casamento civil sob forma religiosa ou de casamento civil urgente, celebrados em território português;
d) Os assentos de casamento católico ou civil, celebrado no estrangeiro, perante as autoridades locais competentes, por portugueses ou por estrangeiros que adquiram a nacionalidade portuguesa;
e) Os assentos de casamento admitidos a registo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º;
f) Os assentos de factos cujo registo tenha sido realizado pelos funcionários ou pelas autoridades a que se referem as alíneas b), c) e d) do n.º 1 do artigo 9.º.
(…)»
Ora, sendo autor e ré estrangeiros sem que nenhum deles tenha adquirido nacionalidade portuguesa, e tendo o respetivo casamento sido celebrado na Embaixada Consular de Cabo Verde[2], a transcrição do respetivo casamento em Portugal não se mostra obrigatória, atento o disposto na alínea d) do nº 1 do art. 53º do CRC.
Ademais, nos termos do art. 4º, nº 1, do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária Entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde, aprovado pela Resolução da Assembleia da República nº 6/2005, de 15.02[3], «os nacionais de cada um dos Estados Contratantes têm acesso aos tribunais do outro nos mesmos termos e condições que os nacionais deste».
E o nº 1 do art. 81º do mesmo Acordo, sob a epígrafe “Registo civil”, prescreve:
«Os Estados Contratantes obrigam-se a permutar entre si trimestralmente, por intermédio das autoridades competentes dos Ministérios da Justiça dos dois Estados Contratantes, certidões de cópia integral, ou de modelo que entre eles venha a ser acordado, dos actos de registo civil lavrados no trimestre precedente, no território de um e relativos aos nacionais do outro, bem como cópia das decisões judiciais transitadas em julgado, proferidas em acções sobre o estado civil, em que sejam partes os nacionais do Estado destinatário.» (sublinhado nosso).
Em suma, não é o facto do casamento do autor e da ré não se encontrar transcrito em Portugal que impedirá o decretamento do divórcio, caso se venham a demonstrar verificados os respetivos pressupostos legais.
O recurso merece, pois, provimento, impondo-se a revogação da decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus termos, com a designação da tentativa de conciliação a que alude o nº 1 do art. 931º do CPC, se a tal nada mais obstar.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir nos termos acima referidos.
Sem custas.

*
Évora, 18 de dezembro de 2023
Manuel Bargado (relator)
Ana Isabel Pessoa (1ª adjunta)
Maria da Graça Araújo (2ª adjunta)
(documento com assinaturas eletrónicas)

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[1] Doravante abreviadamente designado CRC.
[2] Embaixada é a representação de um país no território de outra nação por meio de um embaixador.
[3] Publicado no DR, I Série - A, de 15 de fevereiro de 2005, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 10/2005, de 15.02 e a que respeita o Aviso n.º 281/2005, de 09.08.