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INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
OBJETO DO PROCESSO
DOLO
Sumário
I - O requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente tem a estrutura de uma acusação e está, nessa medida, sujeito aos respetivos requisitos; por esse motivo, tal requerimento delimita o objeto do processo (como se estivéssemos perante uma acusação), tornando desde logo nula a decisão instrutória “na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.” (artigo 309.º do Código de Processo Penal). II - No requerimento para abertura da instrução, tem o assistente forçosamente de indicar os factos concretos (integradores dos elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime que imputa ao arguido) que entende indiciados ou pretende vir a fazer indiciar no decurso da instrução requerida; a descrição dos factos é, por conseguinte, determinante para a definição do objeto do processo, uma vez que a decisão instrutória só pode recair sobre factos que foram objeto da instrução, ficando o objeto do processo delimitado pela indicação feita naquele requerimento de instrução formulado pelo assistente. III - Se no requerimento de abertura de instrução o assistente não descreve os factos integrantes de realização típica demandada – rectius, do crime – é óbvio que a finalidade da instrução está posta em causa, uma vez que o juiz não pode investigar o que não consta do requerimento de abertura de instrução. IV - Neste sentido, fixou a seguinte jurisprudência o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 [publicado no DR Série I, de 27.01.2015]: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.» V- O dolo do tipo consiste no conhecimento e vontade de realização da ação típica. Distingue-se, por isso, no dolo do tipo um elemento cognitivo ou intelectual do dolo e um elemento volitivo do dolo. VI - O elemento cognitivo ou intelectual do dolo inclui o conhecimento de todas as circunstâncias de facto (elementos descritos do tipo) e de direito (dos elementos normativos do tipo) que constituem o tipo de ilícito objetivo, o que permite ao agente a orientação e decisão da sua consciência ética pela preservação ou não do bem jurídico tutelado pela norma. VII - O elemento volitivo consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo direto – a intenção de realizar o facto; o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta; e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta.
Texto Integral
Proc. n.º 1093/20.0T9PRT.P1 Tribunal de origem: Juízo de Instrução Criminal Do Porto – J5 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
No âmbito do Processo de Instrução n.º 1093/20.0T9PRT a correr termos no Juízo de Instrução Criminal do Porto (J5), em que é arguido AA, foi indeferida a abertura de instrução requerida pelo assistente BB por inadmissibilidade legal.
Desta decisão veio o assistenteBBinterpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1. Refere o Despacho recorrido que o requerimento de abertura de instrução formulado pelo Assistente não enumera os factos concretos e objetivos que considera terem sido praticados pelos denunciados, bem como enuncia ainda ser completamente omisso quanto ao elemento subjetivo referente ao crime e à conduta imputada ao denunciado.
2. Pugna pela falta da imputação objetiva e subjetiva dos factos ao seu autor, pelo que a realização da instrução constituiria um ato inútil, o que é proibido por lei, bem como fundamenta mediante o Ac. Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2005, não haver sequer lugar a despacho convite de aperfeiçoamento.
3. Contudo, não pode a Assistente concordar com tal juízo.
4. É que o requerimento para abertura da instrução por si formulado, independentemente dos estilos, cumpre todos os requisitos legais, quer formais quer substantivos.
5. Aliás, o que nem por motivos esquemáticos foge ao quadro geral comum deste tipo de atos.
6. Independentemente disso, estabelece a lei, no art.º 287.º, n.º 2 do C.P.P., que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que disso for o caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável no requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art.º 283.º.
7. Certo é que o requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, conforme giza o n.º 3 do art.º 287.º do C.P.P.
8. Não ocorrendo no caso concreto nenhuma dessas situações.
9. Nem tão pouco se pode concordar com a imputação das deficiências do requerimento para abertura de instrução, maxime a não enumeração de factos concretos e objetivos que se considere terem sido praticados pela arguida, nem a omissão completa quanto ao elemento subjetivo.
10. A douta decisão do JIC, não tem fundamentação concreta no seu despacho que permita percecionar em concreto em que falha o requerimento de abertura de instrução, antes, porém assim generalisticamente assim se conclui.
11. O Tribunal a quo não se preocupou minimamente em justificar (fundamentar) essas afirmações, conforme dever legal (identificando esses que elementos subjetivos e objetivos que estão em falta e que teriam de estar esclarecidos e não estão e aduzindo as razões pelas quais os mesmos por estar em falta prejudicam a continuidade do processo com vista a completar o crime de denuncia caluniosa ou eventualmente o crime de simulação de crime), pelo que, nessa parte, a decisão se mostra inquinada pelo vício de falta de fundamentação (falta a premissa menor do silogismo judiciário) - vide art.º 97.º, 5, do CPP - e, por isso, é, nula.
12. Os elementos subjetivo, objetivo e enunciação dos crimes previstos na lei estão amplamente e exaustivamente descritos, quer na queixa, quer no requerimento de abertura de instrução;
13. Não podemos desde logo aceitar que se afirme que estão em falta as disposições legais dos alegados crimes, pois basta ver o artigo 7 e 8 do requerimento de abertura de instrução, onde constam os artigos legais dos 2 crimes que se visam apurar e transcritos, a saber a simulação de crime a denuncia caluniosa;
14. Também não podemos aceitar a falta de elementos objetivos dos crimes no RAI, nomeadamente, quando naquele e desde o artigo 42 em diante, o assistente, avalia os factos constantes das declarações dos aqui arguidos no inquérito 194/19.1PWPRT da 2 Secção do DIAP do Porto, que são os factos objetivos do atual processo-crime em discussão como numa verdadeira acusação alternativa.
15. Por isso se enuncia prova e conjuga-se a mesma com os factos objetivos dos crimes, ao demonstrar as incongruências das declarações e o tempo de prestação das mesmas as quais evidenciam a nítida simulação de um crime, com o objetivo caluniar o aqui assistente.
16. O elemento subjetivo – exige que o agente atue com consciência da falsidade da imputação e com intenção de que contra o denunciado se instaure procedimento
17. Assim, no inquérito deveria apurar-se e investigar mediante a queixa do aqui assistente a consciência da falsidade da imputação, apurando se o agente representou a instauração do procedimento como consequência necessária (segura) da sua conduta.
18. As dificuldades e as vicissitudes da prova da intenção são comuns à generalidade dos crimes, resultando os factos relativos ao elemento subjetivo do tipo de crime, por regra, dos factos objetivos que resultarem provados.
19. Na verdade, quanto ao elemento subjetivo da infração, não havendo confissão do agente, sempre terá de se fazer uso das regras da experiência comum, pois tratando-se de factos do foro psicológico, da vida interior do agente, por isso, impossíveis de apreender diretamente, indemonstráveis de forma naturalística, podem deduzir-se ou inferir-se de factos materiais comuns que, com muita probabilidade, o revelem.
20. Vendo o RAI, nos seus artigos 3 a 6 e de 9 a 29 e 122 a 161 e ainda 171 a 181 do RAI podem a nosso ver-se pela experiência comum a motivação subjetiva do arguido AA em conjugação de esforços com o arguido CC seu amigo, face à amizade existente entre os dois, querem atingir e amedrontar o assistente;
21. Pode perceber-se que o arguido AA, sabe que a queixa de ameaça com arma de fogo é falsa dado que, apercebendo-se no início do inquérito, e estando certamente assessorado, que pelas suas simples declarações na queixa/ denuncia não atingiria o seu objetivo de ver acusado o aqui assistente, dois meses depois enxerta uma testemunha no inquérito que alega estar a circular com ele no carro em que seguiam, vivenciando na primeira pessoa tal situação, contudo no ato da queixa do arguido AA, a testemunha e aqui segundo arguido CC, não aparece, não é mencionada e os factos são relatados de maneira diferente das declarações complementares.
22. Por isso discorda o recorrente que o RAI possa ser inadmissível face ao que supra se expôs.
23. O requerimento de abertura de instrução foi instaurado precisamente porque não se aceitou o arquivamento com os motivos explanados pela Sr.ª Procuradora, tendo a assistente indicando os factos que pretendia ser investigados, os meios de prova que considerou não terem sido relevados no inquérito, tudo com vista à comprovação judicial daquela decisão do M.P. e que só por si justificam a sua admissibilidade, conforme possibilita o no 2 do art. 287.
24. Os factos foram concretamente identificados e descritos pela assistente, têm um desencadeamento lógico, no espaço e tempo e foram identificadas as disposições legais que considera terem sido violadas.
25. Pelo que jamais se pode concordar com a fundamentação do despacho recorrido e no qual rejeitou assim o requerimento formulado pela Assistente.
26. Os elementos objetivos e subjetivos do tipo incriminador constam claramente do requerimento de abertura de instrução, pelo que fenece de sentido o que decidiu o Meritíssimo Juiz de Instrução.
27. O douto despacho de rejeição mostra-se ilegal. Em seu lugar, deveria ter havido deferimento da instrução, ou seja, deveria ter-se proferido despacho no sentido de se investigarem os factos constantes na douta participação e, nesse seguimento, seguir-se-ia despacho de pronúncia contra a denunciada pela. prática dos crimes em questão.
28. O despacho recorrido não considerou que, ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, está a negar que a assistente possa intervir ativamente na fase de instrução, coartando irremediavelmente a sua ação no processo e ofendendo com isso um imperativo constitucional de proteção da vítima, de forma incompreensível no ordenamento jurídico português.
29. Ao não se admitir o requerimento de abertura, de instrução foram violados, entre outros, o disposto nos artºs 286.º, nº 1 e 287.º do C.P.P.
30. A decisão recorrida é ilegal, violando assim as disposições dos arts. 69.º, n.º 2, alínea a); 287.º, n.º 2, n.º 3; 286.º, ambos do C.P.P., e bem assim o disposto no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Termina pedindo seja dado provimento ao recurso e, em consequência seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que admita a abertura de instrução e ordene a realização dos atos instrutórios por forma a aferir da pronúncia, ou não, do arguido.
A este recurso respondeu o Ministério Público, conforme consta dos autos, formulando as seguintes conclusões:
1- Vem o queixoso interpor recurso do despacho judicial que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal do mesmo, nomeadamente por não terem sido indicados factos, circunstanciados no tempo e no espaço, integradores dos elementos subjetivos do tipo de crime cuja pronuncia se pretendia, apresentados com a estrutura de uma acusação, como se exigia.
2- O recorrente apresentou nas suas conclusões, essencialmente, discordância face a tal despacho judicial por, no seu entender, constam claramente do requerimento de abertura de instrução tais elementos subjetivos do tipo incriminador, para além da narração detalhada e pormenorizada dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, pelo que não existirá qualquer inadmissibilidade legal.
3- O Ministério Público não concorda com a posição do recorrente.
4- Constata-se da leitura do requerimento de abertura de instrução do assistente que este é omisso em relação aos elementos subjetivos do crime, habitualmente traduzidos na expressão “que o arguido atuou livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”, ou por quaisquer outras expressões semelhantes que encerram esse conteúdo.
5- Tal omissão é violadora do estabelecido no art.º 287.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal.
6- O preenchimento de qualquer tipo legal de crime – ou seja qualquer condenação penal – pressupõe a verificação de dois tipos de elementos: os elementos objetivos e os elementos subjetivos, também designados por tipo objetivo de ilícito e tipo subjetivo de ilícito.
7- Ou seja, só pode haver preenchimento do tipo legal de crime de denúncia caluniosa ou de simulação de crime, artigos 365.º e 366.º, do Código Penal, se for alegado e após provado, para além dos elementos objetivos, os elementos subjetivos desse ilícito.
8- O Assistente no seu requerimento não o alegou, não cabendo ao JIC ou ao MP a responsabilidade processual de aditar tais factos, nem existindo a possibilidade de convite à mesma para aperfeiçoar o seu requerimento.
9- A este propósito a jurisprudência é clara na necessidade de o requerimento de abertura de instrução ter, como se disse, uma estrutura equivalente à de uma acusação e, dessa forma, descrever os elementos subjetivos do crime pelo qual se pretende a pronúncia.
10- Um dos efeitos primordiais da pronúncia é fixar o objeto do processo, pelo qual terá a mesma que conter toda a factualidade necessária a esse fim, não podendo ser “complementada” com outros factos “exteriores” à mesma.
11- Tratando-se de crime doloso, o requerimento de abertura de instrução deveria conter a referência aos factos que sustentam a imputação do dolo do tipo, ou seja, o elemento intelectual (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto) e o elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico), e o elemento emocional, que se consubstancia na falta de consciência ética por parte dos arguidos, bem como a consciência da proibição para que, caso existisse pronúncia, fossem esses os factos a provar em audiência de julgamento, o que o assistente não fez.
12- A falta de qualquer destes elementos não pode ser suprida em julgamento com recurso ao art.º 358.º, do Código de Processo Penal (ver Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça), pelo que não pode ser aceite o recorrido requerimento, uma vez que os descritos factos nunca levariam a uma condenação por falta de elementos essenciais ao preenchimento do crime.
13- Pelo exposto, na ausência de elementos subjetivos no requerimento de abertura de instrução, bem andou a Exma. JIC na rejeição daquela iniciativa do Assistente por inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução.
14- Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto e ser mantido o douto despacho recorrido.
Termina pedindo seja negado provimento ao recurso e, em consequência, seja mantida a decisão recorrida.
Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra nos autos, pugna pela improcedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada mais veio a ser acrescentado com interesse para a decisão.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II- Fundamentação: 1) Com data de 05.11.2021, foi proferido despacho de arquivamento pelo Sr. Procurador da República nos seguintes termos (cf. fls. 182/187):
“Nos presentes autos BB imputou a AA a prática de factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de denúncia caluniosa, e de ameaça, p. e p. pelos artigos 365.º e 253.º, do Código Penal. (…). Cumpre decidir. Dispõe o art.º 365.º, n.º 1, do Código penal, que comete o referido ilícito “(…). Da simples leitura do artigo resulta claramente que “(…) é seu indispensável elemento subjetivo o dolo específico, traduzido na intenção de que seja instaurado procedimento contra o visado com base em imputações que o denunciante tinha a consciência de serem falsas. (…) Tal denúncia deu origem ao inquérito n.º 194/19.1PWPRT, que culminou num despacho de arquivamento por falta de indícios. Não obstante, nesse inquérito, foram ordenadas buscas, que não lograram alcançar nada de relevante para o processo. Quando ouvido no inquérito acima mencionado, o aqui arguido manteve o teor da queixa. O despacho de arquivamento que foi proferido foi no sentido de não terem sido recolhidos elementos que permitissem elaborar um despacho de acusação, mas em momento algum é referido que os factos não aconteceram. Em face do exposto, falha um dos elementos subjetivos do tipo de ilícito em causa nos presentes autos, a consciência por parte do arguido da falsidade das imputações, logo não se encontra satisfeito o dolo específico exigido para o preenchimento deste tipo de ilícito. De facto, o arguido tinha a intenção de que fosse instaurado procedimento criminal contra o denunciante e, perante a autoridade, imputou-lhe a prática de factos que consubstanciavam um crime de ameaça e eventual detenção de arma proibida. No entanto, não existia por parte do arguido a consciência da falsidade dos factos imputados, mas a convicção da veracidade dos mesmos. Assim, não estando preenchido o elemento subjetivo do tipo de ilícito, a atuação do arguido não constitui a prática do crime de denúncia caluniosa, nem de qualquer outro crime, pelo que, tendo em conta o disposto no art.º 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que o Ministério Público procede ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado o crime, devem os presentes autos ser arquivados. (…). (…). O ofendido apresentou igualmente queixa contra CC, a quem imputou factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de falsidade de depoimento, p.e p. pelo art.º 360.º, n.º 1, do Código Penal. (…) (…). No entanto, da matéria recolhida nestes autos temos apenas duas versões distintas dos factos e o arguido nunca alterou o seu depoimento. Sendo certo que, a ser produzida a mesma prova em eventual julgamento, ela levaria à absolvição do arguido. (…). Por tudo o exposto, determino o arquivamento dos autos, ao abrigo do disposto no art.º 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. (…)”. 2) O assistente, notificado do despacho de arquivamento do MP constante dos autos a fls. 477 a 482, requereu a abertura de instrução nos termos do seu requerimento constante dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde consta, para além do mais: “(…). 7. Comete o crime de denúncia caluniosa (artigo 365.º, CP): (…); 8. E comete o crime de Simulação de Crime (art.º 366.º, do CP): (…); 9. No decorrer do processo 194/19.1PWPRT da 2.ª secção do DIAP do Porto e tendo em conta o crime de ameaça que o 1.º arguido ali mencionou ter sido vítima, foram realizadas buscas à casa do assistente, as quais nada encontraram; 10. Conseguindo com a falsidade dos seus atos e devidamente instruído o 1.º arguido que se abrisse uma investigação: 11. A qual, bem sabia que face à gravidade dos factos que alegava, originaria como é praxe, uma busca com força policial musculada à casa do assistente, que pôs em alvoroço os seus filhos menores e inquietou todos os vizinhos; 12. Assim atingiu o primeiro objetivo, denunciar crime e criar suspeita da sua prática à autoridade competente, sabendo que ele não se verificou, lançando sobre ele a suspeita da prática do crime, com intenção de que contra ele se instaurasse procedimento, 13. Pois sendo a busca surpresa e não só feita à casa do aqui assistente, mas também aos carros dele, seria de esperar que algo se encontrasse, mas nenhuma arma foi encontrada, nenhum objeto ilegal que suportasse a ameaça com arma de fogo, que o aqui arguido indica na sua queixa contra o assistente, ali foi apreendido. 14. Nem podia, pois, o assistente não tem armas de fogo, não usa, nem nunca usou. 15. O 1.º arguido visou com este tipo de queixa prejudicar, amedrontar e pôr a família do aqui assistente em pânico para que desistisse do processo de partilha que mantêm em litígio. 16. Aliás, diga-se que depois de saber do arquivamento deste processo 194/19.1PWPRT da 2.ª secção do DIAP do Porto, o aqui 1.º arguido já voltou a apresentar nova queixa nos mesmos moldes contra o aqui assistente. 17. Que culminou com a deslocação da polícia a casa do aqui assistente, a quem prontamente abriu a porta e nada encontraram, deixando a sua família em alvoroço, 18. Dando esta diligência origem ao processo 766/21.4SLPRT. 19. Processo esses, que o aqui assistente desconhece o estado em que se encontra, mas que demonstram a premeditação do aqui arguido em importunar o aqui assistente por estes meios. 20. Com apresentação de queixa deste tipo, o 1.º arguido está instruído de que tais crimes implicam estas diligências pelas autoridades, bem sabendo o efeito que a decorrência destas buscas causa mal-estar na família do assistente e na humilhação com aparato policial à sua porta, perante os vizinhos. 21. Pelo que o faz neste intuito caluniando o assistente estimulando o crime de ameaça com arma de fogo que por gravoso que é implica as referidas diligências policiais. 22. Fatores que foram relatados na queixa ao presente processo que salvo devido respeito não foram valoradas pelo Ministério Público. 23. O assistente levou a este processo toda a prova para demonstrar os crimes em questão perpetrados pelo 1.º arguido, a saber, a denúncia caluniosa e simulação de crime, que este, em colaboração com um amigo, o aqui segundo arguido, engendraram. (…). 42. A queixa do aqui arguido em breve súmula, refere que o aqui assistente a 06.03.2019 se cruzou consigo na Rua ... tendo “demonstrado um comportamento agressivo”, 43. Expressão que não concretiza nem desenvolve, ma conclui somente na sua queixa; 44. Que efetuou um movimento de pegar num objeto do porta luvas, parecendo segundo o arguido uma arma, mas que, no entanto, não tem a certeza; 45. (…); 46. No auto de declarações o arguido apenas descreve a ocorrência de um episódio verificado no dia 06.03.2019, como veremos nas declarações complementares já relata mais do que um episódio destes; 47. E finalizando com o seguinte acrescento: “Relativamente à identificação do suspeito, desconhece mais dados de momento”; 48. Ora, tais afirmações conclusivas são relatadas de forma singela, nunca neste auto relatando a existência de qualquer testemunha que a tal tivesse assistido; 49. Também não referiu que sentimentos lhe provocou tal ato; 50. Aliás, sequer descreve o objeto, ou sequer define se o mesmo era suscetível de o ferir ou de lhe causar medo ou receio, temendo pela sua integridade física ou vida; 52. Pelo que não elucida em que circunstâncias e com que intuito tomou a atitude descrita; 53. E de igual modo que tal comportamento lhe criou medo ou receio; 53. E muito menos que em consequência tivesse fugido do local; 54. E neste auto de declarações nada mais concretiza; (…) 104. Já no que se refere ao 2.º arguido, o aqui assistente desconhece que é e o que o levou a proferir tais afirmações falsas, vagas e sem fundamento; 105. Do auto de declarações do 1.º arguido resulta, contudo, que o 2.º arguido é seu amigo; 106. E será muito provável que desta relação de amizade, o 2.º arguido tenha em conjugação de esforços com o 1.º arguido ajudado a criar estes factos; 107. As situações relatadas pelos arguidos nunca ocorreram e trata-se de ficção e simulação de um alegado crime que nunca aconteceu; 108. Porque como se disse naquele dia «, naquele local o aqui assistente não podia estar, logo tais factos não podiam ter ocorrido; 109. São, por isso, falsas e deveriam ser investigadas pelo Ministério Público esta versão do 2.º arguido, não só por caluniarem o bom nome do denunciante, como também por estar a ser simulado um alegado crime que nunca existiu. 110. Estes atos foram premeditados e planeados pelo arguido com o intuito de prejudicar o denunciante, enxovalhando-o e manchando o seu bom nome, tendo como segundo objetivo o de atingir indiretamente a sua irmã (esposa do assistente), tentando fazê-la recuar no processo de partilha que decorre entre o arguido e aquela; (…); 113. Ora tais elementos – objetivo e subjetivo – verificam-se na hipótese sub judice com supra expusemos. 114. Com efeito, AA ao lançar sobre o assistente a suspeita da prática de um crime de ameaça com arma de fogo, sabendo que os factos que lhe imputou eram falsos e que os meios de prova que coligiu para os secundar emergiam manipulados, intentou que contra este fosse instaurado procedimento criminal. Levando a um mandato de busca. 115. Efetivamente, não hesitou em narrar acontecimento que nunca existiu – descrevendo em dois momentos distintos, versões absurdamente incompatíveis. 116. Veja-se que o aqui 1.º arguido não faz referência sequer no primeiro auto de declarações à PSP à existência de qualquer arma de fogo, pelo contrário diz que o aqui assistente pega num objeto que parecia uma arma de fogo, mas que não tinha a certeza. 117. Já nas declarações complementares o 1.º arguido refere que o aqui assistente exibiu uma arma de fogo e lhe apontou a mesma lembrando-se até que era de cor preta. (…) (…). 181. O 1.º arguido não pode ter a liberdade de usar e abusar dos meios da Justiça e o assistente a clausura de sofrer com a sua família toda esta humilhação sem nada poder fazer 182. A intenção, os factos concretos, foram identificados, os quais são suficientes para integrar o tipo legal do crime e são suscetíveis em juízo de prognose, de em sede de julgamento, se obter uma condenação dos dois arguidos. 183. A prova não foi realizada, pois da cabal visualização das declarações, do arguido e dos atos posteriores do aqui arguido jamais se poderá concluir, salvo melhor opinião e devido respeito por outra opinião, pelo arquivamento. 184. Não se obteve confrontação do 1.º arguido com as incongruências dos seus depoimentos nos autos, no sentido de apurar a verdade. 185. O mínimo exigido (a qualquer cidadão), face às regras previstas na Constituição da República Portuguesa, face a estas notórias falsidades, era ouvir o 1.º arguido e confrontá-lo com as incongruências das diversas inquirições à sua pessoa. 186. Que ao invés de esbater os factos com a passagem do tempo, vai acrescentando factos mais vivos e mais agravantes contra o assistente (…) (…). Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente instrução ser aberta, ser julgada procedente por ter provimento, conforme se pugna, tudo com as devidas consequências leais, pronunciando o arguido (…)”. 3) Sobre tal requerimento foi proferido despacho rejeitando a abertura de instrução (decisão recorrida), do seguinte teor: “Inconformado com o despacho de arquivamento do M.P., veio o assistente BB requerer a abertura de instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal. Para o efeito, expõe as razões de discordância em relação ao despacho de arquivamento e à forma como o M.P. procedeu á análise da prova, faz a apreciação das provas recolhidas em fase de inquérito tece considerações de ordem jurídica. Cumpre apreciar: A instrução, que tem sempre carácter facultativo, visa estabelecer um controlo jurisdicional da acusação ou de arquivamento do inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento - artigo 286° do Código de Processo Penal. Daí que o requerimento de abertura de instrução seja a peça processual, mediante a qual o arguido ou o assistente, expressam as suas razões de divergência com o precedente despacho do Ministério Público, de acordo com o preceituado no artigo 287º, n.º 1 do Código de Processo Penal. No caso de a instrução ser requerida pelo assistente - que é a situação aqui presente - a mesma apenas pode dizer respeito a factos relativamente aos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação e os mesmos não sejam suscetíveis, de acusação particular, pois se assim sucedesse bastaria que tal libelo fosse deduzido. Por sua vez, segundo o disposto no artigo 287.° n.º 2 do C.P.P. o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, só espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c)(…)”. Neste último segmento normativo estipula-se que “a acusação contém, sob pena de nulidade: “b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática} o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis”. Assim, tratando-se de uma instrução requerida pelo assistente, que visa sempre a pronúncia do arguido, acresce ainda mais um requisito, ou seja, deve tal requerimento conter ainda a narração própria de uma acusação, mediante a descrição dos factos integradores de um crime e a indicação da correspondente disposição legal que o tipifica. Aliás, tal descrição factual deverá conter os factos concretos suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal que o assistente considere ter sido preenchido. Neste sentido depõe a generalidade da jurisprudência, v.g. vejam-se, entre outros, o Ac. STJ de 13-01-2011, in www.dgsi.pt.onde se lê que “O requerimento para abertura da instrução, quando apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento do MP, deve observar o disposto no art.283.º n.º 3, als. b) e c), do CPP, quer dizer, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis. II. Não tendo sido formulada acusação pelo MP, o requerimento para a abertura da instrução funciona como equivalente dessa acusação, do qual decorre a vinculação factual que o juiz tem de respeitar, pautando a sua conduta no processo, por força do princípio do acusatório, dentro dos parâmetros fornecidos por aquela delimitação factual, uma vez que o juiz não atua oficiosamente e não investiga por conta própria, embora dirija e conduza a instrução de forma autónoma. III - Nestes casos, o requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objeto do processo, resultando da falta de indicação dos factos essenciais à imputação da prática de um crime ao agente a inutilidade da fase processual de instrução”; o Ac. RC de 15-04-2015, in www.dgsi.pt.,onde se lê que “O requerimento do assistente para a abertura de instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, devendo constar do mesmo a descrição dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis (art.º 283.°, n.º 3, al. b) e c), aplicável ex vi do art. 287º, nº 2). Por sua vez e de acordo com o citado artigo 287.º, através do seu nº3 “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”. A propósito desta última vertente, tem-se entendido que não tem cabimento legal a instrução quando se tratem de processos especiais, quando seja a requerimento do Ministério Público, quando for requerida pelo arguido, relativamente a factos que exorbitem a acusação, ou então pelo assistente, versando sobre factos já descritos na acusação, ou então por falta de legitimidade de quem a requer - veja-se Souto Moura, nas jornadas sobre “O Novo Código Processo Penal” (1997), p. 119 e ss., Daqui decorre que neste segmento normativo apenas questões de índole formal, atrás indicadas, podem conduzir à rejeição da instrução. No entanto se a instrução for requerida pelo assistente e não contiver os requisitos específicos de uma acusação atrás enunciados, tal requerimento é nulo, tornando, por isso, inexequível, por falta de objeto, o controlo jurisdicional da decisão do Ministério Público. Trata-se, ao fim e ao cabo, de algo semelhante à de uma acusação manifestamente infundada, de acordo com o preceituado no artigo 311° nº 3 als. b) e c) do Código de Processo Penal, que conduz à sua rejeição. E é compreensível que assim seja, porquanto é esse requerimento que ao reproduzir uma acusação fixa o objeto do processo, limitando os poderes de cognição do juiz de instrução (cf. artigos 288° n.º 4; 307° a 309° do C.P.P.) e possibilita o direito do arguido defender-se das imputações que lhe são feitas (artigos 61.°, n.º 1, als. b) e f) do Código de Processo Penal e 32.° Constituição da República Portuguesa). Nesta conformidade, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deve sempre descrever, de modo autónomo, os factos imputados ao arguido, indicando ainda os tipos legais de crime que os mesmos integram. Revertendo ao caso dos autos, lido o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, constatamos que o mesmo é confuso já que nele são mescladas questões de direito com crítica da apreciação da prova e no mesmo requerimento não consta de igual modo a descrição da factualidade sob o ponto de vista objetivo bem como nenhum facto referente ao elemento subjetivo dos alegados crimes que se pretende imputar bem como a indicação das disposições legais aplicáveis (alínea c) do artº 283º do C.P.P.). Ora, ao nível da acusação, como do requerimento de abertura da instrução a descrição factual quer do elemento objetivo quer do elemento subjetivo assim como a indicação das disposições legais aplicáveis têm de constar dessas peças processuais, sob pena de nunca se mostrar preenchido o(s) tipo(s) de crime(s) pelo qual se pretender submeter alguém a julgamento. Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência, de que é exemplo o Ac. RC de 30/9/2009 e de 28-01-2015 e da RG de 06.12.2010, disponíveis em www.dgsi.pt. Tal falta não pode, segundo se crê, ser corrigida oficiosamente pelo tribunal pois que o juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes ao elemento objetivo e subjetivo, pois tal representaria uma alteração substancial dos factos, tal como descrita no artigo 1° f) do Código Processo Penal, para além de colocar em causa a estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido - cfr. neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 21.03.2012, disponível em www.dgsi.pt. Por outro lado, e na sequência do Acórdão n." 7/2005, foi uniformizada jurisprudência no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 285º nº 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamenta a aplicação de uma pena ao arguido”. Nesta medida, impõe-se a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por legalmente inadmissível (cf. artigo 287º n.º 3, do Código de Processo Penal). Pelo exposto, por inadmissibilidade legal da instrução, rejeito o requerimento para o efeito apresentado pelo assistente BB. Custas pelo assistente que se fixam em 2 UCs. Notifique, após trânsito, abra conclusão para ser designada data para realização do debate instrutório quanto ao crime de natureza particular de que o arguido AA reagiu através de requerimento de abertura de instrução. (…).”
*
Fundamentos do recurso: Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).
As questões que cumpre apreciar são as de saber:
1) se o despacho decisório recorrido é nulo por falta de fundamentação;
2) se o requerimento de abertura de instrução (RAI) apresentado pelo assistente reúne os requisitos legais que permitam a sua admissibilidade, - concretamente se se encontram nele descritos os elementos subjetivo e objetivo do tipo legal de crime de denúncia caluniosa (cf. art.º 365.º, do Cód. Penal) e o de simulação de crime (cf. art.º 366.º, do Cód. Penal) -, e, por consequência, a reabertura da instrução.
Vejamos.
Para fundamentar o seu recurso o recorrente argui a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, alegando que a decisão do Tribunal a quo não tem fundamentação que permita percecionar em concreto em que falha incorre o requerimento de abertura de instrução, nomeadamente não identifica os elementos objetivo e subjetivo que estão em falta e que teriam que constar para permitir o prosseguimento do processo pelo crime de denúncia caluniosa ou, eventualmente, por simulação de crime.
Estamos perante um despacho que indeferiu o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, razão pela qual, nos termos do disposto no art.º 97.º, n.º 1, al. b), estamos perante um ato decisório do juiz sob a forma de despacho, pelo que, por força do disposto no n.º 5 do referido preceito legal, deverá ser fundamentado, devendo ser especificado os motivos de facto e de direito da decisão.
Em matéria de nulidades vigora o princípio da tipicidade legal, nos termos dos art.ºs 118.º, 119.º e 120.º do Cód. Proc. Penal. Deste modo, não estando prevista tal nulidade em relação aos despachos, isto é, não havendo norma que genericamente determine a nulidade por falta de fundamentação em relação a outras decisões, para além das sentenças, como decorre do art.º 379.º do Cód. Proc. Penal, e não permitindo a norma do art.º 118.º, n.º 1, do Código Proc. Penal, a sua extensão analógica (cf. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal II Verbo 3º edição, pág.78), tal omissão apenas gera uma irregularidade nos termos do art.º 123.º do mesmo diploma legal, sujeita ao regime de arguição aí previsto. Ou seja, a irregularidade em causa devia ter sido arguida no prazo de 3 dias após a notificação do despacho recorrido e perante o Tribunal que proferiu a decisão, não o tendo sido, encontra-se sanada pelo decurso do tempo.
Considerando o que se deixa exposto, a invocada nulidade improcede.
Mas mesmo que assim não fosse, a pretensão do recorrente teria que improceder, porquanto no caso em apreço verificamos que o Tribunal a quo procedeu à exposição dos motivos que fundamentaram a decisão de indeferimento do requerimento de abertura de instrução, ora recorrida, com indicação dos fundamentos que, perante o disposto no art.º 287.º, n.ºs 2 e 3, do Cód. Proc. Penal, o levaram a considerar inadmissível legalmente o requerimento de abertura de instrução, designadamente por não preencher os requisitos legais exigidos pelo disposto no referido art.º 287.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
Sempre se consigna, para que dúvidas não se suscitem, que não estava o Tribunal a quo obrigado a exemplificar os precisos factos que consubstanciariam os elementos objetivo e subjetivo dos tipos legais de crime que o ora recorrente imputa aos denunciados no seu requerimento de abertura de instrução.
Considerando o que se deixa exposto, é manifesto que a decisão recorrida não padece do vício que lhe é apontado, porquanto está devidamente fundamentado nos termos exigidos pela Lei, nomeadamente a Constitucional.
Assim, não se verificando a apontada falta de fundamentação por violação, nomeadamente do disposto no art.º 205.º, da Constituição da República Portuguesa, improcede a arguida nulidade da decisão recorrida.
Para fundamentar o seu recurso, alega o recorrente que no seu requerimento de abertura de instrução se encontra a acusação particular deduzida pelo assistente e esta tem todos os elementos necessários e imprescindíveis para assegurar a sujeição do arguido a julgamento pelos factos constantes da mesma (prática do crime de denúncia caluniosa - art.º 365.º, do Cód. Penal-, e do crime de simulação de crime - art.º 366.º, do Cód. Penal-, não se verificando a omissão de qualquer dos requisitos previstos no n.º 3 do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal.
A decisão recorrida rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, ora recorrente, por entender que “lido o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, constatamos que o mesmo é confuso já que nele são mescladas questões de direito com crítica da apreciação da prova e no mesmo requerimento não consta de igual modo a descrição da factualidade sob o ponto de vista objetivo bem como nenhum facto referente ao elemento subjetivo dos alegados crimes que se pretende imputar bem como a indicação das disposições legais aplicáveis (alínea c) do art.º 283.º, do C.P.P.”. (…)”.
Nos termos do disposto no art.º 286.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de acusação ou da decisão de arquivamento do processo. Tem lugar no processo comum, quando requerida, dado o seu carácter facultativo, estando excluída dos processos especiais (cf. art.º 286.º, n.ºs 2 e 3, do Cód. Proc. Penal.
De acordo com o n.º 2 do art.º 287.º do Cód. Proc. Penal, o requerimento para abertura de instrução não está sujeito formalidades especiais, devendo conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação, a indicação dos atos de instrução a levar a cabo e dos respetivos meios de prova e, tratando-se de requerimento formulado pelo assistente, é-lhe aplicável o disposto no artigo 283º, n.º 3, als. b) e d) do Cód. Proc. Penal, isto é, “b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…); d) A indicação das disposições legais aplicáveis;(…)”.
Da articulação de ambos os preceitos legais resulta claro que, embora sem sujeição a formalidades especiais, o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente deve conter a narração (ainda que sintética) dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, a motivação do agente e o seu grau de participação, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Do exposto decorre que o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente tem a estrutura de uma acusação e está, nessa medida, sujeito aos respetivos requisitos. Por esse motivo, tal requerimento delimita o objeto do processo (como se estivéssemos perante uma acusação), tornando, desde logo, nula a decisão instrutória “na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.” (art.º 309.º do Cód. Proc. Penal).
No requerimento para abertura da instrução tem o assistente, forçosamente, de indicar os factos concretos (integradores dos elementos objetivo e subjetivo do(s) tipo(s) de crime que imputa ao arguido) que entende indiciados ou pretende vir a fazer indiciar no decurso da instrução requerida. A descrição dos factos é, por conseguinte, determinante para a definição do objeto do processo, uma vez que a decisão instrutória só pode recair sobre factos que foram objeto da instrução, ficando o objeto do processo delimitado pela indicação feita naquele requerimento de instrução formulado pelo assistente.
Na fase de instrução, que aqui nos interessa, os poderes do juiz são funcionais em relação à finalidade da instrução (cf. art.º 286.º n.º 1 do Cód. Proc. Penal), pelo que os limites materiais da investigação por si operada são os decorrentes do objeto do processo fixado na acusação ou no requerimento para abertura da instrução (cf. art.º 303.º n.º 3 e 309.º n.º 1, do Cód. Proc. Penal).
Logo, se no requerimento de abertura de instrução o assistente não descreve os factos integrantes de realização típica demandada – rectius, do crime – é óbvio que a finalidade da instrução está posta em causa, uma vez que o juiz não pode investigar o que não consta do requerimento de abertura de instrução.
Em resumo, o Juiz de Instrução Criminal está tematicamente vinculado à factualidade descrita na acusação do Ministério Público, do assistente e no requerimento de abertura de instrução (cf. arts. 303.º e 309.º, n.º l do Cód. Proc. Penal).
Assim, só a verificação dos elementos constitutivos objetivos e subjetivos é passível de integrar o preenchimento do tipo legal incriminador. Pelo que é imperioso, porque imprescindível, que constem da acusação/requerimento de abertura de instrução (neste, em caso de arquivamento), sem os quais não é a mesma fundada, porque insuscetível de suportar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (cf. art.º 283.º, n.º 3, al. b), do Cód. Proc. Penal), não sendo os elementos normativos subjetivos passíveis de serem considerados objetivamente resultantes dos elementos normativos objetivos.
No sentido apontado não poderemos deixar de recordar dois importantes Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência:
- O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 4 de novembro [publicado no Diário da República n.º 212/2005, Série I-A de 04.11.2005] que fixou jurisprudência no sentido de que «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 28.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido»;
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 [publicado no DR Série I, de 27.01.2015] que fixou jurisprudência no sentido que: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
No presente caso a assistente imputa aos denunciados a prática de um crime de denúncia caluniosa ou de um crime de simulação de crime.
Estipula o art.º 365.º, n.º 1, do Cód. Penal, sob a epígrafe «Denúncia caluniosa», que “1 - Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”.
Os bens jurídicos protegidos pelo crime de denúncia caluniosa são a honra e a liberdade da pessoa visada e, reflexamente, a realização da justiça (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 3.ª Edição Atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 1137).
O tipo objetivo preenche-se com a denúncia ou no lançamento de suspeita da prática de um crime, contraordenação ou infração disciplinar contra determinada pessoa, perante autoridade ou publicamente, sendo a pessoa identificada ou identificável de modo que possa ser objeto de um processo criminal, contraordenacional ou disciplinar.
O tipo subjetivo só admite o dolo direto (cf. art.º 14.º, n.º 1, do Cód. Penal), uma vez que se exige a “consciência da falsidade da imputação” e, adicionalmente, a intenção de que se instaure contra o visado o procedimento criminal, contraordenacional ou disciplinar, consoante os casos.
Voltando ao presente caso, entendemos que o requerimento de abertura de instrução (RAI) apresentado pelo assistente, ora recorrente, na sua descrição dos factos e das condutas do arguido, ainda que possa conter suficiente concretização dos elementos objetivos do crime de denúncia caluniosa que é imputado, dúvidas maiores se suscitam no que se refere ao elemento subjetivo do ilícito imputado pelo assistente aos denunciados.
De facto, considerando o requerimento de abertura de instrução, nomeadamente nos seus artigos 9, 10, 16, 17, 107, 23, 106 e 114, o assistente, ora recorrente, refere que o denunciado AA, em colaboração com CC, este na qualidade de testemunha dos factos, apresentou queixa, nas datas que indicada, nas autoridades policias competentes contra o ora assistente imputando-lhe a prática de crime de ameaças com arma de fogo, o que originou, por duas ocasiões, a abertura de inquérito (que identifica) e a realização de diligências de buscas na casa e carros do assistente.
Assim sendo, e ainda que de um modo pouco rigoroso e organizado, poderemos considerar que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente contém suficiente concretização dos elementos objetivos do crime de denúncia caluniosa.
Contudo, o mesmo afigura-se-nos não poder ser dito relativamente ao elemento subjetivo do identificado tipo legal de crime.
No presente caso discute-se precisamente se no RAI apresentado pelo assistente se encontra suficientemente descrito o elemento subjetivo do tipo legal de crime de denúncia caluniosa.
Já sabemos que o tipo subjetivo do tipo legal do imputado crime só admite o dolo direto (cf. art.º 14.º, n.º 1, do Cód. Penal), uma vez que se exige a “consciência da falsidade da imputação” e, adicionalmente, a intenção de que se instaure contra o visado o procedimento criminal, contraordenacional ou disciplinar, consoante os casos.
No presente caso, e de acordo com as suas alegações de recurso, o assistente pretende imputar aos arguidos uma conduta praticada com dolo direto previsto no n.º 1 do art.º 14.º, do Cód. Penal.
Estipula este normativo que “Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar”.
O dolo do tipo consiste no conhecimento e vontade de realização da ação típica. Distingue-se, por isso, no dolo do tipo um elemento cognitivo ou intelectual do dolo e um elemento volitivo do dolo.
O elemento cognitivo ou intelectual do dolo inclui o conhecimento de todas as circunstâncias de facto (elementos descritos do tipo) e de direito (dos elementos normativos do tipo) que constituem o tipo de ilícito objetivo, o que permite ao agente a orientação e decisão da sua consciência ética pela preservação ou não do bem jurídico tutelado pela norma (cf. obra citada, pág. 149).
Ora, no presente caso, ao contrário do que defende o recorrente, o RAI apresentado pelo assistente não contém suficiente descrição do elemento cognitivo ou intelectual do dolo, ou seja, conhecimento de todas as circunstâncias de facto e de direito, isto é, dos elementos descritos do tipo e dos elementos normativos do tipo, e bem assim do elemento volitivo do dolo. O elemento volitivo consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo direto – a intenção de realizar o facto; o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta; e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta.
Pretendendo a assistente imputar aos arguidos a prática do ilícito de denúncia caluniosa, deverá constar do RAI não só o conhecimento de todas as circunstâncias de facto e de direito, como a intenção do arguido de realizar o facto.
Ora, no presente caso, apenas consta “AA ao lançar sobre o assistente a suspeita da prática de um crime de ameaça com arma de fogo, sabendo que os factos que lhe imputou eram falsos e que os meios de prova que coligiu para os secundar emergiam manipulados, intentou que contra este fosse instaurado procedimento criminal. Levando a um mandato de busca”.
Em primeiro lugar e, relativamente ao denunciado CC é manifesto que o RAI não contém qualquer facto que se refira ao elemento cognitivo ou intelectual do dolo, ou seja, conhecimento de todas as circunstâncias de facto e de direito, isto é, dos elementos descritos do tipo e dos elementos normativos do tipo, e bem assim do elemento volitivo do dolo.
Em segundo lugar, e relativamente ao arguido AA, teremos que concluir que o RAI apresentado pelo assistente contém, ainda que de modo pouco rigoroso, suficiente descrição do elemento cognitivo ou intelectual do dolo, mas apenas na parte que se refere ao conhecimento de todas as circunstâncias de facto, isto é, que o arguido AA, ao apresentar as referidas queixas-crime contra o ora assistente/recorrente, tinha a “consciência da falsidade da imputação” (da ameaça com arma de fogo)e de que seria instaurado contra o visado procedimento criminal.
Contudo, o RAI apresentado não contém qualquer descrição do elemento cognitivo do dolo, na parte do conhecimento das circunstâncias de direito, isto é, dos elementos normativos do tipo. O mesmo é dizer que, apesar do RAI conter a referência de que o arguido AA tinha conhecimento da falsidade da sua imputação ao aqui recorrente, nada consta sobre o conhecimento que aquele arguido pudesse ter sobre a incriminação da sua conduta. E apenas a descrição da totalidade do elemento cognitivo do dolo, nas suas duas vertentes (de conhecimento dos elementos descritos do tipo e de conhecimento dos elementos normativos do tipo), permite ao agente a orientação e decisão da sua consciência ética pela preservação ou não do bem jurídico tutelado pela norma
Mas, mesmo que assim não se entendesse, sempre o RAI não contém qualquer descrição do elemento volitivo do dolo (especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito). No RAI nenhum facto consta sobre a intenção do arguido de realizar o facto, isto é, que o arguido quis apresentar denúncia caluniosa contra o ora recorrente com o sentido do correspondente desvalor.
Ainda que possa defender-se, tal como é referido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência acima citado (cf. Acórdão do STJ n.º 1/2015, publicado no DR Série I, de 27.01.2015), que a expressão “o arguido atuou livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei” se refere ao dolo do tipo de culpa englobando a consciência ética ou a consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, [ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual)], atuando, assim, conscientemente contra o direito, o mesmo já não poderemos dizer relativamente ao elemento volitivo do dolo.
No RAI apresentado pela assistente não há a alegação de qualquer facto que preencha, ainda que de forma sintética, o elemento volitivo, que consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito, expressando a intenção de realizar o facto. E não se argumente, como faz o recorrente, que a “ilicitude [do crime que imputou ao ali arguido, ora recorrente] é de todos conhecida, segundo as regras da experiência e de convivência social, não sendo racional admitir a possibilidade de desconhecimento por parte do arguido de que as condutas por si perpetradas constituíam um comportamento censurável e proibido por lei”, pois, como acima deixámos expresso, e nos termos da Jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 1/2015 [publicado no DR Série I, de 27.01.2015], “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
No seu requerimento de abertura de instrução (RAI) o assistente imputa, ainda, aos denunciados o crime de simulação de crime. Atendendo ao alegado pelo assistente naquele requerimento não vemos como possa configurar-se tal crime, pois o tipo objetivo deste crime consiste na denúncia do crime, contraordenação ou infração disciplinar inexistentes à autoridade competente ou na criação de uma suspeita da prática de um crime, contraordenação ou infração disciplinar, sem que se proceda à imputação desse ilícito a uma pessoa concreta.
Ora, no presente caso, e de acordo com o alegado pelo próprio assistentes no seu requerimento de abertura de instrução, o arguido AA apresentou queixa-crime pela prática de ameaça com arma de fogo contra uma concreta pessoa, isto é, o aqui assistente/recorrente. Mas, mesmo que assim não fosse, também o elemento subjetivo do tipo não se encontra verificado nos mesmos termos já anteriormente explicados a propósito do crime de denúncia caluniosa.
Da articulação dos art.ºs 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, als. b), ambos do Cód. Proc. Penal, tal como acima já deixámos expresso, resulta que, embora sem sujeição a formalidades especiais, o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente deve conter a narração (ainda que sintética) dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, a motivação do agente e o seu grau de participação, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, o que, no presente caso não acontece, tal como deixámos até aqui explicitado.
Considerando tudo quanto se deixa expresso, concluímos que no presente requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente não se encontram indicados, ainda que de forma sintética, os factos concretos integradores do elemento subjetivo do tipo legal de crime de denúncia caluniosa que o assistente imputa aos arguidos e que entende indiciados (e, acrescente-se, nem, desde logo, os elementos objetivos o tipo legal de crime de simulação de crime).
Nestes termos, entendemos que o recurso não merece provimento, devendo a decisão recorrida manter-se nos seus precisos termos.
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se em 3 Uc’s a taxa de justiça.
Porto, 22 de novembro de 2023
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)
Paula Natércia Rocha
Maria Luísa Arantes
Lígia Figueiredo