AMNISTIA
LEI Nº 38-A/23 DE 02.08
Sumário

Em face da redacção dada ao artº 7º, nº 1, al. b) e nº 1, al. g) da Lei de Amnistia nº 38-A/23 de 02.08, visto o processo de discussão política que esteve na base da referida opção legislativa, resulta que o legislador quis que os condenados por crime de roubo [simples], previsto e punido nos termos do disposto pelo nº 1 do artº 210º do Cód. Penal, beneficiassem da aplicação do perdão de pena ali previsto.

Texto Integral

Acordam os juízes da Secção Criminal (3ª) do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório
Pelo Juízo Central Criminal de Lisboa – J 20 – para efeitos de verificação de pressupostos com vista à eventual aplicação da Lei nº 38-A/23 de 02.08, foi proferido despacho que decidiu do seguinte modo:
O arguido C.A.S.R., nascido a XXX, encontra-se em cumprimento de pena à ordem dos presentes autos, após revogação da liberdade condicional que lhe havia sido concedida pelo TEP, terminando tal cumprimento a 19-4-2024.
O arguido foi condenado por acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, que reduziu as penas parcelares e a pena única inicialmente aplicada, na pena única de sete anos de prisão, pela prática dos seguintes crimes, ocorridos no ano de 2003 (cfr. fls. 1037 a 1055):
- três crimes de roubo, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 201º nº 1, na pena de um ano e seis meses de prisão para cada um dos crimes;
- um crime de roubo, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 210º nº 2, 22º e 23º, na pena de doze meses de prisão;
- dois crimes de roubo qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 210º nºs 1 e 2 e 204º nº 2 alínea f) do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão para cada um deles;
- um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154º do Código Penal, na pena de quatro meses de prisão, e;
- um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º nº 1 do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão.
A Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, que entrou em vigor hoje, dia 1 de Setembro de 2023, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infracções, por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigo 1º).
Nos termos do artigo 2º da aludida Lei, estão abrangidos pela mesma, as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00.00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
No caso dos autos, o arguido C.R. tinha menos de trinta anos na data da prática dos factos, estando por isso abrangido em termos de idade por esta Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto.
Contudo, o artigo 7º nº1 alínea a) iv) da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, exclui a aplicação do perdão ao crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154º do Código Penal.
O mesmo artigo, na sua alínea b) i), excluiu também a aplicação do perdão ao crime de roubo qualificado, p. e p. pelo artigo 210º nº 2 do Código Penal.
Por último, e tendo em conta as vítimas, o legislador optou também por excluir a aplicação do perdão a crimes cometidos contra vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67º-A do Código de Processo Penal.
O artigo 67º-A nº 3 do Código de Processo Penal estabelece que “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis”.
Por seu turno, o artigo 1º alínea j) do Código de Processo Penal define criminalidade violenta como sendo as condutas que dolosamente se dirigem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e a autodeterminação sexual ou contra autoridade pública e sejam puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos.
O crime de roubo protege vários bens jurídicos, como seja o património, a integridade física e a liberdade da vítima, sendo mesmo na sua forma simples (artigo 210º nº 1 do Código Penal) e tentada (artigos 22º e 23º do Código Penal) punido com pena superior a cinco anos.
Por tal razão, os crimes de roubo, p. e p. pelo artigo 210º nº 1 do Código Penal, mesmo na forma tentada, são considerados criminalidade violenta, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1º alínea j) e 67º-A nº 3 do Código de Processo Penal.
Deste modo, também os crimes de roubo simples, p. e p. pelo artigo 210º nº 1 do Código Penal, na forma consumada ou tentada, se encontram excluídos da aplicação do perdão.
Sopesando tudo quanto acima se disse e analisando os crimes praticados pelo arguido, conclui-se que todos os crimes em que foi condenado estão excluídos da aplicação do perdão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 7º alíneas a) iv), b) i) e g) da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto.
Pelo exposto, não de aplica qualquer perdão à pena única que o arguido C.A.S.R. se encontra a cumprir, devendo os autos aguardar o seu termo.
(…)
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…)
1.ª Norma jurídica violada: (i.) art. 9.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Civil; (ii.) art. 7.º, n.º 1, al. b), i, da Lei n.º 38-A/2023, de 2/Ag.; (iii.) art. 7.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 38- A/2023, de 2/Ag., quando conjugado com o art. 67.º-A, n.ºs 3, do C.P.P., e art. 1.º, al.s j) e l), do C.P.P.
2.ª Elemento interpretativo literal: do art. 7.º, n.º 1, al. b), i, da Lei n.º 38- A/2023, de 2/Ag., resulta que o roubo “simples” não foi expressamente excluído do perdão, ao contrário do roubo agravado.
3.ª Elemento interpretativo lógico: o art. 7.º, n.º 1, al. b), i., expressamente excluiu o roubo agravado, previsto pelo art. 210.º, n.º 2, do C.P., do âmbito do perdão; se o legislador excluiu o mais, o roubo agravado, não excluiu o menos, o roubo “simples”.
4.ª Elemento interpretativo sistemático: uma aplicação literal da al. g) esvaziará de sentido o n.º 1, al. b), em violação do princípio de perfeição legal do texto normativo, impondo-se uma rejeição do sentido literal estrito e exigindo-se uma harmonização interna da norma interpretada.
5.ª O art. 7.º, n.º 1, al. b), insere-se numa lista de exclusões formais, quais sejam determinados tipos objectivos de ilícito, considerados geradores de maior danosidade ou alarme social, enquanto a al. g), verdadeira “válvula de escape”, remete para conceitos exclusivamente substanciais, como sejam a especial vulnerabilidade de certos homens e mulheres e as suas circunstâncias.
6.ª De forma idêntica, já antes o legislador havia “construído” o complexo “edifício” do art. 67.º-A do C.P.P., ainda que com ordem inversa: no n.º 1, al. b), apresentou um conceito material de vítima especialmente vulnerável; ao invés, o n.º 3 fez uma remissão formal para os tipos de crime contidos no art. 1.º
7.ª Nas duas normas, a arquitectura legiferante é idêntica, devendo ser idêntica a interpretação, ou seja, com recurso aos critérios existenciais do n.º 1 do art. 67.º-A: no art. 7.º, n.º 1, al. g), a vulnerabilidade que excluiu o perdão lançará raízes sobre uma “especial fragilidade”, um autêntico desequilíbrio, um radical risco existencial.
8.ª Só a interpretação teleológica, firmada numa prévia interpretação sistemática, saberá devolver ao texto normativo o seu verbo radical.
9.ª Em suma e em abstracto, o Direito que urge dizer é o reconhecimento do perdão de pena ou amnistia fundados em crime de roubo “simples”, previsto pelo art. 210.º, n.º 1, do Cód. Penal, a menos que a vítima seja materialmente vulnerável, com um radical risco existencial.
10.ª Em concreto, deverá ser declarado o perdão parcial de 1 ano da pena de prisão aplicada ao arguido, assim se devolvendo ao texto normativo o seu verbo radical, o pulsar do logos legiferante.
(…)
O Arguido, sem alegar ou concluir, juntou aos autos Requerimento em que adere aos fundamentos do recurso interposto pelo Ministério Público.
O recurso foi admitido, fixando-lhe os devidos efeito e modo de subida.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi proferido despacho liminar e colhidos os Vistos.
Teve lugar a conferência.
Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artº 210º do Cód. Proc. Penal.
O objecto do recurso, fixado pelo Recorrente nas respectivas conclusões, cinge-se à questão de saber se, em face da redacção dada sobretudo ao artº 7º da Lei nº 38-A/23 de 02.08, o condenado por crime de roubo previsto e punido nos termos do artº 210º, nº 1 do Cód. Penal beneficia, ou não, do ali previsto perdão de pena.
Fundamentação
A amnistia e perdão são medidas penais que concedem a graça inerente, ou seja, amnistiando certos crimes e/ou perdoando certas penas, de determinada natureza e dentro de determinados limites, como ali se imponha.
Enquanto reminiscências históricas e manifestação de soberana vontade de quem assim podia dispor dos poderes do Estado, chega aos nossos dias sobretudo com um âmbito que, ainda por conceder uma vantagem decorrente de uma circunstância não especificamente judiciária, se prefigura mais como a oportunidade de esbater os efeitos da generalidade e abstracção das normas legais.
Muitas vezes associadas a uma retórica de clemência, mas sem que, no entanto, percam o seu efeito eminentemente judiciário.
A sua específica natureza tem de condicionar necessariamente a forma como os juristas lidam com eles. E ainda que se não deva confundir uma mal conseguida técnica legislativa com aquela natureza, o facto é que as chamadas Leis de Amnistia [para abreviar] têm de ser interpretadas e aplicadas com espírito aberto porque o seu conteúdo essencialmente político [por vezes, até moral] impõe a ponderação com recurso também a critérios não estritamente jurídicos.
É este o mínimo que se pode dizer da Lei nº 38-A/23 de 02.08.
A questão aqui concretamente em debate prende-se com a interpretação que deve harmonizar-se entre o artº 7º, nº 1, al. b) e o nº 1, al. g) da referida norma.
É este o teor do artº 7º citado[1]:
Artigo 7º - Exceções
1 — Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
a) No âmbito dos crimes contra as pessoas, os condenados por:
i) Crimes de homicídio e infanticídio, previstos nos artigos 131.º a 133.º e 136.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 400/82, de 23 de setembro;
ii) Crimes de violência doméstica e de maus -tratos, previstos nos artigos 152.º e 152.º -A do Código Penal;
iii) Crimes de ofensa à integridade física grave, de mutilação genital feminina, de tráfico de órgãos humanos e de ofensa à integridade física qualificada, previstos nos artigos 144.º, 144.º -A, 144.º -B e na alínea c) do n.º 1 do artigo 145.º do Código Penal;
iv) Crimes de coação, perseguição, casamento forçado, sequestro, escravidão, tráfico de pessoas, rapto e tomada de reféns, previstos nos artigos 154.º a 154.º -B e 158.º a 162.º do Código Penal;
v) Crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.º a 176.º -B do Código Penal;
b) No âmbito dos crimes contra o património, os condenados:
i) Por crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos artigos 205.º, 217.º e 218.º do Código Penal, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal, e por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal;
ii) Por crime de extorsão, previsto no artigo 223.º do Código Penal
c) No âmbito dos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, os condenados por crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência e de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, incluindo na forma grave, previstos nos artigos 240.º, 243.º e 244.º do Código Penal;
d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:
i) Crimes de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, de incêndio florestal, danos contra a natureza e de poluição, previstos nos artigos 272.º, 274.º, 278.º e 279.º do Código Penal;
ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal;
iii) Crime de associação criminosa, previsto no artigo 299.º do Código Penal;
e) No âmbito dos crimes contra o Estado, os condenados por:
i) Crimes contra a soberania nacional e contra a realização do Estado de direito, previstos nas secções I e II do capítulo I do título V do livro II do Código Penal, incluindo o crime de tráfico de influência, previsto no artigo 335.º do Código Penal;
ii) Crimes de evasão e de motim de presos, previstos nos artigos 352.º e 354.º do Código Penal;
iii) Crime de branqueamento, previsto no artigo 368.º -A do Código Penal;
iv) Crimes de corrupção, previstos nos artigos 372.º a 374.º do Código Penal;
v) Crimes de peculato e de participação económica em negócio, previstos nos artigos 375.º e 377.º do Código Penal;
f) No âmbito dos crimes previstos em legislação avulsa, os condenados por:
i) Crimes de terrorismo, previstos na lei de combate ao terrorismo, aprovada pela Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto;
ii) Crimes previstos nos artigos 7.º, 8.º e 9.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, que cria o novo regime penal de corrupção no comércio internacional e no setor privado, dando cumprimento à Decisão Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003;
iii) Crimes previstos nos artigos 8.º, 9.º, 10.º, 10.º -A, 11.º e 12.º da Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto, que estabelece um novo regime de responsabilidade penal por comportamentos suscetíveis de afetar a verdade, a lealdade e a correção da competição e do seu resultado na atividade desportiva;
iv) Crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado e de fraude na obtenção de crédito, previstos nos artigos 36.º, 37.º e 38.º do Decreto -Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, que altera o regime em vigor em matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública;
v) Crimes previstos nos artigos 36.º e 37.º do Código de Justiça Militar, aprovado em anexo à Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro;
vi) Crime de tráfico e mediação de armas, previsto no artigo 87.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, que aprova o regime jurídico das armas e suas munições;
vii) Crimes previstos na Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime;
viii) Crime de auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo 183.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional;
ix) Crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;
x) Crimes previstos nos artigos 27.º a 34.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança;
g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º -A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto -Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro;
h) Os condenados por crimes praticados enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas, designadamente aqueles previstos na Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que determina os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções;
i) Os condenados em pena relativamente indeterminada;
j) Os reincidentes;
k) Os membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários relativamente à prática, no exercício das suas funções, de infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;
l) Os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.
2 — As medidas previstas na presente lei não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções.
3 — A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.
O despacho recorrido, acentuando a tónica na al. g) do nº 1 transcrito [que remete para o conceito resultante do artº 67º-A do Cód. Proc. Penal], diz que o crime de roubo previsto e punido pelo nº 1 do artº 210º do Cód. Penal está excluído do âmbito gracioso do perdão de pena resultante do artº 3º, nº 1 da Lei de Amnistia por via do artº 7º, nº 1, bi) IIª pte conjugado com a sua al. g).
O Recorrente [no que é acompanhado pelo arguido], por seu lado, acentuando a tónica na al. b), IIª pte. desse mesmo nº 1º, pelo contrário, considera excluído do âmbito gracioso daquele perdão apenas o roubo previsto e punido pelo nº 2 do referido normativo, o que equivale a dizer que este arguido em concreto, condenado por um crime de roubo do nº 1 do artº 210 do Cód. Penal, está em condições de beneficiar do mesmo.
A questão não tem tido entendimento uniforme na primeira instância.
Se consultarmos o site da Assembleia da República e acedermos à cronologia e documentos disponíveis e respeitantes à aprovação da Lei de Amnistia em causa, que é o mais perto que conseguimos chegar do chamado pensamento do legislador, percebemos que as propostas dos Partidos [Projectos e Propostas de Alteração] foram divergindo quanto aos segmentos que previam para esta norma de exclusão.
A Proposta inicial [do Governo/Conselho de Ministros], quanto a este artº 7º, al. b), previa a exclusão do perdão de pena apenas quanto ao «roubo em residências ou na via pública cometido com arma de fogo ou arma branca, previsto no artigo 210º do Código Penal».
A Proposta de Alteração do PSD [Grupo Parlamentar], fazendo desaparecer o referido segmento, consignava uma alínea clara e específica a excluir da aplicação do perdão «os condenados por crimes de roubo, previsto no 210º do Código Penal» [alínea ii)].
Na sequência dessa proposta de alteração, o PS [Grupo Parlamentar], veio substituir a redação do Projecto inicial [do Governo/Conselho de Ministros], propondo que ficasse a constar a exclusão da aplicação do perdão de pena aos condenados «(…) por roubo, previsto no nº 2 do artigo 210º do Código Penal».
A versão final da Lei ficou coincidente com esta última.
Já quanto à alínea g) desse mesmo artº 7º, a Proposta do Governo previa que ficassem excluídos do perdão «g) Os condenados por crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, incluindo as crianças e os jovens, as mulheres grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes».
A Proposta de alteração do PSD [Grupo Parlamentar] tinha o mesmo teor.
Por seu lado, a Proposta de alteração do PS [Grupo Parlamentar] previa que ficassem excluídos da aplicação «g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código Processo Penal».
E a versão final ficou com o seguinte teor:
«g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º -A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro», portanto, quase integralmente coincidente com esta Proposta de alteração do PS [Grupo Parlamentar].
Da Exposição de Motivos[2] com que o Conselho de Ministros submete a Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª à apreciação do Parlamento, fez-se ainda constar o seguinte:
(…)
Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.
Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação.
(…)
Ora, se é verdade, como refere o Exmo. juiz a quo, que de acordo com as regras de interpretação normativa se deveria considerar que, tal como resulta da letra da referida alínea g), a especial vulnerabilidade da vítima se mede pelos critérios do disposto no artº 67º-A do Cód. Proc. Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei nº 78/87 de 17.02, o que, conjugado o nº 3 desse preceito com as alíneas j) e l) do artº 1º do Cód. Proc. Penal, resultaria sempre na exclusão do crime de roubo do artº 210º, nº 1 da aplicação do perdão de pena, não é menos verdade que o legislador quis, intencionalmente, retirar este artº 210º, nº 1 do rol das referidas exclusões.
Tentando clarificar [muito embora esta se afigure como tarefa difícil em face das confusões lançadas pela própria Lei de Amnistia].
Se olharmos às Propostas e Alterações que supra ficam citadas, percebemos que não colheu aquela que, sendo mais esclarecida e ampla, directa e expressamente excluía da aplicação do perdão de pena os condenados por crimes de roubo, fosse qual fosse o número do preceito em referência.
Essa Proposta de Alteração [do Grupo Parlamentar do PSD] foi afastada.
Ao contrário, da Lei de Amnistia ficou a constar a exclusão directa e expressa dos condenados por crimes de roubo do nº 2 do artº 210º do Cód. Penal.
Por outro lado, e consonância embora, pensamos que decorre claramente das Propostas acima expostas que a intenção inicial do legislador nunca foi a de excluir do perdão de penas a condenação por crimes de roubos menos graves.
Tanto assim é, que inicialmente se propunha que fossem excluídos os condenados por roubo em residências ou na via pública cometido com arma de fogo ou arma branca, previsto no artigo 210º do Código Penal [Proposta de Lei do Governo/Conselho de Ministros].
Ora, caso se pretendesse excluir todo o âmbito do artº 210º, nº 1 do Cód. Penal, não fazia sentido estar a especificar-se que eram os roubos em residências e na via pública com recurso ao uso de armas que deviam compor aquele conteúdo normativo.
Isto só é coerente quando interpretado no sentido de que a intenção do legislador era excluir da aplicação do perdão apenas os roubos mais graves – precisamente os que têm aquelas características – e com maior impacto negativo na comunidade – o que reafirma o conteúdo iminentemente político-cultural [e até, neste caso, moral] da medida que se propunha – tal como acabou por acontecer ao ser retirado todo aquele outro conteúdo, ao mesmo tempo que se rejeitou a Proposta [do PSD] que impunha a exclusão a todo e qualquer crime de roubo, fosse ele do nº 1 ou do nº 2.
E também faz sentido quando visto na dimensão da Exposição de Motivos que supra se citou – maxime, quando se diz «(…) Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação (…)»
De tudo isto resulta que o legislador pretendeu claramente incluir nas exclusões  do artº 7º apenas os crimes de roubo previstos no nº 2 do artº 210º do Cód. Penal, portanto, os «muito graves», precisamente aqueles que a sua alínea b) [do artº 210º, nº 2] remete para a valoração das circunstâncias referidas pelos números 1 e 2 do artº 204º do mesmo Cód. Penal, ou seja, as mesmas circunstâncias que qualificam o crime de furto, entre as quais se contam a introdução ilegítima em habitação (al. f) do nº 1 e al. e) do nº 2) e a utilização de arma (al. f) do nº 2).
Muito embora, repete-se, a técnica legislativa deixe a dever à perfeição, mesmo em quase prejuízo da presunção constante do artº 9º do Cód. Civil, o facto é que esta Lei de Amnistia tem de ser vista à luz do momento histórico que lhe subjazeu e de harmonia com o pendor mais marcadamente político do que jurídico que lhe foi dado.
Esta interpretação que fazemos também está em conformidade com o que se pretendeu com a alínea g) acima citada.
Ou seja, o que se previu na alínea g) foi uma determinada realidade, e o que resultou [se dela se fizer uma leitura apenas à luz das regras da interpretação jurídica] é outra realidade completamente distinta.
Vejamos.
A vontade que transparece do Projecto do Governo e que constava também da Proposta do PSD de excluir da aplicação do perdão de pena os condenados por crimes cometidos contra crianças, os jovens, as mulheres grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas dom deficiência e imigrantes, acaba por resultar numa alínea confusa, que mistura categorias com conceitos, em total desacerto jurídico:
g) os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto -Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro.
Ou seja, se a preocupação do legislador era fazer coincidir o conteúdo desta alínea com o resultante do artº 67º-A do Cód. Proc. Penal sem mais, não faz sentido que tenha ainda autonomizado no objecto «as crianças e os jovens», uma vez que basta passar os olhos pelo citado preceito para perceber que as crianças e jovens já constam ali mencionadas, quando por referência a crimes graves de que sejam vítimas.
Assim, não se tendo o legislador da Amnistia limitado, na referida alínea g), a remeter para a al. b) do nº 1 desse artº 67º-A e nem para a referência específica do seu nº 3, tal só pode significar que não teve essas referências como limites do acto legislativo que estava a elaborar, ou seja, como vinculativas do conteúdo que pretendia dar ao normativo em analise.
E a ser assim, como nos parece de meridiano acerto, falhando esta vinculação, também não se pode retirar da referida alínea g) que o legislador da Lei de Amnistia quis abranger ali o exacto conteúdo do artº 67º-A citado e, por essa via, abranger na exclusão do perdão os condenados por crime de roubo previsto e punido pelo artº 210º, nº 1 do Cód. Penal [de acordo com a interpretação feita no despacho recorrido].
O que, por oposição, volta a vincar o seu propósito de abranger nesse perdão de pena os condenados pelo referido crime previsto no nº 1 do referido artº 210º.
Resumindo, a interpretação mais consentânea com a natureza da medida de clemência prevista na Lei de Amnistia nº 38-A/23 de 02.08 e que resulta mais harmonizada com o pensamento do legislador reflectido na documentação do processo legislativo que lhe esteve na base, e no texto da mesma Lei, é aquela segundo a qual o condenado por crime de roubo previsto e punido pelo artº 210º, nº 1 do Cód. Penal não está excluído do perdão de pena previsto no artº 3º, nº 1 da referida Lei.
Competindo ao legislador a função de legislar, e não sendo caso que caiba no âmbito do nº 3 do artº 10º do Cód. Civil, partindo-se ainda da presunção ínsita no nº 3 do artº 9º do mesmo diploma, na interpretação da lei o aplicador está vinculado ao princípio afirmado no nº 2 do referido artº 9º, razão pela qual, em face do exposto supra, se nos afigura que esta é a única interpretação consentida para a conjugação dos normativos supra citados da Lei de Amnistia.
Razão pela qual, e embora com base em fundamentos não absolutamente coincidentes, deve ser julgado como provido o presente recurso.
Pelo exposto, impõe-se decidir pela aplicação do perdão previsto no artº 3º, nº 1 da Lei nº 38-A/23 de 02.08 ao pressente caso, declarando perdoado um ano de prisão da pena [única] em que foi condenado o arguido, nos termos do disposto ainda pelo nº 4 do referido preceito.
Finalmente, e porque estamos perante um arguido que se encontra em cumprimento sucessivo de penas, conforme informação junta pelo TEP que realizou o cômputo respectivo das penas em sucessão, a aplicação do perdão deve ser imediatamente comunicada ao TEP para eventual ligamento do arguido a outro dos processos em que haja sido condenado.

Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público em benefício do arguido C.A.S.R. e, por aplicação do artº 3º, nº 1 da Lei nº 38-A/23 de 02.08, decidindo pela revogação do despacho recorrido, nos termos da fundamentação antecedente, declarar perdoado um ano de prisão da pena que foi aplicada ao arguido nestes autos (artº 3º, nº 4 da citada Lei), sob a condição resolutiva imposta pelo artº 8º da mesma Lei.
Mais se decidindo, atento a que o arguido está em cumprimento sucessivo de penas, comunicar imediatamente ao TEP esta decisão, ainda antes do trânsito da decisão, devendo oportunamente ser feita a comunicação também com a referida nota.
Sem tributação.

Lisboa, 06 de Dezembro de 2023
Hermengarda do Valle-Frias
Rosa Vasconcelos
Filipa Valentim
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[1] Para se perceber integralmente do que se fala, deixa-se também a transcrição integral da norma, sendo os sublinhados nossos.
[2] Ainda consultável no site do Parlamento.