DESOBEDIÊNCIA
COMINAÇÃO
Sumário

Só se preenche a previsão do artigo 348, n. 1 alínea b) do Código de Processo Penal de 1998, se a cominação for da prática do crime de desobediência.

Texto Integral

Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação do Porto:

O Ministério Público, não se conformando com a sentença do Ex.mo juiz que, julgando improcedente a acusação, absolveu a arguida B.......... da prática do crime de desobediência, veio recorrer finalizando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões que se transcrevem:
- São elementos constitutivos do crime de desobediência, p. e p. pelo 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal, que o ordem seja formal e substancialmente legal ou legítima e que dimane de autoridade ou funcionário competente.
- A regularidade da sua transmissão ao destinatário, conhecendo este essa ordem.
- Devendo a autoridade ou o funcionário fazer a correspondente cominação, bastando, neste particular, a advertência de que a não obediência sujeita o destinatário a procedimento criminal.
- No presente caso foram dados como provados todos os elementos do tipo do crime referido.
- A douta sentença recorrida violou pois o disposto no art.º 348º n.º 1, al. b), do Código Penal.
- Por tal, entendemos que a mesma deve ser revogada e substituída por outra em que a arguida seja condenada pela prática de um crime p. e p. pelo art.º 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal.


Admitido o recurso não respondeu a recorrida.

Já neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto foi de parecer que o recurso não merece provimento.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPPenal e após os vistos realizou-se audiência, não tendo sido suscitadas, nas respectivas alegações, novas questões.

Factos provados:
I) No âmbito da carta precatória nº 00..../2000, que correu termos no 2º Juízo deste Tribunal Judicial da Comarca da Maia, extraída da Execução nº 0000.../2000, do 3º Juízo Cível do Porto, 2.ª Secção, a arguida, ali executada, foi constituída fiel depositária dos bens penhorados, a 23 de Abril de 2001.
II) No acto da penhora, a arguida foi advertida das obrigações que sobre ela impendiam enquanto depositária, nomeadamente que os bens ficavam à sua guarda, com a obrigação de apresentá-los quando lhe fosse exigido.
III) Já no âmbito de outra carta precatória, com o nº 01.../2001, que correu termos no 5º Juízo deste Tribunal Judicial da Comarca da Maia, extraída da Execução nº 0001/2000, do 3º Juízo Cível do Porto, 2.ª Secção, a arguida foi notificada, pessoalmente, a 5 de Dezembro de 2002, para no prazo de dez dias esclarecer o local onde se encontram os bens penhorados, com a advertência de que não o fazendo poderá incorrer em responsabilidade criminal por violação das suas obrigações de depositária.
IV) A arguida assinou a notificação, conforme certidão de fls. 9.
V) Decorrido o referido prazo, no processo, a arguida não informou o Tribunal conforme lhe havia sido determinado, nem posteriormente, nem entregou os bens.
VI) No mesmo processo, o encarregado de venda informou, por requerimento de 4 de Outubro de 2002, que se havia deslocado à residência do executado, e que a mulher, ora arguida, informou que desconhecia o local onde poderiam estar os bens penhorados, pelo facto de o executado ter ficado com eles.
VII) A arguida sabia que a penhora dos aludidos bens havia sido decretada no âmbito da referida execução, que estava obrigada a informar o Tribunal do local onde se encontravam os mesmos, bem como a proceder à sua entrega, que desobedecia à ordem que lhe havia sido dada e que provinha de autoridade judicial.
VIII) Sabia igualmente que o seu comportamento não era permitido.
IX) A arguida está divorciada do executado naqueles autos.
X) Reside agora com os pais, na casa deles, e com um filho, com quinze anos, que estuda.
XI) No exercício da sua profissão, de operadora de caixa, a arguida aufere mensalmente quantia líquida aproximada de € 450.
XII) Não consta do registo da arguida qualquer condenação.

*
Factos não provados.
Todos os factos descritos no despacho de acusação, com relevância para a decisão da causa, ficaram provados.
*

Motivação.
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade apurada considerando a confissão (embora com esclarecimento) que a arguida efectuou em audiência de julgamento, em conjugação com o que resultou da análise exaustiva dos documentos juntos aos autos, cuja veracidade por nenhum meio foi colocada em dúvida.
O esclarecimento da arguida, no sentido de que os bens haviam sido levados sem o consentimento dela pelo antigo marido, não ficou a constar na matéria apurada, desde logo por se considerar irrelevante para a decisão da causa, atento o entendimento jurídico adoptado.
As declarações plausíveis da arguida, não infirmadas por qualquer elemento relevante, determinaram as respostas dadas sobre a respectiva situação pessoal e económica, recorrendo-se ainda ao c. r. c. incluso nos autos para a demonstração do último facto referido.

O Direito.
A questão a decidir é apenas uma: saber se a apurada conduta da arguida, preenche ou não o tipo de ilícito de desobediência do art.º 348º n.º1 al. b) do Código Penal.
Dispõe o art. 348º do Código Penal:
1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2. A pena é de prisão até dois anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.
A anterior redacção, art.º 388º do Código Penal 1982, era a seguinte:
1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandato legítimo que tenham sido regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente será punido com prisão até 1 ano e multa até 30 dias.
2. A mesma pena será aplicada se uma outra disposição legal cominar a pena de desobediência simples.
3. A pena será de a de prisão até dois anos e multa até 100 dias se uma outra disposição legal cominar a pena de desobediência qualificada.

Cabe liminarmente registar a perplexidade do interprete ao ver plasmado, num código de direito penal, um tipo legal de crime que, no que respeita à al. b) é um autêntico não tipo legal, tanta a atipicidade que comporta, em flagrante desrespeito e afronta ao princípio da legalidade criminal. Sintomaticamente Figueiredo Dias [Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 408] expressou as suas dúvidas quanto a este artigo, Sousa e Brito [Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 409], defendeu a restrição do âmbito de aplicação do artigo pois é excessivo proteger desta forma toda a ordem e Maia Gonçalves refere que se trata de um artigo controverso [Código Penal Anotado, comentário ao art.º 348º].
Mais do que um tipo aberto, norma penal em branco, cuja densificação cabe em último caso ao julgador, o art.º 348º n.º 1 al. b) do Código Penal contém como elemento típico uma possível decisão discricionária, a ser tomada em cada caso concreto por um agente da administração.
Ora isto é um ataque ao que de mais sagrado existe no direito penal, o princípio da legalidade - na formulação latina que lhe foi dada por Feuerbach: nullum crimen, nulla poena sine lege – e a um dos seus conhecidos corolários: Nullum crimen, nulla poena sine lege scripta.
Só a lei formal ou a lei em sentido jurídico-constitucional estrito pode fundamentar a incriminação e a punição. Consequentemente são inadmissíveis outras fontes de incriminação e punição [Castanheira Neves, O princípio da legalidade criminal, Digesta, Vol. I pág.355].
Não podendo o interprete fugir à letra da lei, já é tarefa dos tribunais, uma sua interpretação conforme a constituição o que necessariamente impõe, no caso do art.º 348º n.º 1 al. b) do Código Penal, uma sua interpretação exigentemente restritiva, não incriminando tudo o que possa ser considerado não obediência. Desde logo fazendo valer o princípio bagatelar ou da insignificância ancorado no carácter fragmentário e de ultima ratio da intervenção penal, negando dignidade criminal a algumas condutas taxadas de desobediência que nem sequer foram consideradas merecedoras de tutela por parte de uma ordem sancionatória não penal [Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 354].
Essa restrição do âmbito de aplicação do artigo, por ser excessivo proteger toda e qualquer a ordem, esteve na mente da Comissão da Reforma de 1995 [Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 409]. Esse desiderato não pode o interprete esquecer no desenho do âmbito de protecção da norma incriminadora. A não ser assim, e mesmo assim quantas vezes!, depende do agente administrativo, a elevação do dever infringido à dignidade penal. A mesma conduta, em idênticas circunstâncias, constituirá ou não acto criminalmente punível consoante o critério, a vontade, o estado de espírito, a rigidez ou a flexibilidade temperamental, ou até a lembrança do concreto ditador da ordem ou do mandado [Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 351].
Por outro lado – conforme resulta hoje claramente do confronto da pré-vigente e da actual redacção do crime de desobediência, artºs 388º do Código Penal de 1982 e 348º do Código Penal de 1995 - a desobediência atípica ou inominada – art.º 348º n.º 1 al. b) do Código Penal – exige e pressupõe que a autoridade ou o funcionário fizeram a correspondente cominação. Ora a correspondente cominação funcional, no mínimo, atendendo ao que deixamos dito, só pode ser: faz isto ou não faças aquilo, sob pena de incorreres em crime de desobediência. O legislador na reforma [Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 408] teve o cuidado de acrescentar a necessidade de ser feita a correspondente cominação, que só pode ser, no mínimo, a de crime de desobediência.
Assim, merece a nossa concordância o entendimento da decisão recorrida ao decidir que não basta a cominação de responsabilidade criminal. Como se decidiu no Acórdão de 11.2.2004 deste Tribunal [Acórdão TRP de 11.2.20004, relatado pelo Desembargador Dias Cabral, sumariado no Boletim dos Sumários de Acórdãos, n.º 21º pág. 31], a cominação exigida pelo art.º 348º do Código Penal de 1995, tem de ser a da prática do crime de desobediência. Ora, no caso em apreço, provou-se que a arguida foi notificada com a advertência de que, não respondendo, poderia incorrer em responsabilidade criminal por violação das suas obrigações de depositária. Há, assim, falta de cominação expressa à arguida da desobediência, em caso de inobservância da ordem, a determinar a sua absolvição, como se entendeu na decisão recorrida.
O mandado dirigido à arguida é demasiado ambíguo para servir de arrimo à punição da desobediência. Não se faz referência, nem ao crime que se trata, nem à moldura penal, nem sequer ao artigo do Código Penal que a conduta pode preencher e, por último, a ameaça da punição penal é apresentada como mera possibilidade.
Precisamente ao contrário das especiais exigências que aqui se colocam, quanto à al. b), do art. 348º-1, face ao princípio da legalidade, e por isso é que é necessário que a autoridade ou funcionário que dirige a ordem, especificamente, comine pelo menos a desobediência, o crime de desobediência.
É que o “procedimento criminal” a que se refere o art. 854º, nº2, do CPC, tanto pode ser respeitante ao abuso de confiança, como ao furto ou ao descaminho, caso a conduta da arguida preenchesse a respectiva previsão típica. Como também à desobediência, diga-se em abono da verdade. Mas para abranger a desobediência, na situação nele directamente contemplada, que é a falta de apresentação dos bens, nesse caso importa que a cominação do crime seja feita devidamente, como acima se referiu [Lopes da Mota, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, Vol. II, p. 446].
Depois, o caso dos autos, tem uma outra particularidade que também inviabiliza a pretensão do recorrente. Não releva quanto a nós, ao contrário do que foi enfatizado na decisão recorrida, que a depositária não respondeu à determinação do Tribunal no sentido de explicar a localização dos bens, quando o que pode ser cominado com o crime de desobediência, é a sua apresentação, art.º 854º do Código de Processo Civil. Neste particular não se vislumbram os perigos convocados na decisão recorrida: a informação sobre a localização dos bens é um menos relativamente à sua apresentação, sendo certo que o dever legal imposto é o de apresentar os bens. Ora se o tribunal apenas quer saber onde estão, a obrigação da depositária informar, cabendo dentro do mais amplo dever de apresentação dos bens, é um dever legal.
Como consta dos factos assentes, o encarregado de venda informou no processo, por requerimento de 4 de Outubro de 2002, que se havia deslocado à residência do executado, e que a mulher, ora arguida, informou que desconhecia o local onde poderiam estar os bens penhorados, pelo facto de o executado ter ficado com eles.
Posteriormente a esta data, a arguida foi notificada, pessoalmente, a 5 de Dezembro de 2002, para no prazo de dez dias esclarecer o local onde se encontram os bens penhorados, com a advertência de que não o fazendo poderá incorrer em responsabilidade criminal por violação das suas obrigações de depositária.
A arguida assinou a notificação, conforme certidão de fls. 9.
Decorrido o referido prazo, no processo, a arguida não informou o Tribunal conforme lhe havia sido determinado, nem posteriormente, nem entregou os bens.
Perante esta factualidade estranha-se o rumo dos acontecimentos. Então, se já se sabia que a arguida desconhecia o local onde estavam os bens, pelo facto de o executado, seu ex-marido, ter ficado com eles, porque é que se pergunta?
Ninguém pensou que a arguida possivelmente não respondeu porque já tinha respondido, porque o tribunal afinal já sabia que ela não sabia? Quando foi pessoalmente notificada não terá a arguida redito que não sabia do paradeiro dos bens? Alguém se preocupou em apurar se a arguida teve ou não esse comportamento; se o funcionário ouviu ou não essa explicação, porque razão dela não tomou devida nota na certidão de notificação...?
O presente caso é um flagrante exemplo de autismo processual. Parece exagerado? Vejamos o que diz o legislador no Relatório do Decreto Lei n.º 329-A/95 que aprovou alterações ao Código de Processo Civil:
«Ter-se-á de perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação de direito substantivo e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo».
A notificação para a arguida informar nos autos o que aí já se sabia, configura uma preciosa inutilidade, cai no âmbito do art.º 137º do Código de Processo Civil, que refere não ser lícito realizar no processo actos inúteis. Ora o objecto da acção no crime de desobediência é a ordem ou mandato legítimo da autoridade ou funcionário competente. A ordem contém uma norma de conduta: traduz-se na imposição da obrigação de facere ou nom facere, praticar ou abster-se de praticar determinado facto.
Daí que se exija, para que se verifique o crime de desobediência, a falta à obediência devida a uma ordem, devendo a ordem ou mandado obedecer aos seguintes requisitos:
- Ser legítima;
- Ter sido regularmente comunicada;
- Emane da autoridade competente.
A legitimidade da ordem equivale à legalidade substancial e formal. É necessário que se harmonize pelo seu objecto com uma disposição legal, e obedeça, por outro lado, às formalidades previstas na lei para a sua validade [Código Penal, notas de trabalho, Porto Editora, 1983, pág. 388]. Assim, sendo a notificação acto inútil, estamos perante um acto apenas formalmente, não substancialmente, legal e portanto ilegítimo. Donde também este elemento do tipo objectivo – mandado legítimo - se não verifica.

Contrariando neste caso o poeta diremos que sabemos qual devia ter sido o caminho, quer logo na acção executiva, quer no inquérito. Mas como isso extravasa o tema do recurso e prezamos competências alheias, apenas diremos que o desenlace não pode ser a pretendida condenação da arguida, quer pelas razões referidas na decisão recorrida, quer pelas agora aduzidas.

Decisão:
Na improcedência do recurso mantém-se a decisão recorrida.
Sem custas.

Porto, 3 de Novembro de 2004.
António Gama Ferreira Ramos
Luís Eduardo Branco de Almeida Gominho
José do Nascimento Adriano
Arlindo Manuel Teixeira Pinto