I- Surgindo para o locatário a obrigação de restituição do locado por oposição lícita à renovação do contrato de arrendamento, o atraso relativamente ao dever de entrega que configure uma situação de mora por causa que não lhe seja imputável a título de culpa (mora consentida por causa justificativa legítima: «por qualquer causa») faz aplicar o n.º 1 do art. 1045º do CCiv. e a correspondente indemnização por acto lícito; ao invés, a “mora” pressuposta no n.º 2 do art. 1045º implica omissão de entrega voluntária e culposa, conduzindo a uma indemnização por acto ilícito (em conjugação com os arts. 804º, 2, e 805º, 2, a), do CCiv.).
II- O adiamento da restituição da coisa locada prevista no n.º 1 do art. 1045º do CCiv. afigura-se como acto lícito em referência a essa mora consentida, numa espécie de prolongamento da relação locatícia por causa sem culpa do locatário (uma vez autorizado, tolerado ou admitido pelo ordenamento jurídico, por ocorrência de litígio judicial relevante ou decisão de tribunal ou pelas partes), que funda o pagamento das rendas vencidas até à restituição em singelo.
III- O critério legal da indemnização («pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado»), sendo a renda resultante da auto-regulação das partes, constitui o critério justo de aferição do lucro cessante derivado da indisponibilidade da coisa locada.
Processo n.º 7895/20.0T8LSB.L1.S1
Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção
Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I) RELATÓRIO
1. AA e BB intentaram acção declarativa sob a forma de processo comum contra CC e DD, formulando os seguintes pedidos:
“1) Ser a oposição à renovação considerada válida e eficaz:
1.1) Devendo ser declarada a cessação do contrato de arrendamento celebrado entre as Partes por oposição à renovação por iniciativa dos AA., com efeitos a 31 de Janeiro de 2019;
1.2) Mais se requer a condenação dos RR. a entregar aos AA. o referido imóvel livre e desocupado de pessoas e bens no prazo de 30 (trinta) dias após o trânsito em julgado da sentença;
1.3) Devem ainda os RR. ser condenados a pagar aos AA., desde o termo do contrato, a 31 de Janeiro de 2019, até ao momento da entrega do locado, uma indemnização correspondente ao dobro do valor das rendas devidas, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 1045.º do Código Civil, sendo que desde Fevereiro de 2019 a Março de 2020, tal montante ascende a € 98.000,00 (noventa e oito mil euros);
2) Se assim não se entender, subsidiariamente:
2.1) Deve ser declarada a resolução judicial do contrato de arrendamento para habitação com prazo certo, celebrado entre os AA. e os RR. a 30 de Janeiro de 2017 e, consequentemente, serem os RR. condenados a proceder à desocupação do locado, devendo o mesmo ser entregue aos AA., livre e devoluto de pessoas e bens, no prazo de 30 (trinta) dias após o trânsito em julgado da sentença;
2.2) Serem os RR. condenados a pagar aos AA. a quantia de € 49.000,00 (quarenta e nove mil euros), a título de rendas vencidas e não pagas desde Fevereiro de 2019 a Março de 2020, quantia essa acrescida dos respectivos juros moratórios, à taxa legal de 4%, devidos desde a data de vencimento de cada uma destas rendas até efectivo e integral pagamento;
2.3) Condenar os RR. a pagar aos AA. as rendas vencidas e não pagas após a propositura da presente acção até efectiva entrega do locado, acrescidas de juros moratórios, à taxa legal de 4%, contados desde a data de vencimento de cada uma delas, até efectivo e integral pagamento;
2.4) Serem os RR. condenados ao pagamento de uma indemnização correspondente ao valor da renda em dobro, i.e., € 7.000,00 (sete mil euros), por cada mês de atraso na entrega do locado, nos termos do n.º 2 do artigo 1045.º do Código Civil, caso não procedam à entrega do locado livre de pessoas e bens no prazo de 30 (trinta) dias após o trânsito em julgado da sentença;
2.5) Serem os RR. condenados a pagar aos AA. os juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação, até integral e efectivo pagamento”.
Alegaram para o efeito que entre os Autores e os Réus foi celebrado um contrato de arrendamento para habitação com prazo certo de 2 anos, com início a 1 de Fevereiro de 2017, renovável, com a renda mensal de € 3.500,00, tendo os Autores comunicado aos Réus, com a antecedência devida, que se opunham à renovação, não tendo os Réus desocupado o locado; os Réus estão em mora relativamente às rendas vencidas desde Fevereiro de 2019, uma vez que apenas procedem ao pagamento de metade do respectivo valor, montantes esses que os Autores vão imputando aos valores já em dívida.
2. Os Réus apresentaram Contestação, defendendo a cessação do contrato com efeitos reportados a 31/01/2020, por força do regime introduzido pela Lei nº 13/2019; relativamente ao pedido subsidiário, invocaram a caducidade do direito a pedir a resolução, a excepção de não cumprimento (direito à redução da renda) e o abuso de direito.
3. Foi realizada audiência prévia e proferido despacho saneador, com fixação do objecto do litígio e selecção dos temas de prova, para além de despacho de fixação do valor da causa (€ 203.000,00).
4. Depois da audiência final de discussão e julgamento, o Juiz ... do Juízo Central Cível de ... proferiu sentença (28/2/2023), delimitando as seguintes questões – a saber,
“se foi válida e eficaz a declaração de oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado entre as partes e a data em que produziu efeito”;
“saber se é devida uma indemnização pela mora na entrega do locado e em que medida”;
subsidiariamente, “se se deve considerar resolvido o contrato por falta de pagamento de rendas, com as legais consequências” –,
decretando ficar prejudicado o conhecimento dos pedidos subsidiários e julgando a acção parcialmente procedente neste sentido: “declaro válida e eficaz a oposição à renovação do contrato de arrendamento para habitação celebrado entre as partes, com efeitos a 31 de janeiro de 2019, absolvendo os Réus do mais peticionado.”
5. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão (20/6/2023) sobre as seguintes questões decidendas:
“1) existência de nulidade da sentença por os fundamentos estarem em contradição com a decisão, nos termos da primeira parte da al. c) do nº 1 do art. 615º do Cód. Proc. Civil;
2) impugnação e pretendida alteração da decisão sobre matéria de facto;
3) apreciação do mérito da sentença, quanto a saber:
a) se os Autores/ora apelantes têm direito a receber a indemnização pelo atraso na entrega do locado calculada nos termos do nº 2 do art. 1045º do Cód. Civil (em dobro) ou se apenas lhes assiste o direito de receber a indemnização por aquele atraso em singelo, de harmonia com o disposto no nº 1 do mesmo artigo;
b) qual o valor pecuniário mensal a considerar como renda para efeitos da indemnização a atribuir nos termos da al. a). Na verdade, ao contrário do que entendem os apelados (cfr. art. 59º das motivações e al. y) das conclusões das contra-alegações), resulta das alegações de recurso, de forma cristalina, que os apelantes não só sustentam a existência de mora na entrega do locado para efeitos de aplicação do nº 2 do citado art. 1045º do Cód. Civil (em vez do nº 1, como entendeu o tribunal a quo), como manifestam, de forma peremptória, discordância do entendimento do tribunal a quo de considerar, para efeitos de cômputo da indemnização devida (seja em singelo, seja em dobro), uma renda no valor de metade do montante estipulado no contrato de arrendamento celebrado entre as partes.”
Nesse acórdão indeferiu-se a nulidade arguida, rejeitou-se a impugnação da matéria de facto provada (factos provados 17. a 21.), modificaram-se os factos provados 7., 8., 9. e 14. e aditaram-se os factos provados 24. a 30., nos termos do art. 662º, 1, do CPC, e julgou-se parcialmente procedente a apelação, decidindo:
“1º revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu “os Réus do mais peticionado” e na parte em que fixou a responsabilidade das custas da acção na proporção de metade pelos Autores e pelos Réus;
2º substituir a parte decisória da sentença recorrida revogada nos termos do nº 1 pelo seguinte dispositivo:
“Condena-se os Réus no pagamento aos Autores da quantia total de € 24.500,00 (vinte e quatro mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelo atraso na entrega do locado no período compreendido entre Fevereiro de 2019 e Março de 2020”.”
6. Sem se resignarem, agora, os Réus interpuseram recurso de revista para o STJ, visando repristinar a sentença de 1.ª instância e, antes disso, dar como nulo o acórdão recorrido, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões:
“I – Objecto do recurso
a) O presente recurso cinge-se à decisão inserta no douto acórdão do Tribunal da Relação nos termosda qual aquela julgou “…parcialmente a apelação dos Autores/Apelantes, sendo de revogar a decisão recorrida na parte em que absolve “os Réus do mais peticionado” substituindo-se pela condenação dos Réus no pagamento aos Autores da quantia total de € 24.500,00, a título de indemnização pelo atraso na entrega do locado no período compreendido entre Fevereiro [de 2019] e Março de 2020, nos termos do art. 1045.º do Código Civil”.
b) Os apelantes discordam deste segmento da decisão recorrida, pelosmotivos que se passam a demonstrar.
II – Das alegações propriamente ditas
a. as questões prévias/Da nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia (alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do Código do Processo Civil
c) Consideram os apelantes que a decisão recorrida enferma de nulidade, por excesso de pronúncia, prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do Código do Processo Civil (CPC).
d) Isto porque, os autores, aqui apelados instauraram a presente acção peticionando, para o que aqui interessa, o seguinte: 1) Ser a oposição à renovação considerada válida e eficaz. 1.1) Devendo ser declarada a cessação do contrato de arrendamento celebrado entre as Partes por oposição à renovação por iniciativa dos AA., com efeitos a 31 de janeiro de 2019. 1.2) Mais se requer a condenação dos RR. a entregar aos AA. o referido imóvel livre e desocupado de pessoas e bens no prazo de 30 (trinta) dias após o trânsito em julgado da sentença”, sublinhado nosso. (Vide petição inicial dos autores/apelados).
e) Foi em consonância com tal pedido, que decidiu o Tribunal da 1.ª Instância.
f) Os autores/apelados recorreram da decisão proferida pelo Tribunal da 1.ª Instância, o que deu azo ao douto acórdão ora recorrido.
g) O objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões, como decorre dos arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código Processo Civil.
h) Especificamente o art. 635º, nº 4, do C.P.C. dispõe que nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso.
i) Nas suas alegações de recurso, os autores/apelados alteraram a posição inicialvertidanasuapetiçãoinicial,alegandoem sedederecursoque a mora, para efeitos da indemnização prevista no n.º 2 do art. 1045.º do Código Civil iniciar-se-ia na data da cessação do contrato de arrendamento, ou seja, em a 31 de janeiro de 2019, e não na data do trânsito em julgado da sentença recorrida, como vem ali vertido, sublinhado nosso.
j) Quanto ao eventual atraso na restituição do imóvel locado para efeitos da indemnização prevista no art. 1045.º do Código Civil, e como já se referiu, o Tribunal da Relação afastou a aplicabilidade do n.º 2 do referido preceito legal, como também o fez o Tribunal da 1.ª Instância, embora com fundamentação diferente.
k) E, salvo o devido respeito, deveria ter ficado por aqui, porque mais não lhe foi pedido.
l) Ao decidir de modo contrário ao decidido pelo Tribunal da 1.ª Instância, a decisão recorrida debruçou[-se] sobre uma questão, além do mais, nova, sobre a qual não podia tomar conhecimento, por traduzir uma alteração ao pedido, de todo inadmissível, por manifesta extemporaneidade (cfr. artigo 265.º do CPC).
m) E mais, vingando a posição perfilhada pela decisão recorrida sobre a não aplicação ao presente caso, do n.º 2 do art.º 1045.º do Código Civil, deixaria de haver motivo, para a discussão da bondade ou não da redução da renda por parte dos réus/apelantes.
n) Isto porque, os recorrentes cingiram o recurso quanto à aplicação ao caso sub judice do n.º 2 do art. 1045.º do Código Civil, e das alegações de recurso dos autores se extrai claramente que o ali peticionado quanto ao pagamento da totalidade da renda (vide arts. 25.º, 26.º e 27.º das alegações de recurso dos recorrentes) é um pedido subsidiário.
o) É em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação do recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver.
p) Socorrendo-nos dos sobreditos ensinamentos, parece-nos que in casu, salvo o devido respeito, se verifica a nulidade por excesso de pronúncia, devendo tal nulidade ser declarada por este Venerando Tribunal.
b) Sem prescindir/Da nulidade prevista na alínea e) do art. 615.º do Código do Processo Civil
q) Ainda que assim não se entendesse, o que apenas se admite à cautela de patrocínio, e aduzindo-se os mesmos argumentos acima referidos, a manter-se o entendimento da decisão recorrida, esta estaria ainda ferida da nulidade prevista na alínea e) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.
r) O nosso direito adjectivo civil determina que o Tribunal está impedido de condenar em objecto diverso do que for pedido (art. 609º n.º. 1 do Código de Processo Civil), pelo que, o Tribunal não só, não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, como também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, nomeadamente, no que respeita ao seu próprio objecto, sob pena de o aresto a proferir ficar afectado de nulidade.
s) A nulidade do acórdão quando o Tribunal condene em objecto diverso do pedido colheo seu fundamento noprincípio dispositivo queatribui às partes, a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório, segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses, que a demanda pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor.
t) A decisão que ultrapassa o pedido formulado, sem modificação objectiva da instância, passando a abranger matéria distinta, está eivada de nulidade prevista na consignada alínea e) do art. 615º do Código de Processo Civil.
u) O vícioda nulidade doacórdão, nostermos enunciados, encerraum desvalor que excede o erro de julgamento, por isso, inutiliza o julgado na parte afectada.
v) Confrontado o pedido formulado nos autos (vide principal dos autores na petição inicial, e as conclusões das alegações de recurso dos autores/apelados) e cotejado o acórdão recorrido, concluímos que este, enferma da invocada nulidade, não tendo cumprido a melhor ortodoxia processual.
w) Devendo tal nulidade ser declarada por este Venerando Tribunal.
III – Sem prescindir/ Do erro de julgamento da decisão recorrida
x) O douto acórdão recorrido perfilhou o entendimento de que in casu seria devida a indemnização ao abrigo do n.º 1 do art.º 1045, a calcular entre a data da cessação do contrato e a data da entrega do imóvel, entendendo ademais o referido acórdão que o cálculo de tal indemnização deverá ter por base o valor da renda contratada (ou seja, a renda constante do contrato de arrendamento), discordando assim da posição vertida na sentença da 1.ª Instância quanto à redução da renda operada pelos réus/apelantes.
y) A decisão recorrida começa por invocar o carácter taxativo do quantum indemnizatório previsto no n.º 1 do art. 1045.º do Código Civil, quando este refere o “valor das rendas que as partes tenham estipulado”.
z) Ora, não podemos concordar com tal posição, já que, o valor da renda estipulada no contrato de arrendamento é de livre disposição das partes, podendo ser aumentada ou diminuída durante a vigência do contrato.
aa)Tanto assim é que o n.º 1 do art. 1045.º do Código Civil refere “valor das rendas que as partes tenham estipulado”, podendo ser a renda inicial contratada ou a alterada na vigência do contrato.
bb) A este propósito, o douto acórdão recorrido faz ainda considerações quanto à declaração negocial, as quais no entender dos apelantes, são, salvo o devido respeito, despiciendas.
cc) É que a sentença da 1.ª Instância fundamenta a redução da renda no instituto do abuso de direito, e não no entendimento de que terá havido um acordo tácito das partes quanto a tal redução.
dd) No caso entendem os apelantes que estão verificados os pressupostos da figura do abuso de direito na vertente de «venire contra factum proprium».
ee) Os réus/apelantes enviaram aos autores/apelados carta nos termos da qual comunicam a sua intenção de reduzir a renda a partir de Março de 2018, os autores/apelados nada disseram.
ff) Os autores/apelados nunca se recusaram a receber as rendas.
gg) Ao invés, os autores receberam as rendas, fazendo-as integrar no seu património, numa atitude de clara aceitação das aludidas rendas, sem nunca terem interpelado os réus/apelantes nos termos do disposto no art. 1084.º do Código Civil para efeitos de resolução contratual por alegado atraso no pagamento das rendas.
hh) Num reconhecimento expresso do direito dos réus/apelados à aludida redução.
ii) Ao vir exigir o pagamento integral das referidas rendas estão os autores/apelados a agir com abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, como foi reconhecido e bem, pelo Tribunal da 1.ª Instância.
jj) Abuso de direito que deverá ser reconhecido por este Venerando Tribunal.
kk)Mas ainda que assim não se entenda, o que apenas se admite à cautela de patrocínio sempre se dirá que jamais seria admissível a condenação dos réus/apelantes no pagamento do remanescente do valor da renda acordada, já que tais rendas por se referirem ao período de Fevereiro de 2019 ao mês de Março de 2020, já estavam caducadas.
ll) A presente acção deu entrada no Tribunal em 18 de Março de 2020, e foram os réus/apelantes citados respectivamente em Setembro e Outubro de 2021 (vide factos provados em 28. e 29.)
mm) Quando os réus/apelantes foram citados para a presente acção (sendo que a citação funcionaria como interpelação para o pagamento das rendas) já havia caducado o direito de resolução, decorrido o prazo de três meses a contar do conhecimento do correspondente facto (artigo 1085.º, n.º 2, do Código Civil).
nn)Tendo, pois, caducado, o direito dos autores/apelados à resolução do contratodearrendamento,comfundamento na mora,pormaisdetrês meses, no pagamento integral das rendas aqui em causa, jamais poderiam os réus/apelados, ser condenados no pagamento do remanescente das rendas respeitantes aos meses de Fevereiro de 2019 a Março de 2020, entretanto caducadas.
oo) O acórdão recorrido ao ter decidido revogar a decisão recorrida na parte em que absolve “os réus do mais peticionado”, substituindo-a pela condenação dos réus no pagamento aos autores da quantia total de € 24.500,00, a título de indemnização pelo atraso na entrega do locado no período compreendido entre Fevereiro de 2019 e Março de 2020, enferma de erro de julgamento, devendo ser revogado, e em consequência, ser repristinada a decisão da 1.ª Instância.”
∗
Os Autores apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.
7. O TRL proferiu em conferência acórdão (24/10/2023) de apreciação das nulidades arguidas, julgando improcedente a respectiva arguição.
∗
Colhidos os vistos legais electronicamente em cumprimento do art. 657º, 2, ex vi art. 679º, do CPC, cumpre apreciar e decidir a questão recursiva.
II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS
1. Admissibilidade e objecto do recurso
1.1. Estão verificados os requisitos gerais de admissibilidade da revista, previstos em especial nos arts. 629º, 1 (valor da causa e valor da sucumbência), e 631º, 1, do CCiv.
1.2. Ao escrutínio do STJ em revista submete-se a questão da indemnização relativa à não restituição de imóvel locado, após a cessação do contrato de arrendamento por oposição lícita à não renovação, de acordo com a normatividade resultante do art. 1045º, 1 e 2, do CCiv.
A questão contida nas Conclusões KK) a NN) – caducidade do direito de exigir o pagamento das rendas – não se integra no objecto do recurso, uma vez que consiste em questão nova, não apreciada pelo acórdão recorrido (nem salvaguardada pelos Réus Apelados através do expediente do art. 636º, 1, do CPC1), em rigor relativa aos pedidos subsidiários, que, prejudicados, não foram julgados pelas instâncias.
Preliminarmente, devem ser decididas as nulidades arguidas, nos termos das als. d) e e) do art. 615º, 1, do CPC.
2. Factualidade assente
Após alteração e renumeração, a Relação considerou como provados os seguintes factos:
1. Os Autores são proprietários da fracção autónoma designada pela letra “R” correspondente ao 2º andar direito do prédio sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 615 da freguesia da ... e inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo 3004.
2. A 30 de Janeiro de 2017, os Autores deram de arrendamento aos Réus, para habitação, o referido imóvel.
3. Subscreveram um contrato de arrendamento para habitação com o prazo certo de 2 anos, com início a 1 de Fevereiro de 2017, renovando-se automaticamente, por períodos iguais e sucessivos de 1 ano, se nenhuma das partes se opuser à renovação.
4. Foi acordado o pagamento de uma renda mensal no valor de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).
5. Nos termos do contrato, as rendas deveriam ser pagas até ao 8º dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito.
6. A Ré enviou aos Autores uma carta registada com A.R., datada de 22 de Janeiro de 2018, com o seguinte teor:
“No que concerne ao arrendamento supra identificado, e atendendo aos motivos já explanados a V. Exas., através de inúmeras comunicações, nas quais a signatária, na qualidade de Arrendatária, reclama a reparação de defeitos estruturais da fracção e de defeitos dos equipamentos que a integram, aliado ao facto de todos os dias surgirem novas deficiências no locado e nos respectivos equipamentos, (o que deu inclusive azo à instauração de acção judicial contra V. Exas.), vem a Signatária informar V. Exas. que, devido ao facto de se encontrar privada, (juntamente com o seu agregado familiar, o qual é composto pelo seu marido e dois filhos menores), do pleno uso do locado, e dado a gravidade da situação, sem solução à vista, assiste-lhe o direito de a partir do próximo mês de Março de 2018 passar a efectuar o pagamento parcial da renda devida, no valor de € 1.750,00, suspendendo assim o pagamento do restante valor de € 1.750,00.
Como é do vosso conhecimento, o contrato de arrendamento consiste num contrato sinalagmático, uma vez que a obrigação do senhorio de proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa (art.º 1931º, alínea b)] tem como correspectivo a obrigação de pagar a renda ou aluguer [art.º 1038º, alínea a)], ficando assim ambos os contraentes sujeitos a obrigações recíprocas.
Contudo, o pagamento da renda tem como correspectivo a cedência do local arrendado em condições de ser plenamente fruído em vista do fim a que se destina, o que não acontece no caso vertente.
O art.º 1040.º do Código Civil dispõe que, se o arrendatário, por motivos que lhe sejam estranhos, sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa locada, poderá ocorrer uma redução da renda proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta.
Ou seja, no caso de privação parcial do gozo do prédio, por causa não imputável ao locatário, tem este o direito de ver reduzida a parte proporcional da renda, o que a Signatária vai fazer nos termos supra descritos, e dá conhecimento a V/Exas. através da presente missiva.”
7. Os Autores receberam a carta, não responderam à mesma e nada disseram.
8. A partir do mês de Março de 2018, os Réus começaram a proceder ao pagamento de metade do valor da renda, ou seja, de € 1.750,00.
9. A 23 de Julho de 2018, os Autores, senhorios, enviaram uma carta aos Réus, inquilinos, que a receberam, comunicando que se opunham à renovação do Contrato de Arrendamento.
10. A carta aludida em 9. tem o seguinte teor:
“Vimos pela presente, na qualidade de Proprietários e Senhorios da fracção autónoma designada pela letra "R", correspondente ao 2.° andar direito do edifício sito na Rua ..., do qual V/ Exas. são Arrendatários, opor-nos à renovação automática do referido Contrato de Arrendamento, nos termos do número 2 da Cláusula Terceira do Contrato de Arrendamento celebrado com V/ Exas. a 30 de Janeiro de 2017, e que teve início a 1 de Fevereiro de 2017.
Nestes termos, respeitando a antecedência mínima de 120 (cento e vinte) dias, o arrendamento cessará no próximo dia 31 de Janeiro de 2019, data em que o imóvel deverá ser entregue livre de pessoas e bens e no estado de conservação e limpeza em que se encontrava à data da celebração do contrato e se fará a entrega das respectivas chaves.
Mais informamos que no decorrer do corrente mês de Julho foram emitidos os recibos de renda referentes aos meses pagos até à data, ou seja, até Abril de 2018, inclusive.
Registamos que continuam não só a pagar as rendas com um atraso substancial como, à data, encontram-se em dívida as rendas referentes aos meses de Maio a Agosto de 2018.”
11. A Ré respondeu, através de carta, com o seguinte teor:
“..., 04 de Setembro de 2018
Assunto — Resposta à Vossa carta de 23 de Julho de 2018 — Oposição à Renovação — Contrato de arrendamento para habitação com prazo certo — Imóvel sito na Rua ...
Exmos. Senhores,
Como é do vosso conhecimento, a Signatária e marido, na qualidade de arrendatários do imóvel acima identificado, instauraram contra V/Exas, na qualidade de senhorios, acção de processo comum, no âmbito da qual é peticionado o reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel locado e os equipamentos que o integram, até que haja uma decisão judicial sobre a respectiva lide.
Daí que, os arrendatários possuem motivo legítimo para a não entrega das chaves do imóvel locado, na data do término do contrato, se, até essa data, o Tribunal ainda não se pronunciar sobre o referido direito de retenção.
Quanto a alegadas rendas em dívida, que V/Exas. mencionam na carta aqui em causa, reitera-se a inexistência de qualquer atraso ou omissão de pagamento de rendas respeitantes ao imóvel locado.”
12. Os Réus procederam à entrega do locado, livre e devoluto de pessoas e bens, em 24 de Junho de 2020, tendo os ora Autores declarado, no respectivo termo de entrega, que “não são devidas as rendas do mês de maio de 2020 e de Junho de 2020” (vencidas em Abril e Maio de 2020).
13. A Ré continuou a pagar o valor de € 1.750,00 até Março de 2020.
14. Os recibos de renda foram emitidos pelo valor de € 1.750,00, até à entrega do locado.
15. O sistema de climatização do locado não funcionava bem.
16. Existiam infiltrações e humidade em várias divisões do locado.
17. Os vidros do terraço não estavam bem fixados e, em data não concretamente apurada, alguns painéis caíram no chão, comprometendo a sua segurança.
18. Havia mau cheiro que advinha permanentemente da casa de banho.
19. A arrecadação no piso -3, que foi também objeto do Contrato de arrendamento, tinha humidade e, em consequência disso, vários objectos que a Ré lá tinha guardado ficaram com “mofo”.
20. As situações supra descritas foram sempre comunicadas aos Autores.
21. Os Autores diligenciaram pela reparação do sistema de climatização.
22. Na acção, de processo comum, que os ora Réus intentaram contra os ora Autores, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., sob o n.º 21726/17.4..., foi proferido despacho, a 29 de Janeiro de 2019, nos termos do qual se entendeu que “(…) mesmo que fosse feita prova da verificação desses defeitos ou da ocorrência dos danos reclamados nunca os mesmos poderiam servir de fundamento ao recurso ao direito de retenção previsto no art. 754º do C. Civil”, tendo sido julgado “improcedente o pedido de condenação dos RR. no reconhecimento do direito de retenção dos AA. até ao integral pagamento das quantias reclamadas nestes autos, dele se absolvendo os RR.” – constando, ainda, de tal despacho:
“No âmbito dos presentes autos os RR. vieram deduzir o seguinte pedido reconvencional: (…)
Em face do exposto, rejeitam-se os pedidos reconvencionais formulados nos n.ºs 2.1., 2.2., 2.3., 2.4. e 2.5., admitindo-se o pedido reconvencional formulado n.º 2.6..”
**
A) Objecto da Lide:
- Pedido de condenação dos Réus no pagamento de €26.034,16 euros a titulo de danos patrimoniais, €10.000,00 euros a titulo de danos não patrimoniais, quantias essas às quais acrescem juros de mora desde a citação até total e efectivo pagamento e pedido reconvencional formulado pelos RR. de obter a compensação do crédito de €15.750,00 euros por atraso no pagamento das rendas referentes aos meses de julho, agosto, outubro, novembro e dezembro de 2017; e junho a março de 2018, e do credito de €22.750,00 euros a titulo de rendas vencidas e não pagas referentes aos meses de setembro de 2017 a dezembro de 2017; e de janeiro de 2018 a março do mesmo ano, com o crédito reclamado pelos AA..
*
B) Temas da Prova:
(…)
C) Adequação formal, simplificação ou agilização processual:
Dada a palavra aos ilustres mandatários das partes, os mesmos disseram que mantêm os requerimentos probatórios juntos a fls. 15vº
(Autores) e fls. 149vº (Réus). ---
*
D) Da admissão da prova e programação do julgamento:
(…)
Os ilustres mandatários estimam ser necessário cerca de duas sessões, para serem inquiridas as suas testemunhas, no entanto, por ora, tendo em conta a pretensão das partes, aliás já formulada pelos AA. no seu articulado de requerer a realização prova pericial, por ser imprevisível o tempo de realização dessa prova, e tendo em conta a posição dos mandatários, não se designa para já data de julgamento.”
23. Tal decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão proferido a 18 de Fevereiro de 2020.
24. No despacho aludido em 22., foi determinado que o processo prosseguisse para audiência final quanto aos demais pedidos formulados na respectiva acção pelos ali Autores/arrendatários, aqui Réus: condenação dos ali Réus/senhorios, aqui Autores, no pagamento da quantia total de € 26.034,16 a título de danos patrimoniais e de € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação, alegando como causa de pedir:
- a existência de diversos defeitos no locado impeditivos do seu pleno gozo pelos arrendatários;
- devido aos mencionados defeitos, o agregado familiar dos arrendatários viu-se obrigado a tomar refeições em restaurantes, tendo gasto a quantia total de € 12.750,00;
- a arrendatária esteve hospedada em hotel devido às deficiências do locado e dos respectivos equipamentos, com o que despendeu os montantes de € 270,54 e de € 763,62;
- “Atendendo à privação (total e parcial) do uso do locado, durante um período de quatro meses, devido às mencionadas deficiências, os autores entendem que tiveram os seguintes prejuízos:
- De 25 de Fevereiro de 2017 a 21 de Março de 2017 – prejuízos correspondentes ao valor da renda de um mês, pela privação total do uso do locado, no valor de € 3.500,00.
- Mês de Abril de 2017 – prejuízos correspondentes a metade do valor da renda, pela privação parcial do uso do locado, no valor de € 1.750,00.
- Mês de Maio de 2017 – prejuízos correspondentes a metade do valor da renda, pela privação parcial do uso do locado, no valor de € 1.750,00.
- Mês de Junho de 2017 – prejuízos correspondentes a metade do valor da renda, pela privação parcial do uso do locado, no valor de € 1.750,00.
- Mês de Julho de 2017 – prejuízos correspondentes a metade do valor da renda, pela privação parcial do uso do locado, no valor de € 1.750,00.
- Mês de Agosto de 2017 – prejuízos correspondentes a metade do valor da renda, pela privação parcial do uso do locado, no valor de € 1.750,00.”;
- os arrendatários sofreram, ainda, danos de natureza não patrimonial pelos quais pretendem ser ressarcidos e cujo montante computam em € 10.000,00.
25. Na acção aludida em 22. a 24., os ali Réus/senhorios, aqui Autores, apresentaram contestação e um pedido reconvencional (admitido no despacho aludido em 22.) de obter a compensação do crédito de € 15.750,00 por atraso no pagamento das rendas referentes aos meses de Julho, Agosto, Outubro, Novembro e Dezembro de 2017 e Junho a Março de 2018, e do crédito de € 22.750,00 a título de rendas vencidas e não pagas referentes aos meses de Setembro de 2017 a Dezembro de 2017 e de Janeiro a Março de 2018.
26. Na acção aludida de 22. a 25., foi proferida sentença em 29 de Maio de 2021, com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, julga-se improcedente a acção, absolvendo-se os Réus do pedido, ficando em consequência prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional.”
27. A sentença aludida em 26. transitou em julgado em 13 de Setembro de 2021.
28. A presente acção deu entrada em tribunal no dia 18 de Março de 2020.
29. A Ré e o Réu foram citados para a presente acção em Setembro e Outubro de 2021, respectivamente.
30. A contestação desta acção deu entrada em tribunal no dia 9 de Novembro de 2021.
3. Fundamentação de direito
3.1. Apreciação das nulidades arguidas
3.1.1. Os Recorrentes invocam que o acórdão recorrido está ferido por “excesso de pronúncia” e por “condenação diversa do pedido” – respectivamente, als. d), 2.ª parte, e e) do art. 615º, 1, aplicáveis por força do art. 666º, 1, do CPC.
3.1.2. O art. 615º, 1, d), do CPC sanciona com nulidade as sentenças e acórdãos em que o julgador «deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
A omissão e o excesso de pronúncia são o verso e o reverso do mesmo poder-dever do julgador que, concretamente em sede de recursos, deve cingir-se ao objecto recursivo mas deve sempre julgar esse mesmo objecto recursivo, tal como delimitado na pretensão recursiva, prolongando-se para as instâncias recursivas o princípio reitor do art. 608º, 2, 1ª parte, do CPC, nos termos do qual «[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Este ónus processual implica, como corolário do “princípio da disponibilidade objectiva” (traduzido no art. 5º do CPC/2013), que “o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões” 2, assim como deve abster-se de conhecer de matéria ou pedido em condições em que está impedido de o fazer3.
Neste contexto, o excesso do julgamento acontece quando se apreciem questões de facto ou de direito que não tenham sido invocadas e que não sejam de conhecimento oficioso, ferindo a decisão.
Na verdade, a lei censura, ainda como efeito do referido princípio da “disponibilidade objectiva”, que “o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, nomeadamente ao utilizar, como fundamento da decisão, causas de pedir não alegadas ou excepções que não sejam de conhecimento oficioso, ou a condenar ou absolver em pedido não formulado ou diverso do pedido ou a condenar em quantidade superior a esse mesmo pedido4. Mais uma vez, no âmbito dos recursos, o essencial é mobilizar a questão ou as questões identificadas nas conclusões dos recorrentes e assim delimitadas pelo julgador, sendo pronúncia indevida aquela em que o julgador “se ocupe de questões que as partes não tenham suscitado, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso”5.
3.1.3. Configura-se no caso da al. e) uma nulidade decisória naquela situação em que, por violação do princípio do dispositivo na vertente da conformação objectiva da instância, não se observe os limites impostos pelo art. 609º, 1, do CPC, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso do pedido (condenação “ultra petitum”)6.
Quid juris?
3.1.4. Ambas as nulidades acabam por estar ligadas por um nexo funcional nos limites cognitivos de apreciação do julgador, neste caso o de 2.ª instância, conexionado com a prévia decisão de 1.ª instância e a sua reapreciação em apelação.
Não merecem proceder em qualquer dos casos.
Os Autores pedem, na configuração principal da acção, uma indemnização nos termos do art. 1045º, 2, pela falta de restituição do imóvel locado no tempo devido – pedido sob 1.3. a título principal.
As questões recursivas limitadas e decididas na apelação prenderam-se com a aplicação ou não do n.º 1 do art. 1045º do CCiv., em alternativa(-detrimento) do n.º 2 do preceito, e com o montante da indemnização devida nos termos da aplicação desse art. 1045º, em particular na mobilização do critério indemnizatório da “renda estipulada” pelas partes ao caso concreto.
Tanto a 1.ª como a 2.ª instância, no âmbito do dispositivo circunscrito pelos Autores (pedido e causa de pedir), sujeito a contraditório dos Réus, empreenderam a qualificação jurídica que o art. 5º, 3, do CPC permite e legitima, optando pela aplicação ao caso do art. 1045º, 1, do CPC, que, assim, pôde ser questão recursiva na apelação, à luz dos arts. 635º, 2 a 4, e 639º, 1 e 2, do CPC.
Essa requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, originariamente feita em 1.ª instância, cingindo-se ainda a um pedido de condenação ao pagamento de certa quantia a título indemnizatório, permite atribuir ao autor, por uma via jurídica não integralmente coincidente com a que estava subjacente e indicada como fundamento da pretensão material deduzida, o bem jurídico pretendido, sem que com isso se esteja a violar os limites qualitativos do pedido, desde que, naturalmente, não se lhe atribuam bens ou direitos substancialmente diversos do objecto que o autor procurara obter com a sua pretensão7.
Por outro lado, é notório e manifesto que a indemnização atribuída a final pelo acórdão recorrido não ultrapassa o limite quantitativo delimitado pela petição, a saber, €98.000 (pedido principal).
Em suma: acompanhamos o sustentado pelo acórdão proferido em conferência pelo tribunal recorrido, sob 7. do Relatório supra, e concluímos pelo naufrágio das Conclusões C) a W) da revista, julgando improcedente a arguição das duas nulidades suscitadas.
3.2. Da indemnização pelo atraso na restituição do locado: interpretação e aplicação do art. 1045º do CCiv.
3.2.1. Em primeiro lugar, está estabilizada juridicamente no processo a decisão de 1.ª instância sobre a data de cessação de efeitos do contrato de arrendamento: 31 de Janeiro de 2019 (facto provado 10.).
Também se encontra estabilizada a data de entrega do imóvel locado pelos Réus arrendatários: 24 de Junho de 2020 (facto provado 12.).
3.2.2. Confrontados com o pedido dos Autores, configurado no petitório sob 1.3. (serem os Réus “condenados a pagar aos AA., desde o termo do contrato, a 31 de Janeiro de 2019, até ao momento da entrega do locado, uma indemnização correspondente ao dobro do valor das rendas devidas, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 1045.º do Código Civil, sendo que desde Fevereiro de 2019 a Março de 2020, tal montante ascende a € 98.000,00 (noventa e oito mil euros)”), as instâncias decidiram de forma distinta quanto à indemnização pedida pelos Autores.
i. Em 1.ª instância, a fundamentação foi a seguinte:
“Quanto ao terceiro pedido – pagamento de uma indemnização correspondente ao dobro do valor das rendas, nos termos do nº 2 do art. 1045º, do Cód. Civil, desde fevereiro de 2019 (até à data da entrega) – importa, desde logo, referir que – julgando-se válida e eficaz a oposição à renovação, ou seja, a cessação do contrato – não está em causa a mora no pagamento de rendas mas a mora na entrega do locado.
Estando demonstrado que tal entrega não ocorreu no termo do prazo, mantendo-se o locado na detenção dos Réus até 24 de junho de 2020 – sem que lhes tenha sido reconhecido qualquer outro direito para tal, mormente o de retenção –, importa determinar o montante da indemnização devida.
A indemnização a que respeita o nº 1 do art. 1045º do Cód. Civil é aquela que é devida pelo locatário ao locador entre o momento em que finda o contrato e o momento da restituição, em todos os casos em que a coisa locada não é restituída assim que finda o contrato, e corresponde ao valor da renda.
(…)
No caso em apreço, a data da obrigação de entrega coincidiria com a data da cessação do contrato por oposição à sua renovação.
Todavia, estando em discussão a data em que tal cessação ocorreu, indo a mesma ser declarada nesta sentença, entende-se que a mora só se iniciaria com o trânsito da presente decisão judicial, sendo certo que, em data anterior, tal entrega já teve lugar, ou seja, não chega a haver mora na entrega, sendo apenas devida a indemnização prevista no nº 1 do citado normativo.
(…)
Nesta conformidade, e ainda considerando a expressa menção a não serem devidas as “rendas” de maio e junho de 2020 (vencidas em abril e maio), temos que entender que a indemnização deverá ser circunscrita ao período de fevereiro de 2019 a março de 2020.
Por outro lado, a verdade é que durante tal período os Réus continuaram a pagar o valor correspondente a metade da renda, em conformidade, de resto, com o que já vinham fazendo durante a vigência do contrato, pelo que, importará apenas definir se o valor devido a título de indemnização – em paralelo com o valor de renda devido – pode entender-se “reduzido a metade”, nos mesmos termos em que poderia haver lugar/direito à redução da renda, como exceção de não cumprimento.
A este propósito, sendo fora de dúvidas que é obrigação do locatário pagar a renda (cfr. art. 1038º, al. a), do Cód. Civil), importa ter presente o disposto no art. 1031º, al. b), do Cód. Civil, nos termos do qual é obrigação do locador assegurar ao locatário o gozo da coisa locada para os fins a que ela se destina.
Por sua vez, nos termos do art. 428º, nº 1, do Cód. Civil, “se, nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
“Mesmo estando o cumprimento das prestações sujeito a prazos diferentes, a exceptio poderá sempre ser invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efetuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro”. A exceção de não cumprimento “vale tanto para o caso de falta integral do cumprimento, como para o de cumprimento parcial ou defeituoso” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado).
É entendimento comum que em matéria de locação a exceção do não cumprimento do contrato tem um limitado campo de aplicação, porque, como salienta Aragão Seia (Arrendamento Urbano, 7ª edição, p. 412), “uma vez entregue ao locatário a coisa locada, o sinalagma em grande medida se desfaz. Certo, o locador continua obrigado a proporcionar o gozo da coisa ao locatário; mas esta é uma obrigação sem prazo ou dia certo para o seu cumprimento, ao passo que é a termo a do pagamento da renda”.
Não obstante, tem-se admitido o funcionamento do instituto mesmo no caso de cumprimento defeituoso, fazendo intervir, sempre que as circunstâncias concretas o imponham, o princípio da boa fé e a “válvula de segurança” do abuso do direito (cfr. arts. 762º, nº 2, e 334º, ambos do Cód. Civil) (www.dgsi.pt, Acórdão do STJ de 09/12/2008, processo 08A3302).
Preceitua o art. 1040º, nºs 1 e 2, do Cód. Civil, que “se, por motivo não atinente à sua pessoa ou à dos seus familiares, o locatário sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa locada, haverá lugar a uma redução da renda ou aluguer proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta”; “mas, se a privação ou diminuição não for imputável ao locador nem aos seus familiares, a redução só terá lugar no caso de uma ou outra exceder um sexto da duração do contrato”.
Este artigo consubstancia, precisamente, uma manifestação da exceção de não cumprimento no âmbito da locação.
Importa ainda atentar no disposto no art. 217º do Cód. Civil: “a declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”, sendo que “o carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz”.
Resulta da matéria de facto provada que o sistema de climatização do locado não funcionava bem, existiam infiltrações e humidade em várias divisões, os vidros do terraço não estavam bem fixados, comprometendo a sua segurança, havia mau cheiro que advinha permanentemente da casa de banho e a arrecadação no piso -3, que foi também objeto do Contrato tinha humidade e, em consequência disso, vários objetos que a Ré lá tinha guardado ficaram com “mofo”, tendo todas as situações sido comunicadas aos Autores, que diligenciaram pela reparação de algumas, o que levou a Ré, logo em 22 de janeiro de 2018, a reclamar a redução do valor da renda mensal para € 1.750,00 (metade).
Acresce que os Autores receberam tal carta, não responderam à mesma e nada disseram. A sua posição (só) foi tomada em 23 de julho de 2018, ao comunicarem que se opunham à renovação do Contrato.
Neste contexto, por um lado, as condições de habitabilidade do locado, ainda que não impedissem a sua utilização, não conferiam, seguramente, as condições de dignidade que se impunham, tanto mais para um imóvel cujo valor de renda que se pedia/oferecia era bastante elevado, pelo que, parece-nos razoável a exigência da redução do valor da renda (ainda que, porventura, em medida diversa). Por outro lado, a alegação de falta de acordo nesse sentido é contrariada pelo comportamento tácito que os Autores revelaram ao não dar qualquer resposta em sentido contrário, ao aceitarem o pagamento feito no valor em causa, emitindo os respetivos recibos, sem qualquer ressalva, e comunicando apenas 6 meses depois que se opunham à renovação do Contrato, fazendo, assim, confiar os Réus que não seria contra a sua vontade tal redução, face às constantes queixas e considerando que, antes da presente ação, nunca os Autores optaram pela resolução por falta de pagamento de rendas.
Noutra ordem de considerações, a conduta dos Autores, ao consentirem na manutenção do contrato com a manifestação expressa dos inquilinos e o pagamento de metade do valor da renda inicialmente acordado, num contexto de comunicação de várias “patologias”, sem nunca referirem discordância ou a possibilidade de resolução do contrato por falta de pagamento (integral) de rendas, sempre justificaria a invocação do instituto do abuso de direito.
(…)
Como é consabido, o Código Civil de 1966 consagrou no art. 334º o abuso do direito na conceção objetiva, dispondo que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. O abuso do direito é, assim, o excesso patente dos limites impostos pela boa fé, não se tornando necessário que tenha havido a consciência de se excederem esses limites.
E tem sido entendido que para determinar quais os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes o julgador deverá atender às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade, devendo para apurar do fim social ou económico do direito considerar os juízos de valor positivamente consagrados na lei.
Citando Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 6ª ed., p. 516, “para que haja lugar ao abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”.
Ensina Baptista Machado, no estudo “Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium”, in “Obra Dispersa”, Vol I, p. 415 a 418, e RLJ anos 116, 117 e 118, nº 3735, p. 171 e ss., que o funcionamento do instituto depende da verificação de três pressupostos:
1º - uma situação de confiança, isto é, uma conduta ou omissão (simples passividade) de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura; por outras palavras, uma conduta ou omissão (inércia) que desperta na contraparte a convicção de que também no futuro se comportará, coerentemente, da mesma maneira;
2º - um investimento na confiança, o que significa que a contraparte, com base na situação de confiança criada, toma decisões ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos (não removíveis ou dificilmente removíveis a não ser com a paralisação do direito) se aquela confiança vier a ser frustrada;
3º - a boa fé da contraparte que confiou, ou seja, que a contraparte tenha agido tomando o cuidado e as precauções usuais no tráfego jurídico, desconhecendo uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real.
(…)
Por tudo o que fica exposto, a pretensão de um valor indemnizatório superior ao valor correspondente ao da renda (já) efetivamente pago (e, tacitamente aceite) seria violador do princípio da confiança e, assim, contrária à boa fé.”
Em suma: configurou-se a indemnização pedida nos termos da disciplina do art. 1045º, 1, do CCiv., uma vez entendendo não existir “mora” que justificasse a aplicação do art. 1045º, 2 (só haveria tal mora depois do trânsito em julgado da decisão a proferir neste processo, em função da determinação da data de restituição devida do locado; o certo é que a entrega já se verificara em data anterior); considerou-se paga a indemnização devida por efeito do pagamento da renda estipulada, mas reduzida a metade (como tinha sido paga pelos arrendatários) desde Março de 2018 até Março de 2020, absolvendo os Réus desse pedido em face do anteriormente pago.
ii. A Relação, tendo que decidir sobre o fundamento da indemnização pedida pelos Autores, argumentou em sentido diverso no que respeita ao quantum indemnizatório, ainda que optando, com fundamentação não coincidente, pela confirmação da aplicação ao caso do art. 1045º, 1, do CCiv:
“Como resulta da factualidade provada, entre Autores e Réus vigorou um contrato de arrendamento, tendo por objecto uma fracção autónoma de que aqueles são proprietários,celebrado em 30/01/2017, pelo prazo certo de dois anos, renovável automaticamente, se nenhuma das partes se opuser à renovação; contrato esse, que, por manifestação expressa dos Autores de oposição à sua renovação, cessou.
É, agora, processualmente incontroverso – porque assim decidiu a sentença recorrida, que, nessa parte, transitou em julgado por não ter sido objecto de recurso – que o contrato de arrendamento dos autos cessou com efeitos a 31 de Janeiro de 2019 e que o locado deveria ter sido entregue aos Autores nessa data, o que não ocorreu, mantendo-se na detenção dos Réus até 24 de Junho de 2020.
Abordando a questão da indemnização prevista no art. 1045º do Cód. Civil, devida pelos Réus pela não entrega do imóvel aos Autores na data de 31/01/2019, entendeu o tribunal a quo não existir mora naquela entrega, “sendo apenas devida a indemnização prevista no nº 1 do citado normativo” (…).
Os apelantes discordam deste entendimento, sustentando que a data da obrigação de entrega do imóvel coincidia com a data da cessação do contrato por oposição à sua renovação, ou seja, em 31/01/2019, pelo que, não o tendo feito, os Réus entraram em mora nessa data, donde, é devida a indemnização prevista no nº 2 do art. 1045º do Cód. Civil.
(…)
O contrato de arrendamento dos autos cessou pela oposição à renovação, manifestada pelos senhorios e com efeitos reportados a 31/01/2019, nos termos dos arts. 1054º, nº 1, a contrario, 1055º, 1096º e 1097º, do Cód. Civil. De tal cessação resulta, para os arrendatários, o dever de imediata restituição do imóvel arrendado, dever esse, a cumprir logo que cessa o contrato, nos termos dos arts. 1038º, al. i) e 1081º, nº 1 do mesmo diploma.
O incumprimento de tal dever cria para o locatário, de acordo com o disposto no 1045º do Cód. Civil (como revela a respectiva epígrafe), a obrigação de “indemnização pelo atraso na restituição da coisa”, nos seguintes termos:
“1 – Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, exceto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2 – Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro”.
A interpretação desta disposição legal não é pacífica.
Assim, a este propósito, escreve Pedro Romano Martinez, in “Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos”, 2ª ed., Almedina, p. 202-203: “O vencimento da obrigação de entrega da coisa não se dá, de imediato, no momento em que termina o contrato. / Extinto o contrato de locação, se o locatário não restituir imediatamente a coisa locada, nos termos do art. 1045º, n.º 1 CC, deve continuar a pagar a renda ou aluguer ajustadas. Por conseguinte, prevê-se que, extinta a relação contratual, se o locatário não restituir a coisa locada, subsiste uma relação contratual de facto que lhe impõe o dever de continuar a pagar a renda ou aluguer ajustado, como se o contrato continuasse em vigor. / Contudo, se o locador interpelar o locatário para este proceder à entrega da coisa, não a restituindo, entra em mora. Assim, o locatário, extinto o contrato de locação, só entra em mora, relativamente à obrigação de restituir a coisa, depois de ter sido interpelado para a entregar. Extinto o contrato, torna-se necessário que o locador interpele o locatário, após o que, se este não restituir a coisa, entra em mora e tem de pagar o dobro da renda ou aluguer devido contratualmente (art. 1045º, n.º 2 CC)”.
Por seu turno, escrevem, a este propósito, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, 1986, p. 406, “se findo o contrato, não houver mora do locatário quanto à obrigação de restituição da coisa locada (…), o contrato prolonga-se até à entrega da coisa, devendo o locatário continuar a pagar, agora a título de indemnização, a renda ou aluguer convencionado. Indemnização justa, visto que ele continua a usar a coisa em prejuízo do locador – mas indemnização de natureza claramente contratual.”. Havendo mora do locatário, continuam os Autores, “a sua responsabilidade aumenta, fixando a lei como indemnização o dobro da que resultaria no caso previsto no número anterior”, ou seja, “o dobro da retribuição”.
A propósito desta questão, na obra “Leis do Arrendamento Urbano Anotadas”, Coordenação de António Menezes Cordeiro, 2014, Almedina, p. 81-82, é chamada a atenção para a distinção entre a situação “de não-restituição simples” e a situação de “mora na restituição”: o nº 1 do preceito reporta-se à não restituição simples, ou seja, aqueles casos em que a falta de restituição ocorre por causas não imputáveis ao locatário, o que poderá suceder: (a) quando o locatário ilida a presunção de culpa pela não-restituição, (b) caso o locador, a título de mera tolerância, admita a manutenção do gozo, na esfera do locatário, (c) quando exista uma situação controvertida (acção de nulidade ou de anulação, acção de resolução ou situação de caducidade), não provocada pelo locatário e enquanto ela não se solucionar, (d) quando a restituição não possa ter lugar por causa imputável ao locador e, não obstante, o locatário continue no gozo da coisa, sem recorrer à consignação em depósito; e o nº 2 tem lugar quando a falta de restituição ocorra por culpa do locatário, configurando-se então a mora deste, independentemente de interpelação, por via do art. 805º, nº 2, al. a) do Cód. Civil, não sendo necessária qualquer interpelação uma vez que há prazo certo.
Para Pereira Coelho, in “Arrendamento – Lições ao Curso do 5º ano de ciências jurídicas de 1986/87”, p. 192, apud Acórdão do STJ de 12/06/2012, Relator Nuno Cameira, acessível em www.dgsi.pt, há três hipóteses a considerar, conforme a causa da não restituição pontual do locado: (i) tratando-se de causa imputável ao inquilino, este constitui-se em mora, nos termos do art. 804º, nº 2, e fica obrigado a pagar o dobro da renda até ao momento da restituição: é a hipótese do citado nº 2; (ii) tratando-se de causa imputável ao senhorio, há fundamento para a consignação em depósito do prédio, conforme o art. 841º, nº 1: é a hipótese prevista na parte final do nº 1 do citado artº 1045º, caso em que o inquilino nada deve ao senhorio a título de indemnização pelo atraso na restituição do arrendado; (iii) devendo-se a não restituição do imóvel a qualquer outra causa, aplica-se a solução da 1ª parte do nº 1 do art. 1045º: o locatário é obrigado a continuar a pagar a renda acordada, “a título de indemnização”, até ao momento da restituição do prédio.
Em suma, e como se sintetiza no Acórdão do TRP de 23/03/2023, Relatora Isabel Ferreira, acessível em www.dgsi.pt: “Como quer que seja, convergem todas as interpretações quanto à circunstância de a “simples mora”, ou atraso, do locatário (distinta das situações de mora, quando se trate de uma falta voluntária e culposa) na entrega da coisa não ser sancionada nos termos do nº 2, mas apenas do nº 1 do art. 1045º do Código Civil.”.
É na esteira dos entendimentos dos dois últimos citados Autores, que acolhemos, que iremos analisar a situação.
No caso dos autos, quando recepcionou a carta dos senhorios/Autores/ora apelantes, de oposição à renovação do contrato, com efeitos a partir de 31/01/2019 e a respectiva interpelação para a entrega do locado nesta data, a Ré, na qualidade de arrendatária, respondeu invocando a prévia instauração de uma acção judicial onde era pedido “o reconhecimento do direito de retenção sobre o locado”. Esta acção correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., sob o nº 21726/17.4..., tendo, por acórdão desta Relação proferido em 18/02/2020, sido confirmada a improcedência daquela pretensão (factos provados sob os nos 10., 11., 22. e 23.).
Posteriormente, em 18/03/2020, foi instaurada a presente acção, e em data anterior à citação dos Réus para a mesma (em Setembro e Outubro de 2021), o locado foi entregue voluntariamente pelos Réus aos Autores em 24 de Junho de 2020 (factos provados sob os nos 28., 29. e 12.).
Neste contexto, sobressai, para os efeitos de que ora nos ocupamos, a circunstância de os Réus, antes de recepcionarem a comunicação dos Autores de oposição à renovação do contrato, terem intentado acção judicial pretendendo fazer valer um direito de retenção sobre o locado, de que consideravam ser titulares, pretensão essa, cuja improcedência foi decidida por acórdão deste Tribunal em 18/02/2020, transitado em julgado, no mínimo, em 18 de Março de 2020.
presente este preciso contexto, não se nos afigura de considerar como imputável aos Réus/ora apelados a falta culposa – isto é, censurável do ponto de vista ético-jurídico – de entrega do imóvel na data da cessação do contrato, não existindo, pois, mora para os efeitos do preceito em referência; reconduzindo-se o caso, antes, à existência de “uma situação controvertida, não provocada pelo locatário e enquanto ela perdurar” (cfr. exemplo dado por Menezes Cordeiro), isto é, uma situação de não restituição simples, ou, na enunciação de Pereira Coelho, uma situação de não restituição devida a “qualquer outra causa”, diversa da mora do senhorio ou do locatário.
Note-se, ainda, que, pese embora a entrega do locado tenha sido efectuada em 24 de Junho de 2020, resulta da factualidade provada sob o nº 12. que os Autores declararam, no termo de entrega do locado, que não são devidas as rendas do mês de Maio de 2020 e de Junho de 2020, “vencidas em Abril e Maio de 2020” (factualidade que não foi objecto de impugnação), pelo que se afigura que os próprios Autores consideraram como entregue o locado, para efeitos da indemnização em referência, no mês de Março de 2020.
Em consequência, na ausência de mora, não têm os Autores o direito de exigir aos Réus a indemnização correspondente ao dobro do montante da renda pelo atraso na restituição do imóvel, apenas lhe podendo exigir a indemnização a que alude o art. 1045º, nº 1 do Cód. Civil, ao contrário do sustentado pelos apelantes.”
Mais se argumentou:
“Quanto ao período de tempo relevante para cômputo da indemnização em referência, entendeu o tribunal a quo, “considerando a expressa menção a não serem devidas as “rendas” de maio e junho de 2020 (vencidas em abril e maio)”, “que a indemnização deverá ser circunscrita ao período de fevereiro de 2019 a março de 2020”.
Sustentam os apelantes que, a este período de tempo (de Fevereiro de 2019 a Março de 2020), deverá “acrescer o valor da renda de abril de 2020, vencida em março desse ano … (porquanto houve um perdão quanto aos meses de maio e junho de 2020, conforme Termo de Entrega do imóvel)” – art. 26º das motivações de recurso.
Porém, tal pretensão não poderá proceder face à concreta factualidade que foi dada como provada sob o nº 12., que não foi objecto de impugnação, de onde resulta que os Autores declararam, no termo de entrega do locado, que não são devidas as rendas do mês de Maio de 2020 e de Junho de 2020, “vencidas em Abril e Maio de 2020”.”
E, por fim, quanto ao montante da renda devida como indemnização:
“No cálculo da indemnização devida nos termos do nº 1 do art. 1045º do Cód. Civil, por referência ao mencionado período de tempo, o tribunal a quo considerou, não a renda acordada no contrato de arrendamento escrito celebrado entre as partes no valor de € 3.500,00 (cfr. factos provados sob o nº 4.), mas metade desse valor (€ 1.750,00) (…).
Os apelantes insurgem-se contra esse entendimento pelo seguinte: os Autores nunca aceitaram a redução da renda para metade e o silêncio não vale como aceitação tácita dessa redução, “conforme foi decidido no âmbito do Processo n.º 21726/17.4..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Central Cível de ..., Juiz ...4 (cuja Sentença transitou em julgado a 13/09/2021), que opunha as mesmas partes com a ressalva de que, nesse processo, os ora AA. eram RR. e a ação foi julgada totalmente improcedente e, consequentemente, os ali RR., aqui AA., foram absolvidos da totalidade do pedido”; o único preceito que releva para efeitos da admissibilidade da redução da renda é o art. 1040º do Cód. Civil, o qual não foi tido em consideração pelo Tribunal a quo; os Autores não aceitaram a redução do valor da renda, tendo-se oposto à primeira renovação do contrato, precisamente porque não estavam dispostos a pactuar com a actuação dos Réus, que deliberadamente os prejudicava; e os recibos foram emitidos pelo valor que estava a ser pago pelos Réus (correspondente a metade da renda) por razões fiscais, não existindo, por tudo isto, qualquer situação de abuso de direito por parte dos Autores.
Vejamos.
Como resulta do que acima deixámos dito, está em causa o pagamento da indemnização pelo atraso na restituição da coisa, que se encontra legalmente fixada no nº 1 do art. 1045º do Cód. Civil, e que corresponde, de forma peremptória, ao valor das rendas que as partes tenham estipulado.
Com efeito, esta norma fixa, de forma taxativa, o quantum indemnizatório, considerando que o prejuízo em que incorre o senhorio pela indisponibilidade da coisa locada é equivalente ao valor do respectivo uso, ou seja, a renda estipulada no contrato, afastando as regras gerais dos arts. 562º e ss. do Cód. Civil para o seu cálculo.
E, isto assim é, porque a razão de ser da norma “é a de que extinto o contrato continua a renda, apesar de tudo, a ser o referencial de equilíbrio entre as prestações da relação de liquidação. E isso com base na ideia de que a renda, tendo resultado da auto-regulação das partes, representa, em regra, o justo valor do lucro cessante derivado da indisponibilidade da coisa locada” – Acórdão do STJ, de 24/01/2006, Relator Fernandes Magalhães, acessível em www.dgsi.pt.
No caso dos autos, a renda estipulada no contrato de arrendamento celebrado por escrito foi de € 3.500,00, tendo os arrendatários, por sua iniciativa, passado a pagar metade desse valor, invocando a privação “do pleno uso do locado”, com base no art. 1040º do Cód. Civil, conforme resulta da factualidade provada sob o nº 6.
O tribunal a quo entendeu como “razoável a exigência da redução do valor da renda (ainda que, porventura, em medida diversa)”, face “às condições de habitabilidade do locado”, que ainda que “não impedissem a sua utilização, não conferiam, seguramente, as condições de dignidade que se impunham, tanto mais para um imóvel cujo valor de renda que se pedia/oferecia era bastante elevado”.
Não podemos acolher este entendimento em sede do que ora nos ocupamos, de determinação do valor da renda “que as partes tenham estipulado” para calcular o valor da indemnização prevista no art. 1045º, nº 1 do Cód. Civil. Aliás, nem se compreende que o tribunal a quo reconheça que não se verificam os pressupostos legais previstos no art. 1040º, nº 1 do Cód. Civil para a redução do valor da renda (“privação ou diminuição do gozo da coisa locada”), ao afirmar que as “condições de habitabilidade do locado” “não” impedem “a sua utilização”, e, depois, apele a “condições de dignidade que se impunham” para atender à redução do valor da renda. O certo é que, da factualidade provada nestes autos não resulta uma diminuição do gozo do locado que legitime a redução do valor da renda para metade, nos termos daquele preceito, nem tal direito foi reconhecido na acção que correu termos entre as partes, onde os arrendatários/aqui Réus também invocaram tal pretensão (cfr. factos provados sob os nos 22. a 27.).
Por outro lado, o entendimento do tribunal a quo – se bem o compreendemos – é de considerar a existência de acordo entre as partes no sentido de redução do valor da renda para metade, com base no “comportamento tácito que os Autores revelaram ao não dar qualquer resposta em sentido contrário, ao aceitarem o pagamento feito no valor de metade do estipulado, emitindo os respectivos recibos, sem qualquer ressalva, e comunicando apenas 6 meses depois que se opunham à renovação do Contrato, fazendo, assim, confiar os Réus que não seria contra a sua vontade tal redução, face às constantes queixas e considerando que,antes da presente ação, nunca os Autores optaram pela resolução por falta de pagamento de rendas”.
Não podemos acolher, nem concordar com tal fundamentação, olhando a todo o contexto fáctico que envolveu a execução do contrato dos autos, que se encontra espelhado nos factos provados.
Senão, vejamos.
Como é consabido, a declaração negocial pode ser expressa (quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade) ou tácita, sendo que, para haver declaração tácita é necessário que o declarante haja praticado factos dos quais se possa deduzir, com segurança, a vontade provável de ele emitir certa declaração – art. 217º, nº 1 do Cód. Civil. “Os factos de que a vontade se deduz, na declaração tácita, chamam-se factos concludentes (facta concludentia) ou significativos. (…) O verdadeiro sentido do n.º 1 do art. 217.º, na fixação do conceito de declaração tácita, é o de os factos concludentes deverem revelar, com probabilidade plena, a vontade do declarante.” – Luís A. Carvalho Fernandes, in “Teoria Geral do Direito Civil II Fontes, Conteúdo e Garantia das Relações Jurídicas”, 5ª ed. revista e actualizada, Universidade Católica Editora, 2017, p. 282. De seguida, in ob. e loc. citados, esclarece o mesmo Autor: “Para a compreensão da distinção entre estas duas modalidades de declaração importa ter presente que está aqui em causa o significado atribuível aos comportamentos humanos, enquanto meios de manifestação da vontade. / Ora, a este respeito, verifica-se que esses comportamentos podem ser atendidos tanto pelo que directamente significam (declaração expressa), como pelo que neles implicitamente se contém e deles se pode deduzir (declaração tácita). Por assim ser, é perfeitamente admissível a hipótese de um mesmo comportamento valer como manifestação expressa e como manifestação tácita de duas vontades distintas.”
Seguindo, ainda, os ensinamentos do mesmo Autor, in ob. cit., p. 284, é de reter que, “na declaração tácita, a partir de facta concludentia deduz-se uma vontade e dá-se como verificada uma declaração imputável a certa pessoa. Por assim ser, «na declaração tácita, entre os factos concludentes e a declaração há um nexo de presunção, juridicamente logico-dedutivo. A declaração não é formada pelos factos concludentes, deduz-se deles. A vontade funcional ounegocial é necessariamente, pelo menos logicamente, anterior aos facta concludentia, que não têm no plano jurídico ontologicamente nada a ver com ela».
Essa dedução, na declaração tácita proprio sensu, é judicial. Em última análise, cabe ao juiz apurar se de certo comportamento se pode deduzir, de modo indirecto, mas «com toda a probabilidade», certa vontade negocial.”
Cumpre, ainda, notar que o contrato de arrendamento está sujeito a forma escrita (cfr. art. 1069º, nº 1 do Cód. Civil). Donde, a estipulação posterior à sua conclusão no sentido de redução para metade do valor da renda sempre estaria sujeita à forma escrita, uma vez que não se pode deixar de considerar que uma cláusula de alteração para metade do valor da renda estipulado inicialmente é abrangida pela razão da exigência da forma escrita (cfr. art. 221º, nº 2 do Cód. Civil).
O que significa que a existência de uma declaração tácita de aceitação da redução para metade do valor da renda (entendimento do tribunal a quo) sempre implicaria que a forma escrita fosse observada em relação aos factos de que a manifestação de vontade se deduz (factos concludentes), de acordo com o nº 2 do art. 217º do Cod. Civil.
Dito isto, apreciemos o caso dos autos.
Da factualidade provada resulta a constatação de que, em data anterior à carta dos Réus de 22/01/2018 (onde os mesmos invocam a redução para metade do valor da renda, com fundamento na privação do gozo do locado: cfr. factos provados sob o nº 6), já a questão aí invocada, de privação do gozo do locado e subsequente alegado direito dos arrendatários de redução da renda para metade do valor, se encontrava a ser objecto de controvérsia judicial entre as partes na acção (que data do ano de 2017) que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., sob o nº 21726/17.4... - acção essa, a que é expressamente feita referência naquela carta (“o que deu inclusive azo à instauração de acção judicial contra V. Exas.”).
Ora, perante esta constatação e à luz das considerações deixadas ditas sobre a declaração tácita e a exigência de forma escrita do contrato de arrendamento, é manifesto que não se pode deduzir – e muito menos “com toda a probabilidade” – da mera falta de resposta dos Autores à aludida carta dos Réus de 22/01/2018 a respectiva vontade negocial de aceitar a redução do valor da renda ali referida por estes, atendendo, inclusive, a que, naquela acção, os Autores (ali Réus) apresentaram contestação com reconvenção, da qual resulta que os mesmos sustentavam que o valor da renda continuava a ser € 3.500,00 mensais (cfr. factos provados sob o nº 25.).
Pelos mesmos motivos, a aceitação por parte dos Autores dos pagamentos em montantes correspondentes a metade do valor estipulado como renda não é de molde a fazer supor o acordo na redução do valor da renda para metade.
Acresce que, também não tem esse efeito (de fazer supor o acordo na redução do valor da renda para metade) a emissão pelos Autores dos respectivos recibos (cfr. factos provados sob o nº 14.), uma vez que cada um dos recibos emitidos respeita ao valor efectivamente satisfeito pelos Réus e não ao valor da renda que era devida, e a sua emissão sempre corresponderia ao cumprimento de uma obrigação de natureza fiscal por parte dos Autores. Neste sentido, cfr. Acórdão do TRC de 06/03/2018, Relatora Maria João Areias (onde se escreve: “A partir do momento em que não tem meios de recusar tal recebimento, não se nos afigura censurável ou vinculador, o facto de a autora acabar por emitir o competente recibo e a circunstância de declarar às Finanças o valor por si efetivamente recebido e não o valor que, em seu entender, se encontraria em vigor, mas que a Ré nunca pagou”); e Acórdão do TRL de 07/10/2021, Relator Carlos Castelo Branco (onde se sumaria: “A emissão de recibos de renda por valor inferior ao devido, não consubstancia renúncia ou moratória dos senhorios no recebimento das rendas em falta”) – ambos, acessíveis em www.dgsi.pt.
É de notar, ainda, que os Réus começaram a não pagar a renda no valor estipulado em Março de 2018 (cfr. factos provados sob o nº 8) e os Autores, passados quatro meses, em 23/07/2018, enviaram uma carta aos Réus comunicando a sua oposição à renovação do contrato, fazendo, ainda, aí constar: “Registamos que (…), à data, encontram-se em dívida as rendas referentes aos meses de Maio a Agosto de 2018” (cfr. factos provados sob o nº 10.), sinal evidente que os Autores não concordavam com o pagamento que foi sendo feito desde Março de 2018 de metade do valor da renda devido. Na verdade, como é cristalino, para um declaratário normal (cfr. art. 236º, nº 1 do Cod. Civil), se os Autores aceitassem a redução do valor da renda para metade, não afirmariam existir rendas em dívida naquele período de tempo durante o qual os Réus pagaram € 1.750 por mês de renda (cfr. factos provados sob o nº 13.).
Em suma, toda a factualidade a que se vem aludindo não permite concluir no sentido do entendimento do tribunal a quo, quer (i) de ter existido acordo na redução do valor da renda para metade; quer (ii) de o comportamento dos Autores fazer “confiar os Réus que não seria contra a sua vontade tal redução”.
Por último, invoca o tribunal a quo que: “a conduta dos Autores, ao consentirem na manutenção do contrato com a manifestação expressa dos inquilinos e o pagamento de metade do valor da renda inicialmente acordado, num contexto de comunicação de várias “patologias”, sem nunca referirem discordância ou a possibilidade de resolução do contrato por falta de pagamento (integral) de rendas, sempre justificaria a invocação do instituto do abuso de direito. (…) a pretensão de um valor indemnizatório superior ao valor correspondente ao da renda (já) efetivamente pago (e, tacitamente aceite) seria violador do princípio da confiança e, assim, contrária à boa fé.”.
Também não podemos acompanhar este entendimento do tribunal a quo.
Senão,vejamos.
A cláusula geral do abuso de direito encontra-se estatuída no art. 334º do Cód. Civil, o qual dispõe ser “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Analisando tal normativo, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, 1987, p. 298-299: “Exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça” (…) e às “hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição” (…). Vaz Serra refere-se igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante (…)”.
Como se refere no Ac. do STJ de 02/06/2016, Relator Abrantes Geraldes, acessível em www.dgsi.pt: “Para que não se corra o risco de recurso abusivo ao instituto do abuso de direito,a sua aplicação pelos Tribunais obedece a requisitos especialmente rigorosos, em que designadamente se revele uma actuação do sujeito que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé. Este conceito é perspectivado em termos objectivos, relevando a verificação de um desajustamento evidente e insuportável entre a invocação ou execução pura e simples de um direito e os efeitos que isso determina na esfera da contraparte, de tal modo que estes sejam repelidos pelo sistema jurídico globalmente apreciado à luz das regras da boa fé”.
O abuso de direito pode revestir várias modalidades, entre elas, a que o tribunal a quo entendeu verificar-se nos autos: venire contra factum proprium, que se traduz no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente, estando, pois, em causa uma actuação do titular contraditória com um comportamento passado. Isto é, existem dois comportamentos da mesma pessoa, diferidos no tempo e que, por si, são lícitos, mas em que o primeiro – factum proprium – é contrariado pelo segundo.
Os pressupostos do venire contra factum proprium enquanto modalidade de abuso do direito são: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência de um “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; e o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou – cfr. Acórdãos do STJ de 12/11/2013, Relator Nuno Cameira; e de 07/03/2019, Relatora Rosa Tching, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Tendo presentes estas considerações, no caso dos autos, não se colhem elementos factuais passíveis de justificar uma situação de abuso de direito, sob a perspectiva do venire contra factum proprium, pois que não se detectam os respectivos pressupostos, falhando, desde logo, o primeiro: o comportamento contraditório.
Na verdade, nunca os Autores concordaram – expressa ou tacitamente, como resulta do que acima deixámos dito – com o pagamento do valor de metade da renda. Mais, a discordância dos Autores sobre o pagamento de metade do valor da renda devida foi manifestada na acção enunciada nos factos provados sob os nos 22. a 27. e na carta enviada aos Réus passados meros 4 meses do início do pagamento de metade do valor devido, onde comunicaram não só a sua oposição à renovação do contrato, mas também que se encontravam rendas em dívida (cfr. factos provados sob o nº 10.), como se viu.
Nunca tendo os Autores aceite a redução do valor da renda, não se vislumbra onde está o comportamento posterior contraditório dos mesmos, quer ao manifestarem oposição à renovação do contrato, quer ao intentarem esta acção tendo como base dos seus pedidos (principais e subsidiários) o valor de renda estipulado no contrato de arrendamento que celebraram por escrito com os Réus.
Em suma, e face à factualidade provada, não se nos afigura que a pretensão dos Autores formulada nestes autos, de o cálculo da indemnização devida nos termos do art. 1045º do Cód. Civil ter como base o valor da renda estipulada no contrato de arrendamento celebrado por escrito entre as partes, seja violadora do princípio da confiança e contrária à boa-fé, ao contrário da conclusão do tribunal a quo. Donde, é aquele o valor a atender para os mencionados efeitos.”
Concluindo:
“Importa, então, determinar o valor da indemnização devida aos Autores, nos termos do art. 1045º, nº 1 do Cód. Civil, atendendo ao valor da renda estipulada no contrato, de € 3.500,00 mensais.
O período de tempo a atender compreende os meses de Fevereiro de 2019 a Março de 2020 (cfr. supra), ou seja, 14 meses, no valor total de € 49.000,00 [€ 3.500,00 x 14]. Deduzindo as quantias pagas pelos Réus entre Fevereiro de 2019 a Março de 2020 (cfr. factos provados sob o nº 13.), no valor total de € 24.500,00 [€ 1.750,00 x 14], encontramos um montante final de € 24.500,00 [€ 49.000,00 - € 24.500,00].”
3.2.3. Pela bondade e completude do que se exarou no acórdão recorrido, nomeadamente pelo acerto da subsunção da materialidade apurada aos regimes jurídicos aplicáveis, assim como pela doutrina e jurisprudência acolhidas na interpretação do art. 1045º do CCiv., não vemos como deixar de sufragar o acórdão recorrido, remetendo para a sua fundamentação nos termos do art. 663º, 5, do CPC, ex vi art. 679º, do CPC.
Na verdade (com algumas precisões da nossa lavra).
A conduta dos Réus arrendatários após a cessação do contrato de arrendamento por oposição lícita à renovação dos Autores senhorios não reflecte, no atraso relativamente ao dever de restituição do locado após a extinção jurídico-formal do contrato (arts. 1038º, i), e 1081º, 1, do CCiv.), uma situação ilegítima de mora que lhes seja imputável e permita a aplicação do n.º 2 do art. 1045º do CCiv (aqui em conjugação com os arts. 804º, 2, e 805º, 2, b), do CCiv.), tendo em conta particularmente a situação judicial controvertida, relativamente a “direito de retenção” reivindicado pelos arrendatários sobre o imóvel, que vinha de momento anterior ao momento de cessação do contrato de arrendamento (nos termos sublinhados pelo acórdão recorrido – cfr. factos provados 10., 11. e 22. a 27. –, nomeadamente quando se surpreende a proximidade temporal do trânsito em julgado do saneador-sentença intercalar sobre o alegado direito de retenção averiguado nesse processo e a entrega do locado – factos provados 12. e 23.).
Logo, a materialidade apurada aponta para a situação visada no n.º 1 do art. 1045º do CCiv. Assim, uma vez que o adiamento ou diferimento da restituição da coisa locada se afigura nesta previsão normativa como acto lícito (uma vez autorizado, tolerado ou admitido pelo ordenamento jurídico, por ocorrência de litígio judicial relevante ou decisão de tribunal ou pelas partes), numa espécie de prolongamento da relação locatícia sem culpa do locatário, o pagamento das rendas vencidas corresponde a uma indemnização por acto lícito8, a saber, pela mora consentida por causa justificativa legítima9; ao invés, a “mora” pressuposta no n.º 2 do art. 1045º implica(ria) omissão de entrega voluntária e culposa, conduzindo a uma indemnização por acto ilícito (sancionada por isso com o pagamento das rendas em dobro).
Por seu turno, a indemnização devida pela aplicação do art. 1045º, 1, do CCiv. até ao momento da restituição não pode deixar de ser computada em função da renda que «as partes tenham estipulado», não subsistindo materialidade bastante no caso dos autos para, em sentido diverso, fazer aplicar os regimes da declaração negocial tácita (art. 217º, 1, 2.ª parte, do CCiv.) e do abuso de direito (art. 334º do CCiv.), tendo em vista a referência à metade da renda que vinha sendo paga pelos Réus arrendatários.
Não subsistindo tais argumentos, resta aplicar o critério legal, pois a renda, resultante da auto-regulação das partes, constitui o critério justo de aferição do lucro cessante derivado da indisponibilidade da coisa locada10.
Destarte, não têm como deixar de falecer as Conclusões X) a JJ) e OO) da revista.
III) DECISÃO
Em conformidade, julga-se improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas da revista a cargo dos Recorrentes.
STJ/Lisboa, 12 de Dezembro de 2023
Ricardo Costa (Relator)
Maria Olinda Garcia
Leonel Serôdio
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).
_________________________________________________
1. Cfr. contra-alegações em sede de apelação, sob ref.ª CITIUS 35962442.↩︎
2. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “As formas de composição da acção”, Estudos sobre o novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 219-220.↩︎
3. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “As formas de composição da acção”, loc. cit., pág. 222.↩︎
4. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “As formas de composição da acção”, loc. cit., págs. 222-223 (a quem pertence a transcrição), FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pág. 437.↩︎
5. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1952, 3.ª ed., reimp. 2012, sub art. 668º, pág. 143.↩︎
6. JOSÉ LEBRE DE FREITAS /ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, Almedina, Coimbra, 4.ª ed., 2021, sub art. 615º, pág. 737.↩︎
7. V. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 609º, pág. 730, com referência ao (muito divulgado) Ac. do STJ de 7/4/2016, processo n.º 842/10, Rel. LOPES DO REGO, in www.dgsi.pt, que aqui se segue.↩︎
8. V., em conjunto, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, Volume II (artigos 762.º a 1250.º), 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1997, sub art. 1045º, pág. 382, MARIA OLINDA GARCIA, Arrendamento para comércio e fins equiparados, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, págs. 227-228, ELSA SEQUEIRA SANTOS, Código Civil anotado, Volume I (Artigos 1.º a 1250.), coord.: Ana Prata, Almedina, CEDIS, Coimbra, 2017 (reimp. 2022), sub art. 1045º, pág. 1308, ANA AFONSO, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações. Contratos em Especial, coord.: Agostinho Guedes/Júlio Gomes, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2023, sub art. 1045º, pág. 429.↩︎
9. E mora do locatário existe sempre para qualquer das previsões do art. 1045º, logo que se verifique o não cumprimento da obrigação de restituição do locado a partir do momento da cessação do contrato de locação: neste sentido, v. Ac. do STJ de 2/2/2022, processo n.º 2257/18, Rel. ANTÓNIO MAGALHÃES, in www.dgsi.pt.↩︎
10. Neste sentido, ANA AFONSO, Comentário ao Código Civil cit., sub art. 1045º, pág. 430; Ac. do STJ de 24/1/2006, processo n.º 3757/06, Rel. FERNANDES MAGALHÃES, in www.dgsi.pt.↩︎