COMPETÊNCIA MATERIAL
ACÇÃO POPULAR
Sumário

I - O elemento da ação fundamental para determinar a forma do processo é o pedido, ou seja, o processo deve seguir a forma em cuja finalidade se integre o pedido formulado pelo autor.
II - Nos termos do artigo 12.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto a ação popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil.
III - A ação popular, não obstante tenha algumas especificidades estatuídas na citada Lei 83/95 não é uma ação especial, uma vez que o seu pedido não se ajusta a qualquer das suas formas previstas na lei adjetiva.
IV - Por essa razão a competência para julgar ação popular cujo valor ascende a € 60.000,00 pertence aos juízos centrais cíveis e não aos juízos locais cíveis.

Texto Integral

Processo nº 1096/23.2T8PVZ.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim-J2
Relator: Des. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Ana Paula Amorim
2º Adjunto Des. Jorge Martins Ribeiro
5ª Secção
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
A..., com sede na Praceta ..., ... rés-do-chão, direito, freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia e número de pessoa coletiva ..., intentou a presente ação popular contra B..., SA, com sede na Rua ..., ..., distrito de Lisboa formulando os seguintes pedidos:
Deve ser declarado que a Ré:
A. teve o comportamento descrito no §3 supra;
B. violou qualquer uma das seguintes normas:
1. artigo 35 (1, c), do decreto lei 28/84;
2. artigos 6, 10, 11 (1), 12, do decreto lei 330/90;
3. artigo 311 (1, a, e), do decreto lei 110/2018;
4. artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto lei 57/2008;
5. artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96;
6. do artigo 11, da lei 19/2012;
7. artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/CE;
8. artigo 3, da diretiva 2006/114/CE;
9. artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/CE;
10. artigo 102, do TFUE;
C. especulou nos preços das embalagens de ..., da marca ... na sua sucursal, localizada em Rua ..., Edifício ..., ..., Trofa, distrito do Porto;
D. publicitou enganosamente o preço das embalagens de ..., da marca ..., na sua sucursal localizada em Rua ..., Edifício ..., ..., Trofa, distrito do Porto;
E. teve o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e que o mesmo é ilícito e 1. doloso; ou, pelo menos, 2. grosseiramente negligente;
F. agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos suprarreferidos, com os autores populares;
G. com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;
H. causou e causa danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços, sendo a ré condenada a reconhece-lo. e em consequência, de qualquer um dos pedidos supra, deve a ré ser condenada a:
I. a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço, seja a título doloso ou negligente, em montante global:
1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
J. subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em 0,3 euros por cada embalagem de ..., da marca ..., respetivamente vendida na sua sucursal, com estabelecimento localizado em Rua ..., Edifício ..., ..., Trofa, distrito do Porto, durante 13.65.2023, às 08h00, e 21.06.2023, às 15h24;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
K. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, mas nunca inferior a 1 euro por autor popular;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
L. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares, in casu, todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:
1. nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 1 euro por autor popular, in casu, agregados familiares privativos;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
M. ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente tiver ou venha ainda a ter com o processo e com eventual incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela autora interveniente27;
N. porque o artigo 22 (2), da lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que A..., agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes.
subsidiariamente, e nos termos do §4 (m):
O. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pelo sobrepreço cobrado, tal como sustentando em § 4 (m) supra.
em qualquer caso, deve:
P. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danos que tal comportamento lhes causou;
requer-se ainda que Vossa Excelência:
Q. decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;
R. decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 16, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;
S. seja publicada a decisão transitadas em julgado, a expensas da ré e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 19 (2), da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito;
T. declare que a autora interveniente tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança das quantias que a ré venha a ser condenada, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença;
U. declare, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que a ré deve proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo tribunal para proceder à administração da mesma tal como requerido em infra em §16, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene a ré nesse pagamento;
V. declare uma remuneração, com uma taxa anual de 5 % sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) nos termos do requerido infra em §16, a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar;
W. declare que a autora interveniente tem direito a uma quantia a liquidar em execução de sentença, a título de procuradoria, relativamente a todos os custos que teve com a presente ação, incluindo honorários com todos os serviços prestados, tanto de advogados, como de técnicos especialistas, como com a obtenção e produção de documentação e custos de financiamento e respetivo imposto de valor acrescentado nos termos dos artigos 21 e 22 (5), da lei 83/95, sendo tais valores pagos exclusivamente daquilo que resultarem dos montantes prescritos nos termos do artigo 22 (4) e (5), da lei 83/95.
X. declare a autora interveniente isenta de custas;
Y. condene a ré em custas.
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Conclusos os autos foi proferido despacho que, julgando o tribunal incompetente em razão da matéria para o processamento da ação, indeferiu liminarmente a petição inicial.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
1. Os recorrentes, autores populares, interpõe o presente recurso por entenderem que o tribunal a quo não fez a melhor e mais correta interpretação do direito ao entender verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal para conhecer a presente ação e em consequência ter indeferido a petição inicial por despacho liminar.
2. O presente recurso é de apelação e é feito nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1, a) e 647 (1), todos do CPC, para o venerando tribunal da relação do porto, o qual subirá de imediato e com efeito meramente devolutivo.
3. Os autores têm legitimidade para interpor o presente recurso acompanhado das respetivas alegações sob a matéria de direito (cf. artigo 631, do CPC) e estão em tempo de o fazer (cf. artigo 638, do CPC).
4. Os recorrentes, mui respeitosamente, discordam da douta sentença pelas razões de direito vertidas no § 6 supra, para onde se remete para uma completa compreensão e evitando aqui uma repetição fastidiosa e prolixa do que aí se encontra de forma resumida.
5. Mas que, resumindo, se estriba no facto de não concordarem que se verifica a exceção dilatória da competência material do tribunal para apreciar a ação, porquanto estamos perante os artigos 1 (2), 2, 12 (2), da lei 83/95, que ditam que a ação popular, tal como está configurada, deve prosseguir sob forma comum, com as especialidades referidas nas normas legais constantes da mencionada lei 83/95 e, por sua vez, a causa tem o valor de €60.000 (sessenta mil euros), tendo em conta o disposto no artigo 303 (3), do CPC.
6. Atentos ao disposto no artigo 117 (1, a, d), da lei 62/2013, em conjugação com os artigos 60 (1), 64 e 66, do CPC, é da competência dos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00.
7. Sem prejuízo das regras especiais aplicáveis e da existência de uma categoria específica no Citius para este tipo de ações, de acordo com o artigo 12 (2), da aludida lei 83/95, a ação popular civil, tal como é a presente, pode revestir de qualquer uma das formas previstas no CPC.
8. Por sua vez, o artigo 546 (1), do CPC, determina que o processo pode seguir a forma comum ou especial, sendo que que o processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial [cf. artigo 546 (2), do CPC].
9. Ora, no presente processo, não se aplica nenhuma das formas previstas nos artigos 878 e seguintes, do CPC, pelo que não estamos perante uma forma de processo civil especial.
10. Destarte, deve a presente ação seguir a forma comum, porquanto o CPC se aplica subsidiariamente (portanto em tudo que não lhe for contrário) à lei 83/95.
11. Por conseguinte, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim, é materialmente competente para prosseguir com a ação.
12. Mas caso assim não se entenda, deverá ser decretada a remessa do processo ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta, uma vez que nem houve contestação, aproveitando-se os articulados já produzidos [cf. artigo 99 (2), do CPC].
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão a decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido é, ou não, competente em razão da matéria para a impetrada acção.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A dinâmica factual a ter em conta para apreciação da questão supra enunciada é a que resulta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzido.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido é ou não competente em razão da matéria para a impetrada acção.
Como se evidencia da decisão proferida, o tribunal recorrido entendeu que, seguindo a presente ação a forma de processo especial, não se integra no elenco das ações cuja competência pertence ao Juízo Central Cível, pertencendo a competência para a julgar ao Juízo Local Cível, competência que advém da natureza de referida ação de se tratar de um processo especial, independentemente do valor atribuído à causa.
É, pois, contra este entendimento que se insurge a Autora, alegando em suma que a presente ação deve seguir a forma comum, porquanto o CPCivil se aplica subsidiariamente (portanto em tudo que não lhe for contrário) à lei 83/95.
Quid iuris?
Preceitua o artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa que “todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou coletivamente, aos órgãos de soberania, aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e, bem assim, o direito de serem informados, em prazo razoável, sobre o resultado da respetiva apreciação” (n.º 1); e que “é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra […] os direitos dos consumidores […]” (n.º 3).
O direito de ação popular, constitucionalmente consagrado, veio a ser regulamentado pela Lei n.º 83/95, de 31 de agosto (com a redação que lhe foi conferida pelo D.L. n.º 214-G/2015, de 2 de outubro), que “define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de ação popular” (cfr. artigo 1.º, n.º 1), sendo que, sem prejuízo do previsto no n.º 1 do artigo 1.º constituem “designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público” (cfr. artigo 1.º, n.º 2).
Nos termos do artigo 2.º da citada Lei que rege sobre a “Titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de ação popular”, prevê-se que:
1 - São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda.
2 - São igualmente titulares dos direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição.
O artigo 3.º do mesmo diploma estabelece os requisitos da legitimidade ativa das associações e fundações no exercício da ação popular, a saber:
a) A personalidade jurídica;
b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate;
c) Não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.
Na ação popular, o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de autoexclusão (“opt-out”), com as consequências constantes da lei (cfr. artigos 14.º e 15.º da Lei n.º 83/95).
Por sua vez o artigo 12.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto sob a epígrafe “Ação popular administrativa e ação popular civil” estatui:
1 - A ação popular administrativa pode revestir qualquer das formas de processo previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
2 - A ação popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil.
A forma de processo é o modo específico como o legislador definiu o modelo e os termos dos atos a praticar e dos trâmites a observar pelas partes e pelo tribunal com vista à aquisição adequada dos elementos de facto e de direito que permitem decidir uma determinada pretensão, podendo assim definir-se como a configuração da estrutura de atos e procedimentos a que deve obedecer a preparação e julgamento de determinado litígio.
Na nossa legislação processual civil o autor não tem liberdade para escolher a forma de processo que julgue melhor servir os seus interesses, pelo contrário, se a sua pretensão couber dentro do âmbito de aplicação de determinada forma de processo é essa e apenas essa a que pode seguir a sua ação.
No processo declarativo, existe a forma do processo comum, que é única (artigo 548.º do Código de Processo Civil) e existem formas de processo especial, que são diversas (artigo 549.º do Código de Processo Civil).
O processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei, enquanto o processo comum se aplica a todos os casos a que não corresponda processo especial (artigo 546.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Consagra-se deste modo o princípio da especialidade das formas processuais. Por esse motivo, para saber qual é a forma do processo adequada à pretensão a deduzir, o caminho passa por determinar se esta se ajusta ao objeto de algum dos processos especiais previstos na lei, cabendo-lhe a forma de processo especial cuja finalidade seja precisamente essa pretensão ou a forma do processo comum se a pretensão não estiver compreendida nas finalidades específicas de nenhum processo especial.
O elemento da ação fundamental para determinar a forma do processo é o pedido. O processo deve seguir a forma em cuja finalidade se integre o pedido formulado pelo autor.
É, portanto, em face da pretensão deduzida que se deve apreciar a propriedade ou inadequação da forma da providência solicitada. É o pedido formulado pelo autor ou requerente e não a causa de pedir que determina a forma de processo a utilizar em cada caso, conforme jurisprudência dominante ou até uniforme.[1]
No mesmo sentido pronunciou-se Alberto dos Reis[2], afirmando que “Quando a lei define o campo de aplicação do processo especial respetivo pela simples indicação do fim a que o processo se destina, a solução do problema da determinação dos casos a que o processo é aplicável, está à vista: o processo aplicar-se-á corretamente quando se use dele para o fim designado pela lei. E como o fim para que, em cada caso concreto, se faz uso do processo se conhece através da petição inicial, pois que nesta é que o autor formula o seu pedido e o pedido enunciado pelo autor é que designa o fim a que o processo se destina, chega-se à conclusão seguinte: a questão da propriedade ou impropriedade do processo especial é uma questão, pura e simples, de ajustamento do pedido da ação à finalidade para a qual a lei criou o respetivo processo especial. Vê-se, por um lado, para que fim criou a lei o processo especial; verifica-se, por outro, para que fim o utilizou o autor. Há coincidência entre os dois fins? O processo especial está bem empregado. Há discordância entre os dois fins? Houve erro na aplicação do processo especial”.
Isto dito, como resulta do artigo 12.º, supratranscrito, a ação popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil.
Ora, como refere José Eduardo Figueiredo Dias[3] “a ação popular não é uma ação especial: “(…) o que está em causa é apenas um direito de ação judicial e não um meio ou forma de processo (…)”permitindo a lei apenas o alargamento da legitimidade atribuída aos titulares para defesa dos bens mencionados no artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 83/95, artigo 9.º, n.º 2, do Código do Processo dos Tribunais Administrativos e no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição, sendo a ação intentada através dos meios processuais existentes no foro cível ou administrativo” (negrito e sublinhados nossos).
Na verdade, perscrutando os processos especiais que a nossa lei adjetiva prevê (cfr. artigos 878.º e seguintes, do CPCivil) nenhum delas se aplica à presente ação.
Obtempera o tribunal recorrido que importa ter presente que, para além dos processos especiais expressamente previstos e regulados nos arts. 878.º e segs. do Código de Processo Civil, há outros processos especiais previstos em legislação avulsa, sendo que, a existência de processos especiais justifica-se pela circunstância de algumas matérias, atendendo à sua natureza e especificidade, necessitarem de uma tramitação processual própria, i. e., diferente do processo comum, enumerando depois a este propósito algumas dessas especificidades previstas na citada Lei n.º 83/95, de 31 de agosto nos seus artigos 2.º, 3.º e 12.º a 21.º, ou seja, contrariando a normativo em causa, a interpretação do tribunal recorrido é a de que, de forma indireta, ao prever as citadas especificidades, a referida Lei cria, ela própria, um processo especial para estes casos.
Não se pode, salvo o devido respeito, sufragar este entendimento.
Repare-se, como já supra se referiu, nos termos do artigo 12.º da cita Lei 83/95 ação popular civil apenas pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil, ou seja, a remissão que o diploma em causa faz para as formas de processo previstas na nossa lei adjetiva outra coisa não pode significar que ele próprio não quis criar qualquer forma de processo para a ação popular.
Destarte, tendo em conta, entre o mais, os artigos 1.º, nº 2, 2.º, 12.º, nº 2, da Lei 83/95, na sua atual versão (cf. artigo 53, da Constituição da República Portuguesa), os autos de ação popular, tal como a ação está configurada, devem prosseguir sob forma comum, com as especialidades referidas nas normas legais constantes da mencionada Lei.
Acresce que, a causa tem o valor de €60.000 (sessenta mil euros), face ao disposto no artigo 303.º, nº 3 do CPCivil, que estabelece que [n]os processos para tutela de interesses difusos, o valor da ação corresponde ao do dano invocado, com o limite máximo do dobro da alçada do Tribunal da Relação.
Ora, o disposto no artigo 117.º, nº 1 als. a) d), da Lei 62/2013, em conjugação com os artigos 60.º, nº 1, 64.º e 66.º, do CPCivil, atribui a competência dos juízos centrais cíveis para a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euros) 50.000,00.
A Constituição da República Portuguesa, estabelece que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (artigo 211.º, nº 1) e que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais” (artigo 212.º, nº 3).
Na sequência destes princípios programáticos, também o legislador ordinário, nos artigos 64.º e ss. do CPCivil e 40.º, nº 1 da Lei 62/2013, de 26/08, estabeleceu que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Assim, a competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal não judicial. Isto é: os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual e, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual.
Constituem, pois, os tribunais judiciais a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência genérica), enquanto os restantes tribunais, constituindo excepção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
Ora, a ação popular, nos termos da lei 83/95, não é uma ação de natureza especial que seja afeta a um juízo especializado, mas sim uma ação popular declarativa sob a forma de processo comum, com um valor de € 60.000,00 tal como imposto por lei, pelo que a competência é dos tribunais judiciais comuns, in casu, atento ao valor da causa, aos Juízos Centrais Cíveis.
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Procedem, assim, as conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respetivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente por não provada e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida, declara-se o tribunal a quo competente em razão da matéria para a subsequente tramitação dos presentes autos.
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Sem custas (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 13 de novembro de 2023
Manuel Domingos Fernandes
Ana Paula Amorim
Jorge Martins Ribeiro
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[1] Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 14/11/94, in http://www.dgsi.pt/jstj00025880.
[2] In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pág. 288.
[3] In “As providências cautelares na ação popular civil ambiental e o relevo do princípio da proporcionalidade”, in CEDOUA, n.º 9, ano V, 2002, p. 140.