I. Em termos de “prazos de duração máxima da prisão preventiva” estabelece o nº 1 do artigo 215º do CPP que, em fase de inquérito, a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação. Prazo este que, porém, nos termos do nº 2, é alargado para seis meses nos casos em que o inquérito tem por objeto crimes que entrem na classificação de criminalidade violenta, tal como definida na al. j), do nº 1, do CPP.
II. Integram-se na criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física e a liberdade pessoal e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos. O crime de roubo é punido, nos termos do artigo 210, nº 1, do CP, com a pena de prisão de 1 a 8 anos. E, como se sabe, a incriminação por roubo tem como bens jurídicos protegidos, além da propriedade, a vida, a integridade física e a liberdade.
III. Por isso, o prazo de prisão preventiva para inquérito que investigue tal crime de roubo, até à dedução da acusação, é de seis meses.
I. RELATÓRIO
I.1. Invocando o disposto no artigo 31.º da Constituição da Républica Portuguesa conjugado com os artigos 222.º 2 al. c) e artigo 223.º do Código do Processo Penal, AA veio apresentar petição de habeas corpus, com os seguintes fundamentos:
No dia 23.05.2023 o arguido foi detido, às 9 horas, à ordem dos presentes autos.
Tendo sido submetido a primeiro interrogatório no dia 24.05.2023.
Na sequência, foi-lhe aplicada a medida de prisão preventiva.
Que se encontra a cumprir desde aquela data no Estabelecimento Prisional de ....
O que se computa, em 24/10/2023, em 5 meses.
Nos autos ainda não foi deduzida acusação.
Com o que, afirma, mostra-se excedido o prazo máximo permitido de prisão preventiva sem que se seja formulada acusação – dos 4 meses – artigo 222.º 2 al. c) do Código do Processo Penal.
Adita: “Concretizando-se o abuso de poder em prisão ilegal, há-de a legalidade resultar – art. 222.º, n.º 2, do CPP – ou de a prisão ter sido efetuada por entidade incompetente – al. a) – , ou de ser motivada por facto por que a lei a não permite – al. b) – ou de se manter para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - al. c).
E há-de a privação de liberdade ilegal manter-se no momento em que providência é apreciada.
Os prazos de duração máxima de prisão preventiva previstos no art. 215.º, do CPP contam-se a partir do momento em que o arguido é sujeito a essa medida de coacção, por despacho judicial.
A detenção, em flagrante delito ou fora de flagrante delito, ainda que imediatamente preceda a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, é uma situação de privação de liberdade distinta da prisão preventiva e, embora em certas circunstâncias produza os mesmos efeitos (v.g., desconto no cumprimento da pena de prisão, nos termos do art. 80.°, do CP), não se confunde com ela.
Para efeitos de contagem dos prazos de duração máxima de prisão preventiva releva o tempo decorrido após a aplicação judicial de tal medida de coacção, neles não se computando o tempo da detenção
Aos prazos máximos de prisão preventiva – tal como, aliás, ao prazo para apresentação judicial do arguido detido –, aplicam-se as regras de contagem do CC, art. 296.º e art. 279.º.
O momento relevante para aferição do termo final (intercalar) dos prazos de prisão preventiva até a dedução da acusação – art. 215.º, n.os 1, al. a), 2 e 3, do CPP – é o da prolação do próprio libelo que não o da sua notificação ao arguido.”
E conclui que, não tendo sido deduzida acusação se encontra ultrapassado o prazo máximo fixado no artigo 215.º n.º 1 al. a) do Código do Processo Penal, 4 meses – artigo 222.º 2 al. c) do Código do Processo Penal ex vi artigo 215.º n.º 1 al. a), pelo que devera a presente P E T I Ç Ã O D E H A B E A S C O R P U S ser julgada procedente, por provada, e em consequência determinar-se a imediata restituição do requerente à liberdade".
E “Requer-se desde já que se proceda à inquirição do arguido nos termos do artigo 60.º1 al. a) e g) do Código do Processo Penal.”
Juntou “dois documentos”, incluindo cópias do mandado de detenção, do despacho que a ordena e do auto de detenção.
I.2. Veio a informação a que alude o artigo 223, nº 1, do CPP. Nestes termos:
“Do pedido de habeas corpus apresentado pelo arguido AA:
Remeta imediatamente a petição ao Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, com as seguintes informações:
- foi aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no dia 24 de Maio de 2023, encontrando-se indiciado, para além do mais, da prática de um crime de roubo, p. e p. pelo n.º 1 do art.º 210º do CP, sendo este um crime conotado como criminalidade violenta, de acordo com a al. j) do art.º 1º do CPP;
- decisão que foi confirmada pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no transato dia 13.10.2023 (cf. fls. 1490-T);
- A revisão da medida de coação foi efectuada por despacho de 11.08.2023 (vide ref.ª .......19);
- o prazo máximo da prisão preventiva atinge-se no próximo dia 24.11.2023 (e não hoje), data em que atingirá os seis meses, de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 215º do CPP.
Assim sendo, mantenho a medida de coação de prisão preventiva por não se ter ultrapassado qualquer prazo legal e por se manterem todos os pressupostos que a determinaram e posteriormente a mantiveram.
Instrua o correspondente apenso de habeas corpus e remeta de imediato ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 223º do CPP (com o despacho que aplicou a medida de coação, a sua revisão, a douta decisão do Tribunal da Relação de Guimarães que a manteve, a petição de habeas corpus e o presente despacho).”
I.3. O processo mostra-se instruído com certidão das peças processuais referidas na informação.
I.4. O objeto da presente petição de habeas corpus é a de saber se, neste momento, em fase de inquérito e sem ter havido dedução de acusação, está excedido o prazo de prisão preventiva, medida de coação que lhe foi aplicada em 24/05/2023.
I.5. Convocada a Secção Criminal deste Supremo Tribunal e efetuadas as devidas notificações, realizou-se a audiência pública, nos termos legais.
A Secção Criminal reuniu seguidamente para deliberação, a qual imediatamente se torna pública.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. FACTOS
Dos elementos constantes nos autos extraem-se, com pertinência para a decisão, os seguintes factos:
No inquérito pendente, ao arguido foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no dia 24 de maio de 2023, encontrando-se indiciado, além do mais, da prática de um crime de roubo, p. e p. pelo n.º 1 do art.º 210º do CP.
Decisão que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães no transato dia 13/10/2023.
A manutenção da medida de coação foi efetuada por despacho de 11.08.2023.
II.2. DIREITO
II.2.1. A Constituição da República Portuguesa (CRP) no seu artigo 27º, nº 1, estabelece que todos têm direito à liberdade, em “exigência ôntica” na expressão do acórdão do Tribunal Constitucional nº 607/03. Mas não absolutiza tal direito, porque, admite que seja restringido em expressos casos, nomeadamente em casos de aplicação de prisão preventiva como medida de coação, nos termos do nº 3, al. b).
Todavia prevendo que na concretização de tais restrições, pode ocorrer abuso de poder a CRP no seu artigo 31º, dando corpo ao primado da liberdade, consagrou a providência de habeas corpus e tal importância lhe atribuiu que fixou mesmo o prazo célere e urgente de oito dias para a sua decisão, em audiência contraditória, e permitiu que um terceiro a requeresse. Na sequência o CPP conformou-a em providência simples e expedita dirigida diretamente ao Presidente do STJ.
Nos termos do artigo 31, nº 1, da CRP, na redação da revisão constitucional de 1997, “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Na definição constitucional, é, pois, “forma de insurgimento jurisdicionalmente tutelado contra abuso de poder, manifesto em detenção ou prisão ilegal.” (in “Do habeas corpus Breves notas, sobretudo jurisprudenciais”, Paulo Ferreira da Cunha, “RPCC”, 2020).
“Na estrutura com que a Constituição o consagrou, o habeas corpus caracteriza-se pela sua natureza de “providência” judicial (nº 2), que tem como objeto imediato “o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal”, visando, por isso, a tutela da liberdade física ou de locomoção.” (in, “Constituição Portuguesa Anotada”, Jorge Miranda, Rui Medeiros, nota ao artigo 31)
Não é um recurso, não é um substitutivo ou sucedâneo do recurso, muito menos o recurso dos recursos, é um instituto a manter distinto dos recursos (cfr “Curso de Direito Processual Penal”, II, Germano Marques da Silva). É uma “providência” que não se confundindo com o recurso, pode até correr termos lado a lado e simultaneamente (219º, nº 2, do CPP).
Tais limitações de função, com chancela constitucional, não lhe retiram, porém, o papel e instrumento de garantia privilegiada do direito à liberdade. O habeas corpus “testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”. (in “CRP Anotada”, Gomes Canotilho e Vital Moreira).
“No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”.
“Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.
“De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão”
“Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei” (in “Habeas Corpus: passado presente e futuro”, “Julgar” on line, nº 29, 2016, Maia Costa).
Na concretização do preceito constitucional, preceitua o art. 222º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal” que o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa (n.º 1).
Por força do n.º 2 da mesma norma jurídica, a ilegalidade da prisão deve (ou tem de) provir de uma das seguintes circunstâncias, em enumeração taxativa,:
a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite;
c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
No presente caso, o requerente invoca o requisito da al. c).
A prisão preventiva está sujeita aos prazos de duração máxima previstos no artigo 215.º do CPP, findos os quais se extingue.
Em termos de “prazos de duração máxima da prisão preventiva” estabelece o nº 1 do artigo 215º do CPP que, em fase de inquérito, a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu inicio, tiverem decorrido quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação. Prazo este que, porém, nos termos do nº 2, é alargado para seis meses nos casos em que o inquérito tem por objeto crimes que entrem na classificação de criminalidade violenta, tal como definida na al. j), do nº 1, do CPP.
E integram-se na criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física e a liberdade pessoal e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos. O crime de roubo é punido, nos termos do artigo 210, nº 1, do CP, com a pena de prisão de 1 a 8 anos. E, como se sabe, a incriminação por roubo tem como bens jurídicos protegidos, além da propriedade, a vida, a integridade física e a liberdade.
II.2.2. Volvendo ao caso concreto
Assim, tendo em conta que
i. foi aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no dia 24 de Maio de 2023, encontrando-se indiciado, para além do mais, da prática de um crime de roubo, p. e p. pelo n.º 1 do art.º 210º do CP, sendo este um crime conotado como criminalidade violenta, de acordo com a al. j) do art.º 1º do CPP;
ii. e estabelecendo o artigo 215, nº 2, do CPP que o prazo máximo de prisão preventiva é de seis meses;
mister é concluir que o seu termo só se atinge próximo dia 24/11/2023.
Assim, não se mostra ultrapassado o prazo de prisão preventiva de seis meses.
E não se verifica o fundamento de habeas corpus vazado na al. c) do artigo 222, nº 1, do CPP.
E, porque a privação da liberdade, por aplicação da medida de prisão preventiva, foi ordenada por um juiz, que é a entidade competente, e foi motivada por facto pelo qual a lei a permite, não ocorre também, por conseguinte, qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do mesmo preceito.
Com o que, deve concluir-se que o pedido carece de fundamento, devendo ser indeferido [artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP].
II.3. O peticionante também veio requerer que “desde já que se proceda à inquirição do arguido nos termos do artigo 60.º1 al. a) e g) do Código do Processo Penal.”
Certamente só por lapso ou por erro de copy paste é que surge tal pedido, uma vez que não vem sustentado em qualquer fundamentação nem tal interrogatório cabe no âmbito do processamento da providência.
Pelo que vai liminarmente indeferido.
II.4. Adite-se que não é a providência de habeas corpus o local processual adequado para a aplicação de amnistia ou perdão, que, em tempo oportuno, a instância ponderará.
III. DECISÃO
Atento o exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus apresentado pelo requerente AA por falta de fundamento bastante (artº 223º, nº 4, alínea a) do CPP).
Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC’s, nos termos da tabela anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
Por se revelar manifestamente infundada a presente petição de habeas corpus vai o peticionante condenado ao pagamento de oito (8) UC´s, nos termos do artigo 223, nº 6, do CPP.
STJ, 02 de novembro de 2023
Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)
Carmo Silva Dias (Juíza Conselheira Adjunta)
Sénio Reis Alves (Juiz Conselheiro Adjunto)
Nuno António Gonçalves (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)