PRESTAÇÃO DE CONTAS
APROVAÇÃO DE CONTAS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMINISTRAÇÃO
Sumário


I - Num processo de prestação de contas, a decisão da Relação de não aprovar uma determinada despesa por falta de prova é decisão de facto.
II – Tal decisão não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça quando tenha assentado na apreciação de provas sujeitas à livre apreciação do tribunal.
III – A impugnação das verbas de despesa apresentada, prevista no n.º 2 do artigo 945.º do CPC, tanto pode consistir na negação da realização da despesa como na alegação de que a despesa efectivamente realizada é alheia à administração dos bens ou, não sendo totalmente alheia, não cabe nos poderes de administração daquele que presta as contas.

Texto Integral


Acordam na 2.ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça


AA, residente na rua ... nº 88 – 1º dto, ...,..., requereu, por apenso ao processo de inventário instaurado por óbito de BB e CC, a prestação de contas pelo cabeça-de-casal da herança, DD, residente na rua... nº 145-7º esqº, em ..., ....

Citado, o requerido apresentou contas relativas ao período de tempo em que exerceu as funções de cabeça-de-casal, ou seja, de 2014 a 2021.

A requerente contestou, pedindo se julgassem parcialmente improcedentes as contas apresentadas e se adicionasse ao saldo apresentado as receitas supervenientes, eliminando-se todas as despesas não aceites e condenando-se o apresentante no saldo final.

Entretanto, a instância sofreu a seguinte modificação subjectiva: foi admitida a intervir nos autos, ao lado da requerente, EE.

Citada, declarou que concordava com as contas apresentadas pelo cabeça-de-casal.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou as contas apresentadas pelo requerido DD (a 04.05.2021 com a rectificação de 10.09.2021) devida e adequadamente prestadas e apuradas e, em consequência, julgou aprovadas as receitas obtidas e despesas realizadas por aquele, condenando as partes a respeitar esse apuramento, com distribuição do remanescente do saldo, caso não tivesse sido efectuado até ao momento.

Apelação

A requerente não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo se revogasse a sentença na parte em que considerou justificadas todas as despesas, decidindo-se que as impugnadas pela autora não deviam ser aprovadas.

As despesas em questão eram as inseridas sob as seguintes rubricas: a) partilhas, despesas de herança; advogado; taxas de justiça; b) reparação, obras, manutenção (excepto condomínio).

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão proferido em 12-07-2023, julgou parcialmente procedente o recurso de apelação e, em consequência, alterou a sentença recorrida, não aprovando as verbas da despesa relativas a taxas de justiça, a advogados, a obras no apartamento de ..., no montante de 12 915 euros, ao Couto ... e alterando, em conformidade, o saldo das contas apresentadas.

Revista

A requerente não se conformou com o acórdão da Relação do Porto e interpôs recurso de revista, pedindo se revogasse o acórdão em conformidade com as conclusões do recurso, nas quais se encontravam referidas as normas interpretadas de forma inexacta no acórdão.

As conclusões do recurso foram as seguintes:

1. O Acórdão recorrido cita quatro doutrinadores, dois Acórdãos deste Supremo e vários do Tribunal da Relação que uniformemente se pronunciaram no sentido de que, na acção de prestação de contas, não há lugar jurisdicional à crítica interna de boa ou má administração dos gastos e das receitas nas contas prestadas pelo cabeça-de-casal.

2. Muitos outros Acórdãos decidiram no mesmo sentido – cfr. os deste Supremo de 2003.06.20, consultável em w.........., de 2003.07.01 (Revista n.º 1913/03 - 6.ª Secção) e de 2006.02.09, Proc. nº 05B4061; Acórdão RP de 1978.06.20, in BMJ 279-254; Acórdão RL de 2017.04.06, consultável em w.......... – todos parcialmente citados na presente alegação.

3. Basicamente, e em resumo, foi uniformemente entendido que a obrigação de prestar contas é, sobretudo, uma obrigação de informar, constante do artigo 573.º do Código Civil, não sendo a respectiva acção a sede para apurar se houve boa ou má administração, mas, apenas, se as receitas e despesas efectivamente ocorreram.

4. E que para aquilatar da diligência da administração o meio adequado será o processo comum, que não o processo especial de prestação de contas 5ª- O Acórdão recorrido, afirmando que «na acção de prestação de contas não podem ser aprovadas receitas que (…) podia e devia ter obtido se tivesse exercido uma administração zelosa e cuidada (…)», situação que, a verificar-se, «terá de ser objecto de uma acção de responsabilidade que seguirá a forma do processo comum (…)», mais afirmou (cremos que em desconformidade) que não deverá consolidar-se o que classifica de «uma ideia que peca certamente por excesso»;

5. não obstante o que antes dissera, mais considerou o Acórdão que «(…) isso não invalida que a acção especial de prestação de contas tenha por objecto, conforme expressamente indicado no artigo (sic) 941º, 943º nº 2 e 945º nº 5, do Código de Processo Civil, não só o apuramento, mas também a aprovação, das receitas obtidas e das despesas realizadas».

6. Antes de abordar cada item suscitado no Acórdão recorrido, cujo referido raciocínio conduziu à alteração da sentença da 1ª Instância, impõe-se ter presentes três considerandos prévios: O primeiro: refere o Acórdão que a decisão da 1ª Instância não fez a enunciação dos factos provados e não provados; porém – dizemos nós – ao julgar «prestadas as contas», aceitou como boas, quer as receitas, quer as despesas apresentadas.

7. Tanto assim que o Tribunal da Relação não ordenou a baixa do processo à 1ª Instância, designadamente para que esta eventualmente fizesse a enumeração desses factos, como oficiosamente poderia, nos termos do art. 662º nº 2 al. d) do CPC.

8. O segundo: quando o Acórdão afirma que o Tribunal deve «fazer recair sobre as receitas e despesas um juízo positivo de pertinência, adequação e justificação face aos objectivos da administração», com essa atitude, o Tribunal está obviamente a fazer um juízo de valor sobre se houve boa ou má administração.

9. Pois que dessa forma pronuncia-se sobre os rendimentos eventualmente deixados de auferir ou sobre as despesas realizadas em consequência de má administração – o que está em contradição com o entendimento das decisões e considerações doutrinais citadas nas 1ª a 3ª conclusões supra (que, estas, se afiguram correctas).

10. Por outro lado, ao contrário do entendimento propugnado no Acórdão recorrido, e salvo melhor opinião, não se vislumbra que os art.s 941.º, 943.º, n.º 2, e 945.º, n.º 5, do CPC, nele citados, permitam ao Tribunal, num processo da natureza do presente, apurar se houve boa ou má administração.

11. O terceiro: como refere o Acórdão na sua pág. 4, os considerandos, apreciações e conclusões que explana versam sobre «Matéria de Direito» (aliás já também o dissera a sentença da 1ª Instância logo no início da parte «Da Motivação»).

12. E afigura-se que efectivamente assim é, pois que, desde logo, a interpretação dada aos art.s 941.º, 943.º, nº 2, e 945.º, n.º 5, do CPC, a amplitude de poderes que o Acórdão afirma que tais preceitos atribuem ao Tribunal, é, ostensivamente, questão de Direito, consubstanciada em saber se nessa interpretação ocorre ou não ofensa dessas mesmas disposições legais.

13. O Acórdão recorrido, ao considerar que determinadas despesas não são, a seu ver, de aceitar, no fundo, procede a alterações da matéria de facto, com base nos preceitos atrás citados.

14. Ora, como refere o Acórdão deste Supremo de 2019.11.20 (Proc. nº 62/07.0TBCSC.L3.S1), citado na presente alegação: «III. O Supremo Tribunal de Justiça (..) apenas pode intervir nos casos em que seja invocado erro de direito, por violação de lei adjectiva civil ou a ofensa a disposição expressa de lei (…)». (Destaque, nosso).

15. O Acórdão, também deste Supremo, de 2017.01.19 (Proc. nº 841/12.6TBMGR.C1.S ), embora refira como residual «(…) a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no apuramento da factualidade relevante da causa, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes».

16. Ou seja, este Supremo pode conhecer do presente recurso, uma vez que nele é invocado erro de direito, por violação de lei adjectiva civil, o que redunda em erro de julgamento [caso não determine dever ser ampliada a matéria de facto – no mesmo sentido, o Acórdão, também deste Supremo, de 2009.10.21 (Proc. nº 474/04.0TTVIS.C1.S1 - 4.ª Secção), parcialmente citado nesta alegação].

17. Isto posto, passa-se a abordar os vários pontos postos em causa no Acórdão recorrido e que levaram à não-aceitação de várias despesas:

18. O recorrido deixou já frisado que houve receitas que cobrou e despesas que realizou, não tendo documentos justificativos para as mesmas; pela razão de se tratarem de situações em que não é habitual cobrar recibo (p. ex.: limpeza de terrenos); o Acórdão recorrido, referindo-se às receitas e às despesas não documentadas, afirmou concordar com a aqui recorrida, quando afirma que «O que a autora aceitou está assente e pode ser aprovado; o que não aceitou não está assente e por isso carece de julgamento para que o tribunal possa decidir se aprova ou não as demais verbas das contas apresentadas».

19. Sem prejuízo de as receitas não documentadas serem significativamente superiores às despesas em iguais circunstâncias, mostra-se ser uma dualidade de critérios em termos de sã coerência aceitar aquelas e rejeitar estas – o que se afigura não ser de admitir, pois embora lei refira que as contas devem ser instruídas «com os documentos justificativos» (art. 944º nº 3 do CPC), a ora recorrida não rejeitou as receitas indocumentadas com base no «incumprimento» desse normativo…

20. A propósito, refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 2015.12.16 (Processo nº 423/08.7TBLMG.C1) que, nas acções de prestação de contas, o Juiz «deverá valorar a prova trazida para os autos em termos bastante mais flexíveis do que numa mera análise estrita da prova, segundo os critérios de certeza judicial», «atender à verosimilhança do facto em apreciação, sendo verosímil o que corresponde ao funcionamento normal das coisas, às regras da experiência e ao senso comum, numa apreciação sensata e prudente» (no mesmo sentido, Ac. RC de 2019.02.12, Proc. nº 309/15.9T8FND, ambos parcialmente citados na presente alegação).

21. Deverão, pois, considerar-se as despesas não documentadas, já por serem irrisórias, já por respeitarem a dispêndios de que não é habitual cobrar recibo, não merecendo o art. 944.º n.º 3 do CPC a interpretação literal que a Relação lhe atribuiu, interpretação essa que, afigura-se, como matéria de direito que é, a respectiva impugnação cabe nos poderes deste Supremo.

22. Quanto às despesas com taxas de justiça e honorários de Advogado – que o Tribunal da Relação afirmou não aprovar, à luz dos referidos art.s 941º, 943º nº 2 e 945º nº 5 do CPC – principia-se por salientar que, além do Inventário e da presente prestação de contas, houve, tão-só, a acção de reivindicação de um imóvel com um pedido de indemnização, proposta pela herança contra a ora recorrida, que veio a proceder.

23. A indemnização em que a ora recorrida foi condenada ingressou na herança, como receita desta (cfr. doc. 7, refª do p. e. ......86 relativo à «indemnização mensal» de 2020, e o doc. 8, com o mesmo título, relativo ao ano de 2021; e, como foi a ora recorrida, quem deu causa à acção, as respectivas despesas foram-lhe imputadas – taxas de justiça e honorários de Advogado (cuja constituição é, aliás, obrigatória).

24. Além de essas receitas e despesas estarem devidamente lançadas na contas-correntes apresentadas pelo aqui recorrente, atentar-se-á que, na conta corrente relativa ao ano de 2020, (cfr. doc. nº 7 do requerimento apresentado pelo recorrente, citado no número que antecede, encontra-se lançado como receita da herança a restituição das custas de parte, do montante de € 3.313,04.

25. Ora, não terá cabimento não aceitar a despesa com taxas de justiça, mas aceitar como receita a respectiva restituição – dação essa que atesta que as despesas de taxas de justiça foram efectivamente desembolsadas pela herança e, posteriormente, devolvidas a esta – o que se afigura ostensivamente contraditório – contradição que este Supremo tem a faculdade de suprir decretando a aceitação das despesas com taxas de justiça.

26. No que respeita às despesas com Advogado, encontram- se documentadas as facturas/recibos por este emitidas, à ordem da herança, aliás uma delas imediatamente anterior à restituição das custas de parte no documento referido no precedente 24ª conclusão.

27. Se por um lado não se vê que prova «possível e indispensável» poderia o ora recorrente produzir para defender que os honorários debitados à herança respeitam exclusivamente à acção em que patrocinou esta contra a aqui recorrida.

28. por outro, o recorrente achou por bem remunerar o Advogado pelos montantes constantes das respectivas facturas/recibos; se a recorrida reputa esses montantes de indevidos ou exagerados, tal traduzir-se-á (a ser acertado) numa má administração da herança por parte do cabeça-de-casal, a apurar em acção comum, na qual inclusivamente pode ser requerido um laudo ao Conselho Superior da Ordem dos Advogados (Estatuto da O. A., art. 44º nº 3 al. e)).

29. Deverão, pois, ser aprovadas as despesas ora em análise, já por estarem devidamente documentadas, já por não se conter nos poderes do Tribunal da Relação não as ter como aprovadas com base nos preceitos que invoca (art.s 941º, 943º nº 2 e 945º nº 5 do CPC), ou seja, dessa forma se pronunciando sobre a «boa ou má administração da herança».

30. Quanto às despesas com obras nos apartamentos de S. J. Madeira, o Tribunal da Relação entendeu que «despesas» «no valor de praticamente € 13.000,00 são despesas que a nosso ver excedem os poderes de administração do cabeça-de-casal e que, pela sua dimensão, careciam de ser aprovadas previamente pela totalidade ou, pelo menos, pela maioria dos herdeiros»; ora,

31. sem prejuízo de essa obras terem sido, pelo menos a posteriori, aprovadas pela maioria dos herdeiros (cfr requerimento da interessada EE de 2021.10.10 (refª do p. e. ......28), no qual esta exprime a sua total concordância com as contas apresentadas (onde se incluem as despesas ora em apreço),

32. As referidas asserções contêm um erro do direito – salvo o devido respeito, que é muito –, como tal sindicável por este Supremo: se, por lado, mais uma vez o Acórdão da Relação está a classificar a administração da herança (no caso, como má), por outro, a despesa em causa encontra-se devidamente documentada.

33. A propósito, cita-se o que escreveu o Bastonário Augusto Lopes Cardoso (in Partilhas Judiciais, Vol. III, p. 122): «De um modo genérico pode dizer-se que administra mal aquele que vota ao abandono as propriedades ou nelas não realiza obras de conservação (…)».

34. O único exemplo que o Ilustre Doutrinador refere, aliás citando um Acórdão da Relação do Porto (de 1990.06.19, in BMJ 398-583) como uma situação que se traduz em má administração (que é, basicamente, o que, nomeadamente neste item, suscita o Acórdão recorrido, cita-se o que a propósito escreveu o Bastonário Augusto Lopes Cardoso (in Partilhas Judiciais, Vol. III, p. 122): «De um modo genérico pode dizer-se que administra mal aquele que vota ao abandono as propriedades ou nelas não realiza obras de conservação (…)».

35. O único exemplo que o Ilustre Doutrinador refere, aliás citando um Acórdão da Relação do Porto (de 1990.06.19, in BMJ 398- 583) como uma situação que se traduz em má administração (que é, basicamente, o que, nomeadamente neste item, suscita o Acórdão recorrido), carecendo do consenso de todos os interessados, é o de o cabeça-de-casal «que paga, sem reunir o consenso de todos os interessados, dívida, de valor considerável, cuja existência era polémica e não estava documentada» – o que não é, visivelmente, o caso, nem a ele se assemelha.

36. Também a este propósito, o ora recorrente cita em seu abono o Acórdão da Relação de Lisboa de 2009.01.06 (Proc. nº 8711/2088-7), transcrito em bastante extensão na presente alegação e no qual é concluído: «Ora, dentro dos limites e critérios de contenção a que acima fizemos alusão, e atenta a natureza das mesmas obras, parece-nos razoável considerar todas elas abrangidas pelos poderes que cabem ao cabeça-de-casal. De facto, as mesmas enquadram-se no conceito de mera conservação do património hereditário, mostrando-se totalmente insusceptíveis de ocasionar os (temidos) graves prejuízos para esse património. Ao invés, mesmo as obras que possam qualificar-se de úteis, só podem valorizar o imóvel e, por isso, o património hereditário» (bold, nosso).

37. Afigura-se, assim, que é inexacto afirmar que as despesas em análise «excedem os poderes de administração do cabeça-de- casal», assistindo a este Supremo a faculdade de considerar essa despesa como aprovada, face ao erro de direito em que se traduz aquele entendimento.

38. Quanto a despesas com a limpeza da Casa do Couto ...: dando aqui por reproduzido o que se deixou dito nas precedentes conclusões 13ª a 22ª, a realidade é que o Cabeça-de- casal deu uma explicação cabal para a limpeza do terreno ter mais do que triplicado relativamente aos dois anos anteriores: se se exigir recibo a quem limpa terrenos, o resultado é essa pessoa não os limpar; e as exigências das Câmaras Municipais após os incêndios que se verificaram fizeram aumentar substancialmente os «preços» de quem limpa os terrenos…

A requerente respondeu ao recurso, sustentando a manutenção da decisão recorrida. Para o efeito alegou em síntese.

1. A acção de prestação de contas tem por objecto não só o apuramento como também a aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas. Por conseguinte, não se trata apenas de apurar, determinar, contabilizar o que se obteve e o que se despendeu na administração, trata-se igualmente de aprovar os respectivos movimentos financeiros;

2. A mera demonstração de que determinados movimentos financeiros foram realizados não completa o objecto da acção. Para satisfazer integralmente esse objectivo é ainda necessário que a sua realização mereça ser aprovada, isto é, fazer recair sobre as receitas e despesas um juízo positivo de pertinência, adequação e justificação face aos objectivos da administração.

3. É lícito ao Tribunal, ponderando critérios de pertinência e de justificação, não aprovar despesas apresentadas pelo cabeça de casal;

4. A não aprovação das despesas em causa não constitui alteração da matéria de facto;

5. A recorrida, em conformidade com o seu interesse e a avaliação que fez do processo, tinha todo o direito de aceitar determinados factos e não aceitar outros.


*


Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

Saber se o acórdão recorrido errou ao não aprovar as verbas relativas a despesas com taxas de justiça, com advogados, com as obras no apartamento de ..., no montante de 12 915 euros, e com o Couto ... e, em caso de resposta afirmativa, saber se o acórdão é de revogar e de substituir por decisão que aprove tais verbas da despesa.


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Os factos considerados provados pelo tribunal da Relação foram os seguintes:

1. Requerente e requerido foram herdeiros na herança aberta por óbito de BB e CC.

2. Para a partilha dos bens integrantes do acervo dessa herança correu termos processo de inventário nº 826/20.9... a que os presentes se mostram apensos, processo esse já declarado findo.

3. O aqui requerido DD exerceu as funções de cabeça-de-casal durante o período compreendido entre 2014 a 2021, por referência a esse património.

4. O requerido apresentou as contas, com conta-corrente de saldo de receitas e despesas, nos presentes autos.


*


Resolução das questões:

O objecto do presente recurso é constituído pelo segmento do acórdão da Relação que, alterando a sentença proferida na 1.ª instância, não considerou justificadas as verbas das despesas com taxas de justiça, com advogados, com obras no apartamento de ... (despesas no montante de 12 915,00 euros) e com o Couto ... (despesa no montante de 910 euros, em 1-06-2020, despesa no montante de 191,88 euros, em 22-07-2020, e despesa de 500 euros em 26-09-2020).

A pretensão do recorrente é no sentido de se revogar essa decisão e substituí-la por outra que julgue justificadas, aprovadas, tais despesas

A pretensão está votada ao fracasso no que diz respeito à decisão respeitante a despesas com taxas de justiça, com advogados e com a limpeza do Couto .... Vejamos.

Nesta parte o recurso assenta, em síntese, na seguinte linha argumentativa:

• A obrigação de prestar contas é sobretudo uma obrigação de informar, constante do artigo 573.º do Código Civil, não sendo a sede própria para se apurar se houve ou má-fé na administração, mas apenas se as receitas e despesas efectivamente ocorreram; para aquilatar da diligência da administração, o meio processual adequado é o processo comum;

• O acórdão considerou que a acção especial de prestação de contas tem por objecto, conforme indicado nos artigos 941.º, 943.º, n.º 2 e 945.º, n.º 5, do CPC, não só o apuramento, mas também a aprovação das receitas obtidas e despesas realizadas;

• O acórdão recorrido, ao decidir que as despesas não eram de aceitar, com base nos artigos atrás referidos, pronunciou-se sobre a boa ou má administração da herança;

• As despesas eram de aprovar não só por estarem devidamente documentadas, mas também por não caber nos poderes da Relação a não aprovação delas com base nos preceitos que invocou (artigos 941.º, 943.º, n.º 2 e 945.º n.º 5, todos do CPC), por dessa forma se ter pronunciado sobre a boa ou má administração da herança.

Não é exacta a alegação do recorrente segundo a qual o acórdão recorrido baseou-se nos artigos acima indicados para não aprovar as despesas e, dessa forma, pronunciou-se sobre a boa ou má administração da herança. O acórdão da Relação não aprovou as mencionadas despesas pelas seguintes razões. Quanto às despesas com taxas de justiça e advogados, entendeu que a prova documental junta aos autos não permitia concluir no sentido de que eram relativas à herança. Em relação à despesa com o Couto ..., considerou que não resultava da prova documental que haviam sido efectivamente realizadas. O que se acaba de afirmar é atestado pelos seguintes trechos do acórdão:

Sobre a não aprovação das taxas de justiça:

As taxas de justiça são despesas que estão necessariamente documentadas e cujos documentos permitem saber a que processo respeitam, o que é imprescindível para saber quem é responsável por essas despesas e/ou a quem ela aproveita. Havendo notícia de mais que uma acção e de que pelo menos numa delas o interessado e responsável pelas custas não seria a herança indivisa administrada pelo cabeça de casal, mas os próprios herdeiros a título pessoal, na falta de apresentação dos documentos justificativos dessas despesas as mesmas não devem e não são aprovadas”.

Sobre a não aprovação das despesas com advogado:

“Vale a este respeito integralmente o que se expôs relativamente às despesas com taxas de justiça. Para além de ter de haver documentos que comprovem a despesa, a natureza do serviço, a pessoa em nome de quem ou no interesse de quem foram prestados os serviços ou que tirou benefício dos mesmos, as despesas em causa não são tantas que dificultem a obtenção e organização dessa informação documental, sendo certo que aparentemente se trata do mesmo mandatário que agora representa o réu e obrigado à prestação de contas, coincidência que mais facilitava a demonstração dos factos atinentes às despesas. Perante tantas facilidades (não afastadas pelos requisitos suficientes para satisfazer as exigências puramente contabilística relacionadas com a actividade) não há razão para não exigir a prova possível e indispensável e, consequentemente, não tendo esta sido junta, recusa-se a aprovação das verbas correspondentes”.

Sobre a não aprovação as despesas com o Couto ...:

Não propriamente por não estarem documentadas, o que já seria razão suficiente, mas sobretudo por não estarem em consonância com as despesas da mesma natureza realizadas nos anos anteriores, situação que essa sim tornava imperiosa a existência de documento justificativo da natureza dos trabalhos realizados para que o tribunal pudesse verificar se a sua necessidade era nova e de natureza legal como refere o cabeça-de-casal e por essa via aprovar a despesa em causa. Acresce que vale aqui de novo o que se referiu quanto ao modo criterioso como o cabeça-de-casal devia ter passado a exercer o seu cargo após a realização das licitações para evitar que pela via das despesas se modificasse a situação de facto que presidiu àquelas e em função da qual se iria apurar o valor dos bens a partilhar. É certo que as despesas em causa não têm uma dimensão que nos permita dizer que a sua realização excede os poderes de administração do cabeça-de-casal, mas, ainda assim, tratando-se de mais que triplicar o valor dos dois anos anteriores, sem documentos cabais e sem uma explicação idónea esta despesa não deve ser aprovada”.

Como se vê pela exposição acabada de efectuar, foram razões ligadas à prova produzida que levaram o Tribunal da Relação a não aprovar as mencionadas despesas.

Assim sendo, não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar tais razões por a tanto se oporem o n.º 3 do artigo 674.º do CPC e o n.º 2 do artigo 682.º do CPC. Vejamos.

Segundo o n.º 3 do artigo 674.º do CPC, “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”.

Por sua vez, o n.º 2 do artigo 682.º do mesmo diploma dispõe que “a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674.º do CPC”.

Destas disposições decorre, como escrevia Alberto dos Reis em anotação ao parágrafo segundo do artigo 722.º do CPC de 1939, cujo teor corresponde, no essencial, ao do n.º 2 do artigo 674.º do CPC em vigor, que o “Supremo não conhece de questões de facto; conhece somente de questões de direito”, ou seja, está vedado ao Supremo “conhecer do modo como as instâncias apreciaram as provas”, salvo nos casos excepcionais previstos no n.º 3 do artigo 674.º do CPC [Código de Processo Civil anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra Editora, 1981, página 29].

Os casos excepcionais em que o Supremo pode sindicar a decisão relativa à matéria de facto são os seguintes:

1. Quando a decisão relativa à matéria de facto tenha ofendido uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto;

2. Quando tal decisão tenha ofendido uma disposição expressa da lei que que fixe a força probatória de determinado meio de prova.

A primeira compreende os casos em a lei exige expressamente determinada forma externa (por exemplo documento autêntico, autenticado ou particular) para a existência ou prova de um acto ou facto, mas o Tribunal da Relação desconsiderou tal exigência. A segunda compreende os casos em que o tribunal não respeita força probatória que a lei assinala a determinado meio de prova.

Socorrendo-nos mais uma vez das palavras de Alberto dos Reis, as excepções acima apontadas são, em bom rigor, erros de direito e não de facto, pois embora haja “…erro na fixação dos factos da causa; … o erro traduz-se na violação de determinada norma jurídica” [obra supra citada, página 31].

Decorre, assim, dos preceitos acima citados que o erro na apreciação de provas, que a lei sujeite à livre apreciação do tribunal, não constitui fundamento do recurso de revista.

Ora a decisão do tribunal da Relação de não aprovar as despesas acima mencionadas é, por um lado, decisão relativa a matéria facto e, por outro, decisão que assentou na livre apreciação de provas.

É decisão relativa a matéria de facto pelo seguinte.

Apesar de nem sempre ser fácil distinguir o que é questão de facto e questão de direito, pode, no entanto, afirmar-se, socorrendo-nos das palavras de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, que cabem no âmbito dos factos, “os eventos reais, as ocorrências” [Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, página 393] ou socorrendo-nos das palavras de Michele Taruffo “… os factos que são relevantes na administração da justiça são tranches de vie, ou seja, acontecimentos ou conjuntos de acontecimentos que dizem respeito à vida das pessoas [Narrativas Processuais, Revista Julgar 13, página 121].

À luz deste entendimento, tanto as acções consistentes na obtenção de receitas como as que se traduzem na realização de despesas constituem factos. Daí que seja de afirmar que a decisão da Relação de não aprovar as despesas acima mencionadas é uma decisão relativa a matéria de facto. De resto, o recorrente não deixa de o reconhecer ao alegar (14.ª conclusão) que “o acórdão recorrido, ao considerar que determinadas despesas não são, a seu ver, de aceitar, no fundo, procede a alterações da matéria de facto”. Desta conclusão, o que não se acompanha, como resulta do já exposto acima, é que a alteração tenha sido feita “com base nos preceitos atrás citados.” [o recorrente referia-se aos artigos 941.º, 943.º, n.º 2 e 945.º, n.º 5, do CPC].

Assim sendo, tal decisão estaria em condições de ser escrutinada por este tribunal se o recorrente pedisse a alteração dela com a inovação de um meio de prova a que a lei atribuísse força probatória qualificada e do qual decorresse a demonstração da realização das despesas (2.ª excepção do n.º 3 do artigo 674.º do CPC).

Não é o que sucede no caso.

O recorrente pediu a alteração da decisão quanto à aprovação das despesas com taxas de justiça com a seguinte argumentação:

• Que, além do inventário e da presente prestação de contas, houve tão só a acção de reivindicação de um imóvel com um pedido de indemnização, proposta pela herança contra o ora recorrido, que veio a proceder;

• Que a indemnização em que ora recorrida foi condenada ingressou na herança, como receita desta (cfr. doc. 7, refª do p. e. ......86 relativo à «indemnização mensal» de 2020, nos montantes de € 21.250,00 e € 1.860,00 e o doc. 8, com o mesmo título, relativo ao ano de 2021, no montante de € 2.325,00); e, como foi ela, recorrida, quem deu causa à acção, as respectivas despesas foram-lhe imputadas – taxas de justiça e honorários de Advogado (cuja constituição é, aliás, obrigatória);

• Que além de essas receitas e despesas estarem devidamente lançadas na contas-correntes apresentadas pelo aqui recorrente, atentar-se-á que, na conta corrente relativa ao ano de 2020, (cfr. doc. nº 7 do requerimento apresentado pelo recorrente, citado no número que antecede, encontra-se lançado como receita da herança a restituição das custas de parte, do montante de € 3.313,04.

E pediu a alteração da decisão quanto à questão das despesas com o Couto ... com a seguinte alegação:

• Que dava por reproduzido o que deixou dito nas conclusões 13 a 22 e que o cabeça-de-casal havia dado uma explicação cabal para a limpeza do terreno ter mais do que triplicado relativamente aos dois anos anteriores; se se exigir recibo a quem limpa terrenos, o resultado é uma pessoa não os limpar; e as exigências das Câmaras Municipais após os incêndios que se verificaram fizeram aumentar substancialmente os preços de quem limpa os terrenos.

Como se vê pela exposição acabada de fazer, o recorrente não acusa o acórdão do Tribunal da Relação de considerar não aprovada as despesas por haver um meio de prova com força probatória qualificada que, por si só, demonstrava a realização delas. O recorrente invoca, para fundamentar o erro na apreciação das provas, vários documentos e ainda as explicações do cabeça de casal, sem atribuir, contudo, a estes meios qualquer valor probatório qualificado.

A alteração da decisão do tribunal da Relação passaria, assim, necessariamente pelo reexame de provas cuja força probatória está sujeita à livre apreciação do tribunal e pela formação de uma convicção sobre elas, o que está claramente fora do âmbito dos poderes do Supremo Tribuna e Justiça em matéria de facto.

Pelo exposto, mantém-se a decisão de julgar não aprovadas as despesas com taxas de justiça, advogados e com a limpeza do Couto ....


*


Apreciemos, de seguida, a pretensão do recorrente no sentido da alteração do acórdão da Relação na parte em que considerou não aprovadas as despesas com as obras no apartamento de ..., no montante de 12 915 euros.

O acórdão recorrido, apesar de reconhecer que as despesas em questão haviam sido realizadas, não as aprovou com a seguinte justificação:

• Que o que estava em causa na acção era a administração realizada pelo cabeça-de-casal dos bens da herança, ou seja, o que cumpria apurar e aprovar eram as receitas e as despesas que estiverem compreendidas no âmbito dos seus poderes de administração, não todas aquelas que ele, em virtude do exercício desse cargo e invocando-o, decide realizar, ainda que excedendo os poderes de que dispunha;

• Que as despesas em imóveis no valor de praticamente € 13.000 eram despesas que excediam os poderes de administração do cabeça-de-casal e que, pela sua dimensão, careciam de ser aprovadas previamente pela totalidade ou, pelo menos, pela maioria dos herdeiros. Pouco importava para o efeito se se tratavam de despesas de conservação e necessárias, porque a sua necessidade não podia ter surgido instantaneamente, logo no preciso momento em que o cabeça-de-casal decidiu realizá-las e, excepto se houvesse perigo de derrocada ou de causação de danos a terceiros, o que não estava demonstrado nos autos, essa necessidade, a existir, nunca seria suficiente para obrigar à execução imediata das obras (o próprio cabeça-de-casal reconhece que a sua execução foi retardada), isto é, não seria de tal modo grave que a sua execução não pudesse esperar mais algum tempo, designadamente até que a partilha fosse realizada e depois cada um dos herdeiros se ocupasse de gerir o património recebido em herança;

• Que era inerente à administração de bens alheios a adopção de critérios de prudência, bom senso, equilíbrio e respeito pelos vários interesses conflituantes. Por esse motivo, uma vez feitas as licitações no inventário, uma vez que estas são feitas em função do valor que os herdeiros atribuem aos bens no momento em que fazem essas licitações, ou seja, em função do estado de conservação que eles apresentam nesse momento, viola as regras da boa-fé e dos bons costumes qualquer comportamento do cabeça-de-casal que se traduza numa modificação desse valor relativo, a qual irá sempre redundar em benefício de uns herdeiros e prejuízo dos outros. Só por isso, para estar de boa-fé e actuar como administrador zeloso e prudente, o cabeça-de-casal devia obrigatoriamente abster-se de executar essas obras sem obter previamente a concordância de todos os herdeiros.

Como se vê pela transcrição acabada de fazer, o acórdão invoca no essencial dois argumentos para não aprovar as despesas ora em apreciação: em primeiro lugar, tais despesas, pelo seu montante, excediam os poderes de administração do cabeça-de-casal e deviam ser aprovadas senão por todos os herdeiros, pelo menos pela maioria; em segundo lugar, a prudência, a boa-fé e o dever de desempenhar o cargo com zelo faziam com que o cabeça-de-casal se abstivesse de realizar as obras sem obter previamente a concordância de todos os herdeiros.

O recorrente contrapõe que, pelo menos, a posteriori a maioria dos herdeiros aprovou as obras; que o acórdão da Relação estava a classificar a realização da despesa como má administração, quando lhe estava vedado proceder a essa apreciação no processo de prestação de contas e que, de um modo genérico, só podia dizer-se que administra mal aquele que vota ao abandono as propriedades ou nelas não realiza obras de conservação.

O recurso é de julgar procedente, embora não pelas exactas razões alegadas pelo recorrente.

Antes de mais cabe dizer que não se diverge da doutrina e da jurisprudência citada no acórdão recorrido e nas alegações de recurso na parte em que afirma que a acção de prestação de contas não tem por fim determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração, nem tem por fim a responsabilização do administrador por eventual má administração, nem a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado. Na doutrina referimo-nos a Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, página 140, 2017, Almedina, e a Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, página 389. Na jurisprudência do Supremo referimo-nos, a título de exemplo, ao acórdão do STJ proferido em 3-04-2003, recurso n.º 03A073, ao acórdão do STJ proferido em 16-02-2016, no processo n.º 17099/98.0TVLSB.L1.S1, ambos publicados em www.dgsi.pt.

Na verdade, o fim da acção de prestação de contas está indicado no artigo 941.º do CPC e aí se diz expressamente que ele consiste em apurar e aprovar receitas obtidas e as despesas realizadas por quem administra bens alheios e na eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

Porém, uma coisa é dizer-se que o processo de prestação de contas tem este fim e outra, diferente, é afirmar-se, como faz o recorrente, que ele serve exclusivamente para apurar se as receitas e as despesas efectivamente ocorreram e que fora do seu âmbito e da competência do tribunal está a questão de saber se uma determinada despesa está compreendida nos poderes de administração de quem presta as contas.

No nosso entender, pode discutir-se no processo de prestação de contas se uma determinada despesa está compreendida nos poderes de administração daquele que a realizou ou se os excede.

Tomemos o caso dos autos.

Neste caso - apresentação de contas pelo réu –, o n.º 2 do artigo 945.º do CPC dispõe que, na contestação, pode o autor impugnar as verbas de despesa apresentadas pelo réu.

Não dizendo a lei que formas é que pode revestir a impugnação, é de admitir que ela tanto possa consistir na negação da realização da despesa como na alegação de que a despesa efectivamente realizada é alheia à administração dos bens ou, não sendo totalmente alheia, não cabe nos poderes de administração daquele que presta as contas.

A favor da admissibilidade da impugnação, com esta latitude, e da competência do tribunal para o seu conhecimento depõe a regra do n.º 1 do artigo 91.º do CPC, aplicável ao caso com as devidas adaptações, segundo a qual o tribunal competente para a acção é também competente para o conhecimento dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.

Como é bom de ver, na hipótese de o autor impugnar a despesa com a alegação de que ela é alheia à administração dos bens ou que não cabe nos poderes de administração do prestador das contas, não se cai, no processo, no perigo de se entrar na discussão sobre receitas virtuais ou despesas virtuais. A questão que se discute é a de saber se a despesa é justificada à luz dos poderes de administração de bens alheios, o que cabe, sem dificuldade no objecto da acção de prestação de contas, tal como ele é definido no artigo 941.º do CPC, especialmente no segmento que se refere ao apuramento e aprovação das despesas realizadas por quem administra bens alheios.

Interpretando o artigo 941.º do CPC, na parte em que dispõe que “a acção de prestação de contas tem por objecto o apuramento e aprovação das despesas realizadas por quem administra bens alheios” e n.º 2 do artigo 945.º do mesmo diploma, na parte em que dispõe sobre a impugnação das verbas das despesas apresentadas pelo réu, com o sentido e o alcance expostos, é de afirmar, que cabia dentro dos poderes da Relação a recusa da aprovação das despesas realizadas, com obras, no apartamento de ... com a justificação de que elas não cabiam nos poderes de administração do cabeça do-casal, ora recorrente.

Mas se o tribunal da Relação tinha poderes para tanto, já lhe faltava base factual para concluir em tal sentido, bem como no sentido de que haviam sido realizadas com violação do dever de boa-fé e dos bons costumes e que tais obras iriam redundar em benefício de uns herdeiros em prejuízo de outros.

Vejamos.

O artigo 2079.º do Código Civil atribui ao cabeça-de-casal a administração da herança até à sua liquidação e partilha.

Apesar de o preceito não indicar os actos que estão compreendidos nos poderes de administração do cabeça-de-casal, é entendimento da doutrina e da jurisprudência que ele tem em vista os actos de mera administração. Citam-se, a título de exemplo, na doutrina, Rabindranath Capelo De Sousa, Lições de direito das Sucessões, II, Coimbra Editora, 1980/1982, página 78, José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, Coimbra Editora, Limitada, página 452. Na jurisprudência, cita-se, a título de exemplo, o acórdão do STJ proferido em 21-04-2022, no processo n.º 2691/16.1T8CSC.L1.S1., publicado em www.dgsi.pt.

Sobre o que são actos de mera administração, socorremo-nos da lição de Manuel de Andrade: “Os actos de mera administração serão, …, os que correspondem a uma gestão patrimonial limitada e prudente em que não são permitidas certas operações – arrojadas e ao mesmo tempo perigosas – que podem ser de alta vantagem, mas que podem ocasionar graves prejuízos para o património do administrado”, compreendendo “tudo quanto diga respeito prover a prover á conservação dos bens administrados promover a sua frutificação normal” [Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, Livraria Almedina, Coimbra – 1974, páginas 61 e 62].

Não resultando das disposições do Código Civil, referentes à administração da herança (artigos 2079.º a 296.º), qualquer limite ao montante da despesa que o cabeça-de-casal pode realizar com a administração da herança, a resposta à questão de saber se a realização das despesas com o apartamento de ... cabia dentro dos poderes de administração do ora recorrente pressupunha necessariamente o conhecimento do fim de tais despesas. Se tivessem por fim a conservação e frutificação normal do apartamento, a despesa cabia dentro dos poderes de administração do cabeça-de-casal; no caso contrário, a realização de obras excedia os mencionados poderes.

Sucede que não sabemos. Com efeito, a autora, limitou-se a impugnar esta e outras despesas na contestação com a seguinte alegação genérica: “a) não são despesas que digam respeito a interesses da herança; e/ou b) não são legalmente exigíveis; e/ou c) não aceita que fossem necessárias; e/ou d) tenham efectivamente sido feitas; e/ou e) por não aceitar a veracidade e conteúdo dos documentos e, sem conceder, f) entender que os «alegados» documentos não têm valor probatório”.

Só em sede de recurso de apelação, ou seja, num momento processual que não era o próprio, é que alegou razões concretas que, no seu entender, justificavam a não aprovação das despesas com o apartamento de ..., dizendo, em síntese, que foram feitas com o propósito de beneficiar a interessada EE (leia-se o seu irmão FF).

Estando provada a realização das despesas, mas não se sabendo a sua finalidade, há que decidir contra a autora, ora recorrida. Assim, o impõe o disposto no artigo 414.º do CPC, combinado com a circunstância de ser sobre ela que recaía o ónus de alegar os factos de onde resultasse que as obras não cabiam dentro dos poderes de administração do cabeça de casal.

Há, assim, fundamento para alterar o acórdão na parte em que julgou não justificada a despesa de € 12.915,00 com o apartamento de ..., decidindo-se no sentido da aprovação de tal despesa.


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Decisão:

Julga-se parcialmente procedente o recurso de revista e, em consequência:

1. Revoga-se o acórdão na parte em que decidiu não aprovar as despesas com obras no apartamento de ... e substitui-se essa parte do acórdão por decisão a aprovar as mencionadas despesas;

2. Mantém-se a parte restante do acórdão recorrido.

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de o recorrente e a recorrida terem ficado vencidos no recurso, condenam-se os mesmos nas respectivas custas na proporção de metade para cada um deles.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2023

Emídio Francisco Santos (relator)

João Cura Mariano

Fernando Baptista de Oliveira