O Juízo Central Cível é competente, em razão da matéria, para conhecer da acção popular civil, que segue a forma de processo comum com valor superior a 50 000,00€.
I – Relatório
I.1 – relatório
Citizens’ Voice – Consumer Advocacy Association, e restantes Autores Populares, interpuseram recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça da sentença proferida nos presentes autos, de 02.06.2023, com a referência .......08, que declarou a incompetência absoluta do Juízo Central Cível, em razão da matéria para conhecimento da acção, tendo, para o efeito, apresentado alegações que culminam com as seguintes conclusões:
1. Os recorrentes, autores populares, interpõe o presente recurso por entenderem que o tribunal a quo não fez a melhor e mais correta interpretação do direito quanto às questões mencionadas ao entender verificada, por intermédio de uma sentença, a exceção dilatória da incompetência material do tribunal para conhecer a presente ação e em consequência ter indeferido a ação por despacho liminar no arco do artigo 13, da lei 83/95.
2. O presente recurso vem na modalidade da revista per saltum, por recair apenas sobre a matéria de direito, o que é feito nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1), aplicável ex vi, artigo 644 (1, a) e 678 (3), todos do CPC.
3. Os autores têm legitimidade para interpor o presente recurso acompanhado das respetivas alegações sob a matéria de direito (cf. artigo 631, do CPC) e estão em tempo de o fazer (cf. artigo 638, do CPC).
4. Os recorrentes, mui respeitosamente, discordam da douta sentença pelas razões de direito vertidas nos §§ 5 a 7 supra, para onde se remete para uma completa compreensão e evitando aqui uma repetição fastidiosa e prolixa do que aí se encontra de forma resumida.
5. Mas que, resumindo, se estriba no facto de não concordarem que se verifica a exceção dilatória da competência material do tribunal para apreciar a ação, porquanto estamos perante os artigos 1 (2), 2, 12 (2), da lei 83/95, que ditam que a ação popular, tal como está configurada, deve prosseguir sob forma comum, com as especialidades referidas nas normas legais constantes da mencionada lei 83/95 e, por sua vez, a causa tem o valor de €60.000 (sessenta mil euros), tendo em conta o disposto no artigo 303 (3), do CPC.
6. Atentos ao disposto no artigo 117 (1, a, d), da lei 62/2013, em conjugação com os artigos 60 (1), 64 e 66, do CPC, é da competência dos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00.
7. Sem prejuízo das regras especiais aplicáveis e da existência de uma categoria específica no Citius para este tipo de ações, de acordo com o artigo 12 (2), da aludida lei 83/95, a ação popular civil, tal como é a presente, pode revestir de qualquer uma das formas previstas no CPC.
8. Por sua vez, o artigo 546 (1), do CPC, determina que o processo pode seguir a forma comum ou especial, sendo que que o processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial [cf. Artigo 546 (2), do CPC].
9. Ora, no presente processo, não se aplica nenhuma das formas previstas nos artigos 878 e seguintes, do CPC, pelo que não estamos perante uma forma de processo civil especial.
10. Destarte, deve a presente ação seguir a forma comum, porquanto o CPC se aplica subsidiariamente (portanto em tudo que não lhe for contrário) à lei 83/95.
11. Por conseguinte, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim, é materialmente competente para prosseguir com a ação.
12. Acresce que o tribunal a quo condenou os autores a pagar as custas nos termos do artigo 20 (3), da lei 83/95, norma que se encontra revogada pelo artigo 25 (1) (norma revogatória) do decreto-lei 34/2008: [s]ão revogadas as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, que não estejam previstas no presente decreto-lei.
13. O regime atual de custas processuais na ação popular resulta da conjugação do artigo 4 (1, b) e (5) do decreto-lei 34/2008.
14. Por fim, o tribunal a quo violou o direito ao contraditório imposto pelo artigo 3 (3), do CPC, porquanto conheceu oficiosamente uma questão jurídica que não tinha sido antes suscitada, portanto uma decisão surpresa, sem ter dado oportunidade aos autores de sobre a mesma se pronunciarem.
15. Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta sentença, nomeadamente pela não verificação da exceção dilatória invocada pelo tribunal recorrido, devendo ser considerado o Juízo Central Cível materialmente competente para julgar todos os pedidos formulados pelos autores populares.
A Magistrado do Mº Pº apresentou resposta à motivação de recurso que encerra com as seguintes conclusões:
1. o recurso da A. tem por objeto a decisão do Tribunal a quo, que, julgou o Juízo Central Cível materialmente incompetente para a ação popular em referência, no pressuposto de se tratar de uma ação especial;
2. o art. 12º, nº2 da LPPAP (Lei nº83/95, de 31 de agosto – Direito de Participação Procedimental e de Ação Popular) permite que a ação popular possa “revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil”;
3. considerando o que consta da LPPAP quanto aos atos a praticar na tramitação da ação popular não se nos afigura de todo indefensável que se possa considerar a tramitação da ação popular como ação declarativa especial;
4. contudo, a Doutrina e a Jurisprudência vão no sentido de que a ação popular não é uma ação especial, “…o que está em causa é apenas um direito de ação judicial e não um meio ou forma de processo…”,
5. a ação popular permite apenas o alargamento da legitimidade atribuída aos titulares para defesa dos bens mencionados no artigo 1º, nº2 da Lei 83/95, artigo 9º, nº2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e art. 52.º, nº3 da Constituição;
6. a ação popular é intentada no foro cível ou administrativo através dos meios processuais ali existentes sendo que no foro cível, dependendo do valor, a ação popular pode correr no juízo local ou central – cfr. arts. 546.º, nºs 1 e 2 e 66º do CPC.
7. no caso concreto, tendo a A. configurado a ação como de responsabilidade civil por factos ilícitos cuja quantificação dos danos ainda não está apurada, tem o valor de €60.000,00 (art.303, nº3 do CPC) pelo que propendemos a defender que a ação deve prosseguir no Juízo Central Cível.
O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto nos art.ºs 671º, n.º 2, a) e 629.º, n.º 2, a), ambos do Código de Processo Civil.
Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:
1. Competência material do Tribunal.
Os factos a ter em consideração para a decisão do presente recurso reportam-se exclusivamente aos contornos da relação material controvertida vertida na petição inicial.
1. Competência material do Tribunal
Em despacho liminar o Juiz 2 do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, nos termos dos arts. 65.º, 96.º, alínea a), 97.º, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), e 590.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil, julgou o tribunal incompetente, em razão da matéria, para o processamento da presente acção e, consequentemente, indeferiu liminarmente a petição inicial.
A decisão recorrida suporta-se nos seguintes fundamentos:
“Estamos perante uma ação popular que foi proposta no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
De acordo com o art. 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto (Lei relativa ao direito de participação procedimental e de acção popular), cumpre proferir despacho liminar.
Independentemente de outras questões que esta causa suscita, importa começar por determinar a forma de processo aplicável à presente ação e apurar se este Tribunal é o tribunal competente.
No § 18 da petição inicial (cfr. pp. 84-85 desse articulado) esta matéria foi já objeto de pronúncia, por antecipação – digamos assim –, «porque o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim – Juiz 5, no âmbito do processo 637/23.0..., se declarou incompetente em razão da matéria da 2ª Secção da Instância Central da Comarca do Porto, determino a remessa dos autos à Secção da Instância Local de Póvoa de Varzim, com competência em matéria cível – artigo 93º nº 2 alínea e) do Decreto-Lei nº 49/2014 de 27 de Março» (Sic).
Estabelece o art. 52.º da Constituição da República Portuguesa que «todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou colectivamente, aos órgãos de soberania, aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e, bem assim, o direito de serem informados, em prazo razoável, sobre o resultado da respectiva apreciação» (n.º 1); e que «é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra […] os direitos dos consumidores […]» (n.º 3).
Por seu turno, dispõe o art. 12.º, n.º 2 da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto: «a acção popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil».
Salvo o respeito devido por diferente entendimento, lida a petição inicial e ponderando o regime processual estabelecido seja na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, seja no Código de Processo Civil, entendemos que a presente ação segue a forma de processo especial.
É certo que – como é referido na quinta frase do § 18 da petição inicial –, à presente ação não é aplicável qualquer uma das formas de processo especial previstas nos arts. 878.º e segs. do Código de Processo Civil.
No entanto, importa ter presente que, para além dos processos especiais expressamente previstos e regulados nos arts. 878.º e segs. do Código de Processo Civil, há outros processos especiais previstos em legislação avulsa. A existência de processos especiais justifica-se pela circunstância de algumas matérias, atendendo à sua natureza e especificidade, necessitarem de uma tramitação processual própria, i. e., diferente do processo comum.
Ora, a Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, prevê a tramitação do processo especial de ação popular, estabelecendo regras próprias – nos arts. 2.º, 3.º e 12.º a 21.º – que se desviam da tramitação da forma de processo comum, configurando, por isso, um processo especial (por exemplo, o autor de uma ação popular não carece, necessariamente, de ter interesse direto na demanda (art 3.º); a necessidade de a petição inicial ser conclusa ao juiz para despacho liminar (art. 13.º); o princípio da recolha das provas pelo julgador sem vinculação à iniciativa das partes (art. 17.º), sendo este regime mais próximo das ações especiais de jurisdição voluntária do que das ações de processo comum).
No caso em análise, muito embora no intróito da petição inicial seja mencionada a instauração de uma «acção declarativa popular de condenação, sob a forma única de processo»; no formulário que precede o texto da petição inicial, onde é caraterizada a ação, o I. Mandatário indicou como «Forma de Processo / Classificação: Acção popular» (não tendo selecionado, como poderia ter feito, «Ação de Processo Comum») e, quanto à espécie – tendo em vista a distribuição, cfr. art. 212.º do Código de Processo Civil – o I. Mandatário indicou como «Espécie: Acção Popular» (não selecionou, como poderia ter feito, «Ação de Processo Comum»), sendo que a ação popular integra a espécie ações de processo especial. Ou seja, o I. Mandatário ao submeter a petição inicial que deu origem à presente ação, atribuiu-lhe a forma de processo especial.
Sublinhe-se que a forma de processo especial é uma das formas de processo previstas no Código de Processo Civil (quanto às formas de processo, estabelece o art. 546.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que «o processo pode ser comum ou especial»), pelo que a atribuição da forma de processo especial à presente ação está em consonância com o art. 12.º, n.º 2 da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto.
De acordo com a Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00 (art. 117.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto). Aos juízos locais cíveis compete preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outros juízos cíveis (art. 130.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).
Seguindo a presente ação a forma de processo especial, não se integra no elenco das ações cuja competência pertence a este Juízo Central Cível, pertencendo a competência para julgar esta ação ao Juízo Local Cível. Tal competência advém da natureza de ser um processo especial, independentemente do valor atribuído à causa.”.
A recorrente invoca que a decisão recorrida é uma decisão surpresa tendo o tribunal violado o direito ao contraditório imposto pelo art.º 3, n.º 3 do Código de Processo Civil ao conhecer oficiosamente uma questão jurídica que não tinha sido antes suscitada, sem ter dado oportunidade aos autores de sobre a mesma se pronunciarem.
A decisão recorrida indica que como consta do § 18 da petição inicial essa audição foi efectuada antecipadamente.
Refere a recorrente nesse § 18 da petição inicial que:
“§18 DA FORMA DE PROCESSO
Porque o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim – Juiz 5, no âmbito do processo 637/23.0..., se declarou incompetente em razão da matéria da 2ª Secção da Instância Central da Comarca do Porto, determino a remessa dos autos à Secção da Instância Local de Póvoa de Varzim, com competência em matéria cível – artigo 93º nº 2 alínea e) do Decreto-Lei nº 49/2014 de 27 de Março, importa firmar qual a forma de processo aplicável na presente ação.
A ação, como supra defendido, segue como popular, tal como definido na lei 83/95.
Sem prejuízo das regras especiais aplicáveis e da existência de uma categoria específica no Citius para este tipo de ações, de acordo com o artigo 12 (2), da aludida lei 83/95, a ação popular civil, tal como é a presente, pode revestir de qualquer uma das formas previstas no CPC.
Por sua vez, o artigo 546 (1), do CPC, determina que o processo pode seguir a forma comum ou especial, sendo que que o processo especial se aplica aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial [cf. artigo 546 (2), do CPC].
Ora, no presente processo, não se aplica nenhuma das formas previstas nos artigos 878 e seguintes, do CPC, pelo que não estamos perante uma forma de processo civil especial.
Destarte, deve a presente ação seguir a forma comum, porquanto o CPC se aplica subsidiariamente (portanto em tudo que não lhe for contrário) à lei 83/95.”
Sendo incomum que o cumprimento do disposto no art.º 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil possa ser cumprido por antecipação, mais incomum é ainda que ele se ache cumprido por referência a uma diversa acção de que ignoramos tudo, partes, pedido, causa de pedir, conhecendo apenas o seu número, o juízo em que pende, e, que será também uma acção popular.
Mas mais uma razão há a aduzir a um ilegal incumprimento do princípio do contraditório por parte do Tribunal recorrido quando ele aduz um fundamento não referido antecipadamente na petição inicial – “No entanto, importa ter presente que, para além dos processos especiais expressamente previstos e regulados nos arts. 878.º e segs. do Código de Processo Civil, há outros processos especiais previstos em legislação avulsa “- tendo dele retirado a conclusão, ou, pelo menos suportando melhor a sua decisão de que se há processos especiais previstos em leis avulsas, para além dos processos especiais previstos no Código de Processo Civil , então este processo seguira a forma de processo especial. Denotamos um salto lógico no raciocínio expandido e uma grave omissão – a referência à concreta lei avulsa que determina que esta acção popular siga a forma de processo especial e fez o Tribunal decidir que, este processo, deve seguir os trâmites de um processo especial.
Faltou efectivamente, mesmo considerando a dita antecipação de argumentos, dar oportunidade à parte de apresentar os seus argumentos relativamente a este fundamento que veio a ser utilizado pelo Tribunal.
O cumprimento do disposto no art.º 3.º do Código de Processo Civil que estabelece que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” é um princípio basilar do estado de direito. Mesmo quando nos pode parecer que já sabemos o que as partes vão dizer sobre uma dada questão, mesmo que muitas vezes redunde efectivamente em alguma perda de tempo, é não só uma obrigação legal inderrogável como uma oportunidade para podermos ser surpreendidos “nas nossas certezas” pelo outro que, de mente livre, nos pode facultar outra perspectiva que desconhecíamos existir.
O art.º 12.º, n.º 2 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto estabelece que a acção popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil. Deste modo não será nesta lei que se encontra a solução para saber se a acção popular civil deve seguir a forma de processo comum ou a forma de processo especial mas nas regras atinentes a tal matéria constantes do Livro II - Do processo em geral - Título VII - Das formas de processo -, Capítulo I - Disposições gerais -, no art.º 546.º, n.º 2 do Código de Processo Civil – O processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial -.
O legislador prevê duas formas de processo: processo comum e processo especial. Seguirão a forma de processo comum todas as acções a que a lei não haja determinado expressamente que sigam a forma de processo especial. Assim, em caso de dúvida, não conhecendo o Tribunal uma concreta norma que determine que a acção em causa tem de seguir a forma de processo especial, está solucionada a questão pela atribuição da forma de processo comum a todas as demais acções que o legislador não considerou expressamente que devam seguir a forma de processo especial.
O Tribunal recorrido não identificou essa norma e também a desconhecemos, sendo razoável admitir que não existe e, por isso, esta acção popular terá de seguir a forma de processo comum.
Mas seguir a forma de processo comum não significa invariavelmente que segue sem vacilar todas as regras previstas no Código de Processo Civil para a acção comum. Certo tipo de acção pode carecer de algumas regras especiais a aplicar no processo comum, ainda que o legislador as não haja concebido como tão divergentes dele que possam demandar a criação de um outro processo especial. Isso mesmo ocorre na acção popular relativamente a certas regras, algumas delas enunciadas na decisão recorrida.
Definido que a presente acção segue a forma de processo comum e tendo em conta o disposto no art.º 117.º, n.º 1, a) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, Lei n.º 62/2013 de 31/10 - compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000, e, que o valor da acção indicado na petição inicial é de 60 000,00€, só pode concluir-se que o Tribunal recorrido é o competente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção.
Dá-se conta na decisão de que o Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim já adoptou este tipo de decisão noutros processos, pois teria sido muito útil ter percebido se as outras Centrais Cíveis têm adoptado o mesmo tipo de decisão quando começam a surgir nos Tribunais as acções populares, sendo certo que temos já nota neste Supremo Tribunal de Justiça de que nos processos 898/22.1T8VRL.S1, 6390/22.7T8VNG.L1.S1, 5368/23.8T8LSB, 2661/23.3T8GMR, e 5555/22.6T8VNG as secções Centrais cíveis aceitaram a sua competência para conhecimento de tais acções, neste caso instauradas pelo mesmo autor.
Refere ainda a decisão recorrida que:
“No caso em análise, muito embora no intróito da petição inicial seja mencionada a instauração de uma «acção declarativa popular de condenação, sob a forma única de processo»; no formulário que precede o texto da petição inicial, onde é caraterizada a ação, o I. Mandatário indicou como «Forma de Processo / Classificação: Acção popular» (não tendo selecionado, como poderia ter feito, «Ação de Processo Comum») e, quanto à espécie – tendo em vista a distribuição, cfr. art. 212.º do Código de Processo Civil – o I. Mandatário indicou como «Espécie: Acção Popular» (não selecionou, como poderia ter feito, «Ação de Processo Comum»), sendo que a ação popular integra a espécie ações de processo especial. Ou seja, o I. Mandatário ao submeter a petição inicial que deu origem à presente ação, atribuiu-lhe a forma de processo especial.”.
A classificação da acção no Citius, que tem uma divisão para a acção popular nunca teria a virtualidade de derrogar as regras do Código de Processo Civil ou da Lei da Organização do Sistema Judiciário, como antes analisadas. Esta classificação não integra a petição inicial e é um mero documento administrativo exigido pelo sistema Citius, para agilizar a classificação do processo e o seu posterior tratamento informático. O Citius é um sistema informático que não concede ou retira direitos. Trata-se de uma mera ferramenta de suporte e circulação dos processos entre os diversos operadores judiciários, muito imperfeita ainda, sem grande sensibilidade para muitas das regras de processo civil ou para permitir uma utilização fácil aos seus utilizadores. Por ser uma tecnologia, num mundo seduzido pela tecnologia informática, não pode ser olhada pelos tribunais como decisivo ou sequer importante para definição da competência em razão da matéria dos Tribunais. As pessoas escolhem dentro das alternativas que a máquina lhes concede o que no momento lhes parece mais adequado cientes de que do outro lado dessa máquina existem pessoas que lêem, analisam e compreendem as pretensões formuladas, em conformidade com a lei. O sistema informático não tem competência para criar a forma de processo especial – acção popular – ainda que um qualquer programador, distante destas matérias, tenha entendido que fazia sentido diferenciar para efeitos meramente informáticos estas acções das demais.
Pelas razões expostas não pode manter-se a decisão recorrida por ser o Tribunal recorrido o Tribunal competente para conhecer da presente acção.
Pelo exposto acorda-se em conceder a revista revogar a decisão recorrida e declarar o Juiz 2 do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim do Tribunal Judicial da Comarca do Porto competente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção determinando a remessa dos autos ao Tribunal Recorrido para processamento dos autos.
Custas pelo vencido a final.
Ana Paula Lobo (relatora)
Emídio Francisco Santos
Fernando Baptista Oliveira