I. O facto de a dona da obra não ter exprimido qualquer oposição à retirada da obra dos trabalhadores, materiais e equipamentos, pelo empreiteiro, e à subsequente comunicação deste que os trabalhos em curso não seriam concluídos, não constitui uma revogação tácita do contrato de empreitada, mas sim um abandono da obra integrante de um incumprimento parcial definitivo da prestação do empreiteiro.
II. O facto do objeto do contrato de empreitada ser uma moradia unifamiliar não é suficiente para que se aplique a esse contrato o regime previsto para os contratos de empreitada de consumo, uma vez que se desconhece qual o destino que a dona da obra pretendia dar a essa moradia.
III. Perante um incumprimento parcial definitivo de uma prestação, o seu credor pode optar por resolver o negócio ou, se nisso tiver interesse, exigir o cumprimento do que for possível ou ficar com o que já foi prestado.
IV. Quando já foi realizado o cumprimento de parte da prestação, como ocorre nos contratos de empreitada em que a obra é abandonada, a segunda opção facultada ao dono da obra traduz-se em permanecer com a parte da prestação já realizada, ficando com o direito de reduzir a sua contraprestação.
V. Se esta já foi realizada e a medida da sua realização excede, proporcionalmente, a medida da parte da prestação recebida, o credor tem direito à restituição desse excesso.
VI. A estipulação de um preço global fixo no contrato de empreitada não impede que o valor da redução do preço, como reação ao abandono da obra por parte do empreiteiro, seja obtida através da subtração do valor dos trabalhos realizados ao preço acordado, quando no contrato se tenham indicado os custos dos trabalhos parcelares.
I – Relatório
A Autora propôs a presente ação declarativa, com processo comum, pedindo que a Ré fosse condenada a restituir-lhe o valor de € 91.295,12, acrescido de juros de mora, à taxa legal, vincendos após a data da prolação da sentença e até integral e efetivo pagamento.
Alegou em síntese:
- Contratou com a Ré a construção da estrutura e alvenaria de uma moradia unifamiliar em terreno pertencente à Autora, pelo valor de € 155.702,05, acrescido de IVA, sendo o seu pagamento faseado.
- A Autora efetuou diversos pagamentos à Ré, a solicitação desta, que somaram € 202.551,06, tendo no entanto sido apenas faturados € 96.421,72.
- A Ré, após sucessivos atrasos, abandonou a obra em Abril de 2021, não a tendo concluído.
- O valor dos trabalhos executados ascende a € 90.451,98, acrescendo IVA no valor de € 20.803,96, pelo que a Ré recebeu em excesso € 91.295,12.
Contestou a Ré, impugnando o alegado pela Autora quanto à execução do contrato de empreitada que celebraram, uma vez que esta foi concluída, e alegando que foram efetuadas alterações ao plano da obra inicialmente contratado, assim como foram executados diversos trabalhos extracontratuais, a pedido da Autora, não tendo todos os pagamentos alegados pela Autora respeitado a trabalhos realizados pela Ré.
Concluiu pela improcedência total da ação e pela condenação da Autora como litigante de má fé.
A Autora respondeu ao pedido da condenação por litigância de má fé.
Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que decidiu:
a) Declaro resolvido o contrato de empreitada celebrado entre as partes;
b) Condeno a ré a pagar/restituir à autora o valor de € 64.463,19 (sessenta e quatro mil, quatrocentos e sessenta e três euros e dezanove cêntimos), absolvendo-a do demais peticionado.
c) Julgar totalmente improcedente o pedido de condenação da autora como litigante de má fé.
Desta decisão recorreu a Ré para o Tribunal da Relação que proferiu acórdão em 28.09.2023, com um voto de vencida, que julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida.
Desta decisão volta a recorrer a Ré para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:
A - O presente recurso é interposto como manifestação da discordância da recorrente relativamente ao douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que julgou improcedente o recurso de apelação e confirmou a Sentença proferida na 1ª Instância, fê-lo, contudo, com voto de vencido, pelo que, verifica-se uma situação não subsumível à previsão do nº 3 do Art 671º do C.P.C., o que torna admissível a interposição do presente recurso de revista.
B - De modo algum se aceita, atento o Direito vigente e a gritante injustiça consignada em tais decisões, pelo que entendemos que o Tribunal da Relação de Évora ao decidir como decidiu, fê-lo em violação de Lei substantiva, tendo confirmado ilegalmente a Sentença recorrida que condenou em objeto diverso do pedido, integrando o disposto na alínea e) do nº 1 do Art. 615º do Código de Processo Civil, vd. em particular o que consta nas alíneas AN) e AP) das conclusões das recursivas da aqui recorrente.
C - Salvo o devido respeito e melhor opinião, entendemos que o Tribunal da Relação de Évora fez erros de interpretação, de determinação e de aplicação das normas jurídicas aplicáveis discordando-se completamente da fundamentação jurídica e do enquadramento jurídico apresentado no referido Acórdão para julgar improcedente a apelação e confirmar e Sentença condenatória recorrida, por via da qual se declara : "... resolvido o contrato de empreitada celebrado entre as partes ; b) Condeno a ré a pagar / restituir à autora o valor de € 64.463,19 (Sessenta e quatro mil, quatrocentos e sessenta e três euros e dezanove cêntimos) (…) . ”.
D - Nos presentes autos, nenhuma das partes peticionou ou suscitou ao longo do processo nos seus articulados, audiência prévia, despacho saneador e audiência de discussão e julgamento a questão da resolução do aludido contrato de empreitada, pelo que a Sentença condenou a recorrente em objeto diverso do pedido, o que foi agora confirmada com fundamentação e enquadramento jurídico deficiente e com manifestos erros de interpretação pelo Tribunal da Relação de Évora quanto as normas jurídicas aplicáveis.
E - Nunca tendo a autora/recorrida formulado qualquer pedido de resolução do contrato de empreitada constante dos autos, devia o Tribunal da Relação de Évora ter decidido declarar nula ou anular a alínea a) do dispositivo da Sentença, o que não sucedeu, pelo que, violou o disposto no artigo 609º, nº 1 do Código de Processo Civil, por via do qual a Sentença não pode condenar em objeto diverso do que se pedir, e integrou o disposto na alínea e) do nº 1 do Art. 615º do Código de Processo Civil.
F - A nulidade da Sentença de condenação em objeto diverso do pedido, funda-se no princípio do dispositivo, que atribui ás partes a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses, que a ação pressupõe, sem que lhe seja pedido por uma das partes e a outra seja citada para contestar.
G - A regra de estabilidade do pedido, comporta exceções, podendo o pedido ser ampliado, por acordo das partes, em qualquer altura da causa, ou por iniciativa do autor até ao encerramento da discussão em primeira instância, o que nunca sucedeu nos referidos autos.
H - E nunca tendo a autora/recorrida na sua petição inicial e nos autos, peticionado, feito prova e/ou exercido e/ou manifestado o seu direito quanto à resolução do contrato de empreitada outorgado, quer fosse nos articulados e/ou em audiência prévia e/ou de julgamento, não tendo sido fixado em sede de Despacho saneador como objeto do litígio ou qualquer outro, devia o Tribunal da Relação de Évora ter decidido declarar nula ou anular a alínea a) do dispositivo da Sentença, o que não sucedeu, tendo assim violado o artigo 609º, nº 1 do Código de Processo Civil e a alínea e) do nº 1 do Art. 615º do Código de Processo Civil, por via da qual : "É nula a Sentença quando :..." o Juiz condene em objeto diverso do pedido.
I - Termos em que aqui se requer que seja por este Supremo Tribunal de Justiça revogado o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, por violação do artigo 609º, nº 1 do Código de Processo Civil e a alínea e) do nº 1 do Art. 615º do Código de Processo Civil, declarando-se nula ou anulada a alínea a) do dispositivo da Sentença recorrida, com as legais consequências
J - O artigo 1207º do Código Civil define a empreitada como: “…o contrato mediante o qual alguém se compromete a realizar certa obra mediante um preço”. A obra tem que ser realizada mediante um preço. O preço tem que corresponder a uma obrigação pecuniária, podendo ser de acordo com várias modalidades/regimes, nomeadamente: a) preço global; b) preço por artigo; c) preço por medida; d) preço por tempo de trabalho; e) preço por percentagem.
L - No que se refere ao contrato de empreitada e proposta objeto nos presentes autos A./recorrida e a R./recorrente acordaram mutuamente na cláusula 3ª que a empreitada é por preço/valor global fixo, ou seja, o preço é estabelecido no momento da celebração do contrato e fixado definita e globalmente para toda a obra, uma vez que este regime / modalidade de preço oferece garantias tanto para o dono da obra como para o empreiteiro, uma vez que com a fixação antecipada e definitiva do preço global da empreitada no ato de outorga do contrato e da proposta, cada parte poderá beneficiar se ocorrerem variações nos aumentos e/ou diminuições dos preços dos materiais, da mão de obra ou outros encargos decorrentes.
M - E se o contrato de empreitada e proposta comercial acordado e outorgado que consta dos autos é por preço / valor global, isto implica um acordo prévio de pagamento total global fixo para aqueles trabalhos e materiais entre A/recorrida e R/recorrente, independentemente das quantidades, valores e/ou preços variarem aquando da execução daqueles trabalhos e aplicação dos materiais no âmbito do contrato de empreitada, inexistindo qualquer direito do empreiteiro ou do dono da obra a exigir um do outro acréscimos de pagamentos daqueles valores e/ou quantidades variáveis ou reclamar a restituição ou a redução daqueles valores e/ou materiais através de medições e quantificações posteriores a efetuar por um ou por outro, os quais estão fora da natureza e do objeto do acordo estabelecido entre as partes no que respeita ao regime / modalidade de preço/valor global fixo.
N - Conforme dispõe o artigo 405º do Código Civil: “Dentro dos limites da lei as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”, ou seja, ambas as partes no âmbito da sua liberdade contratual e princípio da autonomia privada acordaram e outorgaram o contrato de empreitada e proposta que consta nos autos na modalidade de preço/valor global fixo, tendo os trabalhos e materiais aí inscritos sido efetivamente executados conforme ficou considerado provado nos pontos 22. e 23. dos factos provados da Sentença proferida, bem como no Relatório de Perícia-objeto da perícia: nos pontos 1., 2., 3., 4, 5. que consta dos autos com refª. citius nº ...28.
O - O preço integra a noção legal de empreitada, logo tendo a A./recorrida e R./recorrente acordado expressamente que o contrato de empreitada que outorgaram é fixado como valor global fixo, o Tribunal da Relação de Évora deveria ter considerado e ponderado no Acórdão proferido os seus legais efeitos no que respeita aos pagamentos do preço efetuados no âmbito daquele contrato de empreitada, o que não fez corretamente em sede de fundamentação de direito, designadamente no ponto: "3. Reapreciação de mérito.".
P - O Tribunal da Relação de Évora não analisou e ponderou corretamente os efeitos jurídicos decorrentes do "valor global fixo" acordado no âmbito do contrato de empreitada outorgado entre as partes e o que foi efetivamente executado, pago e não pago no âmbito de cada uma das relações contratuais estabelecidas entre a A/recorrida e a R./recorrente, após, para além e fora do contrato de empreitada constante dos autos.
Q - É errada a premissa de que partiu o Tribunal da Relação de Évora, isto é, a de misturar e decidir de forma idêntica os factos que dizem respeito a natureza, termos e condições completamente diferentes de cada uma das relações contratuais estabelecidas entre a A./recorrida e a R./recorrente, quer no âmbito do contrato de empreitada/proposta, quer fora deste no que respeita aos trabalhos-a-mais referentes a alterações da A./recorrida ao projeto inicialmente aprovado, quer no âmbito dos extras contratuais posteriormente solicitados pela A/recorrida à R./recorrente e completamente fora do âmbito dos dois anteriores.
R - Integrando o preço a noção legal de empreitada e tendo a A./recorrida e R./recorrente acordado expressamente que o contrato de empreitada que outorgaram é fixado como valor global fixo, falharam o Tribunal de primeira instância e o Tribunal da Relação de Évora na apreciação desta questão, pelo que carece de completo fundamento jurídico a confirmação da condenação da recorrente no pagamento/restituição à autora/recorrida do valor de 64.463,19€ (sessenta e quatro mil, quatrocentos e sessenta e três euros e dezanove cêntimos), o qual é completamente ilegal e injustificado por ter misturado e confundido factos, quantidades, medições em m2, m3, valores monetários acordados e montantes efetivamente pagos para cada uma das referidas e diferentes relações contratuais estabelecidas entre as partes, não sendo o mesmo devido pela recorrente, tendo assim o Tribunal a quo cometido erros de interpretação e de aplicação das normas aplicáveis, designadamente as constantes dos artigos 217º, 224º, 227º, 334º, 1207º, 1211º, 1214º, 1216º, 1219º, 1220º e 1222º do Código Civil, pelo que se requer que seja revogado o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora.
S - Consideramos errada a fundamentação jurídica adotada pelo Tribunal da Relação de Évora para sustentar a condenação, designadamente no que respeita ao facto descrito sob o ponto 16. da matéria de facto considerado como provado na Sentença recorrida e que consta do seguinte : "16. A partir do final de 2020, a ré retirou da obra os seus trabalhadores, materiais e equipamentos, comunicando à autora que não iria concluir os trabalhos ainda em curso, o que não mereceu oposição por parte da autora.".
T - Incorretamente, o Tribunal da Relação de Évora entende que o facto descrito naquele ponto 16. é expressão da vontade da apelante/recorrente em cessar o contrato de empreitada antes outorgado com a apelada/recorrida, a qual foi aceite por esta última e que : "... antes permite, o enquadramento jurídico na resolução contratual feito pelo Tribunal a quo na sentença recorrida, que acaba por ser desejada pela apelada ao pedir a condenação da apelante na restituição, ou pagamento daquilo que entendeu ser-lhe devido precisamente pela quebra contratual definitiva e culposa por parte da apelante."(Cfr. consta no ponto 3.Reapreciação de mérito do Acórdão recorrido).
U - Ao contrário do entendimento e enquadramento jurídico do Tribunal A Quo, entendemos que o ponto 16. da matéria de facto provada na Sentença recorrida, conjugado com as subsequentes trocas de e-mails e carta entre a A./recorrida e a R./recorrente e que constam como factos provados nos pontos 17., 18., 19., 20, 21 da referida Sentença, comprova que o que ocorreu efetivamente foi uma revogação do contrato de empreitada por mútuo acordo de ambas as partes, faltando apenas "liquidar" o contrato
V - E tendo ocorrido entre as partes uma revogação do contrato de empreitada por mútuo acordo, carece de completo fundamento jurídico a aplicação do regime jurídico do incumprimento ou do cumprimento defeituoso do contrato de empreitada e muito menos do especial regime da empreitada de consumo.
X - Quando na realidade, a discordância entre as partes reside, grosso modo, no cômputo das quantias entregues pela A./recorrida à R./recorrente e a que título (imputação ao orçamento inicial ou a trabalhos a mais) e na definição dos trabalhos (inicialmente orçamentados ou a mais) executados e respetivo preço.
Z - O Venerando Tribunal A Quo fundamenta a sua decisão num mero desejo da autora/apelada na resolução contratual, ao pedir a condenação da Apelante na restituição ou pagamento, daquilo que entendeu ser-lhe devido, quando aos Tribunais não incumbe perscrutar os desejos das partes, mas sim apreciar as questões que são submetidas ao seu exame.
AA - Entendemos que o suposto desejo da autora/recorrida, agora descoberto e invocado pelo Venerando Tribunal A Quo no seu Acórdão, não pode justificar a omissão de formulação de qualquer pedido de resolução do contrato de empreitada e permitir a alegada fundamentação e enquadramento jurídico, não se podendo de todo aceitar a forma como o Tribunal da Relação de Évora articula a omissão do pedido de resolução do contrato de empreitada nos autos com a introdução de um critério subjetivo de alegado desejo da autora/recorrida.
AB - O Tribunal da Relação de Évora estabelece presunção completamente injustificada de que tratando-se da construção de uma moradia unipessoal no âmbito do contrato de empreitada outorgado entre as partes, este apontaria para um uso não profissional da mesma por parte da dona da obra/A./recorrida, mas sim para servir de habitação familiar por parte desta, o que entendemos não comprovar por si só a A./recorrida como consumidora
AC - Não é assim de aplicar o específico regime jurídico do incumprimento ou do cumprimento defeituoso do contrato de empreitada, nomeadamente, de empreitada de consumo, porquanto entendemos que não basta tratar-se de construção de uma moradia unifamiliar para se ter a A./recorrida como consumidora.
AD - Ao contrário do entendimento expresso no Acórdão recorrido, incumbia sim à A./recorrida o ónus de alegar e provar nos autos a sua qualidade como consumidora, o que nunca sucedeu, conforme consta na alínea AT) das conclusões recursivas da Apelante/R./recorrente.
AE - Uma vez que o consumidor é a parte beneficiada com a aplicação do regime específico da empreitada de consumo, recaía sobre a A./recorrida o ónus da prova da sua qualidade como consumidora, o que não logrou provar nos autos, ao que discordamos completamente do entendimento e enquadramento jurídico do Tribunal da Relação de Évora ao defender a aplicação do regime especial da empreitada de consumo, pelo que deve o douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído
AF - Nestes termos, o douto acórdão recorrido violou o disposto no artigo 609º, nº 1 e a alínea e) do nº 1 do Art. 615º do Código de Processo Civil, tendo cometido erros de interpretação, determinação e de aplicação das normas jurídicas aplicáveis, designadamente a dos artigos 217º, 224º, 227º, 334º, 1207º, 1211º, 1214º, 1216º, 1219º, 1220º e 1222º do Código Civil.
A Autora respondeu, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
Atendendo às conclusões das alegações de recurso e ao conteúdo do acórdão recorrido cumpre apreciar as seguintes questões:
- a declaração de resolução do contrato de empreitada pela sentença proferida na 1.ª instância e confirmada pelo acórdão da Relação constitui uma inadmissível condenação em objeto diferente do pedido, o que integra a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, e), do Código de Processo Civil?
- as partes, por acordo, revogaram o contrato de empreitada que haviam outorgado, não existindo qualquer incumprimento do mesmo por parte da Ré?
- não é aplicável o regime da empreitada de consumo a este contrato?
- no contrato de empreitada ficou estabelecido um preço global fixo, pelo que não é admissível a Autora reclamar a redução daquele valor, tendo em consideração todos os pagamentos efetuados pela Autora e todas as medições e quantificações de todos os trabalhos efetuados pela Ré ?
A Recorrente alega que o acórdão recorrido ao confirmar a decisão da 1.ª instância que declarou resolvido o contrato de empreitada celebrado entre Autora e Ré, condenou em objeto diverso do peticionado, violando o disposto no artigo 609.º do Código de Processo Civil e incorrendo na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, e), do mesmo diploma.
Constata-se que, efetivamente, a sentença proferida na 1.ª instância declarou resolvido aquele contrato e que o acórdão recorrido, com um voto de vencida neste segmento, confirmou essa decisão.
O acórdão recorrido, colocado perante a questão de a decisão de resolução poder exceder o que foi peticionado pela Autora na ação, uma vez que na petição inicial não se descortina qualquer pedido formulado nesse sentido, entendeu estar apenas em causa no caso em apreço uma necessária consequência jurídica percecionada pelo Tribunal a quo a partir da interpretação feita de factos que foram alegados e considerados como assentes.
Mesmo que dos factos resulte uma determinada consequência jurídica, atento o princípio do pedido que rege o nosso processo civil, essa consequência só pode ser decretada se o interessado a peticionar ou for do conhecimento oficioso, podendo, contudo, colocar-se a hipótese desse pedido se encontrar implícito na demanda do autor 1.
Pedido implícito é aquele que, com base na natureza das coisas, está presente na ação, apesar de não ter sido formulado expressis verbis, devendo o mesmo ser considerado quando os pedidos expressamente formulados na petição pressupõem um outro pedido que, por qualquer razão, o autor não exprimiu de forma nítida, mas que se depreende dos expressamente formulados, estando abrangido pela pretensão material manifestada pelo demandante .
Nesta ação, a Autora, alegando um incumprimento definitivo parcial da Ré da prestação de realização de uma obra a que se obrigou pela celebração de um contrato de empreitada, pede que esta lhe restitua a parte do preço que pagou em excesso face à parte da obra realizada.
Esse pedido de restituição da parte do preço paga em excesso, pressupõe a redução do preço acordado no contrato de empreitada e não uma necessária resolução do contrato, apesar dessa redução pressupor o termo do contrato fundamentado num incumprimento definitivo parcial.
Mantendo-se a Autora interessada em beneficiar do cumprimento da parte da prestação já realizada, não é possível concluir que esta, necessariamente, peticionou, embora não o escrevendo, a resolução do contrato celebrado com a Ré. A resolução do contrato é, aliás, normalmente encarada como uma alternativa à redução da contraprestação pelo credor, face a um incumprimento parcial do contrato 2.
A resolução do contrato decretada pelo acórdão recorrido não constitui, pois, nesta ação, a resposta a um pedido implícito da Autora, pelo que o tribunal da 1.ª instância ao decretá-la e o acórdão da Relação ao confirmá-la, condenaram em objeto não peticionado, desrespeitando o disposto no artigo 609.º, do Código de Processo Civil, e incorrendo na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, e), do mesmo diploma, importando revogar este segmento decisório, nos termos do artigo 684.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:
1. O prédio urbano correspondente ao lote 21 da Urbanização ..., Rua ..., ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 3653 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 6268 pertence à Autora.
2. Tal prédio é composto por lote de terreno para construção urbana com a área de 286 m2.
3. A Autora promoveu e obteve, para o referido prédio, junto da Câmara Municipal de ... o alvará de obras de construção n.º 47/2009, de 24/06/2019, tendo por objeto a construção de uma moradia unifamiliar composta por dois pisos e cave, com as áreas seguintes:
i. área de implantação com 126,50 m2;
ii. área de construção/habitação com 305 m2;
iii. área de telheiros com 211 m2;
iv. muros com a área de 11 m.
4. O prazo de validade do alvará abrangia o período compreendido de 27/06/2019 e até 29/06/2020.
5. Tendo sido a respetiva licença prorrogada, por via do alvará n.º 15/2020, de 19/11/2020, até 24/9/2021.
6. A Ré, por seu lado, é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras, à atividade de construção civil.
7. Acresce que a Autora e o legal representante da Ré mantinham uma relação de amizade e confiança pessoal.
8. Assim, e tendo em vista a construção da estrutura e alvenaria da moradia familiar referenciada supra, a Autora e a Ré celebraram, em 20/02/2019, um acordo reduzido a escrito, nos termos do qual, em contrapartida da execução da totalidade dos trabalhos e materiais, seria pago pela Autora à Ré o montante total de € 155.702,05 (cento e cinquenta e cinco mil, setecentos e dois euros, cinco cêntimos), acrescido de IVA à taxa legal em vigor.
9. Os trabalhos e materiais incluídos na empreitada são os constantes da proposta n.º 3505/18, de 17/12/2018, em anexo ao referido acordo e que contém um mapa de trabalhos e valores unitários.
10. Ficando ainda acordado que o pagamento da empreitada seria "faseado em vários pagamentos (...) da seguinte forma:
i. Adjudicação no início dos trabalhos de 5.000 € (Cinco mil euros);
ii. A acordar com o cliente mediante as condições bancárias do empréstimo da cliente".
11. E que o prazo de execução da empreitada seria de 180 dias úteis, com início em 29/04/2019 e termo previsto em 29/10/2019.
12. Por conta do pagamento da empreitada a autora entregou à ré, além de outras, as quantias seguintes:
a) € 5.000,00 (cinco mil e trezentos euros), em 17/04/2019;
b) € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), em 10/07/2019;
c) € 1.844,28 (mil, oitocentos e quarenta e quatro euros, vinte e oito cêntimos), em 10/07/2019;
d) € 30.000,00 (trinta mil euros), em 29/08/2019;
e) € 1.960,00 (mil, novecentos e sessenta euros), em 02/09/2019;
f) € 29.200,00 (vinte e nove mil, duzentos euros), em 11/12/2019;
g) € 20.000,00 (vinte mil euros), em 10/09/2020;
h) € 12.650,00 (doze mil, seiscentos e cinquenta euros), em 29/01/2021;
i) € 2.491,00 (dois mil, quatrocentos e noventa um euro);
j) € 10.600,00 (dez mil e seiscentos euros), em 05/03/2021; e,
k) € 15.977,12 (quinze mil, novecentos e setenta e sete euros, doze cêntimos), em 23/03/2021.
13. Parte dos pagamentos acima indicados foram efetuados por transferência bancária.
14. Os restantes foram efetuados em numerário mediante solicitação do legal representante da Ré, o qual os justificava para pagamento de mão-de-obra ou de material.
15. A Autora entregou à Ré, por conta da empreitada e trabalhos a mais por esta executados e pagamentos a fornecedores, a quantia global de € 202.551,06 (duzentos e dois mil, quinhentos e cinquenta e um euros e seis cêntimos).
16. A partir de final de 2020, a Ré retirou da obra os seus trabalhadores, materiais e equipamentos, comunicando à Autora que não iria concluir os trabalhos ainda em curso, o que não mereceu oposição por parte da Autora.
17. Em 23/3/2021, pelas 11h59m, a Autora enviou à Ré, na pessoa do seu legal representante, um email onde se lê:
“Bom dia BB,
A pedido da minha mãe estive a rever as contas com o orçamentista. Confirmas que as contas em anexo batem certo com as tuas?
(…)”.
18. Nesse mesmo dia, pelas 15h56m, a Autora enviou à Ré, na pessoa do seu legal representante, um email onde se lê:
“Boa tarde, BB
Devido à confusão que o valor do EXTRA MURO suscitou, alterei a forma como apresento a conta, tendo descontado o valor de 4.728,87€ do valor inicial de 12.568,12 como indicaste, ficando valor de 7.839,25€ referente ao material aplicado no muro (bloco de cimento, cimento, areia e brita). Peço que me indiques, sff, as quantidades de bloco e demais materiais aplicados no dito muro.
No que diz respeito às adjudicações que paguei e que estão em nome da X..., Lda, peço que confirmes que são as seguintes:
Carpintaria ... – 6.633,90€ C..., Lda - 3448,25€ V..., Unipessoal, Lda – 6.600€ S..., Lda 3.700€
Vamos proceder ao que tinhas sugerido? Solicitar a esses fornecedores que emitam nota de crédito e subsequente devolução do valor à X..., Lda de modo a que mo possas restituir, passando a contratar esses serviços, em meu nome, com esses mesmos fornecedores.
(…)”
19. Em resposta, a 24/4/2021, o legal representante da Ré enviou email à Autora, onde se lê:
“Em reposta ao seu e-mail, concordamos que valor em aberto é de 23.530,16€ + IVA (6%) = 24.941,96€.
Em relação às quantidades de bloco aplicadas em obra e cimento terão de ser contados pelos vossos técnicos em obra ou através dos m2 feitos.
Confirmamos o recebimento de pagamento dos seguintes subempreiteiros:
Carpintaria ... – 6.633,90€
C..., Lda – 3.448,25€
V..., Unipessoal, Lda – 6.600€
S..., Lda – 3.700€
Aguardamos assim a nota de créditos dos fornecedores e devolução do valor para podermos devolver também à dona da obra.
Em relação ao extrato em anexo confirmamos o recebimento do valor de 150.101,62€ no qual iremos emitir a respetiva fatura com o acréscimo do valor do IVA que será devido por V. Exa. Assim sendo o valor em dívida e assumido por V. Exa., através do extrato em anexo à nossa empresa é de 24.941,96€ + 34.523,37€ (IVA de 150.101,62€) este liquidado pela nossa empresa a fornecedores de materiais e subempreiteiros, assim sendo o valor em dívida é de 59.465,33€, agradecemos o pagamento durante os próximos 5 dias úteis.
Agradecemos que nos informe onde podemos deixar o livro de obra após a liquidação e os materiais.”
20. Em 8/6/2021, a Ré, através do seu legal representante, enviou à Autora um email com o seguinte teor:
"(...) enquanto dona da obra supra identificada, que de acordo com o extrato por vós emitido e que nos enviou por e-mail do dia 24/03/2021, com os descontos no valor 4.728,87€ (referente a extracontratual muro de betão) e no valor de 7.365,89€ referente aos itens 45 e 49 da proposta nº 3505/18 que solicitou-nos a sua não execução, bem como o desconto no valor de 13.816,34€ referente à impermeabilização que entendeu executar por sua conta e risco, apesar de lhe termos fornecido o material e mão de obra para a impermeabilização das zonas enterradas, o valor total da referida empreitada e dos extras contratuais ascende atualmente ao montante de 159.815,44€ a que acresce o valor do IVA à taxa legal em vigor, totalizando a quantia de 196.572,99€ (cento e noventa e seis mil quinhentos e setenta e dois euros e noventa e nove cêntimos) de que V. Exª., até à presente data e por conta daquela dívida nos pagou o valor de 167.088,16€ (cento e sessenta e sete mil oitenta e oito euros e dezasseis cêntimos) conforme consta das facturas nºs. 30, 21, 22, 39 e 40 que juntamos em anexo, pelo que se encontra em dívida o montante de 29.484,83€ (vinte e nove mil quatrocentos e oitenta e quatro euros e oitenta e três cêntimos) c/ IVA incluído que solicitamos a V. Exª. o respetivo pagamento no prazo de oito dias úteis, findo o qual sem que o efectue seremos forçados a diligenciar judicialmente contra V,.Exª. pela sua cobrança coerciva, com todos os inconvenientes e encargos que isso acarreta.
(…)".
21. O que depois comunicou por carta registada com aviso de receção que a autora recebeu.
22. Os trabalhos de execução de estaleiro e segurança em obra foram executados e constam, nomeadamente, dos vários relatórios da coordenação de segurança em obra, da autoria do Eng.º CC, datados desde julho de 2019 até maio de 2021.
23. Os trabalhos de movimentação de terras para a obra da autora, piscina e zonas envolventes, encosto de terras à cave, limpeza, movimentação e transporte de terras sobrantes, correspondentes a alterações posteriores aquele contrato/ proposta foram realizados pela Ré, existindo um pequeno aterro por realizar, junto à escada de acesso à cave, mas não tem significado.
24. Tendo em conta o projeto de estabilidade datado de setembro de 2019 (com a revisão 03 de 25.10.2019), as alterações verificadas no local (com o acrescento de um compartimento na cave) e os preços unitários que constam na proposta anexa ao acordo referido supra, temos que:
a) Ponto 11 - a quantidade prevista era de 34,41 m3 para as sapatas de fundação (sem contar com o reforço do pilar e da sapata), o que implica um custo de € 11.699,40 (onze mil, seiscentos e noventa e nove euros e quarenta cêntimos);
b) Ponto 12 - a quantidade prevista era de 4,85 m3 para as vigas de fundação, o que implica um custo de € 2.151,07 (dois mil, cento e cinquenta e um euros e sete cêntimos);
c) Ponto 13 - a quantidade prevista era de 53,57 m3 para os muros de suporte, o que implica um custo de € 21.428,00 (vinte e um mil, quatrocentos e vinte e oito euros);
d) Ponto 14 - a quantidade prevista era de 1,51 m3 para os pilares da cave (sem contar com o reforço do pilar e da sapata), o que implica um custo de € 622,12 (seiscentos e vinte e dois euros e doze cêntimos);
e) Ponto 15 - a quantidade prevista era de 14,22 m3 para massame de fundação da cave, o que implica um custo de € 5.190,30 (cinco mil, cento e noventa euros e trinta cêntimos);
f) Ponto 16 - a quantidade prevista era, de 6,84 m3 para as vigas do teto da cave, o que implica um custo de € 2.804,40 (dois mil, oitocentos e quatro euros e quarenta cêntimos);
g) Ponto 17 - a quantidade prevista era de 27,09 m3 para a laje do teto da cave, o que implica um custo de € 11.106,90 (onze mil, cento e seis euros e noventa cêntimos);
h) Ponto 18 - a quantidade prevista era de 2,71 m3 para a laje de escada da cave, o que implica um valor de € 1.111,10 (mil, cento e onze euros e dez cêntimos);
i) Ponto 19 - a quantidade prevista era de 5,79 m3 para as vigas do teto do r/c, o que implica um valor de € 2.373,90 (dois mil, trezentos e setenta e três euros e noventa cêntimos);
j) Ponto 20 - a quantidade prevista era de 13,82 m3 para a laje do teto do r/c, o que implica um custo de € 5.666,20 (cinco mil, seiscentos e sessenta e seis euros e vinte cêntimos);
k) Ponto 21 - a quantidade prevista era de 1,62 m3 para a laje de escada do r/c, o que implica um custo de € 664,20 (seiscentos e sessenta e quatro euros e vinte cêntimos);
l) Ponto 22 - a quantidade prevista era de 3,88 m3 para os pilares do r/c, o que implica um custo de € 1.590,80 (cinco mil, quinhentos e noventa euros e oitenta cêntimos);
m) Ponto 23 - a quantidade prevista era de 6,18 m3 para as vigas do teto do 1º andar, o que implica um custo de € 2.533,80 (dois mil, quinhentos e trinta e tr~es euros e oitenta cêntimos);
n) Ponto 24 - a quantidade prevista era de 15,66 m3 para a laje do teto do 1º andar, o que implica um custo de € 6.420,60 (seis mil, quatrocentos e vinte euros e sessenta cêntimos);
o) Ponto 25 - a quantidade prevista era de 1,62 m3 para a laje de escada do 1º andar, o que implica um valor de € 664,20 (seiscentos e sessenta e quatro euros e vinte cêntimos);
p) Ponto 26 - a quantidade prevista era de 3,26 m3 para os pilares do 1º andar, o que implica um custo de € 1.336,60 (mil, trezentos e trinta e seis euros e sessenta cêntimos);
q) Ponto 29 - a quantidade prevista era de 1,62 m3 para a laje de escada da cobertura, o que implica um custo de € 664,20 (seiscentos e sessenta e quatro euros e vinte cêntimos);
r) Ponto 30 - a quantidade prevista era de 1,10 m3 para os pilares da cobertura, o que implica um valor de € 451,00 (quatrocentos e cinquenta e um euro);
s) Ponto 32 - a quantidade prevista era de 2,47 m3 para as vigas do teto da cobertura, o que implica um valor de € 1.012,70 (mil e doze euros e setenta cêntimos);
t) Ponto 33 - a quantidade prevista era e de 4,82 m3 para a laje do teto da cobertura, o que implica um valor de € 1.976,20 (mil, novecentos e setenta e seis euros e vinte cêntimos);
25. Acresce que as rubricas constantes dos pontos 27 e 28 do orçamento - no valor de € 16.400,00 (dezasseis mil e quatrocentos euros) encontram-se duplicadas, porquanto o executado corresponde, na realidade, aos pontos 32 e 33.
26. As guardas da cobertura (Ponto 31), situadas ao nível do 2º andar, foram executadas em alvenaria simples de tijolo furado, representando uma área de 38,22 m2, sendo 25,00 €/m2. donde resulta um custo de € 955,50 (novecentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta cêntimos).
27. Nas paredes exteriores (Pontos 37 a 39) foi executado um pano de tijolo furado para posterior aplicação de isolamento térmico pelo exterior (em vez dos dois panos de alvenaria previstos na proposta).
28. Relativamente ao custo de execução, existem preços contratuais para ambos os casos, sendo € 40,00 m2 para a alvenaria dupla e € 25,00 m2 para a alvenaria simples.
29. A Autora aceita pagar o valor de € 5.560,00 (50% do valor proposto), pela execução do referido trabalho.
30. No decurso da execução da empreitada, foi acordado entre a Autora e a Ré a execução dos trabalhos-a-mais seguintes: reforço de pilares da cave, tela e impermeabilização, manilhas, parede da rampa, laje da piscina e caixa de estores.
31. A Ré executou os seguintes trabalhos-a-mais: abertura de roços de canalização e eletricidade; demolição de parede em tijolo do quarto principal; abertura de roços para ar condicionado; cortes nas paredes betão; aplicação de caixa de estore; colocação de caixas de eletricidade; colocação de caixas de ar condicionado; chumbar tubos de esgotos; e, execução de nichos de WC.
32. A Autora aceita o custo de execução das caixas de estores, no valor de € 992,90 (novecentos e noventa e dois euros e noventa cêntimos).
33. A Autora entregou o valor de € 481,45 (quatrocentos e oitenta e um euros e quarenta e cinco cêntimos) por conta do trabalho a mais referente às caixas de estore aplicadas na obra pela empresa "F... &...Lda."
34. A parte do muro periférico situado acima do solo foi executada em alvenaria simples, com uma primeira fiada de blocos de cimento, tal como preconizado no desdenho EST.PE.11 do projeto de estabilidade, escavação, contenção periférica, da E......, datado de 2019/10 (com a revisão 02 de 19-10-2019), mas o restante foi executado em alvenaria de tijolo furado (Foto 10), representando no total uma área de 36,40 m x 1,50 m = 54,60 m2.
35. Para a determinação do seu custo, e atendendo a que não existe preço unitário contratual para esta espessura de parede, estimou-se o preço de € 30,00/m2, o que representa um custo de € 1.638,00 (mil, seiscentos e trinta e oito euros).
36. O volume de trabalho adicional correspondente ao aumento do pilar e sapata da cave (escavação, betão em sapata e betão em pilares) tem um custo estimado em € 433,96 (quatrocentos e trinta e três euros e noventa e seis cêntimos).
37. O volume de trabalho referente à execução da parede da rampa estima-se de 4,25 m x 1,00 m x 0,25 m = 1,06 m3
38. Atendendo ao preço unitário contratual (Item 13), à razão de 400,00 €/m2, estima-se um custo de € 424,00 (quatrocentos e vinte e quatro euros);
39. A área de muros enterrados, terraços e varandas com execução de impermeabilização executada é de 99,68 m2.
40. Atendendo a que não existe preço unitário contratual, estima-se o seu custo, à razão de € 45,00/m2, no montante de € 4.485,60 (quatro mil, quatrocentos e oitenta e cinco euros e sessenta cêntimos).
41. Atendendo a que terão sido aplicados 99,68 m2, seria sempre necessário considerar uma encomenda de material superior em 20% devido a desperdícios e sobreposições (colagens) é de considerar uma quantidade de cerca de 120m2.
42. O montante de € 6.908,17 (seis mil, novecentos e oito euros e dezassete cêntimos) corresponde ao pagamento da impermeabilização solicitada posteriormente pela Autora à Ré.
43. Para o fornecimento da tela e impermeabilização, o legal representante da Ré reencaminhou para a Autora um email do qual aparentemente constava a respetiva encomenda pelo valor de € 6.908,17 (seis mil, novecentos e oito euros e dezassete cêntimos).
44. Apresentando à Autora um suposto comprovativo da transferência de tal valor, pela Ré, para a conta bancária da empresa fornecedora – I.........
45. Logrando assim que a Autora, por sua vez, transferisse esse mesmo valor a favor da Ré.
46. Acontece que, o endereço de email .......................om não pertence a qualquer trabalhador ou colaborador dessa empresa.
47. Acresce que a suposta transferência bancária nunca foi concluída ou efetivada e nem o IBAN do beneficiário da mesma corresponde a uma conta bancária da empresa I........, mas sim da empresa “F..., Lda”
48. Tendo sido apresentado um print, tão só, da respetiva inserção de dados, com o fito de induzir a Autora em erro, o que logrou.
49. Relativamente aos valores a que se refere o email de fls. 23 v.º e valores aí indicados, o perito prestou os seguintes esclarecimentos:
“a) 41236 Laminas de drenagem 2,00 x 1,00 12 rolos (não aplicado na obra);
b) 40349 Botão Aquadrain c/ prego 5 caixas (correspondem a 1.000 pregos, quanto muito seriam aplicados em obra 1 caixa = 200 pregos);
c) 40348 Perfil Aquadrain 50 barras (não aplicado na obra); d) 40191 Platon DE 25 120 m2 (não aplicado na obra);
e) 40306 Tubo Drenagem Imperdreno Filtro 160 94 ml (não se consegue determinar se foi aplicado ou não, mas se o fosse só seriam necessários cerca de 20 metros);
f) 10104 Imperkote F 6 baldes 25 kg (não se consegue determinar se foi aplicado, ou não, mas se o fosse só seriam necessários cerca de 4 baldes);
g) 20114 Tela Polyplas 40 41 rolos = 410 m2 (não aplicado na obra);
h) 20114 Tela Polyxis R40 73 rolos = 730 m2 (terá sido aplicado em obra o equivalente a 12 rolos = 120 m2 ).”
50. Foi cumprida a última versão do projeto de alterações, havendo apenas a registar que, na cave, existe uma área adicional de construção, que não consta na última versão do projeto.
51. Os trabalhos de aumento de altura de pilares, redimensionamento de pilares, alteração do tipo de ferro, alteração das vigas para vigas invertidas, alterações na escada, execução de parede de contenção em betão, laje na zona da piscina exterior, muro acima da soleira e pilares para pérgola, correspondentes a alterações posteriores aquele contrato/ proposta foram realizados e corretamente executados pela Ré;
52. Entretanto, a Ré emitiu e enviou à Autora as faturas seguintes:
a) Fatura n.º 39/2021, de 05/06/2021, no valor de € 85.442,85 (oitenta e cinco mil, quatrocentos e quarenta e dois euros, oitenta e cinco cêntimos); e,
b) Fatura n.º 40/2021, de 05/06/2021, no valor de € 18.753,55 (dezoito mil, setecentos e cinquenta e três euros, cinquenta e cinco cêntimos).
53. Nas faturas emitidas pela Ré - com exceção da n.º 39/2021 - o IVA foi liquidado à taxa reduzida de 6% (não aplicável, por se tratar de empreitada de obra nova).
54. A Ré emitiu a nota de crédito n.º 8/2019, pelo valor de € 32 582,28 (trinta e dois mil, quinhentos e oitenta e dois euros e vinte e oito cêntimos, onde se lê “Referente ao nosso documento n.º 36 Fatura e por instruções da nossa contabilidade que nos informou que dado que a obra é nova não poderá ser faturado o valor do IVA a 6% mas sim a 23%”.
55. Para beneficiar da isenção do IVA, a Autora e o legal representante da Ré acordaram que os pagamentos devidos à empresa "V..., Unipessoal, Lda”, por serviços de eletricidade e eletricista na obra, à empresa "C..., Lda” e empresa “S..., Lda”, por trabalhos e materiais respeitantes a caixilharias de alumínios e a cozinha para a obra da Autora, fossem faturados à Ré e que esta pagaria à referida empresa, após transferência para a sua conta daqueles valores pela Autora.
Com esta ação, a Autora, alegando um incumprimento definitivo parcial da Ré da prestação de construção da estrutura e alvenaria de uma moradia unifamiliar a que esta se obrigou, pela celebração de um contrato de empreitada, pretende que ela lhe restitua a parte do preço que a Autora pagou em excesso, tendo em conta o custo da parte da obra realizada.
Provou-se que a Autora e a Ré celebraram, em 20.02.2019, um acordo, reduzido a escrito, tendo por objeto a construção da estrutura e alvenaria de uma moradia familiar em terreno pertencente à Autora, nos termos do qual, em contrapartida da execução da totalidade dos trabalhos e materiais, seria pago pela Autora à Ré o montante total de € 155.702,05 (cento e cinquenta e cinco mil, setecentos e dois euros, cinco cêntimos), acrescido de IVA à taxa legal em vigor, tendo sido acordado que o prazo de execução das obras seria de 180 dias úteis, com início em 29.04.2019 e termo previsto em 29.10.2019.
Estamos perante a celebração de um contrato de empreitada (artigo 1207.º do Código Civil), tendo por objeto a realização de obras inseridas na construção de um imóvel.
1. Do incumprimento contratual
Provou-se que a partir de final de 2020, a Ré retirou da obra os seus trabalhadores, materiais e equipamentos, comunicando à Autora que não iria concluir os trabalhos ainda em curso, o que não mereceu oposição por parte da Autora.
O facto de a Autora não ter praticado atos reveladores da sua discordância, relativamente à cessação por parte da Ré dos trabalhos de realização da obra contratada, sem que esta estivesse concluída, não significa necessariamente que tenha existido um acordo sobre essa cessação. O non contradicere não é sempre equivalente a um consensus. A inércia pode ter as mais diferentes razões que, em si mesmo, constitui uma realidade neutra, insuscetível de, por si só, desencadear efeitos negociais. Na verdade, a falta de reação não pode ser uma fonte de vinculação, não desejada, com desrespeito pelo princípio da autonomia privada.
É isso que, a contrario, nos diz o artigo 218.º do Código Civil quando dispõe que o silencio vale como declaração negocial, quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção.
Não estando nós perante uma destas situações em que à inércia é atribuído um significado vinculativo, o facto da Autora não se ter oposto ao termo dos trabalhos de realização da obra, antes desta estar completa, não significa que tenha acordado com a Ré esse termo extemporâneo, pelo que não é possível visionar uma revogação do contrato, por acordo das partes, como pretende a Ré.
A realização da prestação do empreiteiro no contrato de empreitada prolonga-se no tempo, sendo, por isso, uma prestação duradora.
A cessação definitiva desta prestação, no decurso da sua realização, antes dela se encontrar totalmente cumprida, integra a conhecida figura do abandono da obra.
Como se escreveu no acórdão deste tribunal de 14.01.2021, subscrito por este mesmo Relator, o abandono da obra é um conceito que há muito foi adotado no universo da gíria jurídica e que traduz o comportamento do empreiteiro que, após ter iniciado a execução dos trabalhos de realização da obra a que se vinculou, por iniciativa unilateral, cessa essa execução de um modo e/ou durante um período de tempo revelador, de forma concludente, que é sua intenção firme não retomar aqueles trabalhos, deixando a obra inacabada.
Com esta configuração, o abandono da obra, tem sido qualificado pela jurisprudência 3 e pela doutrina 4 como um comportamento significante da recusa do empreiteiro a cumprir integralmente a prestação a que se obrigou, dotada das caraterísticas que justificam a sua equiparação a um incumprimento parcial definitivo da obrigação de realizar a obra contratada.
Sendo a prestação de realização da obra, típica do contrato de empreitada, uma prestação duradoura e, no tipo de obra aqui em causa, de execução contínua, o abandono da obra, enquanto comportamento de recusa a cumprir, apresenta a especificidade de não consistir numa recusa antecipada, mas sim numa recusa em prosseguir a execução de uma prestação já iniciada. Essa conduta, essencialmente omissiva, mas podendo ser precedida de ações que a anunciam (v.g. retirada de materiais e máquinas), para ser significante de um propósito definitivo de não conclusão do ato de realização da obra, deve ser aparente, categórica e unívoca.
No presente caso, a Ré, a partir do final de 2020, retirou da obra os seus trabalhadores, materiais e equipamentos e comunicou à Autora que não iria concluir os trabalhos ainda em curso, pelo que não só praticou atos reveladores da sua intenção de não concluir a obra que se comprometeu a realizar, como também comunicou essa sua decisão à Autora. O que veio a suceder posteriormente – negociações entre a Autora e a Ré, tendo por objeto a liquidação do preço da obra realizada – confirma, aliás, que aqueles atos e declaração traduziram uma vontade séria, categórica e definitiva de não concluir a obra iniciada, por vontade unilateral, pelo que estamos perante uma situação de incumprimento definitivo parcial da prestação a que a Ré se obrigou – a construção da estrutura e alvenaria de uma moradia familiar em terreno pertencente à Autora.
2. Do regime legal aplicável
Perante o incumprimento definitivo parcial da obrigação de realizar a obra contratada, a Autora pretende que lhe seja devolvida a parte do preço já pago que exceda o preço devido pela parte da obra realizadas pela Ré, o que se traduz numa pretensão de redução do preço acordado.
O mérito desta pretensão não deve, no entanto, ser apurado à luz do regime do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 abril, o qual, sendo aplicável ao incumprimento parcial de um contrato de empreitada, uma vez que o incumprimento quantitativo também se encontra abrangido pela noção de desconformidade daquele diploma 5, apenas se aplica às denominadas empreitadas de consumo, ou seja aquelas em que o empreiteiro é um profissional e o dono da obra é uma pessoa que destina a obra a um fim não profissional (artigo 1.º - B, a), do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril).
Ora, neste caso, apenas sabemos que as obras contratadas visavam a edificação de uma moradia unifamiliar. Embora das caraterísticas de um imóvel se poderá extrair a sua previsível utilização, nomeadamente que uma moradia unifamiliar se destinará à habitação, não foi alegado e, por isso, não se provou que a Autora ao contratar a sua construção visava habitá-la, podendo ser seu intuito vendê-la ou ceder o seu gozo a terceiros, no exercício de uma atividade profissional.
Não está, pois, apurado o destino que a Autora visava dar à moradia unifamiliar quando contratou a sua construção, competindo a esta alegar e provar que esse destino era o de uma utilização não profissional para que pudesse beneficiar da aplicação do regime mais favorável aos seus interesses do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 abril.
Não tendo feito, não é possível aplicar tal regime legal, sendo antes aplicável a este contrato o regime especial do contrato de empreitada e o regime geral do direito das obrigações, constantes do Código Civil.
Ao contrário do que acontece com o regime do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, o regime especial previsto para a existência de defeitos na obra nos artigos 1218.º e seguintes do Código Civil não é aplicável nas situações em que o vício da obra é apenas quantitativo, o que sucede nas hipóteses de incumprimento definitivo parcial, por abandono da obra 6.
A esta situação é aplicável o regime geral do cumprimento das obrigações que consta do Código Civil, designadamente do disposto no artigo 802.º do Código Civil.
Dispõe este preceito:
1. Se a prestação se tornar parcialmente impossível, o credor tem a faculdade de resolver o negócio ou de exigir o cumprimento do que for possível, reduzindo neste caso a sua contraprestação, se for devida; em qualquer dos casos o credor mantém o direito à indemnização.
2. O credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância.
Perante um incumprimento parcial definitivo de uma prestação, o seu credor pode optar por resolver o negócio ou, se nisso tiver interesse, exigir o cumprimento do que for possível ou ficar com o que já foi prestado.
Quando já foi realizado o cumprimento de parte da prestação, como ocorre nas situações em que a obra é abandonada, a segunda opção facultada ao credor traduz-se em permanecer com a parte da prestação já realizada, ficando com o direito de reduzir a sua contraprestação.
Se esta já foi realizada e a medida da sua realização excede, proporcionalmente, a medida da parte da prestação recebida, o credor tem direito à restituição desse excesso 7.
É precisamente o direito à restituição desse excesso que a Autora exerce com o pedido de devolução de parte do preço que já pagou à Ré, no âmbito do contrato de empreitada que celebrou com esta.
3. Da redução do preço
O acórdão recorrido confirmou a sentença proferida na 1.ª instância, a qual concluiu da leitura e análise da matéria de facto provada que, para pagamento de todas as obras realizadas pela Ré na construção da moradia, a Autora pagou-lhe € 182.168,91, sendo o valor dos trabalhos de execução dessas obras € 95.476,20, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor de 23%, no valor de € 21 959,52, pelo que a Autora deverá receber da Ré a diferença entre aqueles valores, isto é, € 64.463,19.
A Ré questiona que a redução da contraprestação da Ré se possa fazer, tomando em consideração aqueles valores, alegando que o preço fixado contratualmente era um preço global fixo.
Entende a Ré que uma vez que o contrato de empreitada e proposta comercial acordado e outorgado em 20/02/2019 é por preço / valor global, isto implica um acordo prévio de pagamento total global fixo para aqueles trabalhos e materiais entre A/recorrida e R/recorrente, independentemente das quantidades, valores e/ou preços variarem aquando da execução daqueles trabalhos e aplicação dos materiais no âmbito do contrato de empreitada, inexistindo qualquer direito do empreiteiro ou do dono da obra a exigir um do outro acréscimos de pagamentos daqueles valores e / ou quantidades variáveis ou reclamar a restituição ou a redução daqueles valores e / ou materiais através de medições e quantificações posteriores a efetuar por um ou por outro, os quais estão fora da natureza e do objeto do acordo estabelecido entre as partes no que respeita ao regime / modalidade de preço/valor global fixo.
Além disso, também alega que não se podem misturar pagamentos e obras que respeitam aos trabalhos-a-mais referentes a alterações da A./recorrida ao projeto inicialmente aprovado (...) e a extras contratuais posteriormente solicitados pela A/recorrida à R./recorrente e completamente fora do âmbito dos dois anteriores.
Da análise do contrato celebrado entre as partes resulta que, efetivamente, na cláusula 3.ª se referiu que o regime da empreitada era de valor global fixo conforme esquema de aplicação em anexo inserido na proposta comercial aprovada, sendo o preço, estabelecido na cláusula 5.ª, de € 155.702,05 estimado num valor total previsto, acrescido de IVA à taxa legal em vigor.
Da mencionada proposta comercial anexa ao contrato, encontravam-se descriminados os preços dos diferentes trabalhos a realizar, por medida (m3 e m2), cujo valor somava os referidos € 155.702,05.
O preço de uma empreitada pode ser determinado à partida de um modo global e fixo, designado por preço à forfait, a corpo, ou per aversionem. Nestes casos, o preço é estabelecido no momento da conclusão do contrato, independentemente das quantidades de trabalho ou o real custo dos materiais que venham a ser efetivamente aplicados na obra. É um preço invariável que implica uma cuidadosa previsão dos trabalhos a realizar e do seu custo.
Apesar do preço ser global ele pode resultar da soma de diversos preços parcelares da obra que traduzam a previsão dos diversos trabalhos a realizar e do seu custo. Necessário é que essas parcelas já se encontrem previamente determinadas e quantificadas.
Diversamente, o preço pode ser estabelecido a posteriori, convencionando-se no contrato o modo como ele deve ser determinado. Perante dificuldades de uma previsão pormenorizada das características e custos efetivos da obra a realizar, as partes podem preferir estabelecer apenas os critérios através dos quais, concluída a obra, se determinará o seu preço. Os parâmetros utilizados para determinar o preço podem ser mais ou menos objetivos, sendo normalmente escolhidos em atenção às características da obra a realizar, e visam a obtenção de um valor que englobe os custos da obra e o lucro justo do empreiteiro. Neste modelo, em que as partes convencionaram o modo de determinar o preço, são habitualmente referidas as empreitadas por artigo, por medida, por tempo de trabalho ou por percentagem 8, sendo por vezes adotados distintos critérios parcelares na determinação do preço da obra, resultando da sua articulação o preço total da obra.
No texto do contrato afirma-se, expressamente, que o regime adotado é o de valor global fixo, tendo-se fixado esse valor em € 155.702,05.
O facto de no contrato se descriminarem os preços dos diferentes trabalhos a realizar, por medida (m3 e m2) e preço unitário, não significa que, contrariamente ao enunciado, se tenha adotado um método a posteriori de cálculo do preço, mas apenas que se especificou a previsão do custo dos diversos trabalhos que integravam a obra contratada e que somados perfaziam o preço global fixo acordado.
Se a previsão de um preço global fixo num contrato de empreitada, em princípio, impede que se venha a questionar a obrigação do seu pagamento, com fundamento em que da medição a posteriori dos trabalhos realizados, de acordo com a previsão do custo parcelar dos mesmos, se encontra um valor diferente do preço global fixado a forfait, será que a redução desse preço, justificada pelo incumprimento parcial da empreitada, não poderá resultar da aplicação dos preços unitários e medidas constantes do contrato para cálculo dos preços parcelares?
No regime do contrato de empreitada, nas situações em que ocorrem defeitos na obra, um dos direitos atribuídos pelo artigo 1222.º do Código Civil ao dono da obra é o da redução do preço contratado, dispondo o n.º 2 daquele dispositivo que a redução do preço é feita nos termos do artigo 884.º do Código Civil.
Traduzindo-se a existência de defeitos na obra num incumprimento parcial qualitativo da prestação do empreiteiro, deve o disposto naquele preceito, por identidade de razão, aplicar-se também às situações de incumprimento parcial quantitativo da prestação do empreiteiro, regendo também nestas situações o disposto no artigo 884.º do Código Civil, o qual determina, no seu n.º 1, relativamente à redução do preço no contrato de compra e venda:
Se a venda ficar limitada a parte do seu objeto, nos termos do artigo 292.º ou por força de outros preceitos legais, o preço respeitante à parte válida do contrato é o que neste figurar, se houver sido discriminado como parcela do preço global.
Assim, quando apesar do preço ter sido globalmente fixado num contrato de empreitada para a realização de toda a obra, mas foram estabelecidos preços para as várias partes da obra, como sucedeu neste caso, se uma parte da obra não é realizada, o preço deve ser reduzido à soma dos valores parcelares da parte da obra realizada 9.
Foi precisamente essa a solução preconizada pelas instâncias que calcularam o valor da parte da obra realizada pela Ré, aproveitando para o seu cálculo os preços unitários e o valor das medidas estipulados respeitantes aos trabalhos parcelares, pelo que o facto de ter sido globalmente fixado o preço da empreitada, a circunstância de terem sido estabelecidos aqueles custos parcelares, permitiu que a redução do preço a pagar se efetuasse nos termos do artigo 884.º, n.º 1, do Código Civil.
Quanto à circunstância de se terem englobado no valor dos trabalhos realizados pela Ré, os denominados trabalhos a mais, em primeiro lugar não se sabe se os mesmos respeitam a distintos contratos, por não existirem na matéria de facto os elementos suficientes para que se possam qualificar tais trabalhos como extracontratuais, relativamente ao contrato de empreitada outorgado entre as partes, podendo antes constituir simples alterações à obra contratada, atento o critério distintivo constante do artigo 1217.º, n.º 1, do Código Civil. Além disso, o facto de não se ter apurado o pagamentos de diferentes preços, mas antes o pagamento parcelado de uma obra única, uma vez que foram sendo feitas diversas entregas de dinheiro, por conta do pagamento da empreitada, como se refere no ponto 12 da matéria de facto provada, permite que o valor da redução desse preço, encarado como único, possa resultar da subtração do valor de todos os trabalhos realizados. Mesmo que exista a alegada mistura de obras, ela é legitimada pela mistura do pagamento dos seus preços, no cálculo da redução de um preço encarado como único.
4. Conclusão
Por todas as razões acima explicadas, acaba por se concluir pela procedência meramente parcial do recurso, cingida à revogação do segmento decisório do acórdão recorrido que decretou a resolução do contrato celebrado entre Autora e Ré, devendo confirmar-se, embora com diferente fundamentação, o demais decidido.
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pela Ré e, em consequência:
- revoga-se o acórdão recorrido na parte em que decretou a resolução do contrato de empreitada outorgado entre a Autora e a Ré;
- no demais, confirma-se o acórdão recorrido.
João Cura Mariano (relator)
Emídio Santos
Afonso Henrique
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1. Sobre a admissibilidade dos pedidos implícitos ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 21, e os recentes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29.09.2022, Proc. 605/17 (Rel. Fernando Baptista), e de 30.05.2023, Proc. 135/21 (Rel. Maria Clara Sottomayor).
2. JOÃO BAPTISTA MACHADO, A Resolução por Incumprimento e a Indemnização, “Obra Dispersa”, vol. I, Scientia Iuridica, 1991, p. 199 e seg., BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 4.ª ed., UCP Editora, 2023, p. 393 e seg., e A Resolução do Contrato no Direito Civil. Do Enquadramento e do Regime, Separata do vol. XXII do Suplemento ao B.F.D.U.C., 1982, p. 116 e seg., JORGE RIBEIRO DE FARIA, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, 2023, p. 367 e seg., MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. II, 12.ª ed., Almedina, 2019, p. 274-275, CATARINA MONTEIRO PIRES, Contratos. Perturbações na Execução, Almedina, 2019, p. 67 e seg., e PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, Coimbra Editora, 2008, p. 1521 e seg.
3. V.g. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.12.2008, Proc. 08A965 (Rel. Nuno Cameira), de 12.03.2009, Proc. 09A0362 (Rel. Urbano Dias), de 9.12.2010, Proc. 3803/06 (Rel. Álvaro Rodrigues), e de 30.05.2019, Proc. 626/16 (Rel. Bernardo Domingos).
4. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Wolters Kluwer, sob a marca Coimbra Editora, 2011, pág. 263, A Hipótese da Declaração (Lato Sensu) Antecipada de Incumprimento por Parte do Devedor, em “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria”, Coimbra Editora, 2003, pág. 363.
5. JORGE MORAIS CARVALHO, Manual de Direito do Consumo, 8.ª ed., Almedina, 2022, p. 379, PEDRO ALBUQUERQUE / MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, Direito das Obrigações. Contratos em Especial. Contrato de Empreitada, 2.ª ed., Almedina, 2019, p. 486-487, JOÃO CURA MARIANO, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 7.ª ed., Almedina, 2020, p. 270, e SARA LARCHER, Contratos celebrados através da Internet: Garantia dos Consumidores contra Vícios na Compra e Venda de Bens de Consumo, “Estudos do Instituto do Direito de Consumo”, vol. II, p. 179-180.
6. PEDRO DE ALBUQUERQUE /MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p. 411, AGOSTINHO CARDOSO GUEDES, A responsabilidade do Construtor no Contrato de Empreitada, “Contratos: Atualidade e Evolução”, Universidade Católica Portuguesa, 1997, p. 326, e JOÃO CURA MARIANO, ob. cit., p. 51-52.
7. CATARINA MONTEIRO PIRES, ob. cit., p. 69.
8. Sobre estas modalidades de empreitada, quanto ao modo de determinação do preço, PEDRO ROMANO MARTINEZ, em Contrato de empreitada, Almedina, 1994, p. 106-108, e em Direito das obrigações (Parte. Especial). Contratos. Compra e Venda. Locação. Empreitada, 2.ª ed. Almedina, 2001, p. 396-397, ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, em Direito Privado II (Contrato de empreitada), A.A.F.D.L., 1983, p. 9-10, MENEZES LEITÃO, em Direito das obrigações, vol. III, 12.ª ed., Almedina, 2018, p. 524-525, e PEDRO DE ALBUQUERQUE/MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., pág. 183-187,
9. Neste sentido PEDRO ROMANO MARTINEZ, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações. Contrato em Especial. UCP Editora, 2023, p. 828 e JOÃO CURA MARIANO, ob. cit., p. 126.